Operacionalidade de conceitos em investigação fenomenológica heideggeriana: reflexão epistemológica na enfermagem

RESUMO

Objetivo:

Descrever o caminho investigativo de análise e a operacionalidade de conceitos sustentados no referencial teórico-filosófico e metodológico de Martin Heidegger.

Método:

Reflexão teórica do fenômeno de gestar sendo mulher portadora de cardiopatia.

Resultados:

Evidenciaram-se as etapas do movimento de investigação a partir do pré-reflexivo relativo ao objeto de estudo e da busca do sentido fenomenal na direção da hermenêutica como analítica existencial, culminando no alcance da totalidade fenomênica.

Conclusão:

A visão de mundo do investigador, que considerou as subjetividades da pessoa em situação de saúde ou doença, favoreceu que o objeto de estudo anunciasse o referencial. A produção de conhecimento à luz da fenomenologia de Martin Heidegger desvelou fenômenos vividos e vivenciados no campo da saúde e da enfermagem, mediante rigor epistemológico que exigiu apropriação de conceitos inerentes à analítica existencial.

Descritores:
Pesquisa Qualitativa; Métodos; Filosofia; Enfermagem; Saúde da Mulher

ABSTRACT

Objective:

To describe the investigative path of analysis and the operationality of concepts based on Martin Heidegger's theoretical and philosophical framework.

Method:

Theoretical reflection on the phenomenon of pregnancy in a woman with heart disease.

Results:

Stages of the investigative movement were evidenced based on the pre-reflection related to the object of study and to the search for the phenomenal meaning, using the existential and analytical Hermeneutics as the approach and resulting in the reach of the phenomenal totality.

Conclusion:

The worldview of the researcher, who considered the subjectivities of the person in a health or disease situation, favored the announcement of the referential by the object of study. Knowledge production in the light of Martin Heidegger's phenomenology unveiled phenomena lived and experienced in the Health and Nursing field, provided of epistemological rigor that demanded appropriation of concepts inherent to the existential analytics.

Descriptors:
Qualitative Research; Methods; Philosophy; Nursing, Woman's Health

RESUMEN

Objetivo:

Describir el camino investigativo de análisis y la operación de los conceptos sostenidos en el referencial teórico-filosófico y metodológico de Martin Heidegger.

Método:

Reflexión teórica del fenómeno de gestar siendo mujer portadora de cardiopatía.

Resultados:

Se evidenciaron las etapas del movimiento de investigación a partir del pre-reflexivo relativo al objeto de estudio y de la búsqueda del sentido fenomenal hacia la hermenéutica como analítica existencial, culminando en el alcance de la totalidad fenoménica.

Conclusión:

La visión de mundo del investigador, que consideró las subjetividades de la persona en situación de salud o enfermedad, favoreció que el objeto de estudio anunciara el referencial. La producción de conocimiento a la luz de la fenomenología de Martin Heidegger desveló fenómenos vividos y vivenciados en el campo de la salud y de la enfermería, mediante rigor epistemológico que exigió apropiación de conceptos inherentes a la analítica existencial.

Descriptores:
Investigación Cualitativa; Métodos; Filosofía; Enfermería; Salud de la Mujer

INTRODUÇÃO

O cuidado em saúde ao indivíduo, família e coletividade que contempla a totalidade que caracteriza o ser do humano está imbricado em dimensões plurais. Nessas dimensões, segundo o suporte teórico da fenomenologia heideggeriana, é importante distinguir o fazer técnico das ações e dos fatos – instância ôntica –, para mirar a dimensão subjetiva, quando se preocupa com o ser humano, assumindo a instância ontológica, que é do fenômeno⁽¹⁾. Com essa direção teórica o cuidado em saúde será produzido com pauta na forma de estar com o outro, possibilitando acolhimento e vínculo para que este, ser humano sujeito dos cuidados, possa fazer suas escolhas e também exercer sua liberdade com responsabilidade⁽²⁾.

Com essa perspectiva, as pesquisas em enfermagem se desenvolvem sob os paradigmas das ciências exatas e naturais ou das sociais e humanas, aproximando-se de referenciais filosóficos, teóricos e metodológicos que auxiliem na busca de resultados impactantes na prática profissional de enfermeiros e demais membros da equipe de saúde⁽³⁾.

Tomando-se em particular as pesquisas de abordagem qualitativa guiadas por percursos analíticos filosóficos e hermenêuticos, merece destaque o uso da fenomenologia como método que se desenvolve por meio de rigor científico de busca e apreensão dos fenômenos inerentes ao processo de cuidados em saúde. Esses fenômenos, que são imanentes das experiências e significados vividos em vários contextos da vida e do mundo de um ser humano, vão se mostrar por si mesmos, naquilo que são e como são⁽⁴⁾.

Nesse sentido, as investigações na enfermagem têm utilizado o referencial fenomenológico para a compreensão do ser (expressões em itálico são próprias do referencial teórico de Martin Heidegger) de quem se propõe a cuidar, quer na promoção à saúde com vistas a permanecer saudável, quer em situação de doença, em seu sendo doente, utilizando-se expressivamente do pensamento de Martin Heidegger. Os enfermeiros, ampliando sua visão de mundo, têm se movimentado na construção epistemológica que perpassa experiências, vivências e problemáticas advindas de seu cotidiano laboral, englobando temas voltados para a saúde mental, do trabalhador, do adulto, do idoso, da criança, do adolescente e da mulher, desvelando fenômenos em suas diversas facetas⁽³⁾.

Na área da saúde da mulher destaca-se a situação de cardiopatias, que compõe o quadro epidemiológico da morbidade e mortalidade materna por causas obstétricas indiretas, que se mantém elevada a despeito dos avanços políticos e programáticos⁽⁵⁾. Foco de diretrizes brasileiras, essas estão atentas aos aspectos fisiopatológicos, considerados prioritários na vigilância de todo o ciclo gravídico-puerperal e na monitoração fetal constante, pelo risco ampliado de disfunção cardíaca congênita. Por isso, recomendam que mulheres com lesões cardíacas já diagnosticadas devem ser orientadas, previamente, sobre os riscos durante a gravidez⁽⁶⁾.

Entretanto, no cotidiano assistencial de profissionais de saúde voltado às mulheres portadoras de cardiopatia constata-se a discussão da política em torno dos direitos sexuais e reprodutivos, que inclui o desejo da mulher de engravidar como direito humano a ser respeitado e garantido por estatuto governamental, a despeito dos aspectos fisiopatológicos e das recomendações postas em diretrizes⁽⁶⁾.

A imersão nesse cotidiano, com olhar atento à subjetividade do outro e para além da ótica biológica, chamava à atenção mulheres portadoras de cardiopatia quando mencionavam o desejo de engravidar. Durante o cuidado de enfermagem manifestavam seus temores em relação à própria saúde e às expectativas para sua família e a equipe médica. Então, por mais que se tenha avançado nos aspectos técnicos de manejo das situações clínicas, os de natureza subjetiva permanecem velados, obscurecidos e pouco ou nem sempre priorizados pelas metodologias de cuidar. Segue-se ainda, paradoxalmente, na manutenção discursiva da humanização e na realização factual da biomedicalização.

Elegeu-se, a partir da tese Gestar sendo-portadora-de-cardiopatia: contribuições para o cuidado em saúde da mulher defendida no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a necessidade de considerar "quem" é essa mulher que engravida sendo-portadora-de-cardiopatia, a fim de desvelar esse fenômeno em sua essência. Tornou-se relevante investigar os significados da vivência e do vivido de gestar para a mulher portadora de cardiopatia, uma vez que esses já foram compreendidos pela ciência de modo explicativo, causal, em conformidade com o enfoque quantitativo. Em tal direção, configurou-se epistemologicamente apropriado o referencial filosófico e metódico da fenomenologia de Martin Heidegger⁽⁵⁾.

Foi prioridade realizar um levantamento do estado atual do conhecimento acerca da temática da gestação de alto risco por doença cardíaca, considerando suas implicações para o cuidado em saúde e na enfermagem. Evidenciou-se que a orientação para a prática profissional advém de produção científica robusta em torno de diretrizes, manuais técnicos e pesquisas na abordagem quantitativa, que conduzem ao saber-fazer biologicista. Aponta-se a necessidade de contemplar as investigações na abordagem qualitativa que prioriza a dimensão subjetiva desse fenômeno⁽⁷⁾.

OBJETIVO

Descrever o caminho investigativo de análise e a operacionalidade de conceitos sustentados no referencial teórico-filosófico e metodológico de Martin Heidegger.

O caminho investigativo: a fenomenologia como corrente de pensamento

A fenomenologia, corrente filosófica emergente no final do século XIX e início do século XX como contrapensamento ao positivismo e ao empirismo, surge em oposição às ideias axiomáticas de Descartes e Spinoza. Critica a dicotomia entre subjetividade e objetividade humanas, por considerá-las como elementos indissociáveis. Focalizou sua preocupação na explicitação e descrição das estruturas essenciais de determinada experiência que emerge de atos conscienciais⁽⁸⁾.

Entre os filósofos dessa época temos Martin Heidegger, que elegeu como norte para seu pensar a teoria do Ser, como Ser de Aristóteles, e o método fenomenológico de Husserl, do qual se tornou acólito em 1919. Assumiu posicionamento diverso de seu professor no que tange ao transcendentalismo das ideias, intencionado a desligá-lo do método em si. A reflexão de Heidegger centra-se na filosofia que tem como tema o Ser no modo de pensamento ocidental. Então, constitui-se da interrogação contínua que busca compreender o objeto do qual se interroga e que direciona os seus passos e movimentos rumo à "questão sobre o Ser […] no sentido daquilo que permanece fundamentalmente velado"⁽⁸⁾.

O pensamento de Martin Heidegger considera a descrição dos fenômenos que contemplam o Ser a partir das questões a ele direcionadas e daquilo que se conserva velado. Para isso, parte da premissa de que, o que é capaz de se manifestar por si mesmo tem possibilidade de estar oculto na movimentação de ser do ente em seu cotidiano sendo-no-mundo ⁽⁹⁾.

Em Ser e tempo, sua principal obra publicada em 1927, o filósofo dedicou-se a mostrar, preliminarmente, que, apesar de universal e evidente, o conceito de Ser é indefinido, sendo necessária sua interrogação por meio da investigação que busca o fenômeno de interesse a partir de sua dimensão ôntica (ente) tendo em vista o acesso à dimensão ontológica (ser-aí). Para tanto, considera como ponto de partida a realidade concreta, factualmente dada, histórica e temporalmente passível de compreensão.

Assim, Heidegger toma a fenomenologia em sua possibilidade metódica embasado no "como entramos em contato com as coisas", em um movimento interpretativo denominado de "hermenêutica da facticidade", capaz de anunciar "o ser do ente para que o próprio Ser venha a parecer"⁽⁹⁾.

O método em Heidegger não se dissocia de sua reflexão filosófica, mas se revela por meio dessa. Por isso, em primeira instância, há necessidade da interrogação sobre o sentido do Ser, no fenômeno situado e de interesse. Na medida em que se pergunta acerca desse fenômeno, o ser-pesquisador abre a possibilidade do caminho investigativo.

Deste modo, considerando a pesquisa que suscitou esta reflexão teórica, as experiências no mundo de cuidados de enfermagem junto às mulheres portadoras de cardiopatia e a posição prévia, que é da tradição científica, segundo a filosofia heideggeriana, se conjecturam no pré-reflexivo como pensamento que envolveu a questão da tese. Porém, em busca do fenômeno, considerou-se a suspensão dessas ideias, a priori, visualizando atentivamente o que se busca, a coisa mesma, para que de fato a condução do estudo se mostre na perspectiva fenomenológica.

A admiração acerca das possibilidades de engravidar sendo portadora de doença cardíaca culminou em um interesse autêntico de se debruçar sobre esse fenômeno que emergia aos poucos como possibilidade de iluminação e desvelamento, a partir da esfera dos fatos (ôntica) em direção à dos sentidos (ontológica).

Paralelamente a essa visão, incita-se a "assegurar previamente um modo adequado de acesso ao ente"⁽⁹⁾, que nesta pesquisa é o que abriga em si o ser-mulher portadora de cardiopatia que poderá significar vivência e vivido de sua gestação. Acessá-la envolveu, além das questões relativas à esfera ôntica, a pr é -ocupação em ser-com ela de modo autêntico, a fim de favorecer a doação originária dos significados que constituem o fenômeno de interesse.

Para isso, utilizou-se a entrevista na modalidade fenomenológica mediada pela atitude empática como meio de abertura de possibilidades para o mostrar-se das depoentes, favorecendo a obtenção de fatos do seu perfil sociocultural clínico e obstétrico que, agregados à sua história, se constituíram na historiografia que revela os dados do quem ⁽⁴⁾ _.

Lançando a questão de abertura do encontro, o questionamento se apresentou, metodicamente, em três instâncias, nas quais interrogaram-se o ente, as mulheres portadoras de cardiopatia que vivenciaram ou vivenciam a gestação; questionou-se o ser-mulher que gestou sendo-portadora-de-cardiopatia, a qual expressou os significados da vivência/vivido desta gestação, buscando o sentido do ser-mulher-que-gestou-sendo-portadora-de-cardiopatia.

Após investigar o objeto de estudo à luz da tradição e do que esta revela como posição prévia que é da ciência, compôs-se o Solo de Tradição a partir dos fatos que já estão dados, evidenciados e publicados acerca da gestação de alto risco por doença cardíaca. Assentada essa base, buscou-se o fenômeno em estudo – o vivido de gestar-sendo-portadora-de-cardiopatia.

Construindo a episteme: operacionalidade de conceitos Heideggerianos

A busca atentiva de pistas do quem se mostrava por meio do dito e do não dito, conservando a atitude fenomenológica. Foi possível dimensionar onticamente o quem das mulheres que se anunciaram desde o contato telefônico e que significaram no depoimento suas possibilidades de ser-aí, permitindo a construção de suas historiografia e historicidade, que revela os dados do quem sustentados na sua história e no seu tempo vivido. Esse movimento intentou a visualização e compreensão da ponte ôntico-ontológica, que possibilitou a abertura de horizontes para as demais instâncias metódicas.

As leituras e escutas exaustivas e atentivas dos depoimentos foram importantes, em um movimento de ir às coisas mesmas, do que se mostrou, na realidade em que se mostrou sendo o que é, a essência. Destaca-se o exercício desafiador, insistente e permanente de re-pensar e considerar a todo instante a suspensão de pressupostos que emergem do cotidiano assistencialista de enfermeiras junto à mulheres portadoras de cardiopatia. Essa necessária redução fenomenológica inaugurou o rigor científico da etapa analítica, pois que se atentou à relação sujeito e sujeito a partir da experiência vivida com vistas a compreendê-la e descrevê-la, sem explicá-la, uma vez que disso a tradição já se ocupou.

A redução fenomenológica possibilitou a emersão das essências distinguindo-se os significados ocasionais das estruturas essenciais. Estas, captadas pela objetividade das subjetividades, em primeira instância por intuição, a partir da abertura da pesquisadora para perscrutar na linguagem da mulher, o que veio ao encontro dos objetivos da investigação. E, a seguir, por reflexão intencionalmente direcionada às facetas que se revelavam e se ocultavam por meio das falas do ente interrogado, em seu ser questionado, em busca do sentido perguntado⁽⁹⁾.

A imaginação e a reflexão permitiram, assim, a compreensão das mulheres que expressaram a situação de ter engravidado sendo portadoras de cardiopatia. Foram constituídas oito unidades que mostram o movimento de aproximação e convergência dos significados das participantes, sendo estes denotados em síntese nos cabeçalhos dessas estruturas de significação também nominadas por Heidegger como categorias a posteriori.

O desdobramento compreensivo da instância dos fatos – o modo como a mulher compreendeu sua vivência e vivido – ensejou a compreensão vaga e mediana para alcance da visão prévia. Esse movimento libera o horizonte da dimensão interpretativa do sentido do Ser, a ser desenvolvida por meio da conquista do fio condutor como conceito de ser que revela a concepção prévia ⁽⁹⁾.

O caminhar na ponte ôntico-ontológica: historiografia e historicidade das depoentes

A historiografia se dá a partir da esfera factual, dimensionando onticamente o quem da mulher na vivência e vivido da gestação sendo portadora de cardiopatia. A historicidade, como modo de ser da história, torna-se objeto possível da historiografia. E uma vez que a presença existe histórica e temporalmente, possibilita a abertura e apreensão de sua existência⁽¹⁰⁾.

Em sua existência, sendo no mundo, o ser do ente se constitui de historicidade como modo de ser e de acontecer. Emerge da compreensão dos fatos, não obstante apontar a dimensão fenomenal e se revela na medida em que se questiona o ser, e este doa significados acerca do fenômeno situado e de interesse. A historicidade possibilita ao investigador um caminhar seguro na ponte ôntico-ontológica reduzido de pressupostos, uma vez que perscruta o quem que se mostra em detrimento do o que se mostra⁽¹⁰⁾.

Desse modo, procurou-se uma demonstração esquemática que transmitisse para o visual as buscas de pistas das depoentes considerando duas vertentes: os dados advindos dos registros da instituição e das questões iniciais da entrevista para sua caracterização; e os movimentos do ser mulher que vivenciou ou que vivencia a gestação sendo portadora de cardiopatia a partir do momento do encontro existencial e intersubjetivo inerente à entrevista fenomenológica, os quais podem ser visualizados por meio do exemplo de uma das participantes (Figura 1).

Figura 1
Representação esquemática da historiografia e historicidade da participante P12

Para maior compreensão, na Figura 1, coloriu-se de cinza a circunscrição do Sistema de Saúde, refletido aqui como rede de cuidados à gestante de risco, desde sua referência para a instituição hospitalar até a alta institucional. O círculo vermelho representou a circunscrição da mulher no cenário de acompanhamento da gestação. As linhas pontilhadas indicam possibilidades de interlocução na medida em que a rede de cuidados se abre para o quem em detrimento do ente. O espaço que se interpõe entre o ser e o sistema pode ser preenchido pela abertura do profissional.

A hermenêutica como possibilidade metódica de emersão da essência fenomênica

Hermenêutica, nesta proposta teórica, se refere à interpretação de uma compreensão. Assim, após compreender os significados da experiência vivida, Heidegger incita ao desvelamento dos sentidos velados por essa compreensão mais imediata. Após o alcance desta, há o conceito de ser como uma síntese significante que conduz e abre possibilidades à interpretação⁽⁹⁾.

O conceito ilumina e fundamenta a explicitação dos obscurecimentos contidos na compreensão vaga e mediana culminando em um fio condutor que revela semanticamente sua proposição: a de conduzir a investigação à etapa de compreensão interpretativa e de desvelamento do fenômeno, possibilitando que se decida "quais espécies de obscurecimento ou impedimento são possíveis e necessários para um esclarecimento explícito do sentido de ser"⁽⁹⁾.

O conceito de ser das mulheres que gestaram sendo portadoras de cardiopatia constituiu-se como: saberem do risco e tanto planejar quanto não saberem como evitar... e se surpreenderem ao se descobrirem grávidas; falarem como se sentiram física e emocionalmente na gestação; sentirem-se seguras pela rotina de acompanhamento pré-natal; terem familiares preocupados pelo problema do coração e contarem com apoio; terem sido cobradas pelos médicos por engravidarem; ficarem preocupadas com o bebê e pedirem ao médico para dar prioridade em salvá-lo; terem sentido medo de morrer no parto; saberem que o cardiologista dá o parecer, mas o obstetra decide a via de parto; terem mais vontade de viver e cuidarem mais de si porque o problema continua o mesmo; compreenderem que chegaram no limite e buscarem fazer ligadura.

A hermenêutica heideggeriana funda-se como analítica existencial da compreensão alcançada na esfera dos fatos, o alcance da verdade como correspondência entre o juízo e o objeto real. Constitui-se em interpretação da facticidade por meio de conceitos desveladores de modos que são possibilidades do ser, encoberto pelo ente que é⁽⁹⁾. Porquanto, a sujeição do ser à autoridade do paradigma das ciências exatas e naturais revela-se obstáculo para o desabrochar deste como subjetividade.

De fato, sobrepondo-se ao ser sem sua vontade, parece que radicalmente já estão prontas as condições pelas quais manifestar-se-á como ser-aí, velando as possibilidades de ser-próprio. Não é por outro motivo que as mulheres que gestaram sendo portadoras de cardiopatia, ao significarem suas compreensões acerca do fenômeno vivido, fizeram-no a partir de conceitos e referências da tradição.

Neste contexto, as mulheres se mostraram como ser-aí a partir do ser deste ente que é gestando ou que possui este vivido. A fim de revelar o movimento existencial da mulher construiu-se, a partir do fio condutor, uma representação dos sentidos desvelados no estudo (Figura 2).

Figura 2
Representação dos sentidos desvelados no estudo

Como ek-sistente, a mulher se movimentou de modo impessoal, impróprio e inautêntico por meio da publicidade do cotidiano da gestação de risco. Sua compreensão mediana se revelou nos modos de ser do falatório, curiosidade e ambiguidade, mostrando-se dispersa e impermanente, na decadência. Sendo-no-mundo compartilhado e circundado por familiares, conhecidos, profissionais de saúde e por seu bebê, foi na ocupação e na manualidade dirigida aos e pelos instrumentos, sendo-com deficiente e experimentando uma solicitude substitutiva expressa pela técnica provocadora. Angustiou-se impropriamente na disposição de ser-para-a-morte e temeu nos modos de pavor, horror e terror. Por facetas fugazes, anunciou-se como ser de possibilidades para tão logo em seguida decair tentada, tranquila, alienada e aprisionada.

Com base na compreensão do círculo hermenêutico, a figura também representa a ideia de que as partes só podem ser compreendidas pelo todo de que se compõem. Assim, ainda que se desvelem sentidos predominantes de certas Unidades de Significação e de suas respectivas compreensões vagas e medianas, esses também são desvelados em outras, denotando a totalidade fenomênica.

CONCLUSÃO

Ao recompor o caminho investigativo de análise do fenômeno de gestar para mulheres portadoras de cardiopatia, evidenciou-se a operacionalidade de conceitos que o investigador deve se apropriar para sustentar a episteme produzida no referencial teórico e metódico de Martin Heidegger.

É necessário, neste plano, que o objeto de estudo intencionado possa anunciar o referencial, e não o contrário. Isso implica, por parte daquele que investiga, necessária visão de mundo que considere as subjetividades da pessoa em situação de saúde ou doença e que se coloque em posição de escuta ativa e atentiva, reduzindo seus pressupostos e juízos de valor.

Nessa acepção, cabe destacar que a fenomenologia está imbricada na prática clínica de enfermeiros e demais membros da equipe de saúde, posto que se concebe centrada nas necessidades do indivíduo. Torna-se, deste modo, contrassenso profissional o cuidado em saúde limitado à esfera biológica, em especial aquele relacionado à saúde da mulher.

No tocante à produção de conhecimentos iluminados pelo referencial de Martin Heidegger, denota-se que, para o alcance interdisciplinar e entre os pares, tanto no cenário nacional como internacional, deve revelar rigor epistemológico. Com base neste, a enfermagem vem alicerçando pesquisas sob o pensamento desse filósofo, buscando desenvolver estudos que se fiem na perspectiva de desvelamento dos fenômenos vividos e vivenciados no campo da saúde e na área da enfermagem.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  Jan-Feb 2019

Histórico

• Recebido
  12 Jan 2018
• Aceito
  27 Jun 2018