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Renascimento do parto: reflexões sobre a medicalização da atenção obstétrica no Brasil

RESUMO

Objetivo:

refletir sobre o processo de medicalização ao parto e nascimento e suas consequências, a partir de um artefato midiático audiovisual brasileiro.

Método:

análise reflexiva e interpretativa do documentário “O Renascimento do Parto”, baseada na Análise do Discurso Crítica.

Resultados:

a cesariana configura-se como alternativa para condições adversas gestacionais. Entretanto, tornou-se uma prática rotineira e abusiva, de uma atenção obstétrica medicalizada, passando a ser um problema social. Para que a incidência de cesarianas diminua é necessário que seja restituído o protagonismo da mulher, além de considerar aspectos psicológicos, afetivos, emocionais, espirituais, culturais e contextuais no parto.

Conclusão:

o parto configura-se como elemento material e fenômeno mental das práticas sociais. É necessário romper com o modelo predominante, permitir que o corpo se expresse por meio da liberação de ocitocina e diminuir a segregação que a cesariana provoca, proporcionando a formação de vínculos afetivos.

Descritores:
Parto; Parto Natural; Medicalização; Obstetrícia; Doulas

ABSTRACT

Objective:

to reflect on the medicalization process of childbirth and birth and its consequences based on a Brazilian audiovisual media artifact.

Method:

reflective and interpretive analysis of the documentary O Renascimento do Parto (The Rebirth of Childbirth) based on Critical Discourse Analysis.

Results:

c-section emerges as an alternative to adverse conditions of pregnancy. However, it has become a routine and abusive practice of a medicalized obstetric care, thus becoming a social problem. In order to the incidence of c-sections decrease, women's protagonism must be restored, in addition to considering psychological, affective, emotional, spiritual, cultural, and contextual aspects in childbirth.

Conclusion:

childbirth is established as a material element and a mental phenomenon of social practices. We must interrupt the predominant model, allowing the body to express itself through the release of oxytocin, and decrease the segregation that c-section causes, thus enabling affective bonds.

Descriptors:
Childbirth; Natural Childbirth; Medicalization; Obstetrics; Doulas

RESUMEN

Objetivo:

reflexionar sobre el proceso de medicalización al parto y nacimiento y sus consecuencias, a partir de un artefacto mediático audiovisual brasileño.

Método:

análisis reflexivo e interpretativo del documental “O Renascimento do Parto”, basado en el Análisis Crítico del Discurso.

Resultados:

la cesárea se configura como alternativa a condiciones adversas en la gestación. Sin embargo, se convirtió en una práctica rutinaria y abusiva, de una atención obstétrica medicalizada, pasando a ser un problema social. Para que la incidencia de cesáreas disminuya es necesario que sea restituido el protagonismo de la mujer, además de considerar aspectos psicológicos, afectivos, emocionales, espirituales, culturales y contextuales en el parto.

Conclusión:

el parto se configura como elemento material y fenómeno mental de las prácticas sociales. Es necesario romper con el modelo predominante, permitir que el cuerpo se exprese por medio de la liberación de oxitocina y disminuir la segregación que la cesárea provoca, proporcionando la formación de vínculos afectivos.

Descriptores:
Parto; Parto Normal; Medicalización; Obstetricia; Doulas

INTRODUÇÃO

Parto e nascimento são fenômenos que sofrem modificações de acordo com a sociedade em que estão inseridos. O cenário obstétrico atual reflete uma institucionalização dos saberes práticos associados ao parto e procedimentos invasivos, muitas vezes dispensáveis e potencialmente iatrogênicos, resultando na perda da autonomia feminina(11 Reis TLR, Padoin SMM, Toebe TRP, Paula CC, Quadros JS. Women's autonomy in the process of labour and childbirth: integrative literature review. Rev Gaúcha Enferm [Internet]. 2017 [cited 2017 Jul 06]; 38(1):e64677. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rgenf/v38n1/en_0102-6933-rgenf-1983-144720170164677.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rgenf/v38n1/en_...
-22 Campos AS, Almeida ACCH, Santos RP. Crenças, mitos e tabus de gestantes a cerca do parto normal. Rev Enferm UFSM [Internet]. 2014 [cited 2017 Jun 28]; 4(2):332-41. Available from: https://periodicos.ufsm.br/reufsm/article/view/10245/pdf
https://periodicos.ufsm.br/reufsm/articl...
). Esse processo se chama medicalização.

A realização rotineira de cirurgias cesarianas provoca o isolamento da gestante de seus familiares, interfere negativamente nos cuidados com o recém-nascido e expõe a saúde materna e fetal a riscos, tornando-se um procedimento abusivo e dificultando a adoção de condutas de humanização neste processo. A mulher passa a ser submetida a rotinas rígidas e mecanizadas que são adotadas sem a avaliação crítica caso a caso(33 Riscado LC, Jannotti CB, Barbosa RHS. Deciding the route of delivery in Brazil: themes and trends in public health production. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2016 [cited 2017 Jun 14]; 25(1):e3570014 Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v25n1/en_0104-0707-tce-25-01-3570014.pdf
http://www.scielo.br/pdf/tce/v25n1/en_01...
). Portanto, o uso elevado da cesariana pode causar mais prejuízos do que benefícios maternos e/ou fetais.

Em relação às cirurgias cesarianas realizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), aponta-se aumento de 38,3% em 2001 para 55,15% em 2014(44 Brasil. Ministério da Saúde. Datasus. Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC) [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2017 [cited 2017 Nov 20]. Available from: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?pacto/2015/cnv/coapcirbr.def
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi....
). A partir desse índice, infere-se que o Brasil vive uma epidemia de cesáreas eletivas.

Diante do exposto, considerando os aspectos da medicalização da atenção obstétrica brasileira e seus desdobramentos, tais como a elevação das taxas de cesarianas e a circulação de discursos coletivos de risco no ciclo gravídico-puerperal, objetivou-se refletir sobre o processo de medicalização do parto e suas consequências, a partir de um artefato midiático audiovisual brasileiro.

O documentário “O Renascimento do Parto” retrata esse período da modernidade tardia, em que tais práticas resultam em transformar mulheres em parturientes fragilizadas e incapazes, acreditando que necessitam de auxílio para alcançar o nascimento de seu/sua filho/a, negando sua própria capacidade de parir e provocando a diminuição das suas potencialidades(55 Velho MB, Santos EKA, Collaço VS. Parto normal e cesárea: representações sociais de mulheres que os vivenciaram. Rev Bras Enferm [Internet]. 2014 [cited 2017 Jun 21]; 67(2):282-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v67n2/0034-7167-reben-67-02-0282.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reben/v67n2/003...
).

Esta reflexão se justifica pelo fato de eventos vitais como o nascimento estarem fundamentados em um modelo centrado na tecnologia médica, favorecendo a criação de uma cultura da cesariana, em que sintomas comuns ou fatores ordinários se tornaram motivos para a escolha do ato cirúrgico. A assistência ao parto no Brasil ainda se caracteriza por atitudes processuais mediadas pelas modulações culturais, e são impostas intervenções convenientes aos saberes e práticas instituídas pelo campo biomédico.

Portanto, o foco de análise recairá sobre a constituição das práticas discursivas e sociais referentes a essa modernidade tardia, com vistas a contribuir para uma visão mais complexa dos nascimentos.

OBJETIVO

Refletir sobre o processo de medicalização do parto e suas consequências, a partir de um artefato midiático audiovisual brasileiro.

MÉTODO

Trata-se de uma análise reflexiva e interpretativa utilizando o documentário “O Renascimento do Parto”. Para tanto, apresentam-se dados da produção e construção dessa narrativa e analisa-se seu conteúdo por meio de duas categorias analíticas: Partejando a vida: da natureza à medicalização; Entre percepções e afetos: onde estão os hormônios do amor? Nas categorias foram utilizados trechos de entrevistas do documentário que subsidiam e ilustram suas ideias centrais.

Este estudo analisa práticas discursivas na constituição das identidades dos profissionais e das gestantes no que concerne ao cenário obstétrico atual. A melhor maneira para analisar um material audiovisual é escolher um referencial teórico e aplicá-lo ao objeto empírico. Logo, a análise foi baseada na Análise do Discurso Crítica (ADC). Os pressupostos teóricos e metodológicos da ADC, formulados e apresentados a partir do linguista britânico Norman Fairclough(66 Costa AF, Castro LC. A noção de sujeito na abordagem discursiva de Norman Fairclough. Signótica [Internet]. 2014 [cited 2017 Nov 20]; 26(2):437-55. Available from: https://www.revistas.ufg.br/sig/article/view/29468
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), serão úteis para tecer esse mosaico de depoimentos presentes no documentário.

O próximo passo foi selecionar um referencial de amostragem, que seria a medicalização do parto, e em seguida construir regras para a transcrição das informações visuais e verbais, selecionando citações ilustrativas que complementassem a análise visual.

Para tanto levaram-se em consideração três elementos essenciais na análise do discurso: a produção, no caso o documentário, destacando seus autores, produtores e demais contribuintes; o texto em si; e a recepção, no que diz respeito à interpretação por quem o assiste. Para uma produção fazer sentido não é necessário que esteja dentro do texto; pode ser o que “não foi dito”. Assim, é possível identificar seus pressupostos(77 Fairclough N. Analysing discourse: textual analysis for social research. 2nd ed. London and New York: Taylor & Francis Group; 2004.).

O documentário em estudo é produção brasileira que aborda, em forma de denúncia, o aumento de cesarianas no Brasil e defende a autonomia da mulher durante o parto. O filme tem duração de noventa minutos, direção de Eduardo Chauvet, roteiro de Érica de Paula, fotografia de Rafael Morbeck e trilha sonora de Charles Torres e Marcello Dalla. Estreou em agosto de 2013 no Brasil e apresenta depoimentos que variam desde experiências pessoais a resultados de pesquisas científicas.

Dentre as/os depoentes, destaca-se a participação de Michel Odent (médico obstetra francês, especialista em parto na água e símbolo do parto natural), Robbie Davis-Floyd (palestrante, antropóloga cultural, especialista em antropologia da reprodução), Daphne Rattner (médica epidemiologista, com doutorado pela Universidade da Carolina do Norte e docente da Universidade de Brasília, coordenadora executiva da Rede pela Humanização do Parto e Nascimento), Naoli Vinaver (doula mexicana) e o casal brasileiro Márcio Garcia (ator) e Andréa Santa Rosa (nutricionista).

Também participaram do documentário médicos/as obstetras brasileiros, pediatras, enfermeiras/os, doulas, parteiras e mulheres com experiências maternas positivas e negativas. Entre as falas, as/os participantes contribuíam positivamente relatando o processo histórico de transformação desse paradigma, quando a arte do nascimento por um longo período foi classificada como uma função exclusivamente feminina.

Partejando a vida: da natureza à medicalização

As categorias foram classificadas como elementos, uma vez que na ADC se entende a vida social composta de práticas sociais em articulação constante e instável, considerado assim o discurso como um elemento dessas práticas. A primeira categoria foi descrita como elemento 1, em que o parto foi escolhido como exemplo de uma atividade material.

Durante a Idade Média o parto era entendido como o principal papel da mulher, e decretos religiosos proibiam a presença masculina no cenário de nascimento, tornando-o uma atividade exclusivamente feminina. Inicialmente, as parturientes recebiam cuidados empíricos de mulheres que eram consideradas feiticeiras e curiosas. Entretanto, com o passar do tempo, esse tipo de comportamento foi modificado pelo homem. A figura masculina surge na história do parto com a introdução da obstetrícia como ciência, trazendo consigo a implantação do parto horizontal e da episiotomia(22 Campos AS, Almeida ACCH, Santos RP. Crenças, mitos e tabus de gestantes a cerca do parto normal. Rev Enferm UFSM [Internet]. 2014 [cited 2017 Jun 28]; 4(2):332-41. Available from: https://periodicos.ufsm.br/reufsm/article/view/10245/pdf
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).

A partir da consolidação do parto hospitalar, a medicalização desse evento resultou na perda da autonomia da mulher como guia do seu processo de parir, deixando que esse acontecimento fisiológico e vital fosse marcado pelo uso abusivo de práticas invasivas, muitas vezes desnecessárias e potencialmente iatrogênicas(55 Velho MB, Santos EKA, Collaço VS. Parto normal e cesárea: representações sociais de mulheres que os vivenciaram. Rev Bras Enferm [Internet]. 2014 [cited 2017 Jun 21]; 67(2):282-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v67n2/0034-7167-reben-67-02-0282.pdf
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). Essas condições acabaram resultando em situações de opressão, seja pela medicalização do corpo feminino ou pelo não reconhecimento de seu protagonismo nesse processo. “A gente não consegue mais ter o parto de nossas mães e avós. Não conseguimos mais fazer aquilo que antes era normal!”.(Mariana Carvalho, mãe e gestora pública)(88 Paula E, Chauvet E. O Renascimento do parto [DVD]. Brasília: Master Brasil e Ritmo Filmes; 2013. (90 minutos).).

Nessa fala, a depoente inicia seu relato no tempo verbal presente, promovendo a ideia de incapacidade de atuação maternal ao parir, especialmente quando diz que “Não conseguimos fazer aquilo que antes era normal”. Essa ideia, junto com a expressão “A gente não consegue mais ter o parto de nossas mães e avós”, ilustra a ordem de discurso da mudança da realidade obstétrica e da apropriação da mulher no seu próprio parto.

A transferência do ambiente de nascimento melhorou os indicadores de saúde no Brasil, sobretudo na diminuição das taxas de mortalidade materna e neonatal nos últimos trinta anos(99 Ministério da Saúde. Parto e nascimento domiciliar assistidos por parteiras tradicionais: o Programa Trabalhando com Parteiras Tradicionais e experiências exemplares[Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2012 [cited 2017 Jun 14]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/parto_nascimento_domiciliar_parteiras.pdf
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). Em condições ideais, a cesariana é segura e contribui para a redução da morbimortalidade materna e perinatal, portanto tem seu valor na obstetrícia moderna. Entretanto, a consequência negativa foi o aumento no número de intervenções no nascimento sem razões médicas que as justificassem. Nesse sentido, a Organização Mundial de Saúde afirma que taxas superiores ao intervalo de 10 a 15% não contribuem para a redução da mortalidade materna, perinatal ou neonatal. No contexto brasileiro, no qual há um elevado índice de cesarianas prévias, estima-se que a taxa de referência esteja em torno de 29%(1010 Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes de atenção à gestante: a operação cesariana[Internet]. Brasília: MS; 2015 [cited 2017 Nov 20]. Available from: http://conitec.gov.br/images/Consultas/Relatorios/2015/Relatorio_PCDTCesariana_CP.pdf
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).

Ressalta-se que a contraprodutividade provocada pela cesariana eletiva, compreendida como o desequilíbrio entre as ações de saúde autônomas, como produtos da interação do indivíduo com o meio social, e as ações de saúde heterônomas, produzidas pelos profissionais de saúde especialistas e no contexto da institucionalização, resulta em um ilusionismo de necessidade de mais atuação heterônoma para a correção de consequências indesejáveis e potencialmente danosas, transformando essa realidade em um círculo vicioso. “As mulheres acabaram se conformando a padrões rígidos estabelecidos pelo sistema médico de quem tem que parir em um determinado número de horas e se comportar de uma forma padronizada”. (Ricardo Jones, médico obstetra)(88 Paula E, Chauvet E. O Renascimento do parto [DVD]. Brasília: Master Brasil e Ritmo Filmes; 2013. (90 minutos).).

Na segunda fala, o médico descreve a resiliência feminina citando a conformação e consequente adaptação da mulher aos atos medicalizados, sem a expectativa de uma justificativa para tal ação. Ao mesmo tempo insere em seu discurso uma culpa do sistema público, ao dizer que a mulher “Tem que parir em determinado número de horas e se comportar de uma forma padronizada”.

A padronização do processo parturitivo é uma condição estruturante da modernidade tardia que iguala pessoas e situações em condições de desigualdade econômica, social e cultural. Produz-se, portanto, uma necessidade de consumo condicionada por interesses profissionais que culmina em uma identificação por parte de uma parcela da população feminina.

A cesariana acaba sendo consequência de uma medicalização cultural e social. Nesse sentido, o próprio sistema público, a realidade da situação de saúde em nosso país e o modelo de atenção obstétrica contribuem para esses resultados.

Existe uma lógica cultural em cima disso. [...] O paciente tem todo aquele ranço de achar que o parto cesáreo é mais controlado, é menos arriscado e que não tem risco nenhum... E que o bebê dele vai ser salvo. O médico, por sua vez, apesar de ter aprendido que o parto normal é seguro, que é bom para o bebê, acaba acreditando na falsa verdade que o parto cesáreo é mais seguro. (Fernanda Macedo, médica obstetra)(88 Paula E, Chauvet E. O Renascimento do parto [DVD]. Brasília: Master Brasil e Ritmo Filmes; 2013. (90 minutos).).

A expectativa de um “parto seguro” é associada à “tranquilidade” de uma cesariana. A médica descreve essa atitude quando diz que as mulheres acreditam que “o parto cesáreo é mais controlado”, “menos arriscado e que não tem risco nenhum”. Desse modo, os dois últimos depoimentos podem ser representativos do poder da medicina e da sensação de não participação da mulher em um ato que um dia já foi natural.

A ideia de maior controle no parto cesariano estabelece-se por meio de elementos da técnica cirúrgica que requerem maior conhecimento e habilidade profissionais, instituindo uma via de saber-poder. Ademais, há possibilidade de controle de variáveis como o tempo, o que permite aumentar a produtividade. Entretanto, o menor tempo dispensado na atenção à mulher pode reverberar negativamente no estabelecimento do vínculo profissional e usuária. Com vínculo circulam-se afetos, e estes podem gerar conforto e prazer.

De forma contra-hegemônica, profissionais que atuam na atenção obstétrica, sobretudo médicos/as e enfermeiras/os interessados/as nesse resgate do parto vaginal, estão trabalhando com práticas de saúde baseadas em evidências, com intuito de reduzir a banalização desse tipo de procedimento. No entanto, ainda é um paradigma a ser superado e constitui-se como desafio, pois a medicalização se estabeleceu por diversas estratégias, utilizando-se de diferentes atores, inclusive a mediação estatal. O resultado foi a exclusão da mulher de suas práticas tradicionais, assunto que volta a ser discutido por meio do movimento de humanização do parto e nascimento.

Entre percepções e afetos: onde estão os hormônios do amor?

A segunda categoria representa os fenômenos mentais. Em geral dizem respeito a sentimentos, crenças e valores. Por essa razão, o coquetel hormonal produzido pela mulher durante o trabalho de parto foi escolhido para representar o elemento 2.

Durante o trabalho de parto a mulher está fisiologicamente preparada para a liberação de hormônios programados para atuar antes, durante e após o nascimento da criança e que influenciam o comportamento e vínculo entre mãe e filho, podendo repercutir até na capacidade de amar e no potencial de agressão das pessoas.

A cesariana desnecessária impede a produção do coquetel de hormônios, que tem a ocitocina como principal substância secretada. Durante o trabalho de parto, esse hormônio desencadeia as contrações que o antecedem, exercendo inúmeras funções que são benéficas tanto para a mãe quanto para o recém-nascido, mas também é produzido durante a atividade sexual, sendo responsável pelo orgasmo masculino e feminino, e na amamentação(88 Paula E, Chauvet E. O Renascimento do parto [DVD]. Brasília: Master Brasil e Ritmo Filmes; 2013. (90 minutos).).

Até recentemente, o amor era tema de poetas, filósofos e romancistas. Mas hoje, o amor também é estudado por cientistas. Hoje já podemos entender que a capacidade de amar é, em grande parte, organizada e construída durante o período em torno do nascimento. (Michael Odent, obstetra e pesquisador)(88 Paula E, Chauvet E. O Renascimento do parto [DVD]. Brasília: Master Brasil e Ritmo Filmes; 2013. (90 minutos).).

O obstetra Michael Odent descreve essa produção hormonal como sentimento. O trecho em que diz “a capacidade de amar é, em grande parte, organizada e construída durante o período do nascimento” narra a importância da criação do vínculo entre o binômio mãe/filho.

Esses hormônios produzidos no momento do parto facilitam o estabelecimento do vínculo, evitando possíveis complicações e tornando a recuperação materna mais rápida(88 Paula E, Chauvet E. O Renascimento do parto [DVD]. Brasília: Master Brasil e Ritmo Filmes; 2013. (90 minutos).). Para além dos aspectos fisiológicos, o nascimento organiza e constrói nossa capacidade de amar, o tempo de um trabalho de parto tem o potencial facilitador para a consecução desse objetivo, bem como permite o desenvolvimento da consciência corporal feminina e das relações com as pessoas que lhe são significativas, o que repercute no fortalecimento dos vínculos afetivos.

O parto não é só um ato fisiológico que começa com as contrações e termina com a saída do bebê e da placenta. Ele é, acima de tudo, um verdadeiro ritual de iniciação, de passagem não só para a mãe, mas também para toda a família e para o bebê que participa ativamente dessa experiência e sai mais forte dela (Érica de Paula – Doula).

As pessoas pensam que parir é uma coisa corporal. [...] Só da parte física. Mas... entre mais anos que eu acompanho o parto, eu vejo que é a alma da mulher se expressando através do corpo (Naoli Vinaver – Doula)(88 Paula E, Chauvet E. O Renascimento do parto [DVD]. Brasília: Master Brasil e Ritmo Filmes; 2013. (90 minutos).).

Algumas doulas também participaram do documentário, e suas falas expressam o lado subjetivo do parto. Uma delas deixa isso em evidência ao falar que o parir é, “acima de tudo, um verdadeiro ritual de iniciação, de passagem”, deixando claro que a experiência desse momento torna a mulher mais segura da sua capacidade emocional. O processo de parir fornece à mulher a transcendência dos limites, conectando-a com seu eu à medida que promove a expressão da sua alma através do corpo.

O parto como ritual de iniciação pauta-se na premissa de que, com ele, nascem uma mãe, uma criança, um pai e uma família – um evento que estabelece relação de implicação múltipla e que, quando vivenciado de forma positiva, é capaz de gerar felicidade e fortalecer as relações afetivas e sociais.

A cesariana radicalmente separa recém-nascido, placenta e mãe. A situação de frieza se agrava com a ausência dos hormônios do amor. Cesarianas eletivas impedem o trabalho de parto e, consequentemente, a atuação dos hormônios fundamentais para o parto e para o fortalecimento da criação de vínculo entre mãe e filho.

Para que o perfil da incidência de cesariana diminua, são requeridos alguns aspectos: restituição do protagonismo à mulher no momento do parto; visão integrativa e abrangente do fenômeno, envolvendo aspectos psicológicos, afetivos, emocionais, espirituais, culturais e contextuais em que o parto acontece(11 Reis TLR, Padoin SMM, Toebe TRP, Paula CC, Quadros JS. Women's autonomy in the process of labour and childbirth: integrative literature review. Rev Gaúcha Enferm [Internet]. 2017 [cited 2017 Jul 06]; 38(1):e64677. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rgenf/v38n1/en_0102-6933-rgenf-1983-144720170164677.pdf
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).

Atualizar nossa forma de pensar com novas teorias do pensamento proporcionará uma nova cosmovisão, em que a separação seria substituída pela inter-relação e integração de todos os fenômenos físicos, biológicos, psicológicos, sociais, políticos e culturais(88 Paula E, Chauvet E. O Renascimento do parto [DVD]. Brasília: Master Brasil e Ritmo Filmes; 2013. (90 minutos).).

Sensibilizarmo-nos para o processo cultural em que estamos inseridos tem potencial para a produção de um pensamento mais amplo, capaz de suprir nossa necessidade de conhecer, considerando nossa necessidade de querer e nossa liberdade de sentir, representando, portanto, o caminho em meio a essa cultura do fragmento.

Limitações do estudo

O escopo de duas categorias temáticas.

Contribuições para a área da enfermagem, saúde ou política pública

Indicar a ADC como elemento para compreender os fenômenos sociais relacionados à medicalização da atenção obstétrica no Brasil é fundamental para o ethos profissional de enfermagem. Essa compreensão é essencial para entender que a atuação do enfermeiro obstetra na atenção ao parto diminui as intervenções desnecessárias, o que repercute na redução dos índices de cesariana, no aumento do protagonismo da mulher e no respeito à dimensão fisiológica, emocional e social do processo de parir/nascer.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O parto configura-se como elemento material e fenômeno mental das práticas sociais. Portanto, é polissêmico e passível de intervenções, sobretudo quando a saúde se orienta por um modelo biomédico hegemônico, o que produz a medicalização de eventos vitais.

Esse processo tem como consequências o aumento da intervenção médica sobre o parto e o nascimento, o que no Brasil se traduz no aumento das taxas de cesariana para além do que é considerado aceitável pelos organismos públicos internacionais e na perda da autonomia feminina. Produziu-se, portanto, um saber que padroniza comportamentos, disciplina corpos e controla os eventos fisiológicos que são inerentes à vida.

No entanto, o corpo não é linear, mas complexo; utiliza-se de eventos fisiológicos que são significados culturalmente para manifestar seu potencial criativo. A ocitocina, entendida como hormônio do amor e do prazer, é produzida durante o trabalho de parto e provoca dor, que é inerente à vida, mas promove e favorece o processo parturitivo e, portanto, agrega o potencial de gerar felicidade.

Para que ocorra o “renascimento” do parto, faz-se necessário romper com esse modelo de atenção obstétrica hegemônico no Brasil; permitir que o corpo, durante a parturição e enquanto unidade fisiológica e cultural, se expresse por meio da liberação de ocitocina; diminuir a segregação entre mãe e filho que a cesariana provoca e devolver a autonomia da mulher, melhorando a formação de vínculos afetivos entre usuárias, recém-nascidos, família e profissionais de saúde, tornando esse evento vital menos negativo e considerando a compreensão complexa de que ele é integrante da vida sexual, emocional e social da mulher.

  • FOMENTO
    Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

REFERENCES

  • 1
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2018

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2017
  • Aceito
    09 Jan 2018
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