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Acesso de crianças com necessidades especiais de saúde à rede de atenção

RESUMO

Objetivo:

Conhecer como se dá o acesso de crianças com necessidades especiais de saúde na rede de atenção à saúde.

Método:

Pesquisa qualitativa do tipo descritivo-exploratória, desenvolvida por meio de entrevistas semiestruturadas mediadas pelo desenho do Mapa Falante. Participaram 19 familiares cuidadores dessas crianças em dois municípios brasileiros. Os dados foram submetidos à análise temática indutiva.

Resultados:

Apontou-se dificuldades, do diagnóstico ao acompanhamento especializado, algo denotado pelo itinerário da criança e sua família na busca pela definição do diagnóstico médico e pelo acesso ao profissional especializado; no atendimento na atenção primária à saúde, observou-se um distanciamento entre as necessidades das crianças e a assistência ofertada.

Conclusão:

O acesso de crianças com necessidades especiais de saúde apresenta-se permeado por obstáculos, como a morosidade no processo de definição diagnóstica da criança e o encaminhamento para o especialista. Houve substituição dos serviços da atenção primária pelos atendimentos em unidades de pronto-atendimento.

Descritores:
Criança; Acesso aos Serviços de Saúde; Cuidadores; Doença Crônica; Enfermagem Pediátrica

ABSTRACT

Objective:

To know how children with special health needs access the health care network.

Method:

This is a qualitative research of descriptive-exploratory type, developed using semi-structured interviews mediated by the Talking Map design. Participants were 19 family caregivers of these children in two Brazilian municipalities. Data were submitted to inductive thematic analysis.

Results:

Difficulties were mentioned from the diagnosis moment to the specialized follow-up, something represented by the itinerary of the c hild and his/her family in the search for the definition of the medical diagnosis and the access to a specialized professional; a gap between the children’s needs and the care offered was observed in primary health care.

Conclusion:

The access of children with special health needs is filled with obstacles such as slowness in the process of defining the child’s diagnosis and referral to a specialist. Primary health care services were replaced by care in emergency care units.

Descritores:
Criança; Acesso aos Serviços de Saúde; Cuidadores; Doença Crônica; Enfermagem Pediátrica

RESUMEN

Objetivo:

Conocer cómo ocurre el acceso de niños con necesidades especiales de salud a la red de atención primaria a la salud.

Método:

Investifación cualitativa, de tipo descriptiva y exploratoria, en la cual se utilizó entrevistas semiestructuradas mediadas por la elaboración de un Mapa hablante. Participaron 19 familiares que cuidan a estos niños en dos municipios brasileños. Se sometieron los datos al análisis temático inductivo.

Resultados:

Del diagnóstico al acompañamiento especializado, se apuntaron dificultades durante la trayectoria del niño y su familia por la búsqueda de la definición del diagnóstico médico y del acceso al profesional especializado; en la atención en la red de atención primaria a la salud, se observó un distanciamiento entre las necesidades de los niños y la asistencia ofrecida.

Conclusión:

En el acceso de niños con necesidades especiales de salud ocurren numerosos obstáculos, como la morosidad en el proceso de definición diagnóstica del niño y su encaminamiento al especialista. Se observó una sustitución de los servicios de atención primaria por unidades de pronta atención.

Descriptores:
Niño; Accesibilidad a los Servicios de Salud; Cuidadores; Enfermedad Crónica; Enfermería Pediátrica

INTRODUÇÃO

Diante dos avanços de cunho técnico-científico e da implementação de novas diretrizes políticas, emergem na sociedade as denominadas, na literatura internacional, children with special health care needs (CSHCN) (11 McPherson M, Arango P, Fox H, Lauver C, McManus M, Newacheck PW, et al. A new definition of children with special health care needs. American Academy Pediatr. 1998;102(1):137-41. doi: 10.1542/peds.102.1.137
https://doi.org/10.1542/peds.102.1.137...
) – no Brasil, crianças com necessidades especiais de saúde (Crianes) (22 Docherty SL, Barfield R, Thaxton C, Brandon D. A qualidade de vida de crianças que vivem com doenças crônicas ou complexas. In: Hockenberry MJ, Wilson D, editores. Wong: fundamentos de enfermagem pediátrica. 9ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2014. p. 515-47.). Nos Estados Unidos, aproximadamente 11,2 milhões de crianças e adolescentes (15,1%) possuem necessidades especiais de saúde (33 Caicedo C. Children with special health care needs: child health and functioning outcomes and health care service use. J Pediatr Health Care. 2016;30(6):590-8. doi: 10.1016/j.pedhc.2015.12.003
https://doi.org/10.1016/j.pedhc.2015.12....
). No Brasil, não existem dados epidemiológicos específicos acerca dessas crianças – contudo, as Crianes representam quase um quarto da população infantil brasileira (44 Cabral IE, Moraes JRMM. Family caregivers articulating the social network of a child with special health care needs. Rev Bras Enferm. 2015;68(6):769-76 doi: 10.1590/0034-7167.2015680612i
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).

As Crianes caracterizam-se por possuir diferentes enfermidades e são classificadas de acordo com suas necessidades, e não seu diagnóstico médico. De acordo com um instrumento de triagem desenvolvido nos Estados Unidos, essas necessidades incluem seis áreas: uso contínuo de medicamentos, utilização de serviços médicos, utilização de serviços de saúde mental ou psicopedagógicos para além de outras crianças em geral, presença de limitação funcional, necessidade de terapia de reabilitação e tratamento ou aconselhamento para problemas emocionais, de desenvolvimento ou comportamento (55 Bethell CD, Read D, Blumberg SJ, Newacheck PW. What is the prevalence of children with special health care needs? Toward an understanding of variations in findings and methods across three national surveys. Matern Child Health J. 2008;12(1):1-14. doi: 10.1007/s10995-007-0220-5
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).

Estudos anteriores reforçam que os cuidadores familiares das Crianes executam um cuidado singular e complexo, que requer a participação efetiva da atenção primária à saúde (APS) para apoiá-los nesse processo (33 Caicedo C. Children with special health care needs: child health and functioning outcomes and health care service use. J Pediatr Health Care. 2016;30(6):590-8. doi: 10.1016/j.pedhc.2015.12.003
https://doi.org/10.1016/j.pedhc.2015.12....

4 Cabral IE, Moraes JRMM. Family caregivers articulating the social network of a child with special health care needs. Rev Bras Enferm. 2015;68(6):769-76 doi: 10.1590/0034-7167.2015680612i
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5 Bethell CD, Read D, Blumberg SJ, Newacheck PW. What is the prevalence of children with special health care needs? Toward an understanding of variations in findings and methods across three national surveys. Matern Child Health J. 2008;12(1):1-14. doi: 10.1007/s10995-007-0220-5
https://doi.org/10.1007/s10995-007-0220-...
-66 Astolpho MP, Okido ACC, Lima RAG. Rede de cuidados a crianças com necessidades especiais de saúde. Rev Bras Enferm. 2014;67(2):213-9. doi: 10.5935/0034-7167.20140028
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), daí a necessidade de integrar, aos serviços de atenção primária, a comunidade, o hospital e os serviços especializados, a fim de garantir a continuidade/o seguimento do cuidado (77 Rucci P, Latour J, Zanello E, Calugi S, Vandini S, Faldella G, et al. Measuring parents' perspective on continuity of care in children with special health care needs. Int J Integr Care. 2015;15:e046. doi: 10.5334/ijic.2202
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).

Achados de outros estudos desenvolvidos com essa população apontam que a rede de atenção à saúde (RAS) para essas crianças é considerada frágil e desarticulada, sendo o cuidado centrado na atenção especializada em detrimento do acesso à APS (44 Cabral IE, Moraes JRMM. Family caregivers articulating the social network of a child with special health care needs. Rev Bras Enferm. 2015;68(6):769-76 doi: 10.1590/0034-7167.2015680612i
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,66 Astolpho MP, Okido ACC, Lima RAG. Rede de cuidados a crianças com necessidades especiais de saúde. Rev Bras Enferm. 2014;67(2):213-9. doi: 10.5935/0034-7167.20140028
https://doi.org/10.5935/0034-7167.201400...
,88 Neves ET, Silveira A, Arrué AM, Pieszak GM, Zamberlan KC, Santos RP. Network of care of children with special health care needs. Texto Contexto Enferm. 2015;24(2):399-406. doi: 10.1590/0104-07072015003010013
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).

Diante do exposto, este estudo justificou-se pela necessidade de aprofundamento e ampliação da temática do acesso aos serviços que compõem a RAS de Crianes. Utilizaram-se os conceitos de APS, RAS e acesso em saúde como quadro teórico (99 Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia [Internet]. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde; 2002 [cited 2017 Mar 12]. Available from: http://www.conass.org.br/bibliotecav3/pdfs/colecao2011/livro_3.pdf
http://www.conass.org.br/bibliotecav3/pd...

10 Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS). Atenção primária e promoção da saúde [Internet]. Brasília: CONASS; 2011 [cited 2017 Mar 12]. Available from: http://www.conass.org.br/bibliotecav3/pdfs/colecao2011/livro_3.pdf
http://www.conass.org.br/bibliotecav3/pd...
-1111 Mendes EV. As redes de atenção à saúde [internet]. 2ª ed. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2011 [cited 2017 Mar 12]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/redes_de_atencao_saude.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
).

A APS caracteriza-se por proporcionar maior eficiência no fluxo dos usuários dentro do sistema, tratamento mais efetivo de condições crônicas, maior efetividade do cuidado, maior utilização de práticas preventivas, maior satisfação dos usuários e diminuição das iniquidades sobre o acesso aos serviços e o estado geral de saúde da população (99 Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia [Internet]. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde; 2002 [cited 2017 Mar 12]. Available from: http://www.conass.org.br/bibliotecav3/pdfs/colecao2011/livro_3.pdf
http://www.conass.org.br/bibliotecav3/pd...
).

Por ser caracterizada como a porta de entrada do usuário, a APS deve ser de fácil acesso. Este é referenciado tanto do ponto de vista geográfico – fatores relacionados a localidade, distância e meio de transporte para obter o atendimento – quanto do ponto de vista sócio-organizacional – fatores e recursos que facilitam ou impedem o atendimento (1010 Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS). Atenção primária e promoção da saúde [Internet]. Brasília: CONASS; 2011 [cited 2017 Mar 12]. Available from: http://www.conass.org.br/bibliotecav3/pdfs/colecao2011/livro_3.pdf
http://www.conass.org.br/bibliotecav3/pd...
).

As RAS, incluídas no modelo de atenção, partem de pressupostos essenciais que a caracterizam: o modo de organização das redes e a forma com que elas se articulam para atender as demandas, sejam elas crônicas ou agudas (1111 Mendes EV. As redes de atenção à saúde [internet]. 2ª ed. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2011 [cited 2017 Mar 12]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/redes_de_atencao_saude.pdf
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). As RAS devem se mostrar efetivas, eficientes e de qualidade e possuir disponibilidade de recursos, qualidade no acesso, integração horizontal e vertical, territórios bem delimitados e diferentes níveis de atenção (1111 Mendes EV. As redes de atenção à saúde [internet]. 2ª ed. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2011 [cited 2017 Mar 12]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/redes_de_atencao_saude.pdf
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).

O acesso, neste estudo, relaciona-se à utilização do serviço, independentemente do problema de saúde que afeta as pessoas ou do número de vezes que estas procuram os serviços. Insere-se no atributo da APS a atenção de primeiro contato (1212 Silva RMM, Viera CS. Acesso ao cuidado à saúde da criança em serviços de atenção primária. Rev Bras Enferm. 2014;67(5):794-802. doi: 10.1590/0034-7167.2014670518
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). Desse modo, a acessibilidade refere-se à utilização de um conjunto de serviços diante de cada novo problema ou novo episódio que faz com que a população busque atenção à saúde (1111 Mendes EV. As redes de atenção à saúde [internet]. 2ª ed. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2011 [cited 2017 Mar 12]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/redes_de_atencao_saude.pdf
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).

OBJETIVO

Conhecer como se dá o acesso de crianças com necessidades especiais de saúde na RAS.

MÉTODO

Aspectos éticos

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria, e todos os procedimentos éticos para a pesquisa envolvendo seres humanos foram seguidos de acordo com a Resolução brasileira nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.

Tipo de estudo, local e período

Pesquisa qualitativa do tipo descritivo-exploratória caracterizada como estudo bicêntrico, desenvolvido em dois municípios brasileiros, com coleta de dados de maio a outubro de 2015. O município 1 (M1) localiza-se no interior do estado de São Paulo, e o município 2 (M2) no interior do estado do Rio Grande do Sul. Os resultados apresentados neste artifo constituem a fase qualitativa da pesquisa matricial “Prevalência e acesso de crianças com necessidades especiais de saúde em serviços de atenção primária em saúde”.

Quanto ao detalhamento dos cenários do estudo, há, no M1, a rede composta por 41 estabelecimentos de atenção primária, dos quais 28 são Unidades Básicas de Saúde (UBS) e 13 Unidades de Saúde da Família (USF). O M2 conta com 32 UBS, distribuídas em seis regiões sanitárias. Do total de UBS no município, 13 possuem a Estratégia de Saúde da Família (ESF). Como o desenho amostral na fase I se deu por conglomerados, compuseram o estudo oito unidades em Santa Maria e nove unidades em Ribeirão Preto, incluindo UBS e ESF.

Participantes do estudo

Participaram do estudo 19 cuidadores familiares selecionados intencionalmente a partir de uma amostra de 407, os quais foram participantes da etapa quantitativa do estudo. Foram critérios de elegibilidade: ser cuidador familiar, maior de 18 anos de idade, de crianças (até 11 anos, 11 meses e 29 dias) residentes nos municípios da pesquisa. Ressalta-se que os participantes foram recrutados a partir dos serviços de APS.

Os participantes foram selecionados seguindo os critérios da amostragem intencional, a qual se caracteriza por reunir casos ricos em informações que pudessem contribuir com o aprofundamento da compreensão do fenômeno estudado (1313 Moreira H, Caleffe LG. Metodologia da pesquisa para o professor pesquisador. Rio de Janeiro: DP&A; 2006.) Para a seleção intencional dos participantes, foram considerados indicadores socioeconômicos, composição familiar, utilização dos serviços públicos ou privados de saúde, tipos de necessidades especiais de saúde e demandas de cuidados apresentadas pela criança. O número de participantes não foi estipulado a priori, por se tratar de um estudo qualitativo.

Para manter o anonimato dos participantes, foi utilizado um código alfanumérico com a letra F, de familiar, a numeração ordinal sequencial das entrevistas e os códigos M1 para o município 1 e M2 para o município 2 (F1-M2, F3-M1, por exemplo).

Coleta e organização dos dados

A produção dos dados ocorreu por meio de entrevista semiestruturada mediada pela dinâmica de criatividade e sensibilidade (DCS) Mapa Falante. Foram utilizados dois instrumentos: roteiro de entrevista com questões relacionadas ao acesso aos serviços de saúde, inspirado nas questões do PCATool versão criança (99 Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia [Internet]. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde; 2002 [cited 2017 Mar 12]. Available from: http://www.conass.org.br/bibliotecav3/pdfs/colecao2011/livro_3.pdf
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), e aplicação de instrumento de caracterização dos participantes com variáveis clínicas (número de internações, diagnóstico inicial, origem da necessidade especial de saúde, diagnóstico(s) atual(is), acompanhamento com algum serviço de saúde, utilização pela criança de algum tipo de tecnologia, demanda de cuidado habitual modificado, demanda de cuidado neurodesenvolvimental e calendário vacinal atualizado) e sociodemográficas e econômicas (data e condições de nascimento, intercorrências, posição da criança na família, idade atual do familiar cuidador, situação conjugal, anos de estudo formal do cuidador, renda familiar, condições de moradia e presença da criança na escola – e que tipo de escola).

A DCS Mapa Falante é uma técnica de produção de dados que objetiva conhecer as relações estabelecidas entre os cuidadores e a comunidade em geral (1414 Cabral IE, Neves ET. Pesquisar com o método criativo e sensível na enfermagem: fundamentos teóricos e aplicabilidade. In: Lacerda MR, Costenaro RGS, organizadoras. Metodologias da pesquisa para a enfermagem e saúde. Porto Alegre: Moriá; 2015.-1515 Silveira A, Neves ET. Vulnerability of children with special health care needs: implications for nursing. Rev Gaúcha Enferm. 2012;33(4):172-80. doi: 10.1590/S1983-14472012000400022
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). Utilizou-se a seguinte questão geradora de debate: “Tendo sua casa como ponto de partida, qual(is) é(são) o(s) local(is) para onde você leva seu(sua) filho(a) a fim de receber atendimento de saúde e educação, entre outros?”.

Após a seleção do participante, havia a entrevista para uma visita domiciliar previamente agendada via telefone. O período de coleta ocorreu de maio a outubro de 2015. As entrevistas tiveram aproximadamente 80 minutos de duração e foram realizadas pelas pesquisadoras responsáveis em cada centro, com a participação de auxiliares de pesquisa.

As entrevistas foram gravadas em meio digital e, posteriormente, submetidas à dupla transcrição independente. O corpus do estudo foi constituído pelas entrevistas transcritas e pelas imagens produzidas na confecção do Mapa Falante.

Análise dos dados

A análise dos dados foi conduzida por meio da análise temática indutiva (1616 Braun V, Clarke V. Using thematic analysis in psychology. Qual Res Psychol. 2006;3(2):77-101. doi: 10.1191/1478088706qp063oa
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). Seguiram-se as seguintes etapas: familiarização com os dados, geração dos códigos iniciais, busca de temas, revisão dos temas identificados, definição e nomeação dos temas e elaboração do relatório final (1616 Braun V, Clarke V. Using thematic analysis in psychology. Qual Res Psychol. 2006;3(2):77-101. doi: 10.1191/1478088706qp063oa
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). Emergiram da análise dois temas: processo do diagnóstico ao acompanhamento especializado e atendimento na APS.

RESULTADOS

Com relação à caracterização dos participantes, 10 eram provenientes do M1 e nove do M2. Em ambos os municípios, a faixa etária das Crianes foi de 5 a 11 anos de idade; os diagnósticos médicos mais referidos pelos cuidadores foram os distúrbios do sistema respiratório e neurológicos, com destaque para a asma e a hiperatividade, respectivamente. No que se refere às necessidades especiais de saúde, a dependência medicamentosa e o uso dos serviços de saúde foram presentes para 100% dos participantes. Quanto aos cuidadores familiares, 95% foram mães e avós, sendo que 100% delas utilizam os serviços públicos de saúde. No item de classificação econômica, as famílias situaram-se entre as faixas C2 e DE. O Critério de Classificação Econômica Brasil, conhecido como Critério Brasil, é um modo de classificar economicamente a população a partir da posse de bens e do acesso a serviços públicos, como água encanada e rua pavimentada, sendo que cada item recebe uma pontuação. Esta vai de A – maior classificação – até E – menor classificação (1717 Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP). Critério de Classificação Econômica Brasil: Critério Brasil 2015 e atualização da distribuição de classes para 2016 [Internet]. São Paulo: ABEP; 2016 [cited 2017 Nov 20]. Available from: http://www.abep.org/criterio-brasil
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).

Do diagnóstico ao acompanhamento especializado

Esse tema diz respeito ao itinerário da criança e à quantidade de vezes que a família busca atendimento sem um diagnóstico médico definido até então:

Quando ela tinha 7 meses, ela começou a ter pneumonia, ela saia de uma, daí 15 dias dava de novo, sai da outra, daí 15 dias dava de novo e assim ela teve 13 pneumonias. (F2-M1)

Na busca pela agilidade no diagnóstico e início da terapêutica, a cuidadora familiar do M2 recorreu à consulta particular – acesso ao sistema privado de saúde, embora sem condições financeiras:

Uma comadre minha me chamou e disse que ia dar o dinheiro para marcar consulta com a médica. (F3-M2)

Adiante, o Mapa Falante de F3 do M2 ilustra o itinerário dessa família até a confirmação do diagnóstico. Nesse caso, foram dezenas de atendimentos no serviço de emergência.

Figura 1
Mapa Falante de F3-M2, Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil, 2017

Na figura, há a ilustração da trajetória desde 2010, com a primeira consulta; os anos foram passando até chegar 2013, quando a criança foi encaminhada e atendida por um profissional especializado, tendo o diagnóstico de asma confirmado.

Após superar os obstáculos para a identificação e confirmação diagnóstica, inicia-se uma nova etapa: garantir o acesso ao serviço especializado. Nessa perspectiva, cuidadores familiares dos dois municípios relataram experiências semelhantes:

O HC [Hospital das Clínicas] é muito difícil você conseguir. Eu fiquei quase dois anos tentando uma vaga. (F1-M1)

Faz dois anos que está esperando e não foi chamado. E nesses dois anos já deu crise nele várias vezes. (F1-M2)

Eu acho que é falta de vaga, porque é muito difícil conseguir uma vaga... ela [a médica] deu o encaminhamento mas demorou dois meses para conseguir. Isso porque colocou no encaminhamento que era prioridade. (F2-M1)

É o tempo de espera!! O tempo de espera para marcar uma consulta é muito grande! Se tem alguma urgência, como eu disse, é impossível! Porque chega a ser dois meses, dependendo do médico até três. (F2-M2)

No que tange a esse contexto, há ainda o depoimento de F1 do M1:

Ele ficou internado no mês de maio, ficou três... três a quatro dias. Foi aí quando a Dra. [Especialista] pegou o caso dele. Agora, quem trata dele é a Dra. lá no centro da cidade. (F1-M1)

A internação por complicações apresentou-se como um atalho na busca de um especialista. Assim, após inteirar-se da condição clínica da criança durante a hospitalização, a profissional especialista estabeleceu um fluxo informal para possibilitar o acesso e a continuidade de cuidado pós-alta.

A acessibilidade ao serviço especializado ultrapassa a garantia da vaga e diz respeito às barreiras logísticas, seja pela distância ou pelas dificuldades financeiras:

É a maneira que eles jogam, tem uns lugares que é muito longe [...]. É mais difícil, porque ele não pode ficar dentro de um ônibus muito tempo. (F6-M1)

Às vezes, não tem os dinheiro e tem que pagar táxi. Teve uma vez que ele estava doente, nós gastamos na semana 80 reais só de táxi. Aí foi o dinheiro que compraria o remédio, que tem remédio que não tem no posto. (F4-M1)

O Mapa Falante adiante apresenta, de forma metafórica, a distância entre a residência da criança e os diferentes serviços nos quais ela tem acompanhamento, sendo necessário, por vezes utilizar dois ônibus para tal.

Figura 2
Mapa Falante de F7-M2, Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil, 2017

O atendimento na atenção primária à saúde

Em ambos os municípios, a percepção dos familiares cuidadores com relação aos serviços da APS, conhecidos como “postinhos de saúde”, foi semelhante. Observou-se um distanciamento entre as necessidades das Crianes e suas famílias e a assistência oferecida. Nessa perspectiva, durante a exacerbação dos sintomas, é preciso procurar atendimento nos serviços de pronto-atendimento, pois o “postinho” atende prioritariamente consultas agendadas:

Só quando tem consulta marcada que é bom, se eu chegar lá com ele passando mal, mesmo ele ficando com as unhas tudo roxas eles não atendem, manda ir para outro lugar. (F4-M1)

Unidade Básica? Mais ou menos! Eu não gosto muito não! Porque só atende com consulta marcada. Na urgência quando a precisa mesmo, não atende. (F6-M1)

Como os serviços da APS geralmente não absorvem a demanda espontânea com eficiência, os familiares cuidadores passam a entender o serviço de pronto-atendimento como o espaço de cuidado ideal em detrimento da unidade de saúde próxima a sua residência:

Aqui [na UBS] é difícil, só em casos assim que eu não tenho tempo de chega[r] até lá [pronto-atendimento]. No pronto atendimento já têm a pasta dele, já tem conhecimento do problema dele. Então para vim no postinho é só num aperto mesmo. É difícil eu vir aqui. (F1-M2)

Outro aspecto relevante identificado diz respeito à valorização do profissional médico e a invisibilidade da equipe de enfermagem. Os depoimentos registram com frequência a assistência do pediatra na APS:

Baseado na Dra. N, é muito bom! Muito bom! Porque é ela que olha, que vê. Foi ela que descobriu tudo. (F1-M1)

Pela pediatra aqui é ótimo, não tenho do que reclamar da pediatra dela. (F2-M1)

É válido ressaltar que, no M1, o profissional pediatra está presente em todas as unidades de saúde da APS. Em contrapartida, no M2, nem todas as unidades de saúde possuem pediatra. Tal realidade foi avaliada negativamente, ao afirmarem que a ausência do pediatra dificulta o estabelecimento de vínculo com as unidades.

O trabalho da equipe de enfermagem permanece oculto à medida que as familiares cuidadoras revelaram que as ações de promoção à saúde e prevenção de doenças geralmente não foram sistematizadas, mesmo nos casos nos quais havia agentes comunitários de saúde na equipe:

Muito difícil! Mas realizam [referindo-se a visita domiciliar]. Bem raro. Esse ano mesmo ninguém veio. Ano passado veio acho umas duas ou três vezes, mas esse ano não. (F1-M1)

Não! [referindo-se à visita domiciliar] Ela [agente comunitária] disse que dá prioridade para as pessoas mais necessitadas. (F1-M2)

Outro aspecto importante diz respeito ao papel da APS como coordenadora do cuidado, a fim de garantir a continuidade e a longitudinalidade do cuidado. Quando questionados sobre o conhecimento da história clínica da criança e da avaliação e terapêutica indicadas pelo especialista, os familiares cuidadores do M2 afirmaram que ele só havia em virtude do relato informal na consulta seguinte. Já no M2, essa dificuldade foi amenizada devido ao sistema de prontuário eletrônico, no qual os registros de atendimento são compartilhados entre os serviços da rede municipal de saúde. Todavia, quando a Crianes realiza acompanhamento em serviços especializados não pertencentes à rede municipal de saúde, a problemática é semelhante ao M2.

DISCUSSÃO

Neste estudo, os principais achados são a demora no diagnóstico da criança, o encaminhamento para o acompanhamento especializado e a dificuldade de acesso a consultas na atenção primária quando da agudização da condição crônica.

Ainda, os resultados apontaram que os diagnósticos médicos mais frequentes foram a asma e a hiperatividade, sendo consonantes com a realidade internacional, considerando que, nos Estados Unidos, essas doenças encontram-se entre as principais condições clínicas que acometem as Crianes (1818 Centers for Disease Control and Prevention (CDC). National Survey of Children with Special Health Care Needs [Internet]. Atlanta: CDC; 2012 [cited 2016 Jul 15]. Available from: https://www.cdc.gov/nchs/slaits/cshcn.htm
https://www.cdc.gov/nchs/slaits/cshcn.ht...
). Em um estudo desenvolvido no sul do Brasil em 2010, com 139 Crianes, a hiperatividade também se apresentou como diagnóstico expressivo (1919 Arrué AM, Neves ET, Terra MG, Magnago TSBS, Jantsch LB, Pieszak GM, et al. Crianças/adolescentes com necessidades especiais de saúde em Centro de Atenção Psicossocial. Rev Enferm UFSM. 2013;3(2):227-37. doi: 10.5902/217976927827
https://doi.org/10.5902/217976927827...
).

Com relação às demandas de cuidado requeridas pelas Crianes, os resultados deste estudo também encontram respaldo na literatura nacional e internacional, pois, segundo a American Academy of Pediatrics, elas costumam receber cinco vezes o número de medicamentos das crianças em geral (2020 Elias ER, Murphy NA. Home care of children and youth with complex health care needs and technology dependencies. Pediatrics. 2012;129(5):996-1005. doi: 10.1542/peds.2012-0606
https://doi.org/10.1542/peds.2012-0606...
). No Brasil, um estudo realizado com 138 crianças egressas da unidade neonatal identificou que 64,9% delas apresentaram dependência de medicamentos após alta hospitalar (2121 Tavares TS, Duarte ED, Silva BCN, Paula CM, Queiroz MPM, Sena RR. Caracterização do perfil das crianças egressas de unidade neonatal com condição crônica. R Enferm Cent O Min. 2014;3(4):1322-35. doi:10.19175/recom.v0i0.802
https://doi.org/10.19175/recom.v0i0.802...
). Na mesma direção, um estudo que tinha como objetivo compreender a vivência de mães de crianças dependentes de tecnologia em relação ao cuidado medicamentoso também apontou que a terapêutica medicamentosa contínua dessas crianças é frequente, tanto nas hospitalizações quanto no domicílio (2222 Okido ACC, Cunha ST, Neves ET, Dupas G, Lima RAG. Technology-dependent children and the demand for pharmaceutical care. Rev Bras Enferm. 2016;69(4):671-7. doi: 10.1590/0034-7167.2016690415i
https://doi.org/10.1590/0034-7167.201669...
).

A mãe apresentou-se como a principal responsável pelo cuidado das Crianes, corroborando outros estudos desenvolvidos com essas crianças. Segundo a literatura, embora as mães recebam suporte dos familiares e amigos, elas assumem grande parte dos cuidados e se sobrecarregam, desenvolvendo desgaste físico e emocional (2323 Okido ACC, Zago MMF, Lima RAG. Care for technology dependent children and their relationship with the health care systems. Rev Latino-Am Enfermagem. 2015;23(2):291-8. doi: 10.1590/0104-1169.0258.2554
https://doi.org/10.1590/0104-1169.0258.2...
-2424 Ferreira MC, Di Naccio BL, Otsuka MYC, Barbosa AM, Corrêa PFL, Gardenghi G. Assessing the burden on primary caregivers of children with cerebral palsy and its relation to quality of life and socioeconomic aspects. Acta Fisiátr. 2016;22(1):9-13. doi: 10.5935/0104-7795.20150003
https://doi.org/10.5935/0104-7795.201500...
).

A classificação econômica indica um predomínio de famílias economicamente vulneráveis, corroborando os resultados de outras investifações ao afirmarem que os desafios vivenciados ultrapassam a fragilidade clínica da criança e dizem respeito a vulnerabilidades sociais, como baixa renda e baixo nível de escolaridade dos cuidadores, por exemplo (1515 Silveira A, Neves ET. Vulnerability of children with special health care needs: implications for nursing. Rev Gaúcha Enferm. 2012;33(4):172-80. doi: 10.1590/S1983-14472012000400022
https://doi.org/10.1590/S1983-1447201200...
,2525 Looman WS, Presler E, Erickson MM, Garwick AE, Cady RG, Kelly AM, et al. Care coordination for children with complex special health care needs: the value of the Advanced Practice Nurse's Enhanced Scope of Knowledge and Practice. J Pediatr Health Care. 2013;27(4):293-303. doi: 10.1016/j.pedhc.2012.03.002
https://doi.org/10.1016/j.pedhc.2012.03....
).

Na busca do diagnóstico médico e, posteriormente, do acesso ao serviço especializado, a família depara com inúmeras dificuldades. Os relatos de peregrinações em busca de atendimento estão presentes em diferentes estudos. Dessa maneira, a dificuldade na definição do diagnóstico médico e a jornada em diversas instituições denotam a dificuldade de acesso aos serviços, configurando situações de vulnerabilidade social e programática (88 Neves ET, Silveira A, Arrué AM, Pieszak GM, Zamberlan KC, Santos RP. Network of care of children with special health care needs. Texto Contexto Enferm. 2015;24(2):399-406. doi: 10.1590/0104-07072015003010013
https://doi.org/10.1590/0104-07072015003...
,2626 Costa EAO, Dupas G, Sousa EFR, Wernet M. Children's chronic disease: family needs and their relationship with the family health strategy. Rev Gaúcha Enferm. 2013;34(3):72-8 doi: 10.1590/S1983-14472013000300009
https://doi.org/10.1590/S1983-1447201300...
). Segundo a literatura internacional, a inequidade no acesso ao serviço de saúde é comum entre as Crianes, em especial para o subgrupo das crianças com complexidades médicas (2727 Kuo DZ, Goudie A, Cohen E, Houtrow A, Agrawal R, Carle AC, et al. Inequities in health care needs for children with medical complexity. Health Aff (Millwood). 2014;33(12):2190-8. doi: 10.1377/hlthaff.2014.0273
https://doi.org/10.1377/hlthaff.2014.027...
). Para tanto, a busca de serviços privados é uma estratégia adotada a fim de garantir resolutividade (1313 Moreira H, Caleffe LG. Metodologia da pesquisa para o professor pesquisador. Rio de Janeiro: DP&A; 2006.,2828 Buboltz FL, Silveira A, Neves ET. Strategies for families of children served in pediatric first aid: the search for the construction of integrality. Texto Contexto Enferm. 2015;24(4):1027-34. doi: 10.1590/0104-0707201500002040014
https://doi.org/10.1590/0104-07072015000...
).

Outro aspecto relevante refere-se às barreiras geográficas – assim, quando o serviço especializado é distante, ocasiona prejuízo na funcionalidade do atendimento (1212 Silva RMM, Viera CS. Acesso ao cuidado à saúde da criança em serviços de atenção primária. Rev Bras Enferm. 2014;67(5):794-802. doi: 10.1590/0034-7167.2014670518
https://doi.org/10.1590/0034-7167.201467...
). Uma revisão sistemática realizada com 61 artifos referentes às barreiras para o acesso aos serviços de saúde evidenciou que o alcance dos cuidados de saúde é afetado negativamente em decorrência das barreiras relacionadas ao transporte, em especial para as famílias com rendimentos mais baixos (2929 Syed ST, Gerber BS, Sharp LK. Traveling towards disease: transportation barriers to health care access. J Community Health. 2013;38(5):976-93. doi: 10.1007/s10900-013-9681-1
https://doi.org/10.1007/s10900-013-9681-...
).

Nos resultados, a percepção dos familiares cuidadores com relação ao papel da APS não se mostrou em consonância com as diretrizes do trabalho em rede, cujo objetivo é fortalecer as ações dos serviços de atenção primária como coordenadora do cuidado, visando garantir o cuidado contínuo e o fortalecimento de vínculos entre profissionais, famílias e instituições de saúde (1111 Mendes EV. As redes de atenção à saúde [internet]. 2ª ed. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2011 [cited 2017 Mar 12]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/redes_de_atencao_saude.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
). Todavia, resultados semelhantes também foram encontrados em outras investifações, reforçando que os serviços de urgência e emergência e os serviços de nível terciário são acessados preferencialmente em detrimento dos serviços de nível primário, mesmo para resolver as demandas de APS (88 Neves ET, Silveira A, Arrué AM, Pieszak GM, Zamberlan KC, Santos RP. Network of care of children with special health care needs. Texto Contexto Enferm. 2015;24(2):399-406. doi: 10.1590/0104-07072015003010013
https://doi.org/10.1590/0104-07072015003...
,1212 Silva RMM, Viera CS. Acesso ao cuidado à saúde da criança em serviços de atenção primária. Rev Bras Enferm. 2014;67(5):794-802. doi: 10.1590/0034-7167.2014670518
https://doi.org/10.1590/0034-7167.201467...
,2828 Buboltz FL, Silveira A, Neves ET. Strategies for families of children served in pediatric first aid: the search for the construction of integrality. Texto Contexto Enferm. 2015;24(4):1027-34. doi: 10.1590/0104-0707201500002040014
https://doi.org/10.1590/0104-07072015000...
). Segundo um estudo chileno, ao centrar a atenção à saúde das Crianes nos serviços de atenção secundária e terciária, há aumento dos custos financeiros, impedimento à continuidade da assistência e restrição do acesso aos benefícios disponíveis nos cuidados primários de saúde (3030 Flores Cano JC, Calvo ML, Zamora NR, Anguita MEA, De La Paz MG, Yañez SB, et al. Models of care and classification of "Children with special health care needs-CSHCN": recommendations from the CSHCN Committee, Chilean Paediatric Society. Rev Chil Pediatr. 2016;87(3):224-32. doi: 10.1016/j.rchipe.2016.03.005
https://doi.org/10.1016/j.rchipe.2016.03...
).

A valorização da figura do pediatra e o entendimento de que o acesso ao serviço se dá somente a partir de consultas médicas revela uma concepção biologicista dos familiares cuidadores. Em contrapartida, a literatura reforça que, para superar o paradigma e o atual cenário da saúde da criança, em especial das Crianes, é importante destacar o papel do enfermeiro no processo de desenvolvimento e implementação dos atributos da APS em sua totalidade.

O trabalho da equipe multidisciplinar na proposta de RAS poderá oferecer um cuidado humanizado e integral a essas crianças e suas famílias, e o enfermeiro deve ser o mediador entre o usuário e os profissionais da equipe, uma vez que possui competências para gerenciar o cuidado (2828 Buboltz FL, Silveira A, Neves ET. Strategies for families of children served in pediatric first aid: the search for the construction of integrality. Texto Contexto Enferm. 2015;24(4):1027-34. doi: 10.1590/0104-0707201500002040014
https://doi.org/10.1590/0104-07072015000...
). Nos casos em que há necessidade de acompanhamento psicossocial para as crianças, os cuidadores consideraram os profissionais – ou seja, os psicólogos e psiquiatras pediátricos – de mais difícil acesso. Destaca-se uma lacuna importante quando se trata da saúde mental de crianças e adolescentes.

O não acompanhamento dessas Crianes por meio da visita domiciliar também foi identificado. Além disso, o não acompanhamento dessas crianças pelas equipes de ESF – visita domiciliar – denota o não atendimento de um dos atributos da APS, qual seja, o da longitudinalidade (1212 Silva RMM, Viera CS. Acesso ao cuidado à saúde da criança em serviços de atenção primária. Rev Bras Enferm. 2014;67(5):794-802. doi: 10.1590/0034-7167.2014670518
https://doi.org/10.1590/0034-7167.201467...
), centrando a responsabilidade do cuidado e acompanhamento das Crianes nos serviços especializados e no pronto-socorro. No entanto, na APS, a visita domiciliar é uma ferramenta de trabalho capaz de agregar ações de promoção da saúde, prevenção de agravos e vigilância da saúde (3131 Nakata PT, Koltermann LI, Vargas KR, Moreira PW, Duarte ERM, Rosset-Cruz I. Classification of family risk in a family health center. Rev Latino-Am Enfermagem. 2013;21(5):1088-95. doi: 10.1590/S0104-11692013000500011
https://doi.org/10.1590/S0104-1169201300...
-3232 Nascimento JS, Costa LMC, Santos RM, Anjos DS. Home visits as a strategy for health promotion by nursing. Rev Bras Promoc Saúde. 2013;26(4):510-8. doi: 10.5020/3116
https://doi.org/10.5020/3116...
).

Limitações do estudo

Considera-se como limitações do estudo o fato de ter sido desenvolvido em apenas duas realidades – pois, devido às peculiaridades regionais e à amplitude de diferenças existentes no Brasil, seria necessário ampliar a pesquisa para outras famílias de Crianes em outros serviços de saúde de diferentes regiões.

Contribuições para a área da enfermagem, saúde ou política pública

Como contribuição deste estudo, ressalta-se a importância de que os atributos da APS sejam discutidos na formação dos futuros profissionais, bem como nos momentos de educação permanente em prol da viabilização do acesso e do seguimento de Crianes. Para tanto, deve-se valorizar e otimizar o espaço da atenção primária, primando pela promoção da saúde e prevenção de agravos, em especial, a crianças que já possuem demandas especiais de saúde.

No âmbito da assistência em enfermagem e saúde, acredita-se que a amplitude e viabilização do acesso e o seguimento na APS, viabilizado pelos profissionais, podem impactar na redução da morbimortalidade e na qualidade de vidas dessas crianças e suas famílias.

Espera-se que estudos como este sirvam de subsídios para a elaboração de políticas públicas específicas para as Crianes, considerando suas especificidades e demandas singulares de atenção em saúde de forma multidisciplinar e integral.

CONCLUSÃO

Os resultados desta investifação identificaram um acesso à RAS permeado por obstáculos. Dentre os empecilhos revelados pelos cuidadores familiares de Crianes, destacam-se a morosidade no processo de definição do diagnóstico médico da criança e posterior encaminhamento para o especialista, as barreiras logísticas de acesso ao serviço especializado e o distanciamento entre as necessidades das Crianes e a assistência oferecida pelos serviços da APS. Além disso, o material empírico identificou a valorização do profissional médico e a invisibilidade da equipe de enfermagem, bem como a substituição dos serviços da APS pelos atendimentos em unidades de pronto-atendimento.

Diante dos obstáculos para garantir o acesso ao especialista, considera-se a necessidade de reorganização dos serviços de saúde, com vistas às ações que propiciem agilidade nos processos de diagnóstico e encaminhamento, como o fortalecimento da regulação em saúde. Com relação ao protagonismo dos serviços de urgência e emergência, bem como do profissional médico, sugere-se que a Enfermagem, em especial da APS, desenvolva ações de cuidado que superem o modelo centrado na doença e garanta o acesso à RAS. Visitas domiciliares e grupos de educação em saúde podem promover o acesso efetivo à APS e, consequentemente, fortalecer o papel da equipe de enfermagem.

  • FOMENTO
    A pesquisa foi desenvolvida com auxílio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Dez 2019

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2018
  • Aceito
    22 Out 2018
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