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Redução de danos: tendências em disputa nas políticas de saúde

RESUMO

Objetivo:

identificar as tendências de redução de danos subjacentes às políticas de drogas brasileiras.

Método:

A investigação, de natureza qualitativa, utilizou entrevistas em profundidade com especialistas na área. O material gravado e transcrito foi analisado pelo método de análise de conteúdo.

Resultados:

A análise expôs as seguintes concepções: o consumo de drogas é uma doença, e as práticas de saúde devem ser de tratamento, reabilitação e reinserção social. Essas concepções se afastam em certa medida da abordagem da guerra às drogas e fundamentam a adoção de práticas de redução de danos, conforme propostas pela saúde pública. Menos expressivamente, pode-se verificar também concepções críticas, que se distanciam expressivamente da abordagem proibicionista e da saúde pública, afinando-se com a perspectiva da saúde coletiva, de implementar práticas emancipatórias de redução de danos.

Considerações finais:

As concepções e práticas de redução de danos revelam as tendências conservadora, liberal e crítica subjacentes às políticas de drogas brasileiras.

Descritores:
Redução do Dano; Políticas de Saúde; Usuários de Drogas; Saúde Coletiva; Problemas Sociais

ABSTRACT

Objective:

to identify the underlying harm reduction trends in Brazilian drug policies.

Method:

The research, qualitative in nature, used in-depth interviews with experts in the field. The recorded and transcribed material was analyzed via the content analysis method.

Results:

The analysis exposed the following conceptions: drug use is a disease, and its associated health practices should be treatment, rehabilitation and social reintegration. These conceptions deviate to some extent from the war on drugs approach, and support the adoption of harm-reduction practices, proposed by public health. Less expressively, critical conceptions which clearly distance themselves from the prohibitionist approach and from public health may be seen, in line with the perspective of collective health, for the implementation of emancipatory harm-reduction practices.

Final considerations:

Harm-reduction conceptions and practices reveal the underlying conservative, liberal, and critical tendencies in Brazilian drug policies.

Descriptors:
Harm Reduction; Health Policy; Drug Users; Public Health; Social Problems

RESUMEN

Objetivo:

identificar las tendencias de reducción del daño subyacentes a las políticas de drogas brasileñas.

Método:

Estudio de tipo cualitativo, en el cual se realizó entrevistas en profundidad a especialistas en el área. Se analizó el material grabado y transcrito por medio del método de análisis de contenido.

Resultados:

Desde el análisis se presentaron las siguientes concepciones: el consumo de drogas es una enfermedad, y las prácticas de salud deben incluir el tratamiento, la rehabilitación y la reinserción social. Estas concepciones se alejan en cierta medida del abordaje de la guerra a las drogas y fundamentan la adopción de prácticas de reducción de daños, conforme propuestas por la salud pública. Menos expresamente, se pueden verificar también concepciones críticas, que se distancian rigurosamente del abordaje prohibicionista y de la salud pública, afinándose con la perspectiva de la salud colectiva, la de implementar prácticas emancipatorias de reducción de daños.

Consideraciones finales:

Las concepciones y prácticas de reducción del daño revelan las tendencias conservadora, liberal y crítica subyacentes a las políticas de drogas brasileñas.

Descriptores:
Reducción del Daño; Política de Salud; Consumidores de Drogas; Salud Pública; Problemas Sociales

INTRODUÇÃO

Esta investigação toma as tendências de redução de danos subjacentes às políticas de saúde na área de drogas no Brasil como objeto de análise. Compreende-se, a partir das matrizes teóricas do campo da saúde coletiva, que as práticas em saúde, dentre elas as do enfermeiro, são instauradas a partir das diretrizes das políticas de saúde. As diretrizes das políticas na área de drogas estão, por sua vez, fundamentadas nos paradigmas que sustentam as discussões sobre drogas no mundo todo.

Políticas de saúde são compreendidas como dispositivos do Estado para sustentar e viabilizar o processo de produção em saúde, processo que rege a organização do trabalho do conjunto dos serviços do sistema de saúde brasileiro e que é regido pela lógica do processo de produção mais geral da formação social predominante: o modo de produção capitalista.

O Estado, por sua vez, é tomado como a principal dentre as formas de regularização das relações sociais, controlando e influenciando o funcionamento das demais formas de regularização, na tentativa de garantir a reprodução das relações de produção e das relações sociais (11 Viana N. A Constituição das Políticas Públicas. Rev Plurais [Internet]. 2006 [cited 2017 Aug 01];1(4):94-112. Available from: http://informecritica.blogspot.com.br/2017/06/a-constituicao-das-politicas-publicas.html
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). Portanto, só é possível compreender a constituição das políticas no interior da totalidade das relações sociais. O Estado é o agente do processo de instituição das políticas, que são o produto da relação de forças entre as contradições internas do próprio Estado e as pressões externas – exercidas por conflitos de classes, por grupos que representam interesses ou necessidades da sociedade civil – pela via das pressões populares, lobbies e partidos políticos, por exemplo (11 Viana N. A Constituição das Políticas Públicas. Rev Plurais [Internet]. 2006 [cited 2017 Aug 01];1(4):94-112. Available from: http://informecritica.blogspot.com.br/2017/06/a-constituicao-das-politicas-publicas.html
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).

Os paradigmas que ancoram a interpretação do fenômeno das drogas (produção, circulação e consumo das substâncias) e que apresentam influência sobre a sociedade brasileira acompanham a tendência internacional e são reconhecidos no mundo todo como os paradigmas da guerra às drogas (GD) e da redução de danos (RD). Não obstante as origens e proposições das duas correntes tenham sido historicamente muito distintas e conflituosas, deve-se atentar na atualidade para as possíveis convergências frente à estratégia neoliberal da saúde pública de adotar políticas e práticas de RD (22 Roe G. Harm reduction as paradigm: is better than bad good enough? The origins of harm reduction. 2005; Critical Public Health, 15(3):243-250. Available from: https://pdfs.semanticscholar.org/287f/25a599fac9fcc7e8fdd7d20bc1d81b825383.pdf
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).

O paradigma da GD estabeleceu-se pela matriz da intolerância social ao fenômeno das drogas psicoativas em meados do séc. XIX, que culminou com a consolidação da concepção proibicionista no séc XX. Pautando-se em argumentos de ordem moral, religiosa, científica, a depender dos interesses econômicos, políticos e da necessidade de controle social, passou a criminalizar ações relacionadas à produção, à comercialização e ao consumo das drogas tipificadas como ilícitas (33 Carneiro H. Transformações do significado da palavra "droga" das especiarias coloniais ao proibicionismo contemporâneo. In: Venâncio RP, Carneiro H, Gonçalves AL, organizadores. Álcool e drogas na história do Brasil. São Paulo: Alameda/Belo Horizonte: Editora PUC/Minas; 2005. p.11-27.-44 Carvalho S. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 6ª ed. São Paulo: Saraiva; 2013.). Dessa forma, fomentou a punição, tanto para os que consomem drogas, como consequência da atribuição de culpa e responsabilização pela escolha individual, quanto para os que comercializam essas drogas (55 Machado LV, Boriani ML. Política sobre drogas no Brasil: a estratégia da redução de danos. Psicol. Cien. Prof. [Internet]. 2013 [cited 2017 Aug 04]; 33(3): 580-95. Available from: http://www.scielo.br/pdf/pcp/v33n3/v33n3a06.pdf
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).

O fortalecimento das políticas de Estado de caráter proibicionista, criminalizador e repressivo aos consumidores de drogas e às substâncias que passaram a ser consideradas ilegais no séc. XX ocorreu em concomitância com o crescente interesse internacional pelo comércio de drogas psicoativas (66 Carneiro H. As necessidades humanas e o proibicionismo do século XX. Revista Outubro [Internet]. 2002 [cited 2017 Jul 19]; 06: 115-28. Available from: http://outubrorevista.com.br/wp-content/uploads/2015/02/Revista-Outubro-Edic%CC%A7a%CC%83o-6-Artigo-10.pdf
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-77 Rodrigues T. Narcotráfico: um esboço histórico. In: Venâncio RP, Carneiro H, Gonçalves AL, organizadores. Álcool e drogas na história do Brasil. São Paulo: Alameda; 2005. p. 291-310.). No mesmo período de instauração do proibicionismo legal e institucional internacional, o consumo de psicoativos atingiu sua maior extensão mercantil até então (66 Carneiro H. As necessidades humanas e o proibicionismo do século XX. Revista Outubro [Internet]. 2002 [cited 2017 Jul 19]; 06: 115-28. Available from: http://outubrorevista.com.br/wp-content/uploads/2015/02/Revista-Outubro-Edic%CC%A7a%CC%83o-6-Artigo-10.pdf
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).

A preponderância histórica do paradigma da GD nas diretrizes das políticas de saúde foi abalada pelo fracasso das ações, até então implementadas nos serviços de saúde com a finalidade da abstinência total e vitalícia da droga. O paradigma da RD foi se constituindo historicamente como interface do movimento social que tomou fôlego, a partir da perspectiva antiproibicionista, em face das inegáveis e perversas contradições advindas da guerra às drogas. A partir dos anos 1980 o paradigma da RD se disseminou mais amplamente, como possibilidade posta pela flexibilização das políticas voltadas ao enfrentamento do fenômeno das drogas (88 Santos VE, Soares CB, Campos CMS. The international scientific production on harm reduction: a comparative analysis between MEDLINE and LILACS. SMAD [Internet]. 2012 [cited 2017 Aug 02];8(1):41-7. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/smad/v8n1/en_07.pdf
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) e como estratégia para conter a transmissão do vírus HIV entre usuários de drogas injetáveis, face à dimensão alarmante do crescimento da Aids (doença que pode ocorrer em consequência da ação do HIV), que tornou-se um problema de saúde pública (99 Santos VB, Miranda M. Projetos/Programas de redução de danos no Brasil: uma revisão de literatura. Rev Psic, Diversidade e Saúde [Internet]. 2016 [cited 2017 Aug 03];5(1);106-18. Available from: https://www5.bahiana.edu.br/index.php/psicologia/article/download/841/597
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).

No Brasil, a primeira iniciativa associada a essa perspectiva foi o “programa de troca de seringas”, implementado pela secretaria municipal de Santos, SP, em 1989. Iniciativas como essa foram reprimidas por aparato policial, com o argumento de violação da legislação vigente, fundamentada na GD (99 Santos VB, Miranda M. Projetos/Programas de redução de danos no Brasil: uma revisão de literatura. Rev Psic, Diversidade e Saúde [Internet]. 2016 [cited 2017 Aug 03];5(1);106-18. Available from: https://www5.bahiana.edu.br/index.php/psicologia/article/download/841/597
https://www5.bahiana.edu.br/index.php/ps...
). A legalização de troca de seringas foi sancionada pela primeira vez em 1997, em lei estadual de SP (1010 Niel M, da Silveira DX, organizadores. Drogas e Redução de Danos: uma cartilha para profissionais de saúde. São Paulo: Unifesp. 2008.), e apenas em 2005 (1111 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n. 1059/GM, 04 de julho de 2005. Destina incentivo financeiro para o fomento de ações de redução de danos em Centros de Atenção Psicossocial para o Álcool e outras Drogas - CAPSad - e dá outras providências. Brasília. 2005.) o ministério da saúde regulamentou efetivamente a política de RD em serviços de atenção à saúde mental, seguindo a edição em 2003, da Política de Atenção Integral ao Usuário de Álcool e Outras Drogas.

As políticas pautadas no paradigma da RD delineiam diretrizes para ações em saúde que têm o objetivo de reduzir os riscos e as consequências prejudiciais do consumo de drogas. Nesse paradigma o consumo de drogas é compreendido como escolha individual e como consequência de um conjunto de questões, que perpassam pela constituição psíquica dos sujeitos, pela dinâmica familiar, pelos problemas enfrentados no cotidiano. Ou seja, a saúde dos usuários de drogas passou a ser compreendida como fenômeno multicausal, a droga deixou de ser considerada como problema central e a abstinência deixou de ser a finalidade única do tratamento (1212 Santos VE, Soares CB, Campos C.M.S. Redução de danos: análise das concepções que orientam as práticas no Brasil. Physis [Internet]. 2010 [cited 2017 Jul 02];20(3):995-1015. Available from: http://www.scielo.br/pdf/physis/v20n3/v20n3a16.pdf
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).

Essa perspectiva ampliou o entendimento do fenômeno das drogas e o conjunto de estratégias de enfrentamento da concepção proibicionista, uma vez que se desloca da culpabilização individual e da concepção de desviante, que fundamenta o paradigma da GD. Pauta-se pela consideração de que o indivíduo é sempre sujeito de escolhas, ou seja, com liberdade para optar entre estilos de vida e substâncias utilizadas.

Diversas vertentes de RD forjaram-se a partir de tendências internacionais (1212 Santos VE, Soares CB, Campos C.M.S. Redução de danos: análise das concepções que orientam as práticas no Brasil. Physis [Internet]. 2010 [cited 2017 Jul 02];20(3):995-1015. Available from: http://www.scielo.br/pdf/physis/v20n3/v20n3a16.pdf
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) e no Brasil foram mais ou menos incorporadas às políticas de atenção à saúde mental (1111 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n. 1059/GM, 04 de julho de 2005. Destina incentivo financeiro para o fomento de ações de redução de danos em Centros de Atenção Psicossocial para o Álcool e outras Drogas - CAPSad - e dá outras providências. Brasília. 2005.), operacionalizadas nos serviços que compõem a rede de atenção psicossocial. Para o desenvolvimento de ações de RD na atenção primária à saúde, por exemplo, o ministério da saúde investiu na formação de agentes comunitários de saúde e de auxiliares e técnicos de enfermagem, por meio do projeto Caminhos do cuidado (1313 Brasil. Ministério da Saúde. Guia de saúde mental: atendimento e intervenção com usuários de álcool e outras drogas. Brasília. 2013. Available from: https://www.caminhosdocuidado.org/wp-content/uploads/2014/02/guia_saude_mental-2ed-web.pdf
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).

Este estudo se pauta na vertente emancipatória de RD, que se desloca criticamente do proibicionismo, compreendendo que a lógica capitalista determina a estrutura e a dinâmica do sistema de produção, de circulação e de consumo de substâncias psicoativas, sejam elas lícitas ou ilícitas. Nessa lógica, esse sistema apresenta as mesmas propriedades para efetivar a reprodução do capital, de qualquer outra mercadoria. A RD emancipatória busca enfrentamentos coletivos para os comprovados prejuízos sociais que cercam o fenômeno das drogas, que confrontam as perspectivas individuais, de natureza biológica ou comportamental, e nesse sentido advoga transformações sociais amplas (1414 Soares CB. O Consumo Contemporâneo de Drogas e Juventude: a construção do objeto na perspectiva da saúde coletiva. Tese [Livre Docência em Saúde Coletiva] São Paulo: Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo; 2007.). Essa perspectiva se afasta igualmente da abordagem multifatorial pragmática de RD da saúde pública, que coincide com as políticas de redução de gastos com serviços de saúde, e da abordagem proibicionista, que responde de forma controlista aos problemas sociais que cercam as drogas; se afasta, enfim, das políticas de Estado que implementam políticas e práticas de RD de forma seletiva e compensatória, questionando a intencionalidade dessas iniciativas (22 Roe G. Harm reduction as paradigm: is better than bad good enough? The origins of harm reduction. 2005; Critical Public Health, 15(3):243-250. Available from: https://pdfs.semanticscholar.org/287f/25a599fac9fcc7e8fdd7d20bc1d81b825383.pdf
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).

Toma-se como pressuposto nesta investigação que as políticas de saúde na área de drogas expressam as tendências de redução de danos identificadas nas diversas abordagens apresentadas.

OBJETIVO

Identificar as tendências de redução de danos subjacentes às políticas de saúde na área de drogas no Brasil. Os objetivos específicos são: compreender as concepções sobre consumo de drogas representativas da área, bem como as práticas fundamentadas nessas concepções; identificar as tendências que essas concepções expressam.

MÉTODO

Aspectos éticos

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, e os participantes assinaram termo de consentimento livre e esclarecido, permitindo a gravação das entrevistas, bem como a autorização para divulgação dos dados. O termo assinado assegura o sigilo de identidade dos participantes e o direito de desistir de participar a qualquer momento.

Tipo de estudo

A pesquisa, de natureza qualitativa, consistiu em estudo exploratório e analítico (1515 Gil AC. Como elaborar projetos de pesquisa. 5ª ed. São Paulo: Atlas; 2010.).

Cenário de estudo

O estudo realizou-se no Brasil, tendo como cenário duas universidades públicas e uma instituição pública da esfera jurídica, de reconhecida autoridade na área de drogas.

Fonte de dados

Os participantes da pesquisa foram propostos intencionalmente por representarem áreas diferentes de atuação, centrais na elaboração de políticas de drogas, com diversidade de posicionamentos políticos colocados no debate público. Dessa forma, foram selecionados três especialistas proeminentes, dois docentes pesquisadores de universidades públicas e uma autoridade de instituição pública da esfera jurídica.

Coleta de dados

Após o contato inicial feito por email, explicando os objetivos da pesquisa, marcaram-se as entrevistas nos locais apontados pelos especialistas. As entrevistas foram gravadas e realizadas no ano de 2014. As questões norteadoras versaram sobre como os direitos humanos da Constituição Federal estão sendo contemplados nas políticas públicas voltadas para consumidores de drogas, e quais as ações na área da saúde implementadas para efetivá-los; e ainda indagavam como o entrevistado se posicionava em relação às ações pautadas na RD e na GD.

Análise de dados

As entrevistas foram transcritas e o material foi analisado intercalando-se as leituras dos textos transcritos na íntegra com a escuta do material gravado. Procurou-se grifar no material os excertos que traziam as concepções sobre o consumo de drogas e explicitavam as práticas de saúde. Buscou-se compreender as diferenças entre essas concepções e práticas e correlacioná-las com os paradigmas de GD e RD, consideradas as categorias de análise desta investigação. Esse processo foi instrumentalizado por técnica de análise de conteúdo (1616 Bardin L. Análise de Conteúdo. Lisboa/Portugal: Edições 70; 2009.). Para efeito de apresentação dos resultados e garantia de anonimato, as entrevistas foram identificadas como E1, E2, E3. Alguns excertos provenientes das entrevistas foram editados para dar mais clareza, procurando-se não comprometer o significado e o sentido dado pelo entrevistado.

RESULTADOS

Os resultados foram organizados em temas, que nominam os núcleos de sentido das mensagens dos entrevistados: o consumo de drogas como questão de saúde e os desafios para efetivar direitos através de políticas estatais; concepção funcionalista do consumo de drogas e postura conservadora na saúde; concepção do consumo de drogas como escolha individual e políticas de caráter liberal; concepção do consumo de drogas como fenômeno social e práticas de caráter crítico.

Tema 1 - O consumo de drogas como questão de saúde e os desafios para efetivar direitos através de políticas estatais

O consumo das substâncias psicoativas, lícitas e ilícitas, constitui questão de saúde para dois dos entrevistados. Para estes, o consumidor de drogas e o portador de dependência necessitam de tratamento, reabilitação e reinserção social, como descrevem os depoimentos abaixo.

[...] as pessoas que vivem o sofrimento da dependência química, especialmente aquelas que vivem a dependência e também os usuários. Ao retirar a provisão da pena, o Brasil estabelece que aos dependentes das substâncias psicoativas ilícitas, devemos oferecer o sistema de saúde, o sistema de assistência social e não o sistema prisional. [...] para quem vive a dependência das substâncias psicoativas, especialmente as ilícitas ou lícitas é [necessário] oferecer serviços, serviços que sejam regulados, serviços que de fato tenham a preocupação com os direitos humanos. [...] reconhecer que o usuário, o dependente é alguém que precisa de ajuda, de oferta de serviços, é alguém que precisa de acolhimento e não de exclusão. (E2)

[...] para aquelas pessoas que já têm problemas, já uma dependência, uma situação grave, que precisam de um tratamento, seja internado, seja em ambulatório ou CAPS [Centro de Atenção Psicossocial] . Mas essas pessoas, elas não precisam só de informação, elas precisam de intervenção médica, psicológica, serviço social, educador físico, para mudar a vida da pessoa, torná-la independente. (E3)

A área da saúde é, no entanto, considerada deficitária para atender a demanda conforme preconizado na política de saúde ministerial* * A Política de Atenção Integral para Usuários de Álcool e Outras Drogas do ministério da saúde prevê: “A atenção integral compreende o desenvolvimento contínuo de fatores de proteção, individuais e coletivos na trajetória de vida das pessoas, prevendo a maximização da saúde nos três níveis de atenção”. .

[...] os governos das últimas décadas não mexeram na consolidação da política de drogas na área da saúde mental. Tem um ou outro CAPS, pouquíssimo equipamento para a quantidade de demanda colocada para saúde mental. E também há baixos investimentos, por exemplo, em leitos de hospitais gerais, para internação de desintoxicação. Então quando o usuário quer fazer tratamento, [quando] opta pela abstinência, quando ele [deseja] fazer tratamento para abstinência, ele é levado para rede privada, em comunidades terapêuticas, clínicas particulares. Falta uma cobertura de serviços públicos, como uma atenção à saúde nos moldes da saúde coletiva. (E1)

O deficit de serviços é reiterado no depoimento de E2, que reconhece como desafio a implementação de serviços especializados.

[...] o grande desafio do país hoje é oferecer serviços. E de que forma? Com a instalação de CAPS, CAPS especializados em políticas de álcool de drogas, os chamados CAPS AD; de preferência CAPS AD II – que nos grandes centros são os que funcionam 24 horas –, juntamente com os CAPSs e os leitos de desintoxicação para os casos mais graves de dependência química. (E2)

Para E1, a ausência de políticas públicas para efetivar direitos sociais decorre do projeto neoliberal adotado pelo Estado brasileiro.

[...] os direitos afirmados constitucionalmente estão sendo desmanchados desde que o governo brasileiro assumiu a perspectiva do neoliberalismo; [...] os direitos sociais de cidadania estão sendo violados de modo geral. Então quando a gente olha para a saúde o que a gente vê não é a saúde pública, mas a privatização da saúde. (E1)

Tema 2 – Concepção funcionalista do consumo de drogas e postura conservadora na saúde

O depoimento de E1 testemunha a permanência de práticas em saúde ligadas à GD, que reiteram a culpabilização do consumidor de drogas ideologicamente influenciadas por discursos que circulam na sociedade.

[...] no interior da saúde, entre os profissionais da saúde, aí eu to falando médico, psiquiatra, assistente social, enfermeiro, você tem uma incorporação do mal, uma demonização do consumo de drogas. Principalmente as drogas ilícitas. Então muitas vezes, o funcionário da saúde reproduz uma lógica dominante perversa de má atenção ao usuário. [...] Tem uma lógica de moralização, da responsabilidade individual, sobre o consumo de drogas, que acaba permeando as práticas dos profissionais da saúde, médicos, enfermeiros, assistentes sociais. [...] na área da saúde, você tem uma convivência com práticas conservadoras, na maioria das vezes moralizantes, em relação ao consumo de drogas. Numa perspectiva que ainda coloca como objetivo único por equívoco: a abstinência; por outro lado não tem uma rede de atenção que assegure o atendimento/tratamento na rede pública. [...] As práticas de saúde no tratamento se estruturam em condutas religiosas de salvação, de conversão do sujeito a uma prática religiosa, para se libertar de algo que faz mal. A gente não avançou. (E1)

A vertente da GD é ainda mais ativada quando a droga consumida é o crack, que justifica a violação de direitos.

[...] se chegar um usuário de crack em um serviço de pronto atendimento, [...] se ele for identificado como usuário de crack, com certeza, ele vai ser condenado, terá seu direito violado, pois recairá sobre ele a responsabilidade da condição de saúde. Esses usuários são maltratados. (E1)

E2 discute a vulnerabilidade dos usuários de crack como decorrência do uso da droga, o que inverte a explicação social assumida ao menos em parte pelas políticas ministeriais na área, que incorporaram a RD como abordagem para a questão das drogas.

A pesquisa sobre o crack [...] mostrou que 80% de quem faz uso regular de crack não alcançou sequer o ensino médio. Apenas 3% de quem faz uso regular de crack alcançou a universidade. [...] O risco não é apenas o consumo abusivo de drogas, mas a vulnerabilidade em decorrência disso. Aquela pessoa que está em situação de rua, exposta a toda sorte de ações em áreas de conflitos entre forças de segurança e tráfico [...] acossados pelas forças de segurança e porque estão em espaço público, essa vulnerabilidade causa um sofrimento ainda maior, do que por si só, que já seria o sofrimento de dependência química. (E2)

Embora aceita, pode-se verificar que se está tomando a RD como conjunto de estratégias que podem ser úteis em situações particulares e, nesse caso, não se trata de uma abordagem que direciona as práticas na área com um todo.

É o que se verifica no posicionamento de E2, que considera que no caso do crack não há possibilidade de adotar estratégias de RD. Isso é justificado pela impossibilidade de perspectivar usos controlados dessa droga. A droga em si é o eixo da avaliação.

A política de redução de danos está prevista na legislação na lei 11.343 e é muito bem-vinda. É de fato uma política que trabalha a realidade daquele dependente químico, e especialmente em casos em que a forma do uso agrava ainda mais a sua saúde e a saúde coletiva, com compartilhamento de apetrechos para o uso de drogas, sejam elas injetáveis ou não. [...] O usuário de crack conseguir ter o controle do seu uso é muito difícil. Eu não estou excluindo a possibilidade, mas pelo visto não tem nada, ou seja, pela literatura médica, alguma droga de recuperação do usuário de crack depende de casos de processo de abstinência. (E2)

Acontece o mesmo quando o grau de dependência é o eixo de avaliação das condutas, não sendo possível utilizar estratégias de RD nos casos de dependência grave, conforme E3.

A redução de danos – acho uma política bem interessante, especialmente para aquele que não tem dependência, para aquele que tem controle, para aquele que quer ter controle do uso, quando o uso da substância psicoativa não for [dependência]. Precisa ter uma cabeça boa para ser feita. Trabalho pouco com a redução de danos, eu pego os casos muito mais graves, eu pego casos onde a pessoa tem dependência gravíssima, e a redução de danos não funciona. (E3)

É o grau de dependência também que legitima as internações, sejam voluntárias – decididas pelos consumidores –, sejam involuntárias, quando a decisão é tomada por familiares ou pela equipe de saúde. É o que pode ser verificado nos depoimentos de E2 e E3 a seguir.

[...] a internação compulsória, acho que ela não produz resultados, tanto que nós temos trabalhado hoje pela sua revogação, para que houvesse somente, tão somente internação voluntária; ou [a] involuntária e demais formas de tratar se deem tão somente a partir da vontade e de disposição do dependente. (E2)

[...] alguns pacientes ainda precisam de internação. [...] A legislação não contempla, por exemplo, o direito que a pessoa tem de ficar internada; uma pessoa que tem dependência de droga no Brasil, o caminho que tem é o do sistema do CAPS. Já que, mesmo se a pessoa quiser ficar internada, e seus familiares e médicos acreditarem também nesta necessidade, só será possível se a equipe interdisciplinar pensar o mesmo, pois se ela achar que aquele caso, não é caso de conduta de ambulatório, porque a pessoa vai voltar a ter recaída, vai voltar a usar droga, ela precisa passar por um período onde ela tenha uma desintoxicação, a legislação não contempla não dá o direito do indivíduo de ficar internado. (E3)

Já a internação compulsória, medida judicial claramente filiada à GD, foi criticada por todos os entrevistados, conforme se pode verificar nos excertos a seguir.

A internação compulsória coroa a violação de direitos. Quem está sendo internado compulsoriamente, nas comunidades terapêuticas, não são os filhos da classe média, é a população empobrecida, que já tem os seus direitos violados; esse é mais um [...] . É autoritarismo, porque não quer defender o usuário de drogas, mas o cidadão considerado de bem, da violência associada ao crack, à miséria humana das pessoas jogadas e abandonadas, tem interesses econômicos do capital financeiro imobiliário/comercial, como no caso do Rio de Janeiro, e na verdade tem uma série de violações de direito. (E1)

A previsão de legislação desde 2001, que é lei antimanicomial, prevê a possibilidade de internação compulsória; nós temos isso com absoluta reserva, eu tenho combatido a internação compulsória, acho que ela não produz resultados. (E2)

A internação compulsória, eu vi como uma ferramenta que é utilizada há milhares de anos, uma ferramenta médica que, na minha opinião, tem a sua indicação em casos raríssimos, basicamente para pacientes que querem ou tentam se matar, que “já fez o testamento” [...] . Então a gente faz uma internação compulsória. É uma internação médica, para evitar que o paciente tente se matar. [...] No CRATOD [serviço de saúde que atende pessoas que consomem substâncias psicoativas ilícitas, localizado na cidade de São Paulo] [...] o poder judiciário se aproximou da saúde e montou uma equipe, que dava a possibilidade de fazer uma internação involuntária. Isso foi montado no dia 23 de janeiro; até onde eu fiquei sabendo, até o mês de outubro [do mesmo ano] teve uma internação involuntária. Lá tem juiz, defensor público, advogada da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], promotor, os médicos, enfermeiros; tudo pronto para fazer a internação involuntária [...] Quem faz a política pública não entende isso, ou não quer entender [...]: não é a internação involuntária de 10 meses que vai resolver a questão. (E3)

Os entrevistados E2 e E3, que defendem a reinserção social, consideram que os dependentes devem ter acesso a direitos sociais, assim como a tratamento para se recuperar e voltar a viver em sociedade.

[...] escolarizar é um aspecto muito importante de reinserção social. E ao lado disso, também políticas que incentivam a oferta de emprego e geração de renda para quem está passando no processo de recuperação ou para quem já se recuperou. Enfim, para quem tenha condições de superar aquele momento crítico, nos casos mais ou menos graves em que haja a possibilidade de inserção ou reinserção no mercado de trabalho. As políticas de incentivo à oferta de emprego e geração de renda, combinada a ações que permitam a inclusão no sistema de educação no país, são políticas de reinserção social, são políticas fundamentais, não basta cuidar da porta de entrada do sistema de cuidado se não cuidarmos da porta da saída para quem está se recuperando, ou para quem já se recuperou da dependência química grave do uso abusivo de drogas. São medidas fundamentais. (E2)

[...] a chamada “prevenção da recaída” quer dizer a pessoa não está mais internada e como ela vive no mundo externo [...] uma rede [da política de assistência social] do CRAS [Centro de Referência de Assistência Social], estará disponível para que a pessoa busque a reinserção na sociedade. (E3)

E1 considera que o acesso a direitos sociais depende da legalização das drogas. A dicotomia entre drogas lícitas e ilícitas é vista como mecanismo proibicionista destrutivo, que empurra as drogas ilícitas para territórios sociais desprotegidos, sem instituições, nos quais impera a violência.

É necessário o Estado romper com a falsa dicotomia, essa dicotomia entre drogas lícitas e ilícitas como se faz com álcool e tabaco e com os medicamentos. Quando o Estado assume isso, ele tira a circulação dessa droga de um espaço onde a cidadania é ausente, onde os direitos já são violados. Trabalhadores pobres vivem em situação de guerra com a própria polícia, com os esquadrões da morte. (E1)

Tema 3: Concepção do consumo de drogas como escolha individual e políticas de caráter liberal

Essa concepção foi em certa medida debatida entre os especialistas, sendo abordada por diferentes ângulos. E2 entende que o consumo das drogas faz parte da sociedade e que o papel do Estado seria o de intervir com medidas de redução de danos, para diminuir os riscos à saúde.

Nós temos muito a avançar, nós precisamos reconhecer que não é possível o país blindar a entrada de drogas; e imaginar que o Brasil, ou qualquer país, viverá um mundo sem drogas, é impossível! A história da civilização brasileira e mundial mostra que o uso de alucinógenos, de substâncias psicoativas, faz parte da sociedade. Nosso papel é mostrar o quão é prejudicial à saúde o uso abusivo. E o quão, como tem sido, é importante a política de redução de danos para a área da saúde. Eu costumo afirmar e insisto muitíssimo: a Europa e os EUA conseguiram grandes avanços, mas grandes avanços nos tratamentos para a dependência de heroína com a política de redução de danos aplicando uma outra droga – a metadona, de forma controlada pelos equipamentos de saúde. A partir de evidências científicas, vemos que a metadona é eficaz no tratamento da dependência química da heroína, e desse modo nós conseguimos grandes avanços. (E2)

Para E1, a discussão social da liberação das drogas representa na maioria das vezes interesses da burguesia, que deseja liberdade para fazer suas escolhas de consumo individual, sua liberdade no mercado para consumir o que deseja.

[...] se você pega esse debate, que é um debate burguês da liberação da maconha. Esse grupo não está em defesa da radicalização, está em defesa do interesse privado de continuar usando a sua maconha. São poucos que radicalizam a discussão de drogas. Acabam reproduzindo a dicotomia entre drogas menos nocivas e mais nocivas, sem aprofundar o debate político. (E1)

Tema 4 – Concepção do consumo de drogas como fenômeno social e práticas de caráter crítico

Essa concepção foi apreendida no discurso de E1, que analisou o processo de marginalização social a que os consumidores de drogas estão expostos, principalmente os de crack, fazendo considerações sobre os interesses econômicos que envolvem a questão do consumo de drogas, como é o caso da cracolândia.

[...] a cracolândia e os usuários de crack passaram a incomodar a sociedade paulista, a brasileira e as autoridades, no momento em que o centro da cidade, aquela região de São Paulo, que estava abandonada, ela passa a interessar o capital imobiliário e grandes corporações [...] . Você começa a ver uma série de reportagens denunciando; as pessoas começam ver que na verdade [as pessoas da cracolândia] estavam em situação de rua há muitos anos. E qual é a resposta? É a truculência da polícia e higienizar o centro de São Paulo; ou uma resposta extremamente conservadora determinada pelas autoridades médicas, que defende a internação compulsória, que fornece a opção da internação compulsória, como se aquela pessoa não tivesse condições de tomar nenhuma decisão, pois está tomada pela droga – uma ação reacionária e autoritária. [...] quem são essas pessoas? São pessoas que já têm seus direitos violados, são pessoas que segundo a determinação econômica estão fora do mercado formal de trabalho, são expulsos da convivência no território; moram na periferia ou não moram. São ausências de políticas sociais: assistência, cultura, educação, emprego e renda, habitação, saúde. [A sociedade] gera uma população sobrante que inconscientemente briga com a lógica perversa do capital, também do tráfico de drogas. (E1)

A proposta da redução de danos, como movimento político e social que engloba práticas ético-políticas humanitárias e antiproibicionistas, não avançou por receber pouco investimento e incentivo.

A redução de danos chega para nós, via movimento social, através da epidemia do HIV. A gente imaginava que essa experiência iria favorecer os profissionais da saúde que se aproximassem da redução de danos. Mas, de fato, voltou a política proibicionista, que é algo que segrega, que gera mais violência, que gera mais adoecimento. [...] A redução de danos nunca foi incorporada como medida de saúde coletiva pelos profissionais [trabalhadores] da saúde. Até nos CAPS que fazem a redução de danos você vê [que] há pouco investimento na preparação do profissional [...], para entender essa perspectiva da redução de danos. É raro, são projetos isolados. [...] A redução de danos não avançou, isso não aconteceu, ao contrário há uma outra lógica entrando inclusive na área da saúde, em função dos interesses econômicos e políticos. (E1)

Haveria avanço nessa direção se as drogas fossem legalizadas, sem distinção, com estatização da produção, comercialização e consumo, para evitar a mercantilização. E paralelamente deveria-se avançar com políticas de desestímulo ao consumo compulsivo.

Primeiramente a legalização de todas as drogas. Legalizar, regulamentar quais são as drogas, seus princípios ativos, e não mercantilizar o consumo, como no caso do tabaco [exemplo a Souza Cruz vai assumir a produção da maconha] porque você traça uma outra lógica. A ideia é de se trabalhar em esquemas de cooperativas; eu vou perante o Estado e digo: “olha, eu vou ter uma produção, uma cooperativa para o consumo próprio”. Aí o Estado vai reconhecer, além de autorizar, vai verificar as condições que regem aos atendimentos das normas da vigilância de saúde para qualquer droga, inclusive o crack. Comercializar, mas no sentido do Estado ter o controle sobre a produção, comercialização e o consumo. E ao mesmo tempo, ter uma política de desencorajamento do consumo. Uma política séria que trata da saúde, uma política de desestímulo ao consumo que trata da prevenção, que trata da saúde, uma política de grande alcance. Pois, nós estamos falando do consumo de drogas a preço de barbárie. Teria que ser uma política pública, política social que assegure os direitos, como o álcool e o tabaco, que a gente tem uma legislação que regulamenta o consumo. Isso acabaria com a criminalidade. Quando o Estado assume isso, legaliza; você legaliza, você coloca no campo da cidadania. (E1)

Ainda em nossos dias, as concepções que amparam as políticas e práticas voltadas ao fenômeno das drogas no Brasil denotam influências históricas tanto do paradigma da GD quanto da RD. A RD parece ter se concretizado muito mais como um conjunto de estratégias, que são avaliadas para casos particulares, do que como mudança paradigmática na área.

DISCUSSÃO

No início do séc XXI, registrou-se, pela saúde mental, a adoção formal no cenário das políticas públicas brasileiras de princípios e práticas de RD. Essas políticas proclamam ir além de estratégias para minimizar riscos e danos e pautam-se pelo envolvimento dos usuários, respeito ao indivíduo e direito ao consumo de drogas. Registrou-se, ao final da década de 2000, investimentos nos Centro de Atenção Psicossocial em álcool e outras drogas (CAPad), além de outras iniciativas governamentais como o Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao Tratamento e à Prevenção em Álcool e outras Drogas e o Plano “Crack, é possível vencer” (1717 Andrade TM. Reflexões sobre políticas de drogas no Brasil. Ciênc. saúde coletiva [Internet]. 2011 [cited 2018 Feb 12];16(12):4665-74. Available from: http://www.scielo.br/pdf/csc/v16n12/15.pdf
http://www.scielo.br/pdf/csc/v16n12/15.p...
).

Análises da atuação na área de drogas da atenção primária à saúde, dos CAPad e dos consultórios de rua mostram problemas de implementação, de estrutura e de formação dos trabalhadores (88 Santos VE, Soares CB, Campos CMS. The international scientific production on harm reduction: a comparative analysis between MEDLINE and LILACS. SMAD [Internet]. 2012 [cited 2017 Aug 02];8(1):41-7. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/smad/v8n1/en_07.pdf
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/smad/v8n1/...
). A avaliação da formação pretendida pelo projeto Caminhos do Cuidado, iniciativa do ministério da saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Grupo Hospitalar Conceição e Universidade Federal do Rio Grande do Sul, para formar agentes comunitários de saúde e técnicos e auxiliares de enfermagem na temática do crack, álcool e outras drogas, mostra diminuição de preconceitos com usuários de álcool e outras drogas, mas observa o longo caminho ainda a percorrer para transformações efetivas nas práticas (1818 Santos FF, Ferla AA. Saúde mental e atenção básica no cuidado aos usuários de álcool e outras drogas. Interface [Internet]. 2017 [citado 2018 Fev 12];21(63):833-44. Available from: http://www.scielo.br/pdf/icse/v21n63/1807-5762-icse-1807-576220160270.pdf
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).

Compreende-se que, além da origem histórica dos problemas apontados, que apresentam particularidades referidas ao tratamento social brasileiro a usuários de drogas, a atenção à saúde pública está submetida ao projeto de Estado neoliberal, que se afastou da efetivação dos direitos sociais, abrindo espaço para políticas estatais que privilegiam o mercado da saúde, a liberdade de compra no mercado para os que podem pagar e o caráter compensatório para os que não podem acessar esse mercado (1919 Campos CMS, Viana N, Soares CB. Transformations in contemporaneous capitalism and its impact on state policies: the SUS in debate. Saude soc [Internet]. 2015 [cited 2017 Jul 24];24(supl. 1):78-87. Available from: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v24s1/en_0104-1290-sausoc-24-s1-00082.pdf
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). As políticas são geradas, por um lado, para garantir a reprodução da força de trabalho para as empresas capitalistas e, por outro, para responder a pressões de demandas da classe trabalhadora e de outros grupos; e também pela necessidade de amortecimento de conflitos sociais, que podem gerar crise de governabilidade ou transformações sociais indesejadas. No entanto, no embate de forças, as políticas são fundamentalmente determinadas em favor dos interesses gerais do capital e das necessidades da acumulação capitalista (11 Viana N. A Constituição das Políticas Públicas. Rev Plurais [Internet]. 2006 [cited 2017 Aug 01];1(4):94-112. Available from: http://informecritica.blogspot.com.br/2017/06/a-constituicao-das-politicas-publicas.html
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).

Essa correlação de forças e o polo que prepondera do embate entre essas forças explicam as tendências das políticas implementadas pelo Estado e, consequentemente, as diretrizes das ações de enfrentamento do fenômeno contemporâneo das drogas, tanto no âmbito da produção, quanto da comercialização e do consumo. Os posicionamentos apresentados neste trabalho refletem o embate entre os paradigmas de GD e RD em disputa na área de drogas, representados no trabalho pelas tendências conservadora, liberal e crítica, que subjazem às políticas.

A concepção funcionalista explica o consumo de drogas como desvio dos padrões de normalidade e coloca o centro da análise no funcionamento biopsíquico dos indivíduos (2020 Santos VE, Soares CB. O consumo de substâncias psicoativas na perspectiva da saúde coletiva: uma reflexão sobre valores sociais e fetichismo [Internet]. 2013 [cited 2017 Jul 07];4(2):38-54. Available from: http://incubadora.periodicos.ufsc.br/index.php/saudeetransformacao/article/view/2214/2630
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). Práticas advindas dessa concepção conformam intervenções medicamentosas e psicossociais, que visam que os indivíduos mudem seus hábitos e se reinsiram na sociedade, a partir de seu esforço de adaptação e adesão (2121 Bastos FI. Apresentação do perfil epidemiológico dos usuários de crack: pesquisa social com a apresentação do recorte do perfil de Manguinhos. In: Teixeira M, Fonseca Z, organizadoras. Saberes e práticas na atenção primária à saúde: cuidado à população em situação de rua e usuários de álcool, crack e outras drogas. São Paulo: Hucitec, 2015. p. 232-8.). Essa concepção parece circunscrever a adoção de práticas de RD aos casos em que não há dependência grave ou em que a droga não seja determinante da dependência, afastando-se pouco do paradigma da GD, e por isso chamada neste trabalho de conservadora. A (re)inserção social é a meta funcionalista e atribui aos consumidores de drogas o status de sujeitos de direitos sociais, sendo encaminhados aos serviços sociais (assistência social, saúde, educação, profissionalização, trabalho), para obter assistência e resgatar a cidadania (2222 Ganev E, Lima WL. Reinserção social: processo que implica continuidade e cooperação. Revista Serviço Social e Saúde [Internet]. 2011 [cited 2017 Jul 07];X(11):113-129. Available from: www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?down=49404
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).

A concepção que neste trabalho considerou-se liberal compreende o consumo de psicoativos como inerente à sociabilidade humana e vem ganhando território tanto na área da saúde como na esfera jurídica. Afirma-se, coerentemente ao ideário liberal, a defesa das liberdades individuais e dos direitos humanos, incrementando ações sanitárias visando à redução dos danos provenientes do consumo de psicoativos. Afasta-se do proibicionismo e da GD e posiciona-se dentro do paradigma da RD. A intervenção deve articular as políticas sociais, para atendimento das necessidades dos sujeitos que consomem psicoativos, sem o compromisso em disseminar a ideologia de uma sociedade livre das drogas (1212 Santos VE, Soares CB, Campos C.M.S. Redução de danos: análise das concepções que orientam as práticas no Brasil. Physis [Internet]. 2010 [cited 2017 Jul 02];20(3):995-1015. Available from: http://www.scielo.br/pdf/physis/v20n3/v20n3a16.pdf
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,2323 Karam ML. Drogas: legislação brasileira e violações a direitos fundamentais [Internet]. 2010 [cited 2017 Jul 07]. Available from: https://www.passeidireto.com/arquivo/35892495/drogas-legislacao-brasileira-e-violacoes-a-direitos-fundamentais
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), intervindo para reduzir as vulnerabilidades de certos grupos de consumidores de substâncias psicoativas ilícitas (2424 Arruda MSB, Soares CB, Adorno RCF. Revisão bibliográfica: o consumo do crack nos últimos 20 anos. Sau & Trans. Soc [Internet]. 2013 [cited 2017 Jul 26];4(2):157-66. Available from: http://incubadora.periodicos.ufsc.br/index.php/saudeetransformacao/article/view/2251/2648
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).

A concepção crítica, que explica o consumo de drogas como socialmente determinado, mostra que a droga segue a mesma dinâmica das demais mercadorias para acumulação do capital e questiona a existência de liberdade de escolha individual na sociedade capitalista, já que ela é dividida em classes e é a condição de classe que confere aos indivíduos o poder de desfrutarem de liberdades. Essas liberdades são relativas à liberdade de compra no mercado. Nessa perspectiva, a adoção de práticas de RD não tem seu limite marcado pelo tipo de droga, pela gravidade da dependência, ou pela condição de vulnerabilidade e risco; tão pouco se refere ao direito de escolha individual. A adoção de práticas de RD diz respeito ao fortalecimento político de grupos, na busca por vocalização das contradições sociais, por acúmulo de forças, e por transformações radicais relacionadas aos elementos da estrutura e da dinâmica social, que estão na base do consumo compulsivo e problemático de drogas na contemporaneidade (1212 Santos VE, Soares CB, Campos C.M.S. Redução de danos: análise das concepções que orientam as práticas no Brasil. Physis [Internet]. 2010 [cited 2017 Jul 02];20(3):995-1015. Available from: http://www.scielo.br/pdf/physis/v20n3/v20n3a16.pdf
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,1414 Soares CB. O Consumo Contemporâneo de Drogas e Juventude: a construção do objeto na perspectiva da saúde coletiva. Tese [Livre Docência em Saúde Coletiva] São Paulo: Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo; 2007.,2020 Santos VE, Soares CB. O consumo de substâncias psicoativas na perspectiva da saúde coletiva: uma reflexão sobre valores sociais e fetichismo [Internet]. 2013 [cited 2017 Jul 07];4(2):38-54. Available from: http://incubadora.periodicos.ufsc.br/index.php/saudeetransformacao/article/view/2214/2630
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).

A tensão paradigmática na área de drogas foi evidenciada em estudo documental sobre as políticas brasileiras, que avaliou haver protagonismo do paradigma da RD, especialmente a partir de 2005, com o realinhamento da Secretaria Nacional de Políticas sobre drogas (SENAD). O estudo levanta preocupações com a retomada, a partir de 2016, do paradigma da guerra às drogas, expressa especialmente pelo incentivo político às comunidades terapêuticas (2525 Teixeira MB, Ramôa ML, Engstrom E, Ribeiro JM. Tensões paradigmáticas nas políticas públicas sobre drogas: análise da legislação brasileira no período de 2000 a 2016. Ciênc. saúde coletiva [Internet]. 2017 [cited 2018 Feb 17];22(5):1455-66. Available from: http://www.scielo.br/pdf/csc/v22n5/1413-8123-csc-22-05-1455.pdf
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). Assim, se analisa que, com o aumento do conservadorismo no Brasil, nos últimos anos, a RD, apesar de formalmente adotada pela política de Estado, tem sofrido revezes na prática, prevalecendo modelos ligados à abstinência e, com relação a tratamento, a comunidades terapêuticas, que funcionam sob forte influência religiosa (2626 Tófoli LF. Políticas de drogas e saúde pública. Sur Journal. 2015 [cited 2018 May 5];12(21):1-5. Disponível em: http://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/95777/politicas_drogas_saude_tofoli.pdf
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).

Neste trabalho considera-se que o paradigma da RD, nas políticas de saúde brasileiras, apresenta-se desde o seu nascedouro permeado por tendências, que refletem as concepções e práticas que compõem a área. Essas tendências refletem a incorporação da RD de maneiras muito distintas.

Embora a tendência conservadora mostre certo afastamento do paradigma proibicionista, com a adoção de algumas estratégias de RD, não se coloca com propostas capazes de superar as mazelas que advêm da produção, da circulação e do consumo de drogas como um todo. No plano legal, essa tendência se expressa na despenalização da posse de drogas para uso próprio, mantendo-se, no entanto, a conduta como crime. No caso brasileiro, a atual legislação impõe aos usuários de drogas a desproteção da imprecisão da lei. Além da crítica ao tímido afastamento do modelo proibicionista relativa à limitação de seu alcance, critica-se também, na tendência conservadora, a manutenção da linha repressiva, que retroalimenta a estigmatização dos consumidores de drogas. Nessa perspectiva, o Brasil adota políticas de RD, ou seja, as que procuram reforçar medidas de saúde pública por meio de ações pragmáticas (2727 Boiteux L. Possibilidades e perspectivas da descriminalização das drogas ilícitas. Le Monde Diplomatique. 2009 [cited 2018 May 5];3(26):10-11. Available from: https://neip.info/novo/wp-content/uploads/2015/04/boiteux_descriminalizacao_le-monde_2009.pdf.
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).

A tendência liberal corresponde ao que no plano legal é conhecido como descriminalização, proposição mais próxima dos direitos humanos, que reduz os efeitos da repressão no âmbito do consumo, bem como os efeitos do tráfico e da criminalidade no âmbito da circulação da droga. Essa tendência é seguida por muitos países da Europa, como Portugal, que descriminalizou todos os tipos de drogas. Aliando-se à perspectiva liberal, a saúde pública adota medidas de RD e prevenção, além do acesso a tratamento voluntário (2727 Boiteux L. Possibilidades e perspectivas da descriminalização das drogas ilícitas. Le Monde Diplomatique. 2009 [cited 2018 May 5];3(26):10-11. Available from: https://neip.info/novo/wp-content/uploads/2015/04/boiteux_descriminalizacao_le-monde_2009.pdf.
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). O Brasil aplicou recentemente bilhões de reais para combater o consumo de crack, adotando o programa Crack, é possível vencer, cujos braços educativos estão impregnados de velhos slogans e estratégias da guerra às drogas (2828 Hart CL. Empty slogans, real problems. Sur Journal. 2015 [cited 2018 May 5];12(21),1-4. Available from: https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/95779/empty_slogans_real_hart.pdf
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).

No atual momento político brasileiro, o monitoramento pelo Estado da ação das comunidades terapêuticas que prestam cuidados aos que fazem uso problemático de drogas está fortemente comprometido, o que prejudica ainda mais a defesa dos direitos humanos dos que usam drogas (2525 Teixeira MB, Ramôa ML, Engstrom E, Ribeiro JM. Tensões paradigmáticas nas políticas públicas sobre drogas: análise da legislação brasileira no período de 2000 a 2016. Ciênc. saúde coletiva [Internet]. 2017 [cited 2018 Feb 17];22(5):1455-66. Available from: http://www.scielo.br/pdf/csc/v22n5/1413-8123-csc-22-05-1455.pdf
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). A RD é aceita como forma de reduzir os custos e a carga do Estado com os problemas decorrentes do uso de drogas (22 Roe G. Harm reduction as paradigm: is better than bad good enough? The origins of harm reduction. 2005; Critical Public Health, 15(3):243-250. Available from: https://pdfs.semanticscholar.org/287f/25a599fac9fcc7e8fdd7d20bc1d81b825383.pdf
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).

A tendência crítica expressa radicalidade na medida em que verifica que a descriminalização do uso não se apresenta com as condições de resolver os problemas relacionados com as drogas, pois deixa de lado a questão do tráfico e, conforme Boiteux (2626 Tófoli LF. Políticas de drogas e saúde pública. Sur Journal. 2015 [cited 2018 May 5];12(21):1-5. Disponível em: http://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/95777/politicas_drogas_saude_tofoli.pdf
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), expõe uma contradição importante: é liberal para o usuário e punitiva para o tráfico. Revela-se, neste trabalho, a perspectiva crítica e radical e a urgente discussão da sociedade sobre a legalização de drogas, com regulamentação pelo Estado.

Limitações do estudo

O estudo se beneficiaria se envolvesse o posicionamento de outros setores da sociedade, que também apresentam influência na elaboração e implementação das políticas, como associações de redutores de danos, gestores e outros trabalhadores da área da saúde de âmbito central das gestões municipal e estadual.

Contribuições para a área da enfermagem, da saúde e da política pública

O estudo contribui para fazer a crítica aos efeitos, para área da saúde, de políticas estatais conciliatórias entre o proibicionismo e o neoliberalismo, bem como, para identificar a necessidade de práticas emancipatórias. Tais práticas visam superar tanto aquelas que servem para o exercício do controle de Estado sobre as populações mais desprotegidas – como é o caso das que correspondem à tendência conservadora –, quanto aquelas que sobrecarregam os indivíduos com a responsabilidade sobre a escolha por hábitos saudáveis, como aquelas identificadas como liberais ou neoliberais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível observar três tendências que influenciam as políticas e práticas sobre drogas na área de saúde: tendência conservadora, que alicerça a compreensão do consumidor de drogas como portador de uma doença, que deve ser tratado por ações da saúde mental de recuperação e reabilitação psicossocial; tendência liberal, que considera o sujeito que consome drogas como portador de direitos civis, políticos e sociais, podendo escolher fazer com o seu corpo aquilo que deseja, inclusive usar substâncias psicoativas, e que admite estratégias de RD adotadas pela saúde mental para garantir a cidadania e cuidados humanizados em saúde; e a tendência crítica, que analisa o fenômeno do consumo compulsivo ou problemático de drogas como decorrente das dinâmicas do modo de produção capitalista e propõe a RD emancipatória como abordagem paradigmática, que intencionaliza o fortalecimento de grupos sociais por meio da educação emancipatória.

As tendências explicitadas se correlacionam à RD em maior ou menor grau. Em um extremo está a adoção de algumas estratégias particulares que supostamente poderiam auxiliar no tratamento da dependência. Nesse caso, o valor central está no que está instituído na sociedade e que deve ser apreendido pelos indivíduos. No outro extremo está o movimento humanitário, de oposição radical ao proibicionismo, que põe em cheque a explicação funcionalista para o consumo de drogas e evidencia a compreensão social, questionando a adoção pragmática de estratégias de RD. Nesse caso, o valor central está na denúncia das desigualdades que são aprofundadas com o proibicionismo e o fortalecimento de grupos coletivos dos afetados. Essa posição pleiteia a mudança do instituído. Entre essas duas posições se expressa a liberal que compreende que os indivíduos que usam drogas têm direito à saúde e mesmo o direito a usar drogas sem que o Estado lhes crie constrangimentos. Nesse caso, as liberdades individuais constituem o valor central.

É inegável que as políticas pautadas no paradigma da RD induziram práticas humanizadoras com relação ao usuário de drogas. No entanto, as políticas não regularizaram a expansão de ações na perspectiva da RD crítica e radical, aquelas que incidem nas raízes dos problemas dos indivíduos e na compreensão da dinâmica do fenômeno das drogas como reflexo e produto da dinâmica do modo de produção capitalista, que transforma tudo que é possível em mercadoria, para a acumulação do capital.

Defende-se que as políticas de saúde incluam diretrizes associadas a processos que permitam aos trabalhadores de saúde a reflexão sobre os processos de trabalho, na perspectiva de favorecer a compreensão dos limites e das contradições das formas de regularização do processo de produção em saúde. Ao apreenderem as concepções a respeito do consumo de drogas que subjazem às políticas de saúde, poderão compreender limites das políticas para induzir práticas que respondam mais amplamente ao consumo prejudicial de drogas e estarão menos capturados pelas frustrações produzidas pela idealização, e mais fortalecidos para desenvolver práticas emancipatórias – práticas que favorecem, tanto aos trabalhadores em saúde quanto aos sujeitos das ações –, e a reflexão sobre a origem dos problemas de saúde, instrumentalizando os sujeitos dos grupos sociais a se mobilizarem para reivindicarem respostas a suas necessidades de saúde, em contraposição aos grupos que se mobilizam por interesses.

As políticas e práticas de RD no Brasil estão cada vez mais se estruturando em conformidade com os preceitos neoliberais, e nesse sentido se constituem como conjunto de ações para remediar as necessidades de grupos de usuários de drogas marginalizados ou considerados vulneráveis, que persistem e aumentam em função das enormes desigualdades de classe. Sem a análise social dos problemas envolvidos na produção, circulação e consumo de drogas, não haverá mudança paradigmática real, mas apenas retórica.

  • *
    A Política de Atenção Integral para Usuários de Álcool e Outras Drogas do ministério da saúde prevê: “A atenção integral compreende o desenvolvimento contínuo de fatores de proteção, individuais e coletivos na trajetória de vida das pessoas, prevendo a maximização da saúde nos três níveis de atenção”.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Dez 2019

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2017
  • Aceito
    23 Ago 2018
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