Contribuição da transferência para o processo de enfermagem psiquiátrica

RESUMO

Objetivo:

Descrever a contribuição do conceito da transferência para a aplicação do processo de enfermagem no cuidado do paciente em sofrimento psíquico.

Método:

Estudo teórico, estruturado a partir da seguinte questão: É possível desenvolver o processo de enfermagem no cuidado do paciente em sofrimento psíquico, utilizando a transferência?

Resultado:

O paciente é considerado como sujeito do inconsciente e porta uma demanda que ele desconhece.

Discussão:

A transferência torna-se norteadora do processo de enfermagem e favorece a elaboração daquilo que é sem sentido no sintoma.

Considerações finais:

Como implicação para prática, o processo de enfermagem articulará a função transferencial pelo diagnóstico de enfermagem, que promoverá captura de subsídios para o planejamento e implementação do cuidado, cuja finalidade será simbolização do sintoma. Destacar a fala como meio para relação terapêutica oferecerá ao paciente a condição de ditar o ritmo da articulação entre seus significantes, o que temporalizará o processo de forma dinâmica.

Descritores:
Enfermagem Psiquiátrica; Processos de Enfermagem; Transferência; Relações Enfermeiro-Paciente; Saúde Mental

ABSTRACT

Objective:

to describe the contribution of the concept of transference to the application of the nursing process in the care of patients with psychical suffering.

Method:

Theoretical study, structured from the following question: Is it possible to develop the nursing process in the care of patients with psychical suffering by using transference?

Result:

The patient is considered as a subject of the unconscious and has a demand he/she is unaware of.

Discussion:

The transference guides the nursing process and favors the elaboration of what has no meaning in the symptom.

Final considerations:

As an implication for practice, the nursing process will articulate the transference function through the nursing diagnosis, which will promote the capture of subsidies for the planning and implementation of care, in which the purpose will be the symbolization of the symptom. To highlight speech as a means to therapeutic relation will offer the patients the condition to dictate the pace of articulation between their signifiers, which will dynamically temporalize the process.

Descriptors:
Psychiatric Nursing; Nursing Process; Transference; Nurse-Patient Relations; Mental Health

RESUMEN

Objetivo:

describir la contribución del concepto de transferencia a la aplicación del proceso de enfermería en el cuidado del paciente con sufrimiento psíquico.

Método:

Estudio teórico, estructurado a partir de la siguiente cuestión: ¿Es posible desarrollar el proceso de enfermería en el cuidado del paciente con sufrimiento psíquico, utilizando la transferencia?

Resultado:

El paciente es considerado como sujeto del inconsciente y porta una demanda que desconoce.

Discusión:

La transferencia se vuelve orientadora del proceso de enfermería y favorece la elaboración de aquello que es sinsentido en el síntoma.

Consideraciones finales:

Como implicación para la práctica, el proceso de enfermería se articulará a la función transferencial por el diagnóstico de enfermería, que promoverá la recolecta de subsidios para la planificación e implementación del cuidado, cuya finalidad será la simbolización del síntoma. Resaltar el habla como medio para la relación terapéutica ofrecerá al paciente la condición de dictar el ritmo de la articulación entre sus significantes, lo que temporalizará el proceso de forma dinámica.

Descriptores:
Enfermería Psiquiátrica, Processo de Enfermería; Transferencia; Relaciones Enfermero-Paciente; Salud Mental

INTRODUÇÃO

Após a Reforma Psiquiátrica, foi estabelecido um novo lugar para o enfermeiro psiquiátrico ocupar, o de agente terapêutico⁽¹⁾. Então, o enfermeiro deixa de executar ações destinadas somente ao cuidado físico, caracterizadas como controladoras e de observação dos comportamentos dos pacientes em sofrimento psíquico; e começa a desempenhar suas ações considerando a subjetividade dos indivíduos, ocupando-se da compreensão das experiências vivenciadas e os auxilia na reinserção ao convívio social⁽²⁾.

Dessa forma, o enfermeiro psiquiátrico pode sustentar o cuidado por meio do processo de enfermagem (PE), o que contribui para o Projeto Terapêutico Singular, tendo como foco a reimpressão das experiências vivenciadas anteriormente no presente, por meio da relação terapêutica junto ao paciente, o que pode promover o crescimento pessoal e o desenvolvimento de atitudes que o levem a minorar seu sofrimento diante das situações de vida^(3-5).

No entanto, quando se considera a relação terapêutica enfermeiro–paciente como ponto central para a assistência de enfermagem na saúde mental, algumas condições precisam ser delimitadas para que essa relação se diferencie da social⁽⁵⁾. Dessa forma, conceitos como empatia, autoconhecimento, comunicação e colaboração devem ser delimitados para que a relação terapêutica tome seu lugar⁽⁵⁾. Porém, tais balizas teóricas são importantes quando o enfermeiro assume que o sofrimento psíquico pode ser considerado a partir de elaborações do consciente, e isso, historicamente, tem como consequência a construção de modelos de atenção orientados sob a perspectiva da corrente teórica humanista e promove certa difusão de definições sobre o processo saúde–doença no âmbito da saúde mental⁽⁵⁾.

Nesse estudo, temos como ponto inicial a alternativa do reconhecimento do processo saúde–doença a partir do inconsciente, e esse caminho requer que outros conceitos sejam delimitados para a assistência de enfermagem, tais como: a transferência, o inconsciente, a relação inter-subjetiva e a repetição. Dessa forma, a proposta presente versa sobre a leitura da relação terapêutica estabelecida entre o enfermeiro e o paciente, realizada por meio da clínica psicanalítica, a qual tem o propósito de investigar a lógica do inconsciente que determina o sujeito pela transferência^(6-8).

A transferência é aqui entendida como repetição das formas de satisfação utilizadas pelo sujeito ao inaugurar seus relacionamentos, no decorrer de sua vida erótica. Os modos de satisfação configuram a singularidade do sujeito e são o resultado da combinação de sua disposição inata com as experiências vividas ao longo dos primeiros anos de vida, desde que existam objetos disponíveis para tal repetição⁽⁹⁾.

Ao considerar a relação terapêutica como base para a construção do PE⁽⁴⁾, é fundamental que o enfermeiro assuma uma posição teórica para ler as experiências vivenciadas junto ao paciente, e é nesse ponto que o conceito de transferência torna-se interessante.

Nessa perspectiva teórica, a relação deve ser lida como um texto, em que o paciente dirige ao enfermeiro uma demanda de amor, a qual é feita baseada em seu repertório de experiências vividas, e dará forma a uma queixa ou a um sintoma^(6,8). A repetição desse repertório pode ser apreendida como o ponto inicial da transferência, e a lógica pela qual ela se dá é a do inconsciente⁽¹⁰⁾.

Nessa situação, o enfermeiro pode ler a relação como um modo de explicação que o paciente elabora para falar sobre seu sofrimento, e caberá ao profissional reconhecer tal padrão repetido da enunciação e elucidar qual a lógica inconsciente que determina as ações do paciente^(6,11).

A articulação de tais conceitos ao PE tem como consequência uma mudança de posição para o enfermeiro, que passa a ser aprendiz das formas de sofrer do sujeito; por consequência, o paciente é convocado a falar sobre seu sintoma e instigado a buscar novas formas de resolução para o seu sofrer. Assim, constrói-se uma tentativa de indicar ao paciente sua posição de escolha e responsabilidade sobre seu sintoma; essa escolha sintomática é denominada demanda^(6-8). Assim, o sintoma torna-se uma resposta a um mal-estar que não fora simbolizado antes e, por não ser elaborado, torna-se uma resposta problemática que o paciente utiliza em seu modo de viver^(6-8). O cuidado de enfermagem pode, então, propiciar a elaboração do sintoma, o qual pode ocorrer durante a fase de implementação dos cuidados, no cenário da consulta de enfermagem^(4,8,11).

É importante destacar que, nesse modo de operar o PE, o enfermeiro assume a posição de quem interroga a repetição do paciente, que foi apreendida pela relação de transferência, a qual ocorre durante as consultas de enfermagem, na fase da construção do histórico^(6,8,10-11). Assim, as interrogações feitas pelo enfermeiro por meio da relação agenciam a inauguração de um novo repertório de experiências vividas ao paciente, que podem trazer subsídios para a elaboração de seu sofrimento, expresso pelo sintoma^(6,8,10-11).

Desse modo, a transferência pode articular-se ao PE, e a operacionalização desse conceito torna-se técnica no momento em que o enfermeiro lê a repetição do repertório vivido como explicação do sofrimento; além disso, como estratégia de cuidado, pois proporciona condições para a palavra ser dita e circular no discurso com a finalidade de oferecer subsídios para que o paciente possa inaugurar novas formas de resolução de seu sintoma^(4,6,12).

Nessa perspectiva, esse estudo justifica-se pela necessidade de o enfermeiro reconhecer a transferência como um fenômeno que se mostra por meio da fala do paciente durante a relação terapêutica estabelecida nas consultas de enfermagem, quando o inconsciente é considerado no processo saúde–doença no quadro da saúde mental^(6,11). Dessa forma, abre-se espaço para ações de enfermagem que possam visar o inconsciente como elemento-chave no processo de adoecimento dos sujeitos, bem como possam tentar articular a transferência ao PE.

OBJETIVO

Descrever a contribuição do conceito da transferência para a aplicação do PE no cuidado do paciente em sofrimento psíquico.

MÉTODO

Referencial teórico-metodológico

Trata-se de um estudo apoiado no referencial teórico psicanalítico. O espaço que a psicanálise vem ocupar na universidade é o de convocar o pesquisador para a interlocução e reflexão entre as diferentes disciplinas com o objetivo de problematizar um aspecto do campo psicanalítico e oferecer uma contribuição que não seja limitada, somente, à confirmação teórica⁽¹³⁾.

Tipo de estudo

Estudo teórico que tem por finalidade formular quadros de referências e criar conceitos. Seu campo origina-se nas práticas pela integração, reflexão e pesquisa^(12-13).

Procedimentos metodológicos

O presente trabalho estruturou-se a partir da seguinte questão de pesquisa: É possível desenvolver o PE no cuidado do paciente em sofrimento psíquico utilizando o conceito psicanalítico da transferência?

Para responder ao questionamento proposto foi necessário delimitar o que é a transferência e apreender, simultaneamente, os conceitos de inconsciente e sujeito pautando-se em textos de Freud e Lacan, conceitos imprescindíveis para a compreensão da transferência^(9-10,14-15).

Para articular os conceitos psicanalíticos propostos à aplicação do PE no cuidado do paciente em sofrimento psíquico, também foi necessário identificar a aplicabilidade do PE no cuidar da enfermagem psiquiátrica; e, para isso, utilizou-se uma revisão de literatura já publicada⁽¹⁶⁾, que versa sobre tal aplicação. Assim, foi possível identificar os temas recorrentes no PE desenvolvido na saúde mental para localizar os pontos de inserção da transferência em uma proposta de trabalho que considera o sujeito do inconsciente.

Fonte de dados, coleta e organização dos dados

A fonte de dados caracterizou-se pelos textos que delimitaram o conceito de transferência^(9-10,15) e por uma revisão integrativa da literatura acerca do conceito do PE e de sua aplicabilidade no cuidar em enfermagem psiquiátrica⁽¹⁶⁾.

Etapas do trabalho

O estudo foi realizado em três etapas: 1 – Apreensão do conceito e técnica da transferência; 2 – Leitura de uma revisão integrativa da literatura acerca do conceito do PE e de sua aplicabilidade no cuidar em enfermagem psiquiátrica⁽¹⁶⁾; 3 – Aproximação do conceito apreendido de transferência aos achados da revisão integrativa, que foram: o PE como método que promove uma assistência integral e autônoma e que conserva a particularidade do sujeito em todas as suas fases; e o enfermeiro como agente terapêutico⁽¹⁶⁾.

Análise dos dados

A análise dos dados foi desenvolvida a partir da técnica de leitura utilizada na pesquisa em psicanálise: a livre associação entre os significantes⁽¹³⁾. Dessa leitura, foram tomados como significantes a transferência e o processo de enfermagem em suas etapas.

RESULTADO

Transferência

Para compreensão do conceito psicanalítico da transferência, é necessária uma explanação do processo de constituição do sujeito a partir da psicanálise segundo o campo da linguagem, o qual organiza o funcionamento do inconsciente^(6,17).

Para o funcionamento do inconsciente, são imprescindíveis elementos materiais simbólicos engendrados entre si e articulados em uma cadeia significante⁽¹⁷⁾. Cada significante (S) é uma imagem sonora e se acopla a um significado (s). Assim, significante e significado se unem de modo arbitrário, formando o conjunto que recebe o nome de signo linguístico⁽¹⁷⁾.

O algoritmo lacaniano (S/s) toma o conceito de signo linguístico subvertendo-o, de maneira que o significante seja grifado em letra maiúscula por ser prevalente na fala. A consequência de considerar a supremacia do significante sobre o significado possibilita que o sujeito fale e que a comunicação seja fonte de engano e desconhecimento, pois nem sempre o sujeito ao falar estará consciente dos significados que aquele significante convoca em sua experiência^(17-18). Dessa forma, é pela supremacia do significante que se explica a consideração de que, em toda fala, tem um engano^(17-18). Tal consideração pode favorecer ao enfermeiro colocar-se como aprendiz desses enganos cometidos pelo paciente quando fala de si. Tais enganos precisam ser “lidos”, então, como formações inconscientes que determinam as formas de viver e sofrer, mesmo quando o sujeito não se dá conta de que os cometeu.

Assim, a fala é determinada pelo inconsciente, ainda que não seja separada de um significado. Tal determinação é apreendida por meio da ação das formações do inconsciente (chiste, ato falho, sintoma, lapso)^(17-18). Por exemplo, ao convocar o signo linguístico “carteira”, sua imagem acústica — significante — necessita de um significado que é apreendido pelo contexto, ou seja, “guarda dinheiro”, ou “ambiente escolar”; porém, a arbitrariedade delimitada pelo inconsciente desconsidera a identificação do contexto para o reconhecimento significante, o que resulta na singularidade do entendimento de uma mensagem por cada sujeito envolvido em um relação^(17-18). Tal singularidade delimitada como formações do inconsciente pode ser percebida na fala dos pacientes quando eles relatam sobre sua vida e algo sem sentido aloja-se no discurso.

Desse modo, significante e significado serão articulados na constituição do sujeito do inconsciente. Para isso, deve ser considerada a experiência vivida e significada desde a concepção simbólica da criança e sua entrada no mundo da linguagem, por meio das histórias transmitidas de geração em geração, planos para o futuro do filho e o nome escolhido pelos pais^(7,18).

O Lugar chamado de Outro é onde encontramos todos os significantes articulados em uma cadeia — o que podemos entender como repositório — dos quais a criança fará uso para nomear suas experiências e sensações (medo, fome e sede)^(6-7,10). É por meio da linguagem que o sujeito reconhece sua existência e, consequentemente, nomeia seu sofrer psíquico^(7,10,18).

Diante disso, o bebê vai se organizando pela relação com sua mãe, que tem como função apresentar a linguagem apreendida como cadeia de significantes ao filho, de modo que esta constitui-se como única possibilidade de subjetividade⁽¹⁰⁾. Porém, nessa relação firmada entre mãe e filho, observa-se uma lacuna de sentido, uma vez que a mãe não será capaz de nomear todas as experiências do filho, demonstrando, assim, um espaço que a criança deve reconhecer como falta^(7,10). É na tentativa de significar essa lacuna entre o dizer e o sentir que a criança vai repetir seu modo de relacionar-se com os outros que estarão em sua vida⁽¹²⁾.

Tal lacuna remete a um conceito fundamental e norteador da organização psíquica do sujeito, a falta, organizada a partir da metáfora paterna, segundo a qual o pai rompe a relação dual da criança com a mãe, separando-as. Consiste na marca fundante do sujeito e está impressa na lógica do funcionamento do inconsciente, que vai se repetir pelo arranjo significante em cada momento da vida. Desse modo, os significantes estruturam e concedem forma às relações humanas^(10,17). Assim, é possível ler a repetição por meio da relação terapêutica estabelecida com o paciente pela transferência^(6,9,19).

A dimensão do desejo também é inaugurada pela falta, de modo que o objeto da necessidade (p.ex., o leite) é transformado em objeto de desejo^(7,20).

Isso tem como efeito a alienação do objeto de desejo no objeto da necessidade, logo o objeto que a criança elege para sua satisfação, por estar alienado à necessidade, nunca atenderá sua satisfação completa e, pelo descompasso inaugurado entre desejo e necessidade, movimentará a repetição em busca de um objeto de satisfação que não será alcançado, e move o sujeito a repetição que atualiza sua lógica inconsciente^(7,10,20).

Nesse sentido, também é inaugurado o plano da demanda situado entre o campo do desejo e da necessidade, fazendo com que todo pedido humano seja significado pela linguagem. É nesse plano que o sujeito se direciona ao Outro (inconsciente), pedindo o seu amor⁽²⁰⁾.

A inserção da transferência coloca em causa o amor caracterizado como o conjunto de todas as manifestações de afeto pertencentes à experiência humana, que são firmadas pela palavra no sujeito falante, situando o amor de transferência⁽¹⁵⁾.

Nesse ambiente, delimitam-se as funções no plano do amor, definindo o amante como o sujeito do desejo à procura do que lhe falta, embora não saiba o que é, e o amado, que diante do amante é o único a ter algo, marcando a busca do sujeito por aquilo que deseja e lhe falta, ou seja, o objeto faltante que precisa ser encontrado⁽¹⁹⁾.

Além disso, esse amor tem origem em características antigas e reproduz reações infantis, constituindo o caráter fundamental do estado amoroso⁽¹⁹⁾. É nessa medida que a transferência consiste em um modo próprio de o indivíduo encaminhar-se na vida erótica, sempre repetido, resultado da ação conjunta de sua disposição inata e das influências recebidas durante os primeiros anos de vida⁽⁹⁾.

Dessa forma, o sujeito falante exprime um discurso que pode interessar ao enfermeiro por trazer as formações do inconsciente⁽⁶⁾. Para favorecer sua abertura quando a transferência é considerada em uma relação, o enfermeiro deverá ocupar a posição de ouvinte, fazendo uso de uma técnica apropriada: atenção uniformemente suspensa diante do que escuta^(7,21).

Por outro lado, ao paciente é recomendado que fale tudo o que lhe ocorre à mente, sem selecionar o que vai dizer, pois é a partir da “associação livre” que é possível captar a cadeia significante, colocando o crédito na palavra dita pelo sujeito⁽²¹⁾.

Por considerar a transferência como repetição, o enfermeiro poderá ler o estabelecimento da ligação do paciente com sua figura a uma das séries psíquicas ou imagens dos outros com quem estabeleceu a relação inaugural (p.ex., relação mãe e filho) que determinou a matriz da repetição^(9,15).

De forma semelhante, a transferência é um fragmento da repetição do passado esquecido, de modo que o paciente não recorda o que estava reprimido, contudo expressa esse passado em ato por meio da repetição^(9-10,19). Por exemplo, o paciente não fala que recorda que era desafiador e crítico diante da autoridade dos pais, todavia se comportará desse modo com o enfermeiro.

A boa notícia é que a relação enfermeiro–paciente estabelecida por meio da transferência utiliza as ações repetitivas como o conteúdo a ser elaborado, cuja finalidade consiste em possibilitar a recordação do conteúdo reprimido, atribuindo um novo significado a ele. Essa condição terapêutica é possível quando a repetição é lida como demanda de amor^(19,22). Assim, a transferência abre um campo para intervenções de enfermagem, em que, pela relação terapêutica, o paciente pode aprender novas formas de responder aos pais, situados como funções organizadoras do repositório significante que oferta as respostas para a vida desse sujeito⁽¹⁹⁾.

DISCUSSÃO

A transferência como norteadora do processo de enfermagem no cuidar em enfermagem psiquiátrica

Faz-se importante demarcar a descrição do entendimento do PE, desenvolvido na atualidade, no cuidar em enfermagem psiquiátrica, para poder iniciar o diálogo que favorecerá a criação de uma prática norteada pela relação transferencial.

O Processo de Enfermagem (PE) consiste em um instrumento que fornece um guia sistematizado para o desenvolvimento de um modo de pensamento orientador dos julgamentos clínicos necessários para o cuidado de enfermagem; e está dividido em cinco etapas exploradas a seguir^(4,16,23-24). O PE promove uma assistência firmada na avaliação do paciente, a qual gera os dados para que os diagnósticos sejam identificados, direciona as metas a serem traçadas e orienta a seleção das intervenções mais adequadas à situação do paciente. Posteriormente, é realizada uma avaliação dos resultados alcançados com as intervenções^(16,23-24).

A investigação consiste em uma das etapas do PE executada para obtenção de dados que direcionem a terapêutica do paciente por meio do estabelecimento do Histórico de Enfermagem^(4,6,25). É nesse momento que se pode destacar a apreensão dos elementos do sujeito pelo seu discurso, o qual subsidiará, então, a condução do tratamento e, consequentemente, do Projeto Terapêutico Singular (PTS), permitindo ao enfermeiro psiquiátrico realizar julgamentos clínicos válidos e planejar intervenções apropriadas junto com o paciente^{(4,6,16,24-25)}.

Há também a etapa do diagnóstico; e, para o seu desenvolvimento, a enfermagem tem adotado Sistemas Classificatórios^(3-4). De modo semelhante, no tratamento em enfermagem psiquiátrica, é possível nomear os problemas dos pacientes, seus fatores relacionados, também sinais e sintomas como possibilidade de reconhecimento e identificação de diferentes respostas a problemas de saúde mental reais ou potenciais⁽⁴⁾.

Tem-se ainda a etapa do plano assistencial na qual se define as intervenções a serem desenvolvidas. Assim, é elaborado um plano que guiará sistematicamente as intervenções terapêuticas, possibilitando atingir os resultados esperados^(4,26). Esse planejamento do cuidado é individualizado em relação aos problemas de saúde, condição ou necessidades do paciente, sendo traçado com a sua participação e, quando possível, com os familiares^(3-4,16). Para cada diagnóstico, são selecionadas as intervenções mais adequadas⁽⁴⁾.

A etapa da implementação do plano de cuidados elaborado pelos enfermeiros psiquiátricos consiste na execução do conjunto de intervenções formuladas a fim de prevenir doenças mentais e físicas e de promover, manter e restaurar a saúde^(4,25).

A consulta de enfermagem é a atividade por meio da qual o enfermeiro identifica as necessidades de saúde, bem como consegue prescrever e implementar ações de enfermagem que auxiliem na promoção, prevenção, proteção e recuperação do paciente^(4,6). Então, pode-se considerar que a consulta de enfermagem é o setting no qual as etapas do processo de enfermagem são desenvolvidas^(4,16).

A última etapa que compõe o PE é a da avaliação. Considerando que o cuidado de enfermagem é um processo dinâmico e contínuo, é necessário o levantamento e análise de novos dados para obter outros diagnósticos e realizar alterações no plano de cuidados. Então, é adequado que essa avaliação ocorra durante a implementação das intervenções^(4,26). Nessas circunstâncias, ressalta-se a importância da documentação do PE, sendo que registros mais detalhados podem melhorar os julgamentos de diagnósticos pelos enfermeiros e garantir a qualidade dos cuidados de enfermagem⁽²⁷⁾.

Na conjuntura pós-reforma psiquiátrica, para o exercício da clínica de enfermagem, implementa-se o relacionamento terapêutico como forma de estabelecer o cuidado, o que possibilita a abertura de uma relação, cuja finalidade é tratar o sofrimento psíquico do sujeito, e isso inclui o sintoma que ele apresenta^(3,5,8,24). É por meio do relacionamento que o enfermeiro é capaz de escutar os elementos presentes no discurso do paciente, incluindo o sujeito nas ações de enfermagem^(6-7,25).

Pode-se considerar que a relação terapêutica firmada entre o enfermeiro e o paciente auxilia na implementação do PE psiquiátrico, contribuindo para composição efetiva dos fundamentos de planejamento terapêutico^(3-4,16,24). A relação terapêutica proposta neste estudo considera o sujeito do inconsciente, e o objeto de intervenção será constituído pelos significantes que ele traz em seu discurso, os quais são definidos como formações do inconsciente^(7,10,17).

O PE é desenvolvido enquanto é estabelecida a relação transferencial entre enfermeiro e paciente, desde que exista um setting para a transferência atuar e se firmar como possibilidade de cuidado. Por isso, a seguir, será apresentada uma articulação entre o conceito de transferência e o desenvolvimento do PE no cuidar em enfermagem psiquiátrica.

O relacionamento terapêutico, nessa perspectiva teórica, torna-se intersubjetivo e permite ao enfermeiro voltar-se para o discurso do paciente, que, quando lido como sujeito do inconsciente, é tido como efeito da cadeia significante estruturada a partir de sua constituição^(7-8,17,28). Por isso, ao explorar o significante, leva-se em consideração que a lógica do inconsciente desse sujeito será apreendida por meio de sua fala^(10,12,17).

Assim, essa apreensão do discurso colabora com o planejamento das intervenções de enfermagem. Nesse aspecto, a transferência deve ser atribuída ao sujeito e pode se manifestar em qualquer modo de relação afetiva^(6,8-9,19).

Pelo viés da transferência, o qual consiste na repetição de séries psíquicas fundamentadas durante os primeiros anos de vida do sujeito, é que o PE pode ser desenvolvido no cuidar em enfermagem psiquiátrica^(6,9). Sendo assim, reações infantis podem ser dirigidas ao enfermeiro; consequentemente, isso permite uma indicação do passado do paciente e auxilia no modo de tratar esse sujeito, o que favorece a coleta de dados e permite a montagem do Histórico de Enfermagem^(6,7-9).

Ao assumirmos o cuidado ao paciente pautado na concepção do sujeito do inconsciente, lê-se um pedido que consiste em uma demanda de amor^(7,10,19).

O sujeito, ao se aproximar do enfermeiro, situa-se como quem demanda; todavia, por se tratar de algo da ordem do inconsciente, ele não sabe disso⁽¹⁹⁾. Portanto, na relação enfermeiro–paciente, o sujeito sairá à procura do que lhe falta, que é sua condição fundante e, nessa busca, articula-se ao seu desejo; então, a eclosão do amor de transferência configura-se como demanda que o paciente faz ao enfermeiro e carrega consigo a necessidade da realização de um desejo desconhecido, por ser remetido à lacuna que delimita os contornos do objeto faltante e mobiliza o paciente a procurá-lo na relação terapêutica⁽¹⁹⁾.

Assim, o desejo carrega para um futuro próximo o que ele sustenta como uma imagem do passado⁽¹⁰⁾. Isso mostra que, durante a realização do Histórico de Enfermagem, é possível começar a reconhecer como o sujeito foi estruturado e o que ele pode estar buscando na relação com o enfermeiro psiquiátrico, de modo a constituir uma direção para o cuidado junto ao paciente^(6-7,12).

Essa situação de aproximação pode inaugurar uma nova possibilidade de relação terapêutica entre o sujeito e o enfermeiro e será delimitada pelas seguintes funções apreendidas pela transferência: amante e amado. Aparecendo o amante como o sujeito do desejo (paciente) e o amado como aquele, no âmbito desse par, que é o único a ter alguma coisa, então o enfermeiro psiquiátrico é aquele que a princípio pode dar algo ao paciente, situado no lugar do amante, porém é mero engano, pois a condição do amor é “dar aquilo que não se tem”^(10,19).

Diante desse pedido de amor do sujeito ao enfermeiro, é necessário que este não responda. Isto é, o enfermeiro não deve fornecer seu amor ao paciente, contudo precisa manter um firme domínio do amor transferencial, tratando-o como uma reprodução do que ocorre com o paciente nas outras relações que este estabelece em sua vida e são associadas ao seu sofrimento. Tal situação deve ser suportada pelo enfermeiro, que daí apreenderá aquilo que remonta às origens inconscientes do paciente e, por conseguinte, terá subsídios para o planejamento do cuidado^(6,8-9,25).

A título de exemplo, pode-se reconhecer a demanda de amor feita por Alcebíades a Sócrates, que não aceita tal amor, julgando não ter nada de amável em si, assegurando que não tinha algo a oferecer para ele e, portanto, negava-se a amá-lo. Esse movimento torna-se metáfora da posição do analista, aqui também sugerida para o enfermeiro, quando tal movimento é considerado na perspectiva do sujeito do inconsciente e situa-o no relacionamento transferencial⁽¹⁹⁾. Assim, pela negação do amor, o paciente elaborará seus objetos de investimento amoroso e recordará aquilo que lhe faz sofrer^(9,19,22).

No momento em que se estabelece a relação transferencial, o enfermeiro ainda não sabe qual é a demanda que o sujeito traz, pois é algo da ordem do inconsciente e encontra-se oculta, reprimida, de modo que ela somente pode ser revelada no discurso, quando surgem as formações do inconsciente, as quais podem ser identificadas pela ação da transferência. Assim, o enfermeiro deve propiciar meios para que a palavra seja dita, circule e se faça presente no discurso^(6,10).

Assim, no Histórico de Enfermagem, é identificada a função transferencial, que é estabelecida a partir da relação enfermeiro–paciente, caracterizada por um saber sobre o sintoma articulado à demanda de se desvencilhar dele. Dessa forma, a configuração do Histórico a partir da identificação da função transferencial articula-se com o diagnóstico, por se tratar da identificação da repetição das séries psíquicas do sujeito no contexto relacional, constituindo o modo de encaminhamento que o sujeito possui ao responder pela sua posição no mundo e nas relações que estabelece em sua vida: a isso denominamos sintoma^(10,19,29).

Tal modo de encaminhamento é atravessado por significações convertidas em sintomas físicos, o que leva à consideração de uma leitura da mente como sintoma do corpo, e essa ideia pode ser identificada pelos sinais e sintomas, os quais o enfermeiro reconhecerá por meio da aplicação do PE para o tratamento do paciente em sofrimento psíquico^(6,29). Então, o sintoma entendido como formação do inconsciente se liga às formas de sofrer e é identificado por meio do diagnóstico de enfermagem, abrindo a possibilidade de intervenção na relação enfermeiro–paciente, a fim de modificá-lo.

Na dimensão do sujeito, tal modo de encaminhamento na vida erótica está relacionado ao inconsciente, que é desconhecido ao próprio sujeito, pois abriga um conteúdo articulado pela lógica significante da estruturação psíquica de cada um. Portanto, tal consideração resulta na impossibilidade de estabelecer um diagnóstico que servirá para mais de uma pessoa, o que fundamenta o cuidado singularizado^(6-7,12).

No curso do processo de enfermagem, a intervenção focaliza-se na fala, contextualizada pela transferência, como possibilidade de elaboração do mal-estar que o sujeito porta, mas tem dificuldade de localizar, visto que é articulado em sua série significante, ou seja, determinado pela sua estrutura inconsciente^{(10,18,21,28)}. Dessa forma, o plano de cuidado basear-se-á na elaboração do sintoma quando tomado como formação do inconsciente; e essa formação se expressa no discurso do paciente caracterizando-se como algo que sempre volta ao mesmo lugar, isto é, que se repete^(6-8,12).

É importante que, durante as consultas de enfermagem, o enfermeiro esteja apoiado no referencial teórico que o guiará ao longo do desenvolvimento da relação. Dessa forma, quando a demanda do paciente surgir, o enfermeiro terá condições de interrogá-la, articulando-a ao afeto que o paciente expressa como uma indicação do saber que ele possui sobre sua condição de vida.

Sendo assim, a implementação do plano de cuidados também é favorecida pela transferência, uma vez que permite ao paciente continuar a falar e elaborar seu sintoma, possibilitando ao enfermeiro indicar os pontos de condensação e deslocamento entre afeto e linguagem, para o paciente poder continuar sua elaboração. Para tal manobra, o enfermeiro não deve responder à demanda, mas como dito acima, deve interrogá-la⁽¹⁹⁾.

Quando o enfermeiro não responde à demanda de amor que o paciente dirige a ele, no contexto da relação transferencial, o inconsciente do paciente é mantido aberto, assim é possível que este engendre novos significantes, os quais favorecerão a ressignificação do seu sofrimento psíquico e abrirão a possibilidade de recolocação desse sujeito diante do sintoma para inaugurar novas formas de enfrentar seu sofrimento^(19,29-30).

Sobre a avaliação, também é beneficiada pela perspectiva da transferência e vista pela elaboração de novas formas de enfrentamento. A elaboração caracteriza-se pela simbolização daquilo que constitui o sintoma. A partir da simbolização do sintoma, este adquire função de significante, acaba por receber valor de enigma para o sujeito e se torna passível de interpretação, de modo que a manifestação sintomática pode ser questionada, interrogada; permeia o tratamento do sujeito^{(6,10,22,27,30-31)}.

Limitações do estudo

Visto que se refere a um cuidado de enfermagem pautado na leitura da relação enfermeiro–paciente por meio da transferência, o profissional deve ter condições de reconhecer a repetição que determina a relação transferencial na prática clínica. Por se tratar de um estudo teórico, o mesmo não ilustra quais são os pontos de destaque que podem ser lidos a partir da transferência em uma relação terapêutica; e, para tal, será importante avançar com o desenvolvimento de estudo clínicos.

Contribuições para a área de enfermagem psiquiátrica

O entendimento da transferência traz, como contribuição para a aplicação do PE no cuidado ao paciente psiquiátrico, uma proposta de posicionamento do enfermeiro enquanto agente terapêutico, a partir da apreensão do amor de transferência. Tal posição pode favorecer que o paciente explore os significantes e identifique a repetição de ditos e de atos, que surgem do conteúdo inconsciente do sujeito durante o cuidado de enfermagem. Isso possibilita ao enfermeiro reconhecer como o sujeito foi estruturado e a forma como dirige sua demanda de amor, o que estabelece a interface entre este conceito e o Histórico de Enfermagem.

Uma das implicações para a prática do PE destacada neste estudo foi a possibilidade de articulação entre a função transferencial e o diagnóstico de enfermagem, o que promove a captura de subsídios para o planejamento e implementação do cuidado. Ou seja, é esta articulação que situa o enfermeiro como aquele que não deve atender o pedido de amor, advindo do paciente, a partir da relação transferencial, o que o leva a ter de suportar a repetição decorrente do amor não correspondido e favorece que esse profissional faça a pontuação da repetição no contexto da relação materializada pela fala do paciente.

O cuidado, então, tem como finalidade proporcionar ao paciente a simbolização do sintoma, o que pode dirigir as intervenções para o alcance dos resultados e tem como horizonte a tessitura de novos significantes que possibilitem a inauguração de uma nova posição do sujeito diante de seu sofrimento, e isso pode caracterizar a avaliação.

Salienta-se que, em termos práticos, uma dificuldade para a aplicação do PE a partir da relação de transferência, cujo referencial teórico apoia-se na psicanálise, caracteriza-se pelo desafio do enfermeiro em estabelecer a leitura dos significantes e assim reconhecer a repetição. Tais dificuldades podem ser superadas por meio do investimento teórico do enfermeiro e do desenvolvimento de seu autoconhecimento, passando pela experiência de análise.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A transferência é um conceito fundamental, na medida em que é destacada a relação terapêutica, construída a partir da concepção do sujeito do inconsciente. Isso porque ela coloca em causa o amor transferencial, que compreende todas as manifestações de afeto pertencentes à experiência humana, estruturadas pela linguagem e capturadas na fala do paciente.

Apreende-se, portanto, que ao destacar a fala como meio de excelência para o desenvolvimento da relação terapêutica, no âmbito da consulta de enfermagem, o reconhecimento do conceito de transferência pelo enfermeiro oferece ao paciente a condição de ditar o ritmo da articulação entre seus significantes. E, por consequência, temporaliza o PE de forma dinâmica. Logo, é do lado do paciente que o ritmo das repetições em progresso, pela transferência, implicam uma percepção de continuidade, quando o enfermeiro é capaz de negar o pedido de amor.

• ERRATA
  No artigo “Contribuição da transferência para o processo de enfermagem psiquiátrica”, com número de DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0640, publicado no periódico Revista Brasileira de Enfermagem, v71(suppl 5):2290-2297, na página 2290:
  Onde se lia:
  Murille Badin^I
  Leia-se:
  Murielle Badin^I

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  2018

Histórico

• Recebido
  17 Maio 2016
• Aceito
  09 Mar 2018