Pedagogia crítica libertadora de Paulo Freire na produção científica da Enfermagem 1990-2017

RESUMO

Objetivo:

Analisar a aplicação teórica e metodológica da pedagogia crítica libertadora de Paulo Freire na produção científica da Enfermagem.

Método:

Realizou-se uma revisão integrativa com consulta às bases de dados: LILACS, BDENF, MEDLINE, PUDMED e CINHAL. Foram incluídos estudos nos idiomas espanhol, inglês e português, publicados desde 1990 até 2017.

Resultados:

Foram analisados 38 artigos, dos quais apreendeu-se que os principais conceitos adotados do referencial foram: diálogo/dialogicidade, conscientização/consciência crítica e problematização. Em relação à aplicação do método, notou-se a predominância da adoção de elementos como: círculos de cultura, fase de tematização e relação de horizontalidade do enfermeiro com os sujeitos participantes.

Conclusão:

A Enfermagem tem se apropriado parcialmente do referencial freireano. Contudo, revela-se a intencionalidade de uma prática transformadora que exige aprofundamento para a implementação do método na sua integralidade.

Descritores:
Modelos Educacionais; Ensino; Modelos de Enfermagem; Educação; Paulo Freire

ABSTRACT

Objective:

To analyze the theoretical and methodological application of Paulo Freire’s critical pedagogy in the scientific production of nursing.

Method:

An integrative review was carried out with consultation of the databases: LILACS, BDENF, MEDLINE, PUDMED and CINHAL. We included studies in the Spanish, English and Portuguese languages, published from 1990 to 2017.

Results:

A total of 38 articles were analyzed, of which the main concepts adopted were: dialogue/dialogicity, awareness/critical awareness and questioning. Regarding the application of the method, it was noticed the predominance of the adoption of elements such as culture circles, thematic phase and horizontality relation of the nurse with the individuals involved.

Conclusion:

Nursing has partially appropriated the Freire’s referential. However, it reveals the intentionality of a transformative practice that requires deepening for the implementation of the method in its full.

Descriptors:
Education Models; Teaching; Nursing Models; Education; Paulo Freire

RESUMEN

Objetivo:

Analizar la aplicación teórica y metodológica de la pedagogía crítica liberadora de Paulo Freire en la producción científica de la enfermería.

Método:

Se realizó una revisión integrativa con consulta a las bases de datos: LILACS, BDENF, MEDLINE, PUDMED y CINHAL. Se incluyeron estudios en Español, Inglés y Portugués, publicados desde 1990 hasta 2017.

Resultados:

Se analizaron 38 artículos, de los cuales se aprehendió que los principales conceptos adoptados del referencial fueron: el diálogo/la dialogicidad, la concientización/conciencia crítica y la problematización. En relación a la aplicación del método, se notó la predominancia de la adopción de elementos como: círculos de cultura, la fase de tematización y relación de horizontalidad del enfermero con los sujetos participantes.

Conclusión:

La enfermería se ha apropiado parcialmente del referencial de Freire. Sin embargo, se revela la intencionalidad de una práctica transformadora que requiere profundización para la implementación del método en su totalidad.

Descriptores:
Modelos Educativos; La Enseñanza; Modelos de Enfermería; La Educación; Paulo Freire

INTRODUÇÃO

A pedagogia crítica libertadora de Paulo Freire tem sido um norteador das práticas educativas em saúde. Sua importância nesta área, baseia-se nos marcos teóricos e metodológicos que promulgam uma visão e uma construção compartilhada com todos os atores envolvidos para a implementação de práticas culturalmente sensíveis e adequadas à singularidade em diversos contextos⁽¹⁾.

Esta proposta pedagógica indica uma mudança no paradigma tradicional de educação em saúde em relação à transferência de conteúdos e de informações para um nível mais crítico e criativo. Assim, considerando a educação como eixo norteador da prática de Enfermagem, a pedagogia crítica viabiliza o cuidado em saúde na unificação de elementos como: cultura, valorização dos saberes e reconhecimento do ser humano como uma capacidade inacabada de se reinventar, na busca de fazer sua própria história⁽²⁾. Nesse processo de construção, o profissional de Enfermagem deve adotar uma postura de respeito e compromisso com o outro, gerando uma relação horizontal que se manifesta na reciprocidade de saberes e de conhecimento.

Reconhecemos que há vários estudos que anunciam a implementação de conceitos teóricos e metodológicos da pedagogia crítica de Paulo Freire na prática educativa de Enfermagem. Buscando aprofundar conhecimentos e saberes sobre este referencial, que demarca teórica e metodologicamente o projeto de pesquisa denominado “Educação para a sexualidade dos adolescentes no contexto rural”, realizou-se esta revisão integrativa.

Pressupõe-se que a apropriação teórica e metodológica do referencial freireano acontece em diferentes estudos da Enfermagem, que ocorrem em contextos e situações diversas e revelam ações que promovem autonomia das pessoas no que se refere à tomada de decisões, com participação que se baseia no diálogo crítico e reflexivo, com o intuito de gerar mudanças na realidade dos indivíduos e das suas comunidades.

OBJETIVO

Analisar a aplicação teórica e metodológica da pedagogia crítica libertadora de Paulo Freire na produção científica da Enfermagem.

MÉTODO

Trata-se de uma revisão integrativa que, de acordo com Botelho, Cunha e Macedo⁽³⁾, incorpora diversos conceitos, opiniões e métodos de pesquisa que viabilizam uma síntese de informação e conhecimento. Sua abordagem ampliada conduz a uma profundidade acerca do conhecimento disponível sobre o tema, o conceito ou a teoria selecionados.

As revisões integrativas são realizadas em 6 etapas: elaboração da questão norteadora da pesquisa e do objetivo, elaboração dos critérios para inclusão/exclusão dos estudos, busca e seleção dos estudos nas bases de dados, análise sistemática dos dados, discussão e interpretação dos resultados construindo uma síntese da revisão.

Este estudo foi desenvolvido em dois períodos de tempo: o primeiro de julho a dezembro de 2016, no qual foram coletados os dados principais desta pesquisa; o segundo, em agosto do ano 2017, no qual foi realizada a atualização dos dados encontrados.

A pergunta norteadora desta pesquisa foi: “Como tem sido o uso do referencial da pedagogia crítica libertadora de Paulo Freire na produção científica da Enfermagem?”. Para o refinamento da busca, foram definidos os seguintes critérios de inclusão: estudos e publicações que fossem desenvolvidos pela Enfermagem, estudos que envolvessem conceitos ou a implementação do referencial metodológico, estudos publicados no período de 1990 até 2017, estudos em espanhol, inglês ou português, estudos publicados em periódicos revisados pelos pares, com disponibilidade e acessibilidade ao documento completo nas bases de dados escolhidas.

Para a busca dos artigos, foram selecionados o portal de periódicos BVS e o portal CAPES e foram incluídas as bases de dados LILACS, MEDLINE, PUBMED, CINHAL e BDENF com os seguintes descritores: Models Educational/Modelos Educacionales/Modelos Educacionais, Teaching/Enseñanza/Ensino, Models Nursing/Modelos de Enfermería/Modelos de Enfermagem, Education/Educación/Educação. Optou-se, ainda, por incluir “Paulo Freire” como termo livre no título, resumo ou assunto. Como resultado, foram encontrados 148 artigos. Após uma primeira leitura flutuante, foram eliminados 34 artigos pelos resumos e títulos por não serem relevantes a esta proposta de pesquisa. Logo após a segunda revisão, mais 50 artigos foram excluídos por estarem duplicados. Concluída essa etapa, foram selecionados 64 estudos: 44 estudos primários, 9 relatos de experiências e 11 artigos de reflexão.

Um segundo filtro foi utilizado para realizar a leitura crítica dos estudos primários. Com esta finalidade, foi selecionado o instrumento de leitura crítica (CASPe) que é recomendado para estudos qualitativos⁽⁴⁾. O instrumento é composto por um conjunto de perguntas que apresentam três possiblidades de resposta: sim, não sei e não. Com o intuito de obter um parâmetro de avaliação quantitativo, atribuem-se valores para as respostas, a saber: 2 pontos para sim, 1 ponto para não sei ou parcialmente e zero para não. Após a aplicação do instrumento, foram eliminados 31 estudos primários, pois não respondiam positivamente às perguntas de eliminação do instrumento ou não atingiram pontuação maior que 15 pontos. Porém, na atualização realizada no mês de agosto de 2017, foram adicionados 5 artigos que atendiam os critérios de inclusão e respondiam à pergunta da revisão, resultando em 38 artigos na amostra final.

Os textos incluídos na amostra final foram analisados de acordo com seu nível de evidência (NE)⁽⁵⁾ e classificados em: nível I - resultado de metanálise, de estudos clínicos controlados e com randomização; nível II - evidência obtida em estudo de desenho experimental; nível III - evidência obtida de pesquisas quase-experimentais; nível IV - evidências obtidas de estudos descritivos ou com abordagem metodológica qualitativa; nível V - evidências obtidas de relatórios de casos ou relatos de experiências; nível VI - evidências baseadas em opiniões de especialistas ou com base em normas ou legislação.

Figure 1
Processo de seleção dos artigos

RESULTADOS

Foram analisados 38 artigos, segundo o objetivo proposto nesta revisão. A distribuição entre as bases de dados dos artigos encontrados foi: CINHAL (50%), LILACS (42,1%), BDENF (5,8%), MEDLINE (2,6%). Os artigos foram publicados no período de 1997 a 2017, com uma maior predominância nos anos de 2009 (7,6%), 2012 (17,9%), 2013 (12,8%), 2017 (7,6%).

Em relação ao nível de evidência, 16 estudos qualitativos (41%) estavam no estrato de evidência IV. No nível de evidência V encontravam-se 11 relatos de experiências, 11 artigos de reflexão e 1 artigo de revisão, representando 56,4% da amostra neste estrato. As publicações revelaram objetivos e experiências diversos, com um predomínio relacionado ao desenvolvimento de programas e de ações educativas, como também de ferramentas educativas^(6-12).

A análise dos artigos indicou que o referencial freiriano foi utilizado em cinco áreas: Ensino^(13-15), Promoção da Saúde^(16-18), Atenção Primária^(10,19), Assistencial/Hospitalar^(11,20-21), Prevenção de Doenças e Agravos^(7,12). Os cenários escolhidos para a implementação de ações com o uso deste referencial foram: a Estratégia de Saúde da Família^(9,17), os cursos de graduação e pós-graduação de Enfermagem^(13,22-24), o contexto escolar^(7,16,25), os contextos comunitários^(12,26-27), as unidades ambulatoriais , as unidades de internação e cirúrgicas^(11,27-30), e os contextos virtuais⁽³¹⁾. Quanto aos temas abordados, houve predomínio daqueles relacionados à formação humanista, à liderança, ao projeto educativo, ao currículo e à transdisciplinaridade^(22,31). Foram identificados também temas que abordavam: saúde sexual e sexualidade^(9,12,19,32), saúde da mulher tal como o câncer de mama, câncer do colo e linfedema mamário^(7,22). Identificamos, também, estudos relacionados às doenças crônicas como: diabetes e doenças renais^(10,21,33), saúde da criança como amamentação e cuidados ao recém-nascido^(29-30) e saúde do idoso no âmbito hospitalar^(11,34).

A análise dos artigos selecionados foi orientada pelas dimensões: apropriação teórica e apropriação como referencial metodológico.

A apropriação como referencial teórico

Os conceitos mais inseridos no desenvolvimento das publicações na área da Enfermagem com o referencial freiriano foram: diálogo/dialogicidade, conscientização/consciência crítica, educação problematizadora/problematização, humanização e autonomia. Porém, outros conceitos como prática social, humanização, liberdade/libertação e emancipação estiveram presentes, conforme demonstrado no Quadro 1.

Quadro 1
Conceitos do Método Paulo Freire adotados nos estudos analisados, 1990-2017

Principais conceitos abordados nas publicações
diálogo/dialogicidade(7,11-14,16,18,20,22-23,26,28-29,31-33,35-37)
conscientização/consciência crítica(8,14,16,19,21,33-35)
problematização/educação problematizadora(11,19,25,38)
autonomia(28,39-40)
liberdade/libertação/educação libertadora(23,36,38)
círculos de cultura(13,16-17)
empoderamento(12,25)
emancipação/princípios emancipatórios(15,40)
educação bancária(23-24)
humanização(29)
do-discência(39)
compromisso(14)
opressão/oprimido(38)

O diálogo foi considerado um dos conceitos centrais da pedagogia crítica libertadora freiriana e tem sido adotado nas publicações a partir de uma perspectiva de compartilhamento de saberes, como também na partilha de conhecimento e na troca de experiências entre os participantes^{(7,23,25-26,29,35)}. Entretanto, o conceito de diálogo vai além da troca de experiências e saberes e não se dá em um só momento do percurso freiriano. Para Freire⁽⁴¹⁾, o verdadeiro diálogo é transversal e envolve características fundamentais como humildade, fé, esperança e respeito em relação às diferenças que estão presentes em todo o processo de investigação, tematização e desvelamento crítico para que a palavra se transforme em uma prática social humanizada e libertadora.

A conscientização também faz parte da estrutura da prática educativa freiriana e é assumida na direção de uma educação problematizadora. Nas publicações selecionadas, o conceito foi interpretado como o ato de refletir, em profundidade, a realidade e os problemas^(14,19,33). A apropriação deste conceito ocorre por meio da discussão e diferenciação entre consciência ingênua, transitiva e crítica^(34-35). É importante reconhecer que a conscientização vai além da tomada de consciência, pois envolve o compromisso do sujeito com a realidade, sua história e a possibilidade de transformá-la^(2,42-43).

O termo problematização foi adotado como uma ação transformadora da realidade num constante movimento de desvelamento crítico da experiência, situação e problemas vivenciados^(11,29). Ela foi adotada com um sentido, no campo pedagógico, de superar o intelectualismo alienante⁽²⁵⁾. Porém, poucos trabalhos associaram o conceito de problematização à proposta metodológica, revelando uma lacuna na implementação teórico-metodológica do referencial. A associação deveria ser evidente no desenvolvimento da terceira fase do método quando aplicado aos estudos desenvolvidos pela Enfermagem.

Liberdade/Libertação foi interpretado nas publicações como uma conquista e como um resultado ou fim de uma pedagogia crítica reflexiva em situações e relações de poder que foram permeadas por restrições relacionadas a prática de Enfermagem⁽³⁸⁾. Além disso, a palavra liberdade foi intimamente associada à pedagogia libertadora que envolve a superação de relações hierárquicas entre o educador e o educando. Sob esta interpretação, o conceito foi mais utilizado na área de ensino de Enfermagem e discutia a relação entre o professor e o estudante no desenvolvimento das disciplinas, projetos pedagógicos e experiências de formação de profissionais de Enfermagem críticos, reflexivos e humanos⁽²³⁾.

Revela-se, ainda, uma interpretação limitada entre o conceito de liberdade/libertação pois, para Paulo Freire, a visão de liberdade nesta pedagogia tem uma posição de relevo, na qual ela é a matriz que atribui sentido a uma prática educativa que só alcança efetividade e eficácia na medida em que há participação livre e crítica dos educandos. “A liberdade é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem a faz”⁽⁴¹⁾.

O círculo de cultura apresentou uma conotação de espaço coletivo em que foram tecidos vínculos entre os participantes, com o intuito de discutir sua realidade e trocar experiências^(13,16-17). Nessa perspectiva, Freire recomenda que, no processo de construção dos círculos, é fundamental compreender o conceito de cultura como “o conjunto de significações e representações de um modo de viver confrontado com outros modos de viver”⁽⁴³⁾.

Os autores dos artigos analisados associaram o termo humanização com a política de atenção humanizada em saúde. Nas publicações analisadas, ela foi interpretada como valorização da cultura, respeito e expressão da solidariedade dos sujeitos. Foi também adotada como resultado da práxis educativa dialógica crítica e reflexiva^(29-30). Mas, na perspectiva freiriana, a humanização remete a natureza humana como um sujeito inacabado. Nesse sentido, entende-se a humanização como um processo aberto, amplo, flexível e esperançoso com a certeza que sempre pode ser mais.

Evidenciou-se que o uso do referencial teórico de Paulo Freire foi vinculado a outros referenciais teóricos da Enfermagem, como a Teoria do autocuidado/sistema de apoio-educação de Dorothea Orem e a Teoria do cuidado transcultural de Madeleine Leininger^{(10,26,28,35)}.

O conceito de cuidado de Leininger visa entender valores, crenças e hábitos dos indivíduos com quem o profissional interage, a fim de preservar, acomodar e/ou repadronizar o cuidado. Nesse sentido, essa teoria convergiu parcialmente com o conceito de diálogo, no compromisso do profissional e do educador de conhecerem, escutarem e valorizarem a cultura do sujeito.

O conceito de autocuidado de Dorothea Orem, segundo as publicações, destacou-se como uma prática da pessoa para si mesma e desenvolvida por ela. A essência do autocuidado se relacionou ao autocontrole, à liberdade, à responsabilidade do indivíduo e à busca pela melhoria de sua qualidade de vida. Assim, diverge da ideia coletiva, participativa e dialógica dos princípios freirianos que descreve que o homem não se liberta nem aprende sozinho, mas sempre em conjunto.

A apropriação como referencial metodológico

O uso do método freiriano como referencial metodológico foi identificado em 20 publicações que apontaram a implementação das fases ou dos elementos do método, conforme é demostrado no Quadro 2. Desses estudos, apenas 8 publicações adotaram de maneira completa o itinerário freiriano (investigação, tematização e problematização), porém com algumas modificações nas nomeações. O restante dessas publicações adotou algum elemento ou fase do método com uma predominância dos círculos de cultura, do papel de facilitador e empatia do educador^(9,26), das palavras-chave e dos temas geradores^(25,38), além da citação da relação horizontal e dialógica/diálogo^(9,28,30).

Quadro 2
Fases da metodologia Freiriana adotadas nos estudos analisados

Implementação do percurso Freiriano
Fase de investigação(12,16-17,19-21,33)
Fase de tematização(6,16-17,19-21,25,31,33)
Fase de problematização(6,12,17,19-21,27,31)
Todas as fases do método(17,19-21)
Algum elemento do método(7,9-10,22,24,26,28,30,39)

Quanto à implementação da fase de investigação, os estudos descreveram a respeito do compromisso do educando em conhecer o pensamento, a linguagem e os níveis de percepção da realidade dos sujeitos, isto é, conhecer como foram as relações dos sujeitos com o mundo e como eles agiam em sua realidade⁽⁴¹⁾. Entretanto, sabe-se que, no desenvolvimento desta fase, há uma necessidade de tempo disponível a fim de fazer uma imersão no cotidiano e na cultura dos sujeitos e de suas comunidades.

Na análise dos artigos, revelaram-se poucos estudos que implementavam a fase de investigação de acordo com o referencial, descrevendo o tempo investido. Foram encontradas publicações que desenvolveram essa fase em apenas um momento, por meio de círculos de discussão, entrevistas individuais e questionários^(17,19), com uso de diversas técnicas como, por exemplo, a observação participante e as rodas de conversa^{(12,20-21,33)}.

Na metodologia de Paulo Freire, a investigação implica em métodos fundamentados na dialogicidade que deve estar presente desde o início, na construção de uma relação de empatia e solidariedade entre o educando e o educador⁽⁴¹⁾.

A fase de tematização é precedida pela fase de investigação, caracterizada pela concretização dos significados da realidade, das situações e do universo vocabular. Assim, “o tema gerador é substantivado pelas palavras geradoras, pois ele emerge da reflexividade pessoal e coletiva sobre essas palavras”⁽²⁾.

Na análise dos artigos foi encontrado um pequeno número de publicações que envolvia os sujeitos participantes na análise e discussão dos temas geradores^(25,44). Nessa fase, ficou predominante o uso da entrevista semiestruturada e das rodas de conversa na coleta dos dados. Contudo, a análise temática foi desenvolvida pelos pesquisadores sem o envolvimento dos participantes^(19,22,33). Em outro estudo, o levantamento dos temas geradores ocorreu pela observação participante, porém não houve um diálogo com os participantes sobre o universo vocabular identificado para definir esses temas⁽²¹⁾.

Na fase da problematização ocorre o desvelamento crítico, processo pelo qual os sujeitos superam a visão mágica e desenvolvem uma visão crítica da sua realidade. Na perspectiva freiriana, este é o momento que compreende o desenvolvimento da consciência crítica sobre os temas geradores⁽²⁾.

Os artigos apenas descrevem como foram desenvolvidos os grupos de discussão ou círculos de cultura e como utilizaram as técnicas complementares para o aquecimento e a motivação dos participantes sem demonstrar se houve transformações na realidade ou como essas ocorreram. Por outro lado, algumas publicações relataram as mudanças percebidas nos participantes e no processo ao longo do desenvolvimento dos círculos de cultura, tal como: atitude de valorização do diálogo, relações horizontais entre o profissional de saúde e o usuário, sensações de segurança na troca de experiências e saberes^(12,17,19), bem como a aquisições de conhecimento científico sobre uma doença e/ou tratamento⁽²¹⁾.

DISCUSSÃO

A análise teórica e metodológica evidenciou que a adoção do referencial nas experiências de Enfermagem tem predomínio na população adulta, no intuito de compreender significados e percepções das ações e experiências educativas implementadas. O nível de evidência na temática da educação em saúde e a implementação do referencial é baixo. Quanto à qualidade, nota-se a existência de fragilidades na descrição das fases do método adotadas, o que limitou a análise do referencial metodológico usando apenas alguns conceitos freirianos. Isso demonstrou a necessidade de a Enfermagem investir no rigor metodológico do referencial utilizado. A revisão demostrou também que o pragmatismo e o ativismo têm distorcido as bases como referencial metodológico na prática educativa de Enfermagem.

Segundo Favero⁽⁴²⁾, há uma limitação na discussão do conceito de sujeito como um ser inacabado, o que faz uma redução pragmática da proposta educativa freiriana, pois ela exige um compromisso do educador como sujeito que faz parte de uma realidade e não apenas como um expectador. Nessa postura, o enfermeiro, como sujeito de uma prática educativa social em saúde, também tem que se apropriar deste rigor metodológico que vai além de preparar-se teoricamente procurando informações e atualizações sobre um tema específico. Ele precisa modificar sua postura, a fim de se comprometer para conhecer e valorizar as experiências de saúde dos sujeitos dentro da práxis educativa⁽⁶⁾.

O rigor metodológico que propõe a educação crítica e problematizadora freiriana é aquele que exige um desenvolvimento do profissional sobre as realidades e perspectivas sociais, políticas e econômicas dos sujeitos. Para se alcançar esse objetivo, é indispensável desenvolver e envolver, desde a primeira etapa de investigação, os sujeitos participantes no processo. Isso exige compromisso, disponibilidade e abertura para fazer uma imersão cultural e requer tempo para conhecer a cotidianidade e as relações do sujeito, porque é a partir da imersão cultural que caminham gradativamente as fases do método. Nessa direção, entende-se que o método deve ser contínuo e persistente, visando ações transformadoras dos sujeitos envolvidos. Com isso, considera-se que os achados mostraram limitações nas publicações analisadas.

Outro desafio na apropriação do referencial metodológico freiriano é o distanciamento entre condições para a descoberta dos temas geradores sob a concepção freiriana uma vez que, “o universo temático não pode ser pré-fixado, prescrito por roteiros ou pelos investigadores como sujeitos exclusivos da investigação”⁽⁴¹⁾. De acordo com Brandão⁽⁴³⁾, vincula-se a mudança a uma práxis que seja construída coletivamente dentro dos círculos de cultura. Assim, recomenda-se superar os processos educativos nos quais os profissionais de Enfermagem trazem conteúdos prontos e colocam as temáticas sem envolver o sujeito, paciente ou usuário na sua construção. Segundo esse autor, o modelo rompe com o princípio da esperança, pois o homem pode e deve mudar o mundo com sua inteligência e com sua ação.

A adoção do conceito de diálogo e da conscientização se reafirmaram como os alicerces da prática educativa de Enfermagem baseada no referencial freiriano, pois o homem não se faz no silêncio, mas sim nas palavras. Evidencia-se uma inquietação em refletir desde a academia sobre o diálogo como a prática educativa de Enfermagem no intuito de transformar o desafio das relações verticais, de poder e de imposição em uma prática mais humanista e como uma das principais contribuições teóricas para a Enfermagem⁽⁴⁴⁾.

O diálogo é um elemento central na postura freiriana, desde a perspectiva hermenêutica que defende a capacidade argumentativa dos sujeitos na busca do conhecimento e na sua visão da realidade. Nesse sentido, ocorre a democratização da comunicação pois, em diálogo, reconhece-se a heterogeneidade da realidade e o aprendizado colaborativo, inclusivo e que oportuniza a todos as condições de se expressar. Ademais, o diálogo representa a abertura à interculturalidade e ao pluralismo de saberes e visões, reduzindo a distância entre os sujeitos⁽⁴⁵⁾.

O diálogo crítico reflexivo liberta e, com isso, o homem aprende a dizer sua palavra. Entende-se que o diálogo é um conceito transversal em todas as fases no método de Paulo Freire e deve transformar-se em uma prática social. Uma das condições fundamentais para que isso ocorra associa-se ao compromisso e à curiosidade respeitosa do educador em conhecer e vivenciar a cultura, os saberes e a realidade das pessoas. Assim, o diálogo sustenta teoricamente a metodologia freiriana desde a investigação, o reconhecimento das palavras e os temas geradores que permitem desvelar as necessidades da comunidade e dos educandos. Além disso, o diálogo, na perspectiva da teoria crítica e social, faz parte da natureza do ser humano como ser social demandado de processos de reflexão coletivos na prática educativa.

De modo geral, evidencia-se uma lacuna entre apropriação teórica dos conceitos de diálogo, círculo de cultura, conscientização e sua aplicação na práxis educativa da Enfermagem. Deve-se atentar que esses conceitos fundamentam uma pedagogia na qual a condição sine qua non é a participação do educando e a coerência do profissional de Enfermagem, orientando sua prática educativa pelos desejos e expectativas dos sujeitos, das famílias e das comunidades num processo democrático e humanizado.

Uma outra condição para o diálogo crítico como prática social é a dimensão coletiva, ou seja, “é impossível pronunciar o mundo sozinho da mesma forma que tornar-se sujeito quando é apartado dos outros”⁽⁴⁶⁾. Contudo, os estudos utilizaram métodos de abordagem individual, como entrevistas individuais, semiestruturadas e questionários para desenvolvimento do diálogo entre o profissional de saúde e os sujeitos participantes das práticas educativas. Revela-se, assim, a necessidade de discutir a coerência teórico-metodológica na apropriação do referencial de Paulo Freire. Entende-se, ainda, que a redução da fase de investigação a um único momento pode limitar a descoberta do universo vocabular e temático divergindo da proposta metodológica freiriana.

Nos artigos analisados, a transformação da realidade foi revelada do ponto de vista das mudanças percebidas nos sujeitos participantes ou nas relações internas do processo educativo. Essas mudanças são positivas, contudo, insuficientes para afirmar que se atingiu o pressuposto da pedagogia crítica de Paulo Freire, qual seja o fomento à conscientização e à libertação transformadoras. Desta forma, há uma simplificação dos resultados esperados a partir do referencial freiriano.

Limitações do estudo

As limitações do estudo referem-se à definição do recorte temporal para a revisão e ao nível de evidência dos textos encontrados. Quanto ao primeiro item, julga-se que esse não tenha interferido na composição da amostra, uma vez que as publicações foram datadas a partir de 1997. No que se refere ao segundo item, houve concentração dos textos encontrados nos níveis de evidência IV e V, o que indica que o referencial teórico-metodológico freireano tem sido adotado na literatura de abordagem qualitativa e nos relatos de experiência, com pouca produção de forte evidência.

Contribuições para a área da Enfermagem, saúde ou política pública

Aponta-se que os achados destacados nesta revisão trazem contribuições para a área da Enfermagem, saúde ou política pública advindas no contexto do cuidado e da promoção da saúde com uma prática que se apoia na desconstrução de relações hierárquicas no domínio do conhecimento científico sobre o saber do usuário ou paciente. A Enfermagem pode e deve construir um processo educativo em saúde que posiciona paciente, usuário, famílias e comunidades como sujeitos sociais que possuem saberes e experiências que devem ser valorizados⁽⁴⁷⁾ e, com isso, há a imprescindibilidade de adequar o conhecimento científico aos contextos culturais, geográficos e históricos dos indivíduos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Enfermagem tem se apropriado parcialmente do referencial freiriano em diversos contextos e perspectivas desde a área da promoção da saúde hospitalar e acadêmica. Isto reflete a magnitude dos conceitos e sua flexibilidade na construção de um processo de apropriação ao longo do tempo e sua possibilidade criativa no contexto pragmático da Enfermagem.

Os achados indicam a adoção de alguns elementos do método de Paulo Freire com maior expressão dos conceitos de diálogo/dialogicidade, conscientização/consciência crítica. Em relação às fases da metodologia, houve predominância na adoção de elementos, como os círculos de cultura, a postura de horizontalidade e o respeito no momento da troca de experiências e saberes. Porém, houve divergências entre as técnicas e os métodos implementados nos estudos e a proposta metodológica freiriana.

Conclui-se que há uma apropriação parcial do referencial freiriano com fragilidades e limites na aplicação teórica e metodológica dos conceitos e fases propostas pelo autor nos estudos da Enfermagem. Assim, ainda que se possa evidenciar a aproximação conceitual e prática, é relevante a simplificação da pedagogia crítica libertadora de Paulo Freire na produção científica da Enfermagem.

Contudo, revela-se a intencionalidade e os objetivos de uma prática transformadora da realidade que exige, para sua apropriação plena e crítica, um aprofundamento na compreensão dos conceitos e na preservação de princípios e elementos essenciais para a implementação do método na sua integralidade, como uma construção coletiva na práxis educativa em Enfermagem.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  2018

Histórico

• Recebido
  06 Out 2017
• Aceito
  28 Jan 2018