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A fotografia no planejamento de intervenções de saúde dirigidas a idosos

RESUMO

Objetivo:

Analisar as potencialidades da utilização da técnica da foto-elicitação enquanto instrumento de acesso às reais necessidades dos beneficiários da intervenção dos profissionais de saúde. Com esse propósito, foram identificados, junto a um grupo de idosos, os aspetos da sua qualidade de vida que consideram mais relevantes.

Método:

Trata-se de uma investigação qualitativa em que o discurso dos idosos sobre as alterações à sua qualidade de vida é estimulado através do recurso a imagens fotográficas.

Resultados:

Com base nos dados obtidos, foi possível identificar os aspetos da qualidade de vida considerados mais relevantes pelos idosos, permitindo, assim, sustentar uma posterior intervenção ajustada às necessidades e expectativas do idoso.

Considerações finais:

A experiência de utilização da foto-elicitação permitiu constatar as suas potencialidades enquanto estratégia de recolha de informação significativa e relevante para o planejamento de intervenções na área da Saúde.

Descritores:
Fotografia; Narração; Qualidade de Vida; Idoso; Enfermagem

ABSTRACT

Objective:

To analyze potentialities of the use of photo-elicitation technique as a tool of access to the real needs of the beneficiaries of the intervention of health professionals. For this purpose, the aspects of their quality of life that they considered more relevant were identified with an elderly group.

Method:

It is a qualitative investigation in which the discourse of the elderly on the changes to their quality of life is encouraged through the use of photographic images.

Results:

Based on the data obtained, it was possible to identify the aspects of quality of life considered more relevant by the elderly, allowing, therefore, to sustain a later intervention adjusted to the needs and expectations of the elderly.

Final considerations:

The use of photo-elicitation allowed verifying its potentialities as a strategy to collect significant and relevant information for the planning of interventions in the Health area.

Descriptors:
Photography; Narration; Quality of Life; Aged; Nursing

RESUMEN

Objetivo:

Analizar las potencialidades de la utilización de la técnica de la foto-elección como instrumento de acceso a las reales necesidades de los beneficiarios de la intervención de los profesionales de salud. Con ese propósito, se identificaron, junto a un grupo de ancianos, los aspectos de su calidad de vida que consideran más relevantes.

Método:

Se trata de una investigación cualitativa en la que el discurso de los ancianos sobre las alteraciones a su calidad de vida es estimulado mediante el uso de imágenes fotográficas.

Resultados:

Con base en los datos obtenidos, fue posible identificar los aspectos de la calidad de vida considerados más relevantes por los ancianos, permitiendo así sostener una posterior intervención ajustada a las necesidades y expectativas del anciano.

Consideraciones finales:

La experiencia de utilización de la foto-elicitación permitió constatar sus potencialidades como estrategia de recogida de información significativa y relevante para la planificación de intervenciones en el área de la Salud.

Descriptores:
Fotografía; Narración; Calidad de Vida; Anciano; Enfermería

INTRODUÇÃO

A partir de meados do século XX ocorreu uma gradual mudança na conceção do significado do cuidar, acompanhada de uma alteração dos modelos de atuação dos profissionais de saúde, em particular dos enfermeiros. As interrogações sobre a prática dos cuidados e sobre o que os caracteriza dão origem a várias reflexões que procuram clarificar o domínio específico desses mesmos cuidados. Estas reflexões levaram ao desenvolvimento de modelos concetuais e explicativos dos cuidados de enfermagem, pois evidenciam a sua atenção no cuidar e tentam orientar a prática, a formação e a investigação em Enfermagem, bem como tornar mais explícitas aos enfermeiros as suas intervenções(11 Rodrigues FR, Pereira MLD, Amendoeira J. [Paradigmatic transitions of health and reflections in nursing as a discipline]. Rev Rede Cuid Saúde [Internet]. 2015 [cited 2017 Nov 23];9(1):1-8. Available from: http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rcs/article/view/2516/1281 Portuguese.
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). Neste processo de mudança da conceção do cuidar é possível identificar a influência das Ciências Sociais, bem como de diferentes linhas de pensamento que concebem o ser humano como um ser multidimensional (que influencia e é influenciado pelo ambiente no qual se encontra integrado).

A finalidade da Enfermagem passa a ser encarada como um fim e não como um meio, o cuidar em si mesmo. Esta ênfase reflete-se nos vários modelos do cuidar que, embora apresentem diferenças entre si, têm em comum o fato de serem centrados na pessoa, como sujeito de cuidados, numa perspetiva holística, na ação do enfermeiro e na relação entre este e o doente, valorizando a relação interpessoal e a individualidade de cada pessoa(22 Monteiro AP, Curado M. [A new epistemology of nursing: a post-human care?]. Rev Enf Ref [Internet]. 2016 [cited 2017 Nov 23];IV(8):141-148. Available from: http://dx.doi.org/10.12707/RIV15069 Portuguese.
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). Desde a década de 70 do século passado que o conceito de cuidado se afirma como um ideário na Enfermagem englobando noções amplas e diversas, como o ato de assistir, o envolvimento afetivo, a responsabilidade e a relação com o outro ser humano(33 Chernicharo IM, Freitas FDS, Ferreira MA. [Humanization in nursing care: contribution to the discussion about the national humanization policy]. Rev Bras Enferm [Internet]. 2013 [cited 2017 Nov 23];66(4), 564-70. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0034-71672013000400015 Portuguese.
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). A intervenção em Enfermagem vai ao encontro das necessidades individuais de cada sujeito em função da especificidade de cada situação e recorrendo à mobilização de conhecimentos adequados, de natureza teórica, técnica e relacional, e adaptados à singularidade de cada situação. O cuidar em Enfermagem tem como principal preocupação a pessoa, vista como ser único e insubstituível, o beneficiário da intervenção não é um mero objeto ou número, mas é, antes, uma pessoa singular, numa determinada situação, a quem se prestam cuidados individualizados (dir-se-ia mesmo, personalizados) e cujos direitos e necessidades são sempre respeitados. Daí que a pessoa que cuida não se preocupa meramente com o tratamento e/ou cura da doença, mas também (e, sobretudo) com a satisfação das necessidades mais prementes da pessoa doente.

O conceito de cuidar influencia a teoria, a investigação, a prática e o ensino em Enfermagem(44 Queirós PJP, Fonseca EPA, Mariz MAD, Chaves MCR, Cantarino SG. [Meanings assigned to the concept of caring]. Rev Enf Ref [Internet]. 2016 [cited 2017 Nov 23];IV(10):85-94. Available from: http://dx.doi.org/10.12707/RIV16022 Portuguese.
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). Esta assunção implica que o enfermeiro esteja dotado de capacidade de escuta e de compreensão do outro, reconhecendo o valor do mundo interior da pessoa. É no final da década de 70 do século XX que, através do trabalho de Jean Watson, se começa a destacar a valorização do acesso a esse mundo interior dos sujeitos através da pesquisa, reflexão e ação dos significados da pessoa e do processo de cuidar, durante as experiências saúde-doença(55 Favero L, Pagliuca LMF, Lacerda MR. Transpersonal caring in nursing: na analysis grounded in a conceptual model. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2013 [cited 2017 Nov 23];47(2):489-94. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-62342013000200032
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). Trata-se daquilo a que se apelida de trabalho de artesão dos enfermeiros, que congrega criatividade com conhecimento científico(66 Hesbeen W. Qualidade em Enfermagem - Pensamento e acção na perspectiva do cuidar. Loures (PT): Lusociência - Edições Técnicas e Científicas; 2001.). A arte de cuidar consiste na capacidade de reunir todos os componentes de uma determinada situação, compreendê-las e trabalhá-las, moldando-as à situação em causa, de acordo com as necessidades da pessoa, ou seja, os enfermeiros, enquanto prestadores de cuidados, colocam em prática o cuidar em toda a sua complexidade e em todas as suas dimensões. Além disso, os enfermeiros possuem recursos importantes e específicos que tornam a sua prestação de cuidados única. Entre esses recursos, encontram-se: Os ‘cuidados ditos de base’ (por exemplo, os cuidados de higiene e conforto, cuidados de alimentação, mobilização,…) que colocam o enfermeiro em contato com a intimidade do doente; ‘uma presença contínua’, que permite aos enfermeiros estarem junto ao doente e seus familiares em todos os momentos, compartilhando os bons e os maus momentos, dúvidas, expectativas e incertezas, ouvindo histórias pessoais – esperanças e sonhos, pensamentos e sentimentos; e ‘um mundo de ações de caráter mais ou menos técnico’, que põe em evidência a parte científica e técnica da sua prestação de cuidados. Isso mostra que os enfermeiros são ‘especialistas das pequenas coisas’, longe de ser um ‘rótulo’ com conotação negativa, e esta é uma qualidade suprema da Enfermagem. O profissionalismo do enfermeiro é aferido no modo como valoriza as pequenas coisas, e além das ações técnicas e de grande complexidade deve ter, igualmente, a capacidade de ir ao encontro do outro e de acompanhá-lo, de caminhar com ele, enaltecendo as coisas aparentemente banais e desprovidas de sofisticação, mas que fazem toda a diferença para quem é cuidado, uma vez que revela preocupação e atenção por parte de quem cuida.

Nesse sentido, o cuidar não é a mera soma de ações fragmentadas, de natureza técnica, básica ou educativa, a profundidade do cuidar envolve a criação de relacionamentos com a pessoa para acompanhá-la e caminhar com ela(66 Hesbeen W. Qualidade em Enfermagem - Pensamento e acção na perspectiva do cuidar. Loures (PT): Lusociência - Edições Técnicas e Científicas; 2001.). O espírito do cuidar não está submetido exclusivamente à lógica técnico-científica ou aos princípios organizacionais, o cuidar assume-se como um valor fundamental, onde tudo, nos seus mínimos pormenores, forma um todo coerente movido por uma mesma intenção: Os cuidados a prestar à pessoa(66 Hesbeen W. Qualidade em Enfermagem - Pensamento e acção na perspectiva do cuidar. Loures (PT): Lusociência - Edições Técnicas e Científicas; 2001.).

OBJETIVO

Analisar a utilização de processos inovadores que proporcionem ao enfermeiro um acesso facilitado às reais necessidades dos beneficiários da intervenção. Este artigo, baseado numa comunicação apresentada no VI Congresso Ibero-Americano em Investigação Qualitativa(77 Calha A, Monteiro F, Hilário M. A imagem fotográfica e a narrativa como recursos no planeamento de intervenções de enfermagem ao idoso. In: Costa AP, Ribeiro J, Synthia E, Souza D, editores. In: Atas do 6º Congresso Ibero-Americano em Investigação Qualitativa; 2017 [cited 2017 Nov 23];(2): Jul 12-14, Salamanca, Espanha. Aveiro (PT): Ludomédia; p. 200-9. Available from: http://proceedings.ciaiq.org/index.php/ciaiq2017/article/view/1210
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), visa ser um contributo para o planejamento de intervenções de enfermagem que tenham em consideração a auscultação dos seus beneficiários e a identificação das necessidades por estes expressas. Como instrumentos de auscultação e levantamento de informação, foi utilizada a imagem fotográfica e a narrativa. Neste caso, procurou-se identificar junto a um grupo de idosos usuários de um Centro de Dia, os aspetos da sua qualidade de vida que consideram mais relevantes. Para tal, utilizou-se a técnica da foto-elicitação com o intuito de analisar as perceções individuais.

Com o recurso a esta técnica, pretende-se identificar o valor da informação contida nos detalhes da narrativa construída em torno das fotografias apresentadas aos idosos. Esta valorização do detalhe é, aliás, uma das componentes do trabalho de enfermagem, dado que são as pequenas coisas que contribuem para dar sentido à vida, para alimentar a esperança no ato de cuidar(66 Hesbeen W. Qualidade em Enfermagem - Pensamento e acção na perspectiva do cuidar. Loures (PT): Lusociência - Edições Técnicas e Científicas; 2001.).

MÉTODO

Aspectos éticos

Os autores orientaram a sua conduta pelo escrupuloso cumprimento do Código de Ética do Instituto Politécnico de Portalegre, que constitui a declaração ética formal e referência orientadora das ações para todas as partes integrantes desta Instituição. Ao longo da investigação, foram seguidos os requisitos éticos que devem regular a prática científica, todos os participantes participaram de forma voluntária e foram previamente informados do propósito das sessões, tendo-lhes sido dada possibilidade de abandonar a investigação em qualquer altura e sem qualquer prejuízo pessoal.

Referencial teórico-metodológico

A utilização da fotografia como instrumento de investigação na Saúde não é recente e constitui uma tradição enquadrada na pesquisa de natureza qualitativa. As pesquisas baseadas na utilização da fotografia têm revelado o seu potencial enquanto técnica de investigação fenomenológica, em particular: I) no modo como permite desocultar as vivências pessoais e únicas dos sujeitos; II) a forma como permite compreender melhor o outro; e III) o modo como propicia a perceção do modo de interpretação e construção subjetiva da realidade. Ainda assim, pouca tem sido a divulgação da fotografia enquanto recurso de trabalho nas diferentes áreas da Saúde.

Os poucos estudos na área da Saúde que recorrem à fotografia são bastante heterogéneos quanto à natureza dos fenómenos em estudo. Encontramos exemplos do recurso à fotografia para compreender a experiência de gestantes, no seu contato com um serviço materno-infantil, por ocasião do parto(88 Melleiro MM, Gualda DMR. [The pictorial ethnographic approachn for the evalution of the health and nursing service]. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2006 [cited 2017 Nov 23];15(1):82-8. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-07072006000100010 Portuguese.
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). Também ao nível da observação, evolução e registro de lesões e tecidos adjacentes, a fotografia se tem revelado um instrumento útil(99 Faria NGF, Peres HHC. [Analysis of scientific literature on photographic documentation of wounds in nursing]. Rev Eletr Enf [Internet]. 2009 [cited 2017 Nov 23];11(3):704-11. Available from: https://www.revistas.ufg.br/fen/article/view/47232/23148 Portuguese.
https://www.revistas.ufg.br/fen/article/...
). Igualmente, com base na fotografia, analisaram-se os modos de trabalhar de uma equipe de enfermagem e a sua relação com os pacientes e os demais profissionais de saúde(1010 Reus LH, Tittoni J. [The visibility of nursing work in the surgical center through photography]. Interface Com Saude Educ [Internet]. 2012 [cited 2017 Nov 23];16(41):485-97. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S1414-32832012005000034 Portuguese.
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). Num outro exemplo, recorrendo ao photovoice, analisam-se os fatores envolvidos na qualidade dos cuidados de enfermagem a idosos dependentes em cuidados domiciliares(1111 Carvalhais M, Sousa L. [The quality of nursing home care to dependent elderly]. Saúde Soc [Internet]. 2013 [cited 2017 Nov 23];22(1):160-72. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902013000100015 Portuguese.
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).

O modo como a fotografia é utilizada, enquanto instrumento de trabalho, nas diferentes pesquisas, é bastante variável. Em alguns estudos, os investigadores cedem câmaras fotográficas aos participantes para que os mesmos façam registros de uma determinada realidade(88 Melleiro MM, Gualda DMR. [The pictorial ethnographic approachn for the evalution of the health and nursing service]. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2006 [cited 2017 Nov 23];15(1):82-8. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-07072006000100010 Portuguese.
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,1111 Carvalhais M, Sousa L. [The quality of nursing home care to dependent elderly]. Saúde Soc [Internet]. 2013 [cited 2017 Nov 23];22(1):160-72. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902013000100015 Portuguese.
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). Nestes casos, o valor hermenêutico da fotografia é salientado, sendo consideradas como uma linguagem visual portadora de significado e passível de ser decifrada e discutida. Assim, as imagens não podem ser entendidas como um mero registro da realidade, elas carregam crenças e valores enquanto manifestações culturais e sociais(88 Melleiro MM, Gualda DMR. [The pictorial ethnographic approachn for the evalution of the health and nursing service]. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2006 [cited 2017 Nov 23];15(1):82-8. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-07072006000100010 Portuguese.
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).

Em outros estudos(1212 Gimenes REF, Cassiani SHB. Safety in medication preparation and administration, in light of restorative health care research. Rev Min Enferm [Internet]. 2013 [cited 2017 Nov 23];17(4): 975-83. Available from: http://dx.doi.org/10.5935/1415-2762.20130070
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), a imagem fotográfica é determinada a priori pelos investigadores e utilizada como estimulo dos participantes para a produção de narrativas. Nestas investigações, a fotografia é utilizada para permitir a quem as visualiza a atribuição de um significado e a interpretação da experiência de vida. O objetivo é fazer desencadear um processo reflexivo de modo a que experiência, dimensão existencial do viver, possa ser abordada e compreendida mediante as associações simbólicas e metafóricas dos indivíduos.

No caso desta investigação, tendo em conta os seus objetivos, a preparação das sessões com os idosos fez-se em consonância com o conceito de qualidade de vida nos moldes em que foi definido e operacionalizado pelo grupo de peritos do Whoqol Group, designado pela Organização Mundial de Saúde(1313 Whoqol Group. The world health organization quality of life assessment (WHOQOL): development and general psychometric properties. Soc Sci Med [Internet]. 1998 [cited 2017 Nov 23];46(12):1569-85. Available from: https://doi.org/10.1016/S0277-9536(98)00009-4
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). Do trabalho deste grupo resultou um conceito de qualidade de vida de aparência subjetiva e de natureza multidimensional, enquadrado pelo contexto cultural e sistema de valores em que os indivíduos determinam, não só os seus objetivos, expectativas, mas também os seus receios e preocupações. A amplitude e a complexidade do conceito englobam dimensões tão diversas como a saúde física, o estado psicológico, as relações sociais e as características envolventes do meio ambiente. Assim, a seleção das fotografias utilizadas nas sessões com os idosos procuraram englobar os seguintes domínios: Físico, psicológico, relações sociais e ambiente. Para cada um dos domínios da qualidade de vida foi elaborada uma ficha fotográfica, num total de quatro. Cada uma das fichas continha duas imagens retratando realidades antagónicas relativas à vivência da velhice em cada domínio.

No nível físico, procurou-se perceber como no discurso dos idosos surgiam espontaneamente temas relacionados com a maior ou menor capacidade de realização de atividades da vida diária, a dor e o desconforto ou a fadiga e a energia. Nesse sentido, na ficha relativa ao domínio físico, constava uma foto de idosos realizando exercício físico e uma foto de um casal idoso puxando um carrinho de compras, com dificuldades de locomoção, utilizando meios auxiliares de marcha. No domínio psicológico, constavam na ficha duas fotografias retratando um idoso rindo e um idoso com semblante triste. Procurou-se, neste domínio, evocar as questões, como a tristeza, a autoestima ou os sentimentos negativos e positivos. Na ficha relativa às relações sociais, visou-se a abordagem das relações pessoais, do isolamento e do suporte social, através de uma fotografia de idosos que convivem socialmente e uma fotografia que retrata um idoso só. No que diz respeito ao domínio relativo ao meio ambiente, procurou-se aferir no discurso dos participantes referências ao seu sentimento de segurança física, ao ambiente do lar e aos recursos financeiros.

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo de natureza qualitativa, com ênfase metodológica na foto-elicitação. Os dados foram recolhidos em sessões de discussão de grupo e a análise de dados foi realizada a partir da análise de conteúdo.

Procedimentos metodológicos

O intuito das quatro fichas utilizadas nas sessões de grupo com os idosos foi o de estimular os participantes com elementos que evocassem o seu quadro de referência individual, respeitando a sua linguagem e as suas características mentais. A investigadora responsável pela realização do trabalho de campo realizou três sessões de grupo com os 12 idosos.

Cenário do estudo

Todas as sessões foram realizadas no Centro de Dia. Em cada sessão foi solicitado aos idosos que observassem cada uma das quatro fichas e que, individualmente, escolhessem aquela que melhor ilustrasse a velhice. Após a escolha, foi pedido a cada idoso que justificasse ao grupo a sua escolha, possibilitando, simultaneamente, o debate em torno das escolhas e da justificação das mesmas. Cada sessão teve uma duração aproximada de uma hora, sendo muito bem acolhida por parte dos idosos participantes.

Fonte de dados

A fonte de dados foi constituída por idosos que frequentavam um Centro de Dia do distrito de Portalegre. Para seleção dos participantes, caracterizados na Tabela 1, foram adotados os seguintes critérios de inclusão: Ter mais de 65 anos, frequentar o Centro de Dia há mais de seis meses. Foram excluídos os idosos que apresentavam deficits cognitivos, aferidos através das respostas ao Minimal Mental State Examination.

Tabela 1
Caracterização do grupo de idosos

Coleta e organização dos dados

As sessões foram gravadas com autorização de todos os participantes e, posteriormente, transcritas. Os dados foram compilados e trabalhados de modo a sujeitá-lo aos procedimentos de análise de conteúdo, seguindo a lógica inerente à análise qualitativa.

Análise dos dados

Para a análise dos dados foi desenvplanejamentoolvida uma quadro de análise que resultou do núcleo teórico central, de onde decorrem as interrogações de investigação. As categorias de análise corresponderam às quatro dimensões do conceito de qualidade de vida. Após o trabalho inicial de definição de categorias e estabilização da quadro de análise, procedeu-se a identificação, nas narrativas, de unidades de registro categorizáveis e comparáveis entre si.

RESULTADOS

A fotografia, enquanto recurso de intervenção, permitiu o acesso ao universo de referências dos idosos, possibilitando perceber o modo como estes interpretam o significado de viver a velhice nos aspetos relacionados à sua qualidade de vida. Ao longo das sessões, a fotografia funcionou como catalisador das narrativas, proporcionando reflexões individuais partilhadas em grupo que, numa primeira leitura, parecem pouco interessantes, mas que ganham profundidade numa análise mais atenta e quando considerada a riqueza da informação para os profissionais de saúde. Tomemos como exemplo o relato da idosa J., ao comentar uma das fotografias que retratava um casal idoso na via pública puxando um carrinho de transporte de compras com dificuldade.

Estão a cuidar da vida, a fazer as suas compras…e isso é muito bom…é o que falta a mim! Não ando…o que dá-me muito desgosto… […] tenho um grande desgosto nem puder ir com o carrinho…eu gostava muito de fazer as minhas compras…quando casei, foi o mais difícil que se tornou…porque não estava habituada a fazer compras…era a minha mãe…mas aprendi muita coisa…mas quando casei, não sabia ir à praça…sentia-me perdida, sentia-me desencontrada do mundo em que eu vivia…depois habituei-me…e hoje o mais desgosto que me dá é não puder fazer as minhas compras…dá-me muito desgosto […] eu sinto-me independente, mas sou dependente…sinto-me independente no meu pensamento […] ainda vou fazendo algumas coisas, agarrada a isto, agarrada áquilo…mas vou fazendo…sujeita à consequência que todos sabem…a dar trambolhões. (J., 81 anos, viúva, vive sozinha)

Este relato demonstra bem a forma como as derivações do discurso enriquecem a narrativa em termos de informação significativa para os profissionais de saúde. Partindo da visualização da fotografia, a idosa revela no seu relato que a capacidade de realizar compras constitui, subjectivamente, os limites da sua vida independente e autônoma, aí se balizam as fronteiras entre a juventude, a idade adulta e a velhice. A independência e a autonomia ganham, assim, relevo no discurso desta idosa, colocando em evidência a importância destas capacidades na determinação da sua qualidade de vida. O medo de queda surge no discurso da idosa como elemento que poderá limitar a realização de atividades de vida e conduzir à imobilidade. Ficam, assim, patentes importantes elementos, subjetivamente relevantes para a idosa, que poderão sustentar uma intervenção dos profissionais de saúde que favoreça a manutenção da mobilidade e previna o agravamento da situação como a síndrome do medo de cair.

O relato anterior é elucidativo da riqueza da narrativa que decorre da análise das fotografias, no caso concreto desta investigação o propósito foi identificar os elementos mais relevantes para os idosos na determinação da sua qualidade de vida. Desta forma, a análise baseou-se no registro do discurso dos idosos sobre as fichas que lhes foram reveladas nas sessões. O relato dos idosos foi transcrito e trabalhado de modo a sujeitá-lo aos procedimentos de análise de conteúdo, seguindo a lógica inerente à análise qualitativa, com o propósito de interpretar e reconstruir o sentido da narrativa, produzindo as categorias e proposições (hipóteses explicativas) indispensáveis ao entendimento dos fenômenos através de um processo indutivo(1414 Guerra, I. Pesquisa Qualitativa e Análise de Conteúdo: Sentidos e formas de uso. Estoril (PT): Princípia Editora; 2006.). Para a análise foi desenvolvida uma quadro de análise de conteúdo das narrativas dos idosos baseada nos quatro domínios da qualidade de vida, consideradas nesta investigação (físico, psicológico, relações sociais e ambiente).

Da análise das narrativas. resultou a identificação de uma multiplicidade de elementos que sobressaem no discurso dos idosos como relevantes para a forma como concebem a sua qualidade de vida. Em primeiro lugar, destacam-se as referências ao domínio físico, nomeadamente a capacidade de locomoção e de realização das atividades de vida diária são as competências mais nomeadas pelos idosos que decorrem discursivamente da análise das fotografias:

Enquanto eu puder andar, fazer as minhas coisinhas e mandar em mim, porque ninguém manda em mim…já estou contente…quando alguém mandar em mim, ficarei triste…mas agora não mandam…eu é que mando em mim…não me afeta ser velha… (B., 84 anos, viúva, vive sozinha)

A progressiva diminuição da capacidade de realização de atividades de vida diária, que eram antes triviais, dá lugar à tomada da consciência para a necessidade de depender de outro para a sua realização. A autonomia funcional constitui um elemento fundamental para a manutenção da independência individual, da autodeterminação e do controlo sobre a própria vida. Nestes idosos, a liberdade de ação e de decisão surge, invariavelmente, ligada à capacidade de locomoção. Nesse sentido, o risco de comprometer a qualidade de vida no domínio físico surge associada, sobretudo ao receio de doença e ao imobilismo:

A velhice não faz mal. O que faz mal é a doença […] A doença é que faz mal…se não tivesse sido isto que me deu estava boa… [É questionada por outra idosa – “O que é que lhe deu?]… Eu estive ali internada 3 meses…para recuperar… pareço um robô a andar. (C., 81 anos, viúva, vive com o filho e a nora)

Isto é assim…a gente não faz ginástica porque somos malandros…ainda agora um dia destes, a doutora…tivemos aí a fazer uma ginasticazinha…aquilo que fizemos com ela também podíamos bem fazer sozinhos, a gente é que não faz caso…eu sei e até é bom para a gente, só que a gente somos malandros…não fazemos caso…nós entregamo-nos a isto e é cada vez pior…eu agora estou mais preso, mas quando a gente vê que o tempo está bom, vou ali para fora, sento-me pr’ali…agora uma pessoa está sempre aqui sentado todo o dia, é sempre só para pior… (H., 84 anos, solteiro, vive sozinho)

O segundo domínio da qualidade de vida que mais sobressai na narrativa dos idosos é constituído pelas relações sociais. Na maioria dos relatos, surgem referências a uma diminuição da vida social. Esta quebra de laços sociais associada ao processo de envelhecimento está, igualmente, associada às dificuldades de locomoção:

Quando podia andar, tinha amigas em que ia a casa delas…agora deixei de andar…(C., 81 anos, viúva, vive com o filho e a nora)

A vivência do luto, em particular, e a consequente rutura de laços afetivos origina, em muitas das situações, repercussões emocionais. Nestes casos, a quebra da rotina deixa na idosa uma sensação de vazio:

Antes do meu marido partir…e mesmo quando ele estava e que tinha de me esforçar um bocado…sinto falta disso! Sinto falta dele mesmo doente…era uma rotina que eu tinha, uma preocupação…quando me levantava era ele primeiro a ser tratado…quando ele faleceu, houve um dia depois, quando acordei às 8h da manhã, acordei sobressaltada porque estava naquela ideia que ainda não tinha tratado dele…não, não chorei…vivi…e hoje revivo esse passado, mas…sem dor…trabalhava muito, fazia muita coisa…é a vida…é a sinceridade… (J., 81 anos, viúva, vive sozinha)

O domínio psicológico da qualidade de vida constitui o terceiro domínio que se evidencia no discurso dos idosos, ainda que frequentemente associado aos domínios físico e das relações sociais. Destacam-se, neste domínio, as referências ao sentimento de solidão e à tristeza pela incapacidade de ir onde quiser. O desejo de estar em outro lugar e de ter uma condição diferente constituem elementos da narrativa que surgem recorrentemente no discurso dos idosos:

[Referindo-se ao fato de se sentir triste] estar assim com um dia destes assim …e pensar que podia estar na rua ao sol e ter que estar aqui parado […] Eu gostava de estar ao pé das minhas irmãs mas elas…casaram, estão em lisboa só vêm cá de vez em quando, e então…o facto de elas estarem longe não me afetou nada…eu estou cá no meu cantinho…às vezes elas vêm cá ou eu vou lá, conforme…e como haverei de explicar…eu que nós só precisamos é de convívio, de não estar em casa sozinhas…que é o que nos afeta um bocadinho. (A., 68 anos, solteira, vive sozinha)

São vários os relatos em que a quebra de laços familiares é acompanhada de ressentimento, da ideia de abandono e do sentimento de solidão:

Eu vim para aqui 3 ou 4 meses…perguntei aos meus filhos…o que é certo é que já cá estou há um ano e meio e os meses já passaram…ah pois…ainda lhe tenho que dar o recado: até quando é que passa os 3 ou 4 meses. (E., 76 anos, viúva, vive sozinha)

Às vezes sentimo-nos sós…os filhos não querem saber dos pais, como infelizmente está a acontecer… (G., 74 anos, casado, vive com o cônjuge)

Por fim, no domínio do ambiente envolvente ao idoso a narrativa é marcada por referência às alterações que ocorreram no domicílio e que decorrem da necessidade de adaptar o espaço às limitações associadas ao processo de envelhecimento:

Se for ao meu quarto, também não parece o meu quarto…porque tenho de ter tudo a jeito em cima das cadeiras, roupa…porque quando me levanto de manhã, não consigo ir ao roupeiro buscar a roupa…tenho que deixar alguma em cima de uma cadeira para me vestir e para me calçar […] Nem a minha cozinha parece a mesma…está tudo ali a jeito…tenho de ter tudo ali em monte…o que me faz falta, tenho de estender a mão…sentar-me muitas vezes numa cadeira […] custou-me muito porque eu tinha sempre tudo arrumadinho…qualquer pessoa que lá vá está sempre a dizer-me para não me importar de estar tudo desarrumado e para pôr tudo a jeito…arrumada já foi… (J., 81 anos, viúva, vive sozinha)

Do discurso dos idosos estimulado pela discussão em torno das fotografias, evidenciou-se um conjunto de elementos relevantes para os idosos e que afetam a sua qualidade de vida. Muitos destes elementos, como a ansiedade, a desesperança, a solidão, são relevantes no contexto clínico, embora nem sempre surjam na forma de queixas clínicas.

DISCUSSÃO

A prestação de cuidados de saúde dirigida ao idoso deve ter por referência a pluralidade cultural e as especificidades do seu contexto de vida. Apenas desse modo se criam condições para a estruturação da intervenção de enfermagem mais aproximada à realidade em que o idoso está inserido, estimulando reflexões acerca da necessidade de ressignificar práticas, valores e atitudes(1515 Pinheiro GML, Alvarez AM, Pires DEP. [The configuration of the work of nurses in care of the elderly in the family healthcare strategy]. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2012 [cited 2017 Nov 23];17(8):2105-15. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232012000800021 Portuguese.
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). Como é reportado em outras investigações, a prestação de cuidados de enfermagem de forma adequada e integral, englobando os aspetos biológicos, psicossociais, culturais e espirituais, depende da capacidade de levar em consideração as necessidades especificas do idoso(1616 Floriano LA, Azevedo RCS, Reiners AAO, Sudré MRS. Care performed by family caregivers to dependent elderly, at home, within the context of the family health strategy. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2012 [cited 2017 Nov 23];21(3):543-8. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-07072012000300008
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). A operacionalização do conceito de cuidado integral ao idoso traduz-se num conjunto bastante amplo de enunciados de diagnósticos de enfermagem que abrangem, entre outras necessidades: a necessidade de comunicar-se; a necessidade de aprender; a necessidade de ocupar-se para a autorrealização; a necessidade de distrair-se e a necessidade de agir segundo as suas crenças e valores(1717 Clares JWB, Guedes MVC, Silva LDF, Nóbrega MML, Freitas MC. Subset of nursing diagnoses for the elderly in primary health care. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2016 [cited 2017 Nov 23];50(2):270-6. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-623420160000200013
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). As próprias expectativas dos idosos relativamente à intervenção do enfermeiro não se restringem a meras ações técnicas(1818 Silva KM, Vicente FR, Santos SMA. [Nursing consultation to the elderly in primary health care: a literature integrative review]. Rev Bras Geriatr Gerontol [Internet]. 2014 [cited 2017 Nov 23];17(3):681-7. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/1809-9823.2014.12108 Portuguese.
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). Para além da atenção à doença, o idoso espera a criação de vínculos com o enfermeiro, num ambiente de comunicação que possibilite autonomia, resolubilidade e responsabilização(1919 Almeida RT, Ciosak SI. [Comunicação do idoso e equipe de saúde da família: há integralidade?] Rev Lat-Am Enferm [Internet]. 2013 [cited 2017 Nov 23];21(4):1-7. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v21n4/pt_0104-1169-rlae-21-04-0884.pdf Portuguese.
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).

Nesse contexto, torna-se necessário o recurso a modelos de cuidados que reconheçam as características particulares de cada idoso e estimulem a sua autonomia e o envelhecimento ativo. Neste processo, a interação idoso-enfermeiro é fundamental para a recolha de dados relevantes relativamente ao processo saúde/doença e envelhecimento(1818 Silva KM, Vicente FR, Santos SMA. [Nursing consultation to the elderly in primary health care: a literature integrative review]. Rev Bras Geriatr Gerontol [Internet]. 2014 [cited 2017 Nov 23];17(3):681-7. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/1809-9823.2014.12108 Portuguese.
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). No contexto institucional, o tempo disponível para a comunicação entre o idoso e o enfermeiro é, em muitas situações, escassas, ficando restringidas à discussão de questões relacionadas com a prestação do cuidado imediato. Como é salientado por outros autores, a existência de oportunidades de diálogo e a consciencialização para a importância da comunicação garantem uma maior abrangência de temas de conversa que permite ir ao encontro das necessidades psicossociais do idoso(2020 Williams KN, Ilten TB, Bower H. Meeting communication needs: topics of talk in the nursing home. J Psychosoc Nurs Ment Health Serv [Internet]. 2016 [cited 2017 Nov 23];43(7):38-45. Available from: https://www.healio.com/psychiatry/journals/jpn/2005-7-43-7/%7Bef836895-b726-4083-aa09-fe34c552737a%7D/meeting-communication-needs-topics-of-talk-in-the-nursing-home#divReadThis
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).

A foto-elicitação e a narrativa que lhe está associada detêm um grande potencial no planejamento de intervenções de enfermagem junto de populações específicas, nomeadamente população idosa, na medida em que permite o acesso aos quadros de referência dos indivíduos. Pelas suas características, a foto-elicitação revela ser um interessante recurso de trabalho na relação entre enfermeiro e idoso. A qualidade do cuidado dirigido a esta população depende grandemente da aquisição de competências de comunicação e interação que facilitem o processo comunicacional(2121 Haugan G. Nurse-patient interaction is a resource for hope, meaning in life and self-transcendence in nursing home patients. Scand J Caring Sci [Internet]. 2014 [cited 2017 Nov 23]; 28(1):74-88. Available from: http://dx.doi.org/10.1111/scs.12028
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). Nesse sentido, a foto-elicitação, ao despoletar o diálogo e ao proporcionar oportunidade para que o idoso desenvolva uma narrativa estruturada em torno de um tema, constitui um instrumento facilitador do processo de diagnóstico de enfermagem.

A visualização das imagens fotográficas envolve processos de natureza afetiva e cognitiva, levando os idosos a interpretar cada fotografia, recorrendo às suas experiências passadas e à sua situação presente. É na evocação de elementos conscientes e inconscientes que reside o valor deste instrumento. Da visualização das fotografias resulta toda uma narrativa, entendida como a organização de uma sequência de acontecimentos de tal forma que o significado de cada acontecimento seja entendido através da sua relação com o todo(2222 Elliott J. Using narrative in social research: Qualitative and quantitative approaches. London: Sage Publications. 2005.). No caso particular da utilização da fotografia para estimular a discussão e a partilha num grupo de idosos, a organização e a sequenciação da narrativa é fruto de um processo de seleção, por parte do idoso, das experiências de vida que consideram relevantes. O enredo da narrativa permite a relação entre conexões pessoais, ligando escolhas e acontecimentos passados a eventos subsequentes, levando a coerência da narrativa a sustentar-se na causalidade estabelecida entre acontecimentos. As preocupaçõesem dar sentido, em conferir razão e em destacar uma lógica estabelecendo relações inteligíveis, como as que há entre causa e efeito, são centrais nas narrativas analisadas.

Na utilização da narrativa no planejamento de intervenções de enfermagem, cabe ao enfermeiro a aceitação das reconstruções da existência presentes na narrativa, quer se trate da reordenação de sequências, quer se trate do rearranjar da própria existência do narrador. Caberá ao destinatário da narrativa, o enfermeiro, através de uma atitude de distanciamento, corrigir o risco de deriva narrativa que encerra a anamnese: O efeito do distanciamento, permitindo ganhar campo, autoriza uma visão mais ‘desinteressada’ do que a do ‘interessado’; à inevitável subjetividade do redator sucede uma relativa objetividade(2323 Poirier J, Clapier-Valladon S, Raybaut P. Histórias de vida: teoria e prática. Oeiras (PT): Celta Editora; 1999.). Uma narrativa bem-sucedida é mais do que uma sequência cronológica de eventos, ela envolve, também, uma dimensão avaliativa, crucial para a atribuição de sentido(2222 Elliott J. Using narrative in social research: Qualitative and quantitative approaches. London: Sage Publications. 2005.). Os segmentos avaliativos da narrativa constituem os meios utilizados pelo narrador para transmitir a forma como deve ser interpretado o significado da sequência de eventos narrados(2424 Linde C. Life stories: The creation of coherence. Oxford: Oxford University Press. 1993.). As formas linguísticas que expressam a estrutura avaliativa podem variar numa grande amplitude de estruturas e de escolhas linguísticas. O mero relato representa um ato avaliativo, na medida em que os eventos relatados são-no exatamente por serem considerados merecedores de ser citados em virtude da sua significância ou das suas propriedades invulgares ou inesperadas(2222 Elliott J. Using narrative in social research: Qualitative and quantitative approaches. London: Sage Publications. 2005.). Assim, o contexto onde se produz a narrativa reveste-se de crucial importância, em particular a especificidade da situação e o conjunto das interações que se estabelecem entre narrador e narratário. É nesta interação que se estabelecem as bases que permitem ao enfermeiro determinar as intervenções de enfermagem que possam acudir integralmente às necessidades expressas pelos idosos e, ao mesmo tempo, visem a promoção da sua autonomia e encaminhamento para o autocuidado, o que contribuirá para o aumento da sua capacidade funcional e consequente aumento da qualidade de vida.

Limitação do estudo

Como limitações da realização da pesquisa, destaca-se o fato de a mesma ter sido realizada em uma única instituição com um método de amostragem por conveniência. A dimensão da amostra também impossibilitou o uso do critério de saturação para delimitação no número de sujeitos do estudo. Assim, não se pode excluir a possibilidade de que, com mais participantes, pudessem ter surgidos outros aspetos relevantes para além dos relatados nesta investigação.

Contribuições para a área da Enfermagem

A apropriação pela Enfermagem de instrumentos, como a foto-elicitação, permite enriquecer o saber de enfermagem que visa cuidar da pessoa na sua globalidade e prestar cuidados personalizados, tomando o destinatário da intervenção como um ser único, a que está implícito o respeito incondicional pelo outro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A utilização da fotografia como pretexto para despoletar o diálogo, neste caso, entre idosos e profissionais de saúde, garante informação relevante para o planeamento de intervenções ajustadas às reais necessidades e expectativas dos idosos. O uso da foto-elicitação permite aos idosos um maior controlo sobre a derivação do discurso e a pertinência dos episódios relatados. Nessa medida, é uma ferramenta útil para a descoberta dos elementos tidos por mais relevantes pelos idosos. A planificação e intervenções de enfermagem, baseadas na utilização de metodologias desta natureza, permite perspetivar o cuidado como um todo, interligando e interrelacionando todas as dimensões do conceito de cuidado. Este instrumento, no contexto do trabalho com idosos institucionalizados, auxilia a Enfermagem na visão holística do ser humano, que se opõe a uma visão reducionista, que trata a parte. O potencial do recurso a esta técnica no contexto da intervenção de enfermagem reside no modo como contribui para superar uma visão reducionista do beneficiário dos cuidados. A sua utilização, por parte do enfermeiro, permite uma visão de natureza mais holística do ser humano, pois encara o indivíduo como um ser ativo, integrado, com interações múltiplas, dinâmico, autodeterminado e afasta-se das perspetivas que encaram o ser humano como um ser reativo (ou até mesmo passivo), que valoriza a sintomatologia física, de causalidade linear, estável, que manipula, que controla.

No caso concreto do relato dos idosos envolvidos nesta investigação, foi possível desenhar um plano de intervenção de enfermagem direcionado às suas necessidades concretas. Assim, as intervenções relativas ao domínio físico foram delineadas por forma a permitirem orientar os idosos sobre a maneira como lidar com as alterações relacionadas com a capacidade de locomoção e de realização das atividades de vida diária, intervenções essas que devem respeitar sempre os hábitos e preferências dos idosos e promover o autocuidado. No domínio das relações sociais, foram delineadas intervenções centradas na promoção das relações e interações sociais, dando ênfase à importância da manutenção dos contatos sociais. No domínio psicológico, as intervenções visaram a promoção da autoestima dos idosos através de atividades de reforço positivo. Em relação ao domínio do ambiente, as intervenções contemplaram ações educativas, visando o esclarecimento dos idosos sobre ajudas técnicas, equipamentos adaptativos e forma de organização do espaço. Deste modo, a experiência de utilização da foto-elicitação junto a um grupo de idosos permitiu constatar as suas potencialidades enquanto estratégia de recolha de informação significativa e relevante para o planejamento de intervenções de enfermagem.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2018
  • Aceito
    09 Set 2018
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