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A Sociologia de Pierre Bourdieu: potencialidade teórica para o subcampo da enfermagem

RESUMO

Objetivo:

abordar as concepções basilares da Sociologia de Pierre Bourdieu e sua articulação com o subcampo da enfermagem, com enfoque nos aspectos gerenciais.

Método:

as reflexões se pautam nos conceitos de campo, habitus, capital e poder simbólico aplicados ao subcampo da enfermagem, favorecendo a compreensão da dinâmica organizacional e dos seus agentes.

Resultado:

As instituições de saúde são estruturas vivas inseridas no mundo social adverso, onde os interesses dos agentes da enfermagem expressam sua forma de pensar e agir de acordo com o lugar que ocupam na organização. São espaços de luta e violência simbólica que tendem à inculcação de ideologias que atendam seus interesses.

Considerações finais:

A proposição teórica bourdieusiana é fecunda para refletir a prática da gestão ao desvelar as relações e o papel que as organizações estabelecem sobre seus agentes. Ela alerta sobre a possibilidade de se vislumbrar mudanças no subcampo da enfermagem.

Descritores:
Sociologia; Enfermagem; Prática Profissional; Organizações; Organização e Administração

ABSTRACT

Objective:

to approach the basic conceptions of Pierre Bourdieu's sociology and its articulation with the subfield of nursing by focusing on managerial aspects.

Method:

reflections are based on the concepts of field, habitus, capital and symbolic power applied to the subfield of nursing by favoring the understanding of organizational dynamics and its agents.

Result:

health institutions are living structures in the adverse social world where nursing agents' interests express their way of thinking and acting according to the place they occupy in the organization. These spaces of fight and symbolic violence tend to inculcate ideologies that meet these agents' interests.

Final Considerations:

The proposition theory is fruitful to reflect the practice of management by unveiling the relationships and role that organizations establish about their agents. She warns about the possibility of seeing changes in the subfield of nursing.

Descriptors:
Sociology; Nursing; Professional Practice; Organizations; Organization and Administration

RESUMEN

Objetivo:

Abordar las concepciones basilares de la Sociología de Pierre Bourdieu y su articulación con el subcampo de la enfermería, con enfoque en los aspectos gerenciales.

Método:

Las reflexiones se basan en los conceptos de campo, habitus, capital y poder simbólico aplicados al subcampo de la enfermería, favoreciendo la comprensión de la dinámica organizacional y sus agentes.

Resultado:

Las instituciones de salud son estructuras vivas en el mundo social adverso, donde los intereses de los agentes de la enfermería expresan su forma de pensar y actuar de acuerdo con el lugar que ocupan en la organización. Son espacios de lucha y violencia simbólica que tienden a la inculcación de ideologías que atiendan sus intereses.

Consideraciones finales:

La proposición teórica de Bourdieu es fecunda para reflejar la práctica de la gestión al desvelar las relaciones y el papel que las organizaciones establecen sobre sus agentes. Ella alerta sobre la posibilidad de vislumbrar cambios en el subcampo de la enfermería.

Descriptores:
Sociología; Enfermería; Práctica Profesional; Organizaciones; Organización y Administración

INTRODUÇÃO

Entre as décadas de 1960 a 1980, o filósofo Pierre Bourdieu desenvolveu forte contribuição para a formação do pensamento sociológico do século XX. Ao longo da sua vida, desenvolveu estudos dos fenômenos de cunho social, cultural e histórico, que foram empregados em várias áreas do conhecimento. Explorou diferentes objetos e problemas, desde a sociedade tribal de cabila até a gênese do Estado, que cria e impõe os meios de divisão. Depois, perpassou por vários campos do conhecimento e discutiu temas como educação, cultura, arte, mídia, linguística e política(11 Pinto L. Pierre Bourdieu e a Teoria do Mundo Social. Rio de Janeiro: FGV; 2000.).

No fim da década de 1950, em seus primeiros trabalhos sobre a sociedade cabila, fez reflexões conceituais sobre a relação sociedade-espaço. Observou a organização espacial de oposições simbólicas, a repartição de tarefas e sua relação com a sociedade. Trabalhou a relação entre espaço físico e espaço social ao analisar o efeito social do espaço e discutir como o sistema colonial interferiu nas estruturas e desculturação desse povo(22 Bourdieu P. A casa ou o mundo invertido. In: Bourdieu P. O senso prático. 3. ed. RJ: Vozes; 2011. p. 437-462.).

Mais tarde, focou seu olhar crítico sobre o saber acadêmico e o papel da sociologia diante da sociedade e de si mesma ao questionar a formação do sociólogo enquanto censor e detentor de um discurso de verdade sobre o mundo social. Assim, a sociologia não poderia esquecer que "seu pertencimento ao mundo social se apresenta como um problema de conhecimento, jamais totalmente dissociável das práticas e tarefas práticas decorrentes desse pertencimento"(11 Pinto L. Pierre Bourdieu e a Teoria do Mundo Social. Rio de Janeiro: FGV; 2000.).

Bourdieu admite a existência de estruturas objetivas no mundo social, que podem dirigir ou coagir as ações e representações dos agentes. Entretanto, os agentes podem transformar ou conservar tais estruturas, ou ao menos desejar mudanças. O fato é que tais estruturas são construídas socialmente, os agentes incorporam a estrutura social e, ao mesmo tempo a produzem, legitimam e reproduzem. Neste sentido, Bourdieu rejeita a dicotomia subjetivismo/objetivismo, já que as relações sociais acontecem numa relação dialética(11 Pinto L. Pierre Bourdieu e a Teoria do Mundo Social. Rio de Janeiro: FGV; 2000.).

Sua teoria é constituída por um conjunto de conceitos basilares tais como habitus, campo e capital (social, cultural, econômico e simbólico) e poder simbólico. O mundo social é espaço de luta, violência e poder simbólico, que visam a inculcação de ideologias e favorecem a manutenção do lugar de poder. Essas concepções de Bourdieu são empregadas em vários campos do conhecimento, pois as práticas sociais são estruturadas e apresentam propriedades características da posição social de quem as produz. Assim, "[...] a posição ocupada no espaço social, isto é, na estrutura de distribuição de diferentes tipos de capital, que também são armas, comanda as representações desse espaço e as tomadas de posição nas lutas para conservá-lo ou transformá-lo"(33 Bourdieu P. Espaço Social e Espaço Simbólico. In: Bourdieu P. Razões e práticas: sobre a teoria da ação. 11. ed. Campinas: Papirus; 2011. p. 13-27.).

Esses fundamentos estão diretamente implicados com o subcampo da administração que envolve formulação das teorias administrativas que, por sua vez, desenham a organização, estabelecem o processo e divisão do trabalho, as relações de subordinação e poder existentes nas instituições, os padrões de desempenho e, consequentemente, delineiam os modelos de gestão dos quais a enfermagem e outros profissionais se apropriam na prática do exercício profissional.

O campo da saúde é constituído por várias disciplinas e áreas de conhecimento que formam seus subcampos ou subsistemas. No subcampo da enfermagem, se percebe a possibilidade de várias aderências dos conceitos da sociologia de Bourdieu, tendo em vista a extensa dimensão que envolve as ações do enfermeiro (agente), seja de natureza assistencial, docente, de direção de instituições de saúde, de pesquisa, de consultoria ou natureza política, dentre outras. Por outro lado, o enfermeiro estabelece interação com a equipe de enfermagem e os demais profissionais da saúde ou do campo de ciências humanas e organizacionais. Enquanto agente produtor de um serviço, também está inserido em organizações simples ou complexas com uma estrutura e cultura próprias, e estabelece as normas que permeiam o trabalho do corpo organizacional.

Portanto, há uma gama de possibilidades de se refletir e interpretar fenômenos do subcampo da enfermagem. Este artigo se propõe a apresentar uma reflexão sobre as percepções contemporâneas das ciências sociais utilizando a Sociologia de Pierre Bourdieu e suas concepções de habitus, campo, capital e poder simbólico aplicados ao subcampo da enfermagem. Foi levado em consideração que as pesquisas do campo da saúde pouco abordam esse aporte teórico, principalmente ao considerar o enfoque gerencial e organizacional.

Essa proposição possibilita colocar em discussão a dinâmica que circunscreve o cotidiano organizacional e as ações de seus agentes não somente a partir da fundamentação das teorias da administração, mas sob um novo aporte teórico. Bourdieu nos apresenta uma análise de fenômenos como a reprodução, lógica de dominação e implicações que envolvem a violência simbólica exercida pelas estruturas organizacionais sobre os agentes numa perspectiva histórico social. Além disso, aponta para a possibilidade de seus agentes virem a corromper esse paradigma a partir do espírito crítico e participante.

ARTICULAÇÃO DAS CONCEPÇÕES DE PIERRE BOURDIEU COM A GERÊNCIA DE ENFERMAGEM

Há uma relação direta entre texto e contexto, um universo intermediário que Bourdieu denomina ser o campo onde "estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem" a arte, a literatura ou a ciência. Assim, temos o campo artístico, o campo literário e o campo científico(44 Bourdieu P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: UNESP; 2004.).

O campo da saúde utiliza conhecimentos científicos de diferentes campos. O subcampo da enfermagem, em particular, se apropria do saber das ciências biológicas, humanas e sociais, da tecnologia da informação, da administração e da educação, dentre outros. No exercício da profissão, esses conhecimentos são aplicáveis nas atividades relacionadas ao cuidado propriamente dito. Mas o conhecimento do subcampo da administração ganha destaque na gestão do cuidar ou na gerência de serviços ou organizações em diferentes cenários. Deve-se considerar também que a enfermagem está inserida nas instituições encarregadas pelo ensino, assistência, produção e circulação do conhecimento, onde a disciplina de administração também ocupa espaço relevante e é transversal ao longo da formação profissional.

A administração nasceu como ciência social que sistematizou as práticas de gestão a partir do início do século XX. Inicialmente, seu foco centrava-se na busca da eficiência do trabalhador fabril e, desde então, veio acompanhando e revolucionando o mundo organizacional. A priori, envolveu a organização numa abordagem prescritiva e normativa, no processo administrativo de planejar, organizar, dirigir e controlar. Mais adiante, empreendeu-se a compreender as pessoas como parceiras e protagonistas do processo de produção de bens e serviços. Prosseguiu no caminho de trazer para si as concepções da sociologia e da psicologia organizacional, da teoria de sistemas e, vislumbrando no horizonte o mundo globalizado e a era da informação, se pôs a compreender e propor caminhos que dessem conta dos desafios da complexidade, das rápidas transformações e incertezas do mundo cambiante e imprevisível.

O padrão gerencial dos gestores das instituições tomou como base um ou mais referenciais do campo da administração para atender a premissas e interesses das organizações dentro do contexto de uma época. São paradigmas que emergiram na busca de dar conta das demandas internas e externas das organizações. A partir de crises, em geral os gestores buscam mudanças. Da necessidade de novos rumos, emergem novos modelos gerenciais que substituem o anterior ou se complementam e, embora pareçam ambíguos, se entrelaçam ou se justapõem na proposição de dar outro ritmo à dinâmica institucional.

A configuração do subcampo da enfermagem se processou à luz da sua história e das mudanças político-econômicas e sociais que ocorreram no país. Como nas organizações de saúde públicas e privadas, ao adotar modelos gerenciais que melhor respondessem às suas necessidades. Nesse sentido, esses modelos incorporados ao longo do tempo não são desprovidos de teor científico, não são aleatórios e não nasceram por acaso.

As instituições de saúde são estruturas vivas inseridas no mundo social adverso e contraditório, onde os interesses dos agentes do campo e subcampos (subsistemas) estão intimamente ligados ao lugar que ocupam na organização. Bourdieu admite a existência dessas estruturas objetivas no mundo social, que podem dirigir ou coagir as ações e representações dos indivíduos. Por outro lado, há uma dialeticidade de movimento desses agentes, que podem conservar ou transformar tais estruturas(11 Pinto L. Pierre Bourdieu e a Teoria do Mundo Social. Rio de Janeiro: FGV; 2000.).

No subcampo da enfermagem, é importante atentar-se para a contextualização destas estruturas, para os meios de luta, contra os efeitos da naturalização e do olhar simplista e dogmático do que se apresenta ou aparenta. Nesse entendimento, devemos nos reportar ao passado que constituiu a enfermagem não só como meio de descrevê-lo, mas como forma de fazer contato com o acontecido e, por meio da arte de pensar, refletir o presente que nos está intimamente ligado, mas pode nos apresentar como invisível. Tal fato nos faz enfatizar que os campos e subcampos foram construindo historicamente certa autonomia e possuem características particulares com seus conflitos, alianças, compromissos e contradições. Ou seja, possuem regras de convivência nas disputas e interesses que perpassam as relações de seus agentes(44 Bourdieu P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: UNESP; 2004.).

Na luta constante entre classes que constituem a sociedade, há a do lugar de poder e, ao enfocar a gerência, no subcampo da enfermagem não é diferente. Para manutenção do poder, seus detentores defendem suas ideologias e visam demonstrar que seus interesses particulares representam os interesses do coletivo, o que já caracteriza uma violência simbólica. Trata-se de um poder oculto e dissimulado que se propõe a garantir a dominação. Para Bourdieu, esse é o poder simbólico, ou seja, "o poder invisível que só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem"(55 Bourdieu P. O poder simbólico. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil; 2011.).

Os sistemas simbólicos só podem exercer um poder estruturante porque são estruturados. Essa estrutura a que Bourdieu se refere, diz respeito aos símbolos que trazem no seu bojo a intenção de efetivação da integração social, que por sua vez contribui para a formação de um consenso sobre a realidade e facilita a reprodução da ordem social(55 Bourdieu P. O poder simbólico. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil; 2011.).

Nas instituições de saúde, é possível identificar as relações sociais historicamente construídas pelos agentes dos subcampos que as constituem e se estabelecem numa dinâmica quase sempre contraditória, mas não desprovida de sentidos. Para entender suas leituras, é necessário reconhecer seu nascedouro, ou seja, o percurso histórico social de cada subsistema que compõe o campo da saúde, assim como suas crenças e os valores coletivos produzidos nesse campo.

Nesse sentido, é instigante atentar às várias dimensões que permeiam o campo social da saúde e o subcampo da enfermagem em particular, principalmente considerando que o enfermeiro se orienta para a prática através de "condutas regulares" ou da "regularidade das condutas" estabelecidas institucionalmente. É necessário compreender que as instituições de saúde são estruturas construídas socialmente por seus agentes, mas também regulam as suas ações, ou seja, as organizações definem as normas, valores e competências que devem ser interiorizadas por seus agentes. Isso nos remete ao habitus, entendido por Bourdieu como os esquemas de ação e pensamento dos agentes dominantes ou dominados. Assim, os agentes pensam, agem e têm capacidade de se transformar e se comportar de determinada maneira de acordo com as circunstâncias(66 Bourdieu P. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense; 2011.). Nesse sentido, no espaço social organizacional, o habitus gerencial do enfermeiro, é orientado para a aquisição de prestígio e reconhecimento dos seus pares, de forma a assegurar a autoridade desejada institucionalmente.

Na prática social de gestão, o habitus gerencial representa o esquema de ação dos gestores que é construído a partir de seus conhecimentos e da experiência adquirida no espaço social das instituições formadoras e da organização onde estão inseridos. Assim, o subcampo da enfermagem está imbricado em si mesmo, tendo em vista a sua historicidade no contexto do campo da saúde e nas instituições onde exerce suas ações.

O processo de aquisição do capital cultural investido pelos enfermeiros contribui para a construção do seu saber técnico, administrativo, de ensinar, pesquisar e também favorece sua atuação política. Esses saberes conferem competências que subsidiam o habitus dos agentes em diferentes âmbitos organizacionais. Portanto, o habitus se explicita nas relações com cliente e família e com agentes da saúde nas ações de cuidar, na gerência da equipe e dos serviços que constituem a estrutura organizacional das instituições. Oferece um norte para se compreender as relações de poder estabelecidas entre os agentes dominantes e dominados, e o poder simbólico que perpassa essas relações.

Bourdieu enfatiza que as relações de dominação e a construção de visões de mundo circundam a prática da dinâmica social, e os indivíduos incorporam a estrutura social em que vivem legitimando-a ou reproduzindo-a(33 Bourdieu P. Espaço Social e Espaço Simbólico. In: Bourdieu P. Razões e práticas: sobre a teoria da ação. 11. ed. Campinas: Papirus; 2011. p. 13-27.) Dessa forma, somos, pensamos e agimos enquanto produto da vida em sociedade e produtores de práticas sociais, quer confrontando-as ou confirmando-as. Ele considera que o universo social existe sob dois pilares articulados: objetivamente o "campo" e subjetivamente o "habitus". Ou seja, há uma relação histórico dialética entre as condutas individuais socialmente adquiridas (habitus) dos agentes e as estruturas objetivas ou "campos" de relações entre agentes que estão em diferentes posições e empoderamento(55 Bourdieu P. O poder simbólico. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil; 2011.).

O campo social é um espaço objetivamente estruturado de relações entre seus agentes que ocupam posições diferentes segundo a distribuição desigual de recursos simbólicos, ou seja, de capitais múltiplos(66 Bourdieu P. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense; 2011.). Portanto, os campos são os nichos de confronto da atividade dos indivíduos, de onde se legitimam as representações. Nesse sentido, Bourdieu "jamais comparou um campo a um jogo de forças cegas [...] existem reais possibilidades de transformação que são muito diferentes conforme a posição ocupada"(11 Pinto L. Pierre Bourdieu e a Teoria do Mundo Social. Rio de Janeiro: FGV; 2000.).

Os campos e subcampos são constituídos de estrutura própria, e de certa forma, são autônomos em relação aos demais, mas se diferenciam pelo tipo de capital: econômico, cultural, social. Tal fato é perceptível no campo da saúde quando se atenta para as relações entre médico e enfermeiro. Embora possa haver cooperação entre esses profissionais na organização de saúde, há também conflitos por disputa de autoridade e de monopólio do poder, tendo em vista que historicamente o médico tem autoridade legítima de agir e falar em nome desse campo(77 Lopes MEL, Domingos Sobrinho M, Costa SFG. Contribuições da Sociologia de Bourdieu para o Estudo do Subcampo da Enfermagem. Texto Contexto Enferm[Internet]. 2013 [cited 2016 Aug 14]; 22(3):819-25. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n3/v22n3a31.pdf
http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n3/v22n3...
). Bourdieu utiliza a terminologia campo de poder para designar "as relações de forças entre as posições sociais que garantem aos seus ocupantes um quantum suficiente de força social – ou de capital – de modo que estes tenham a possibilidade de entrar nas lutas pelo monopólio do poder"(55 Bourdieu P. O poder simbólico. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil; 2011.). Portanto, no campo se estabelecem conflitos, lutas pela obtenção do poder simbólico que produz e confirma significados, e onde os valores se consagram e se tornam aceitáveis pelo senso comum. Nele se formam o habitus e o código de aceitação social.

No subcampo da enfermagem, o habitus gerencial traduz as referências ou modelos de gestão que estão em constante evolução e resultam da interação complexa envolvendo reflexões que geram novas práticas oriundas de forças sociais e políticas de cada época, direcionadas para atingir a eficácia de um setor de serviço ou produção. A inserção de um novo modelo não significa a extinção dos anteriores. Dessa forma, "muitas pessoas ativeram-se às crenças e premissas que haviam desenvolvido sob o modelo antigo e continuaram a empregá-lo para tomar suas decisões"(88 Quinn RE, Thompson M, Faerman SR, McGrath M. A Evolução dos Modelos Gerenciais: uma nova abordagem. In: Quinn RE, Thompson M, Faerman SR, McGrath M. Competências gerenciais: princípios e aplicações. Rio de Janeiro: Elsevier; 2003. p. 1-29.).

O conceito de habitus discorre sobre a capacidade dos sentimentos, pensamentos e ações dos indivíduos incorporarem determinada estrutura social, enquanto o capital representa o acúmulo de forças que o indivíduo pode alcançar no campo. Bourdieu e Passeron referem-se ao habitus como esquemas simbólicos internalizados de forma subjetiva em função do viver social. São formas de geração e organização da atividade prática dos agentes individuais, que tomam a forma de disposições mentais e corporais, modos socialmente adquiridos de agir, pensar, sentir, perceber, interpretar, classificar e avaliar(99 Bourdieu P, Passeron JC. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. 5. ed. Petrópolis: Vozes; 2011.). Habitus fala, portanto, sobre os esquemas, capacidade dos sentimentos, dos pensamentos e ações dos agentes incorporarem determinada estrutura social.

Dessa forma, as condutas e tomadas de decisão são um grande desafio experimentado no cotidiano da vida. Assim também ocorre com os agentes ao ocuparem cargos, o que, por si só, já empreende um poder simbólico, e eles muitas vezes enfrentam embates e reações. Na maioria das vezes, pensamos em como devemos agir, mas nem sempre há tempo de reflexão em como reagimos. Os agentes de um campo ou subcampo têm interesses comuns e estabelecem certa cumplicidade, embora nem sempre isso esteja explícito. Em determinado momento, podem estar em posições diferentes: de dominantes ou dominados. Partindo do princípio que as instituições estabelecem padrões de comportamento e atitudes entre os agentes sociais nela inseridos, e que tais padrões e atitudes são sustentados por relações de poder, nada acontece por si só sem a existência de crises e resistências.

No subcampo da enfermagem, os enfermeiros lideram sua equipe, mas ao mesmo tempo estão subordinados a outro agente dentro da estrutura organizacional. Nesse contexto, o nível de responsabilidade e autoridade se difere dependendo da posição que ocupam, e eles enfrentam novos desafios e lutas. Mesmo assim, a cumplicidade entre os agentes "permanece subjacente a todos os conflitos e antagonismos existentes"(1010 Domingos Sobrinho M. Campo científico e interdisciplinaridade. In: Guimarães FR, Fernandes A, Brasileiro MCE, (Orgs.). O fio que une as pedras: a pesquisa interdisciplinar na pós-graduação. São Paulo: Biruta; 2002. p. 49-58.).

Em função do processo democrático de escolha dos dirigentes de enfermagem, houve um estado de mudança nos padrões de gestão e organização do tempo-espaço de cada instituição. A isso denominamos metarmofose, que implica na reconfiguração da gestão institucional imbricada com a especificidade histórica, política e social das instituições de saúde e que, provavelmente, trouxe um grau de satisfação, mas não deixou de gerar novas tensões, desafios e comportamentos de seus agentes.

Dessa forma, na dinâmica da gestão perpassam as formas jurídicas, políticas e econômicas do país e da própria organização, as concepções dos gestores da instituição sobre os paradigmas de gestão, as questões de autoridade, relações de poder, e as crises de legitimidade que geram altos e baixos num movimento dialético capaz de renovar-se e reconstruir-se.

No que diz respeito às questões mais gerais da sociedade, quanto a setores específicos como no subcampo da enfermagem, certamente as práticas não se organizam e se movem apenas por uma força inercial e evolutiva ao longo do tempo. Há uma dialética de efetivações desses movimentos que se atualizam permanentemente, muito além da casualidade, ou mesmo de qualquer determinismo mecânico. São relações sociais e históricas que não fazem de seus agentes inocentes ou culpados, mas certamente os colocam diante de suas possibilidades de refazê-las constantemente.

Pensar no subcampo da enfermagem e no habitus gerencial do enfermeiro nos reporta também à sua formação profissional, tendo em vista que na vida universitária busca-se conhecimento através de novos saberes, mas também é local de assimilação e troca, de crenças e valores. É um mundo real e socialmente contraditório como explicado nas relações de Pierre Bourdieu. Nesta concepção, o sistema de ensino institucionalizado participa na reprodução das condições econômicas, políticas e sociais também cristalizadas nas instituições de saúde.

Na construção da teoria do sistema de ensino, Bourdieu e Passeron retomam o antigo conceito de habitus e enfocam que as experiências vividas nas relações com os familiares, denominadas habitus primário, são determinadas pelas condições materiais de sua classe e orientam experiências futuras(99 Bourdieu P, Passeron JC. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. 5. ed. Petrópolis: Vozes; 2011.). No entanto, ao se vivenciar novas situações em outros espaços sociais, esses atores podem modificar suas práticas e criar novas condutas que conduzam a formação de novo habitus que permita às pessoas a formação de um sistema de orientação na sociedade. Para isso, é necessário um longo processo de aprendizagem em diversos tipos de campos sociais.

Os hospitais universitários, campo social de aprendizado durante a formação profissional e de exercício das práticas de saúde, reproduzem o sistema de ensino institucionalizado no mundo real e as condições econômicas, políticas e culturais. As organizações universitárias, quer sejam espaço de ensino teórico ou de prático, legitimam as relações de poder entre médicos e enfermeiros e entre enfermeiros docentes e assistenciais, ambos agentes do campo da saúde ou do subcampo da enfermagem. Historicamente, esses agentes possuem autoridade diferenciada institucionalmente reconhecida e nesse caso, o enfermeiro vai ocupar determinada posição de acordo com o acúmulo de capital no seu subsistema. Assim, a aquisição de capital oferece ao enfermeiro a oportunidade de reconhecimento entre seus pares(77 Lopes MEL, Domingos Sobrinho M, Costa SFG. Contribuições da Sociologia de Bourdieu para o Estudo do Subcampo da Enfermagem. Texto Contexto Enferm[Internet]. 2013 [cited 2016 Aug 14]; 22(3):819-25. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n3/v22n3a31.pdf
http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n3/v22n3...
).

Tal fato nos reporta a compreensão de poder simbólico e de construção da realidade, onde a verdade produzida no campo seja percebida e aceita como verdade natural. Assim, os agentes do poder tem "o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica) [...]"(55 Bourdieu P. O poder simbólico. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil; 2011.), constituindo-se em poder de violência simbólica ou em "um direito de imposição legítima reforça o poder arbitrário que a estabelece e que ela dissimula"(99 Bourdieu P, Passeron JC. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. 5. ed. Petrópolis: Vozes; 2011.). Na luta simbólica, os agentes tendem a impor aos outros a sua visão da divisão do mundo social e de sua posição nesse mundo, reproduzindo comportamentos adquiridos anteriormente em suas experiências vividas.

De acordo com as considerações abordadas, entendemos que a sociologia bourdieusiana é um aporte teórico a ser explorado no sentido de olhar para o subcampo da enfermagem e refletir sobre diversos aspectos: o processo de trabalho de seus agentes, as questões gerenciais, a dimensão das organizações de ensino e saúde nesse subsistema, as relações de poder que se estabelecem, e o espaço que a enfermagem pode alcançar na medida em que acumula capital cultural e se empodera para o enfrentamento das questões que parecem naturais, mas são permeadas de violência simbólica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os princípios que estruturam as visões de mundo dos agentes do campo da saúde m raízes na concepção sociocultural das profissões, reforçada pelas instituições formadoras e de saúde. Diante das experiências adquiridas, há uma tendência dos agentes se agarrarem às práticas cotidianas da vida que deixaram aquisições vantajosas, fazendo analogias de situações precedentes. Se adotarem como referência determinadas pessoas ou grupos utilizando os mesmos valores e normas, estarão reproduzindo as mesmas atitudes e comportamentos, e tendem a alimentar a força conservadora. É a forma de manter a estrutura social coesa e mobilizar pessoas, classes e camadas de diferentes posições, mesmo que antagônicas, em função de interesses imediatos ou das expectativas da organização.

Dessa forma, as práticas sociais são estruturadas e apresentam características da posição social de quem as produz, podendo estabelecer alianças e rupturas, relações de dominação e incorporação de modelos gerenciais que não são aleatórios, mas emergem para responder às premissas da estrutura organizacional. Esse nicho é espaço de luta contra o que parece natural, simples e, por vezes, até dogmático. É também sítio de violência simbólica para manutenção de poder.

A partir das reflexões abordadas por Bourdieu, entende-se que a configuração de novas atitudes é sempre plausível, já que os agentes das organizações, dentre as quais as de saúde, têm uma margem de possibilidade e liberdade que lhes permite transitar num campo com a proposição de transformar a ordenação estruturada.

Esse movimento de ir, refletir e posicionar-se é expresso no habitus gerencial do enfermeiro que, como líder (agente dominante) no subcampo da enfermagem, utiliza ferramentas que propiciam um cuidar/assistir eficaz e seguro, e melhores condições de trabalho que refletem no desempenho e satisfação dos demais (agente dominado). O processo de trabalho no subcampo da enfermagem é complexo, multifacetado, possui especificidades em cada esfera de atuação, e requer competências e inserção político-institucional dos seus agentes. Estas forças mobilizam romper estigmas institucionalizados e ensejam um processo de mudança da realidade estabelecida (estruturante) para a desejada (estruturada).

Essa proposição bourdieusiana possibilita olhar para o subcampo da enfermagem de outra forma. Ela amplia a probabilidade de emergir rumos de transformação dos efeitos adversos e contraditórios que perpassam as estruturas de saúde e de ensino. Implica ter outro ponto de partida: olhar para si e rever-se; olhar para o campo de uma posição externa; olhar para os agentes, parceiros ou adversários. Tudo depende do interesse em jogo e da luta que se dispõe travar enquanto agente desse nicho.

A Sociologia de Bourdieu é fecunda para se refletir a prática da gestão ao desvelar as relações e o papel que as organizações estabelecem sobre seus agentes. Ela alerta sobre a possibilidade de se vislumbrar mudanças no subcampo da enfermagem através de um novo habitus, quando nos incita a pensar em outro paradigma, onde o determinismo social pode ser corrompido pelo espírito crítico de seus agentes numa ação participante. Para tanto, é necessário trocar o olhar para a realidade das organizações e de nossas práticas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    18 Out 2016
  • Aceito
    9 Jul 2017
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