Acessibilidade / Reportar erro

Saúde mental na atenção básica: experiência de matriciamento na área rural

RESUMO

Objetivo:

relatar o desenvolvimento de ações de Saúde Mental compartilhadas entre a Estratégia Saúde da Família alocada em uma área rural e o Núcleo de Apoio Matricial, evidenciando as interlocuções decorrentes dessa configuração singular.

Método:

relato de experiência acerca da implantação das ações do Núcleo de Apoio à Saúde da Família no cuidado de saúde mental para uma população de área rural.

Resultados:

foram identificadas as necessidades de saúde: consumo de psicofármacos, escassez de atividades para o cuidado coletivo e dificuldade de acesso ao serviço. Conforme as atitudes educacionais foram implementadas, a ampliação das ações e o envolvimento dos atores com a intersetorialidade ficaram evidentes.

Considerações Finais:

a articulação entre os trabalhadores da saúde da família, do apoio matricial e da comunidade foi central para a efetivação do cuidado em saúde mental alinhado ao modo psicossocial.

Descritores:
Atenção Primária à Saúde; Saúde Mental; Serviços de Saúde Rural; Saúde da Família; Relações Interprofissionais

ABSTRACT

Objective:

to report the development of Mental Health actions shared between the Family Health Strategy located in a rural area and the Matrix Support Team by showing the communication resulting from this singular configuration.

Method:

report of experience about the implementation of actions of the Family Health Support Center (Portuguese acronym: NASF) in mental health care for a rural population.

Results:

the following health needs were identified: psychoactive drugs consumption, lack of activities for collective care and difficulty with access to service. The expansion of actions and intersectoral involvement of actors were demonstrated as the educational attitudes were implemented.

Final considerations:

the articulation between family health workers, matrix support and community was key for the implementation of mental health care aligned with the psychosocial approach.

Descriptors:
Primary Health Care; Health Mental; Rural Health Services; Family Health; Interprofessional Relations

RESUMEN

Objetivo:

relatar el desarrollo de acciones de Salud Mental compartidas entre la Estrategia Salud de la Familia ubicada en un área rural y el Núcleo de Apoyo Matricial, demostrando las comunicaciones derivadas de esa configuración singular.

Método:

relato de experiencia acerca de la implantación de las acciones del Núcleo de Apoyo a la Salud de la Familia en el cuidado de salud mental para una población de área rural.

Resultados:

se identificaron las necesidades de salud: consumo de psicofármacos, escasez de actividades para el cuidado colectivo y dificultad de acceso al servicio. La ampliación de las acciones y la participación de los actores con la intersectorialidad quedaron evidentes conforme las actitudes educativas fueron implementadas.

Consideraciones finales:

la articulación entre los trabajadores de la salud de la familia, del apoyo matricial y de la comunidad fue central para la efectividad del cuidado en salud mental alineado al modo psicosocial.

Descriptores:
Atención Primaria de Salud; Salud Mental; Servicios de Salud Rural; Salud de La Familia; Relaciones Interprofesionales

INTRODUÇÃO

O movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira tem trazido diversas mudanças no modelo de assistência em saúde mental. Em última instância, a desinstitucionalização e reabilitação psicossocial resgatam o território como elemento central para o trabalho em saúde no horizonte da atenção psicossocial(11 Yasuí S, Luzio CA, Amarante P. Atenção psicossocial e atenção básica: a vida como ela é no território. Rev Polis Psique. 2018;8(1):173-90. doi: 10.22456/2238-152X.80426
https://doi.org/10.22456/2238-152X.80426...
).

A Atenção Básica é o elemento central no exercício da articulação dos demais equipamentos que compõem a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). A interação da Saúde Mental e Atenção Básica, mediante a relação de especialistas e generalistas, promove novas interações e práticas profissionais, e pode desenrolar novos modos de atenção à saúde pública que conduzam à integralidade do cuidado(11 Yasuí S, Luzio CA, Amarante P. Atenção psicossocial e atenção básica: a vida como ela é no território. Rev Polis Psique. 2018;8(1):173-90. doi: 10.22456/2238-152X.80426
https://doi.org/10.22456/2238-152X.80426...
). Entretanto, essa integração representa um desafio dadas as seguintes características do cuidado em saúde: ações centralizadas no modelo biomédico, verticalização da assistência e pouca valorização do sujeito nas relações de cuidado(22 Moliner J, Lopes SMB. Saúde mental na atenção básica: possibilidades para uma prática voltada para a ampliação e integralidade da saúde mental. Saude Soc. 2013;22(4):1072-83. doi: 10.1590/S0104-12902013000400010
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201300...
).

Para ampliar a abrangência e qualificar a oferta de ações no âmbito da Atenção Básica, o Ministério da Saúde lançou os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), que incluem diversas categorias profissionais integradas trabalhando junto às equipes das Unidades Saúde da Família (USF) para a incorporar os conceitos de apoio matricial e equipe de referência visando transformar as relações do trabalho em saúde(33 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Núcleo de Apoio à Saúde da Família - Volume 1: Ferramentas para a gestão e para o trabalho cotidiano (Cadernos de Atenção Básica, nº 39) [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2014 [cited 2018 Mar 25]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/nucleo_apoio_saude_familia_cab39.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
).

Especificamente para a saúde mental, o apoio matricial oferecido pelos NASF pode potencializar a abordagem e condução de elucidação diagnóstica e terapêutica, fortalecer a construção de projetos terapêuticos singulares e coletivos, estruturar intervenções psicossociais na atenção básica e promover a integração entre serviços especializados. Esse escopo de atuações inclui a construção do cuidado oferecido aos usuários em sofrimento psíquico, que é operacionalizado no horizonte normativo da integralidade, longitudinalidade, autonomia e emancipação do sujeito em sofrimento psíquico, além da articulação dos serviços e processos de trabalho e dos trabalhadores no exercício da interprofissionalidade e trabalho colaborativo(44 Gonçalves DA, Ballester D, Chiaverini DH, Tófoli LF, Chazan LF, Almeida N, et al. Guia prático de matriciamento em saúde mental [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2011 [cited 2018 Mar 25]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_pratico_matriciamento_saudemental.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
).

OBJETIVO

Relatar o desenvolvimento de ações de Saúde Mental compartilhadas entre a ESF alocada em uma área rural e o NASF, evidenciando as interlocuções decorrentes dessa configuração singular.

MÉTODO

Tipo de estudo

Relato da experiência que busca contribuir na discussão para fortalecer o cuidado alinhado à atenção psicossocial e exercitado nos saberes e experiências vivenciados no território da atenção básica com seus potenciais e fragilidades.

Cenário do estudo

O presente trabalho foi desenvolvido em um município localizado no centro-oeste do estado de São Paulo, com uma população de 132.566 mil habitantes, dos quais 34% estão sob cobertura de 11 unidades da ESF, e o restante distribuído em cinco Unidades Básicas de Saúde e dois Centros de Saúde Escola(55 Carandina L, Almeida MAS. Botucatu em dados. Botucatu: Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Faculdade de Medicina de Botucatu; 2005.). O gerenciamento de parte da rede de Atenção Básica é feito por uma Organização Social de Saúde através de um contrato de gestão com a Prefeitura Municipal.

A USF estudada foi inaugurada em setembro de 2003, porém, já funcionava anteriormente como uma Unidade Básica de Saúde. Está localizada na área rural do município, distante cerca de 25 quilômetros do centro urbano, com uma área de abrangência equivalente a 10.000 hectares, dividida em quatro microáreas e aproximadamente 1.400 usuários cadastrados.

A equipe é composta por dois auxiliares de enfermagem, um enfermeiro, um auxiliar de consultório dentário, um cirurgião-dentista, um auxiliar administrativo, um auxiliar de serviços gerais, quatro Agentes Comunitário de Saúde (ACS), um médico e um auxiliar de farmácia. Com exceção do cirurgião-dentista, que tem carga horária de 20 horas semanais, os demais obedecem ao regime de 40 horas.

Com a implantação do NASF, o município foi dividido em cinco macrorregiões por semelhanças demográficas e proximidade geográfica. A cada macrorregião, foram atribuídas equipes de trabalhadores do Núcleo de Apoio Matricial, que compareciam nas Unidades de Saúde em um dia específico da semana para realizar o matriciamento.

Os profissionais de saúde incorporados à Atenção Básica (Unidades Básicas e de Saúde da Família), dois educadores físicos, cinco farmacêuticos, dois fisioterapeutas, um assistente social, um psicólogo e dois nutricionistas, foram divididos em duas equipes, que se distribuem entre as unidades quinzenalmente, organizados na forma de trios (psicólogo, assistente social, fisioterapeuta) ou duplas (educador físico e nutricionista). Os profissionais médicos (ginecologista e psiquiatra) também fazem parte dessa equipe, mas diferentemente dos anteriores, são distribuídos mensalmente entre as unidades.

Fonte de dados

Com o início das atividades do NASF na Unidade de Saúde, as mudanças no processo de trabalho oriundas do apoio matricial foram discutidas em vários encontros, o que levou ao reconhecimento de demandas e nós críticos. Nas reuniões de equipe com participação de todos os trabalhadores, foram identificadas como fragilidades: cuidado aos pacientes em uso de psicofármacos, escassez de ações na lógica de grupos e cuidado coletivo, e o acesso à unidade, considerando a extensão do território.

Sobre primeira problemática, como o estoque de psicofármacos permanecia centralizado no almoxarifado do município, para a dispensação dos medicamentos, o usuário deveria visitar a Unidade de Saúde duas vezes ao mês em um intervalo de uma semana: uma para renovar a receita e outra para retirar o medicamento, que seria então dispensado por um período dois meses. Em decorrência desse funcionamento, se a receita não fosse fornecida em tempo hábil, se houvesse atraso na liberação ou transporte da medicação o usuário era prejudicado, pois teria que comparecer uma terceira vez no serviço.

Outra consequência negativa desse processo foi a continuidade indiscriminada do uso da medicação, com sua prescrição sem o acompanhamento do usuário, ainda que a Unidade de Saúde estabelecesse um controle na dispensação por meio de informações (medicação entregue, quantidade, data e assinatura da pessoa responsável pela retirada) contidas em um livro. A dispensação de uma quantidade de medicação para um período de dois meses levanta questionamentos em torno do uso seguro de psicofármacos e os possíveis riscos inerentes.

Quanto às ações de cuidado coletivo, na Unidade de Saúde havia o grupo para cessar o tabagismo, com reuniões semanais realizadas pela equipe de saúde mental e participação apenas do médico da unidade para prescrição de adesivos de nicotina ou outras medicações necessárias.

Coleta e organização dos dados

Baseados nesses pontos frágeis do processo de trabalho, as equipes da USF e do NASF realizaram um planejamento para redirecionar e reorganizar as ações de cada trabalhador da equipe da unidade através do exercício da corresponsabilização pelo cuidado dos usuários da demanda de saúde mental.

Durante as reuniões, ocorreram ações de sensibilização sobre o uso de psicofármacos e o cuidado em saúde junto aos trabalhadores. Com isso, surgiu a proposta de um levantamento na área adscrita e pesquisa dos usuários em uso de psicofármacos, das medicações consumidas e os possíveis problemas vivenciados que desencadearam o sofrimento psíquico. Nessa etapa, foram utilizados os registros nos prontuários e o conhecimento dos trabalhadores sobre a população.

Etapas do trabalho

Foram identificados 66 pacientes, dos quais 42 mulheres e 24 homens com poucos anos de escolaridade, ocupação em afazeres domésticos e manutenção de sítios, como tarefas agropecuárias. Dentre os motivos que levaram ao consumo de psicofármacos, a investigação conduziu a aspectos da medicalização do cuidado em saúde, já que muitos usuários iniciaram o uso em decorrência da dinâmica familiar, frequentemente de ordem conjugal, pela peculiaridade da rotina da área rural, com poucas oportunidades de lazer e escassez de recursos para esta finalidade na área de abrangência da USF, e pela distância do centro urbano.

Como estratégia de intervenção, foram planejadas atividades de Educação em Saúde na lógica de grupos semanais e abertos conduzidos no próprio espaço físico da unidade de saúde, em horário e data previamente estabelecidos, com duração aproximada de uma hora. Para divulgação, impressos foram entregues pelo ACS durante visitas domiciliares, cartazes foram colocados na Unidade de Saúde e nos equipamentos sociais na área, e foram feitos convites durante as consultas ou outros atendimentos. Os próprios encontros foram veículos de difusão da estratégia quando passaram a acontecer, já que os usuários comentavam uns com outros sobre a intervenção.

No início de cada sessão, eram apresentados os objetivos e regras de funcionamento (sigilo e confiabilidade, respeito mútuo e uso de celulares). Ao término, eram informados o horário e a data do próximo encontro.

O número de usuários flutuou entre 10 e 25, com maioria de mulheres e rotatividade a cada encontro, assim, novos participantes se agregaram e outros deixaram o grupo. Essas características enriqueceram e trouxeram diversidade para as vivências compartilhadas e refletidas sob o ponto de vista de diferentes sujeitos e suas concepções. Outro aspecto relacionado à caracterização dos sujeitos foi sua baixa escolaridade, o que demandou atenção dos profissionais envolvidos com a linguagem utilizada, buscando sempre torná-la mais próxima do entendimento de todos os envolvidos.

Nos encontros, foram abordados temas de interesse dos participantes, dentre os quais: os motivos que levaram a Unidade de Saúde a repensar a dispensação dos psicofármacos e possíveis mudanças na aquisição de medicamentos; definição e função dos psicofármacos; diferença entre ansiolíticos e antidepressivos; cuidados na armazenagem dos medicamentos; importância no uso correto; práticas integrativas e complementares; qualidade do sono; atividade física e lazer; medicações fitoterápicas; uso de chás e dependência farmacológica. Os recursos empregados para a abordagem dos temas incluíram: rodas de conversa, práticas de relaxamento e alongamento, oficina de preparo de chás, dança circular, atividades aeróbicas, vídeos ilustrativos e dinâmicas interpessoais.

O processo de facilitação foi por revezamento entre os trabalhadores da equipe da ESF e do NASF com coordenação do grupo em duplas ao abordar os temas em consonância com sua área de formação e suas habilidades. Os únicos trabalhadores presentes em todos os encontros foram o enfermeiro, farmacêutico e os ACS.

A participação dos ACS foi potente para os grupos, pois estes profissionais contribuíram para reconhecer e identificar situações com potencial para se tornarem problemas de saúde. Além disso, o vínculo dos ACS com a comunidade promoveu adesão às atividades propostas pela Unidade de Saúde, facilitou a abordagem da equipe para nortear os temas que os usuários gostariam que fossem tratados, e sinalizou sobre as impressões da comunidade em relação aos grupos.

A implantação do NASF trouxe modificações para os farmacêuticos e auxiliares de farmácia incorporados às equipes da USF. A presença dos farmacêuticos nas unidades passou a ocorrer em dias específicos para dispensação dos psicofármacos, que foram incluídos no estoque das farmácias nas USF. Esses profissionais passaram a desenvolver a gestão da clínica na assistência farmacêutica que, somada ao trabalho colaborativo, proporcionou o uso racional dos medicamentos, controle e estoque, e melhorou a assistência prestada ao usuário.

Em geral, na sua primeira participação no grupo, os usuários sentiram desconhecimento e dificuldade para compartilhar experiências ou elucidar alguma dúvida. Com a continuidade da atividade, a postura de estranhamento foi substituída pela participação mais ativa, o que demonstrou maior entendimento sobre a proposta do trabalho.

Depois de alguns encontros, foi implantada a nova forma de dispensação dos psicofármacos, apesar da resistência dos usuários, verbalizada pelo receio de não adquirirem a medicação se não solicitassem renovação à Unidade de Saúde. Após a operacionalização desse processo, quando sua medicação estivesse acabando, o usuário não precisaria mais solicitar uma nova receita, pois esse controle passava a ser responsabilidade da equipe.

As medicações eram dispensadas ao término dos grupos, na quantidade conforme o intervalo entre os encontros. A dispensação dos psicofármacos não ficou subordinada à participação, embora o usuário sempre fosse orientado a comparecer. A equipe da Unidade de Saúde retomou o acompanhamento em grupo ou individual por meio de consultas médicas ou de enfermagem como requisito para acesso ao medicamento. Esse processo qualificou o cuidado junto à população que consome psicofármacos.

Outra mudança foi na quantidade dispensada, e passou a ser considerado o intervalo entre os encontros. Dessa forma, se o usuário comparecesse antes do dia proposto, ou se a medicação acabasse antes do prazo estabelecido, a Unidade de Saúde tomava conhecimento e desencadeava uma abordagem ao usuário para compreender a problemática.

A aproximação dos usuários em uso de psicofármacos possibilitou um acompanhamento qualificado e uma mudança na relação entre o usuário e o medicamento. Nesse processo, houve aqueles que decidiram não consumir o psicofármaco, e para quem a equipe da Unidade de Saúde propôs o processo de desmame ou abandono gradativo.

Com as discussões nos grupos, usuários e trabalhadores da Unidade de Saúde e do Núcleo de Apoio concordaram sobre a necessidade de construir mais atividades na mesma lógica com outros enfoques. Isso deu início às Oficinas de Artesanato, onde os usuários ensinavam outros a pintar pano de pratos; grupo para usuários com dores crônicas, onde educador físico e fisioterapeuta matriciaram trabalhadores da Unidade de Saúde, e desta ação surgiram os grupos de Caminhada e Aeróbica.

Com o desenrolar desses dois últimos grupos e o apoio da nutricionista do Núcleo de Apoio Matricial, começaram a ocorrer as Oficinas de Culinária. Em conjunto, trabalhadores da Unidade de Saúde e usuários elaboraram receitas de fácil realização e baixo custo, com degustação ao final das atividades de aeróbica ou caminhada. Outra parceria foi firmada com o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), a partir da qual foram realizadas Oficinas de Bordados em Chinelos e de Preparo de Doces em Compota.

Nos meses iniciais do processo de implantação da nova abordagem aos usuários em uso de psicofármacos, uma parcela deixou de comparecer ao serviço. Quando indagados sobre o motivo, relataram que possuíam o medicamento em estoque. Com o passar dos meses, a procura à Unidade de Saúde pela medicação foi aumentando e se aproximando do controle inicialmente planejado. Essa situação reforçou aspectos da segurança e uso racional de psicofármacos e demonstrou a efetividade da medida organizada na USF pela equipe de saúde em conjunto com o Núcleo de Apoio.

No contexto em que se deu essa experiência, a dificuldade de acesso ao serviço e às residências é um desafio para usuários e trabalhadores na área rural e muitas vezes o motivo que impossibilitou a participação nas atividades desenvolvidas no espaço da Unidade de Saúde. Mesmo com planejamento, as ações não atenderam algumas particularidades, por isso, alguns usuários mantiveram a retirada dos medicamentos em horários e dias que conseguiam carona até a Unidade de Saúde ou quando o ACS levava a medicação em visita domiciliar.

A dificuldade de acesso repercutiu em uma concentração maior de participantes nos grupos (por volta de 25 usuários) e consequente qualidade da troca entre os usuários. Essa conjuntura demonstra a importância de considerar as particularidades dos territórios alocados em área rural nas ações de saúde de forma a atender o princípio da equidade e acesso.

DISCUSSÃO

O Apoio Matricial vem sendo identificado como uma estratégia no processo de trabalho da ESF, pois favorece a longitudinalidade do cuidado, fortalece o acolhimento, o vínculo e a corresponsabilização, que incrementam a resolubilidade da demanda de saúde mental e a promoção de dispositivos na lógica da Atenção Psicossocial. Como consequência, há reflexões sobre a inserção de pessoas com transtorno mental na comunidade, o que fortalece os espaços de troca de experiências entre os atores envolvidos (comunidade, familiares e usuários, equipamentos sociais, gestores, profissionais de saúde e áreas afins) e ações de Educação Permanente em Saúde no entorno da problemática(66 Azevedo DM, Gondim MCSM, Silva DS. Apoio matricial em saúde mental: percepção de profissionais no território. Rev Pesqui Cuid Fundam Online. 2013;5(1):3311-22. doi: 10.9789/2175-5361.2013v5n1p3311
https://doi.org/10.9789/2175-5361.2013v5...
).

Partindo do pressuposto da formação generalista, os trabalhadores da Atenção Básica necessitam de espaços que promovam o desenvolvimento de competências, habilidades e atitudes, a fim de prestar cuidados básicos, identificar o sofrimento psíquico e casos complexos com necessidade de cuidados compartilhados com serviços especializados. Em outro ponto, profissionais das equipes de Apoio Matricial precisam estar preparados para trabalhar a prática interprofissional e colaborativa ao prestar supervisão e apoio(77 Jorge MSB, Vasconcelos MGF, Castro Junior EF, Barreto LA, Rosa LRS, Lima LL. Solvability of mental health care in the Family Health Strategy: social representation of professionals and users. Rev Esc Enferm USP. 2014;48(6):1059-65. doi: 10.1590/S0080-623420140000700014
https://doi.org/10.1590/S0080-6234201400...
).

O trabalho em conjunto ajuda os profissionais a se sentirem mais seguros e perceberem que não estão sozinhos na solução dos casos, além de compartilharem responsabilidades e se fortalecerem para lidar efetivamente com o processo de trabalho(44 Gonçalves DA, Ballester D, Chiaverini DH, Tófoli LF, Chazan LF, Almeida N, et al. Guia prático de matriciamento em saúde mental [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2011 [cited 2018 Mar 25]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_pratico_matriciamento_saudemental.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
). A construção coletiva de saberes e cuidado em ato têm sido uma potência da ação do Apoio Matricial na ESF(88 Moura RFS, Silva CRC. Saúde mental na atenção básica: sentidos atribuídos pelos agentes comunitários de saúde. Psicol Cienc Prof. 2015;35(1):199-210. doi: 10.1590/1982-3703001832013
https://doi.org/10.1590/1982-37030018320...
), em linha com a experiência aqui relatada, ao ter possibilitado o desenvolvimento das dimensões assistencial e técnico-pedagógica – aspectos conceituais do matriciamento.

Nesse relato, para além da geografia, o território agencia uma multiplicidade alicerçada na intersecção entre a Atenção Psicossocial e Atenção Básica, de modo a exigir que o cuidado seja pensado no tempo e espaço em que se constitui. A ampliação da estratégia do cuidado envolveu diversos equipamentos da Rede de Atenção Psicossocial, diferentes sujeitos, exercitou a sociabilidade, a subjetividade e apostou nos “diversos modos de fazer andar a vida”(11 Yasuí S, Luzio CA, Amarante P. Atenção psicossocial e atenção básica: a vida como ela é no território. Rev Polis Psique. 2018;8(1):173-90. doi: 10.22456/2238-152X.80426
https://doi.org/10.22456/2238-152X.80426...
).

Na unidade localizada na área rural, o sofrimento psíquico possui outras causas e repercussões, cujos saberes fundamentam as ações distintas desenvolvidas pelos serviços de saúde. O conhecimento da comunidade, da linguagem social e dos costumes é um fator que torna o cuidado em saúde mental mais eficaz, estabelece alianças terapêuticas e fortalece o vínculo do usuário com o trabalhador da equipe de saúde(44 Gonçalves DA, Ballester D, Chiaverini DH, Tófoli LF, Chazan LF, Almeida N, et al. Guia prático de matriciamento em saúde mental [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2011 [cited 2018 Mar 25]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_pratico_matriciamento_saudemental.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
).

Outro aspecto que deve ser lembrado é o entendimento da consulta médica como ferramenta central para resolução das demandas em saúde mental, onde usuários, seus familiares e os profissionais de saúde veem o atendimento desse profissional como caminho único e principal. Com isso, há uma tendência a valorizar não só o profissional médico, como também a medicalização, que se mostra pouco resolutiva quando dissociada das intervenções psicossociais(99 Pinto AGA, Jorge MSB, Vasconcelos MGF, Sampaio JJC, Lima GP, Bastos VC, et al. Apoio matricial como dispositivo do cuidado em saúde mental na atenção primária: olhares múltiplos e dispositivos para resolubilidade. Cienc Saude Colet. 2012;17(3):653-60. doi: 10.1590/S1413-81232012000300011
https://doi.org/10.1590/S1413-8123201200...
-1010 Costa FRM, Lima VV, Silva RF, Fioroni LN. Challenges of matrix support as educational practice: mental health in primary healthcare. Interface (Botucatu). 2015;19(54):491-502. doi: 10.1590/1807-57622013.0816
https://doi.org/10.1590/1807-57622013.08...
). Os outros trabalhadores da saúde também são posicionados de maneira secundária no cuidado, o que leva à compartimentalização e desconexão da assistência(11 Yasuí S, Luzio CA, Amarante P. Atenção psicossocial e atenção básica: a vida como ela é no território. Rev Polis Psique. 2018;8(1):173-90. doi: 10.22456/2238-152X.80426
https://doi.org/10.22456/2238-152X.80426...
). Todavia, as atividades aqui relatadas permitiram o contato dos usuários com outras categorias profissionais inseridas na equipe de saúde por meio do Apoio Matricial. Isto ofereceu outra experiência de clínica e gestão do cuidado, ante àquela baseada na hegemonia biomédica individualizada à clínica ampliada e do sujeito.

Limitações do estudo

As limitações do relato estão relacionadas ao pequeno número de participantes entre trabalhadores e usuários do serviço de saúde. A especificidade do cenário em que a experiência narrada se desenrolou também dificultou a discussão dos pontos fortes e frágeis com outras experiências.

Contribuições para a saúde

As interlocuções discutidas nessa experiência instrumentalizam e potencializam outras práticas assistenciais focadas na articulação dos serviços guiados pela lógica matricial, territorial e psicossocial. O acúmulo de experiências também favorece a ampliação e fortalecimento dessas práticas como ferramentas da Atenção Básica na assistência aos sujeitos em sofrimento psíquico, e no avanço em interfaces pouco exploradas nos meios acadêmico, assistencial e político.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O apoio matricial foi fundamental para a realização das atividades, pois, proporcionou um diálogo constante entre os profissionais, o que resultou em um processo de trabalho integral e resolutivo.

As diversas categorias profissionais envolvidas enriqueceram as discussões e abordagens em grupo, e despertaram a curiosidade e interesse dos usuários e trabalhadores das equipes da Unidade de Saúde e do Núcleo de Apoio sobre as questões do cuidado. No primeiro momento, no escopo da saúde mental, e com gradativa ampliação para o desenvolvimento de estratégias e inclusão de equipamentos sociais. Todas as atividades só foram possíveis com o trabalho em equipe e pela necessidade apontada pelos próprios usuários de realizar outras atividades na forma de grupo e com o olhar ampliado para outras dimensões relacionadas à saúde mental.

A aproximação entre ESF, NASF e comunidade facilitou a adesão às atividades propostas que também foi impulsionada pela reunião de sujeitos compartilhando algo em comum: usuários com sofrimento psíquico tendo suas necessidades de saúde atendidas de forma ampliada, e profissionais focados em melhorar a qualidade da assistência prestada aos pacientes em uso dessas medicações.

A experiência mostrou que a associação da educação em saúde e o apoio matricial ofertado pelo NASF possibilitou a sistematização na entrega de psicofármacos na USF, ampliou a criação de ações na lógica do cuidado coletivo por meio de grupos com diversos enfoques, e ainda favoreceu a integralidade e longitudinalidade do cuidado sob a lógica da prática colaborativa e interprofissional.

REFERENCES

  • 1
    Yasuí S, Luzio CA, Amarante P. Atenção psicossocial e atenção básica: a vida como ela é no território. Rev Polis Psique. 2018;8(1):173-90. doi: 10.22456/2238-152X.80426
    » https://doi.org/10.22456/2238-152X.80426
  • 2
    Moliner J, Lopes SMB. Saúde mental na atenção básica: possibilidades para uma prática voltada para a ampliação e integralidade da saúde mental. Saude Soc. 2013;22(4):1072-83. doi: 10.1590/S0104-12902013000400010
    » https://doi.org/10.1590/S0104-12902013000400010
  • 3
    Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Núcleo de Apoio à Saúde da Família - Volume 1: Ferramentas para a gestão e para o trabalho cotidiano (Cadernos de Atenção Básica, nº 39) [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2014 [cited 2018 Mar 25]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/nucleo_apoio_saude_familia_cab39.pdf
    » http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/nucleo_apoio_saude_familia_cab39.pdf
  • 4
    Gonçalves DA, Ballester D, Chiaverini DH, Tófoli LF, Chazan LF, Almeida N, et al. Guia prático de matriciamento em saúde mental [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2011 [cited 2018 Mar 25]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_pratico_matriciamento_saudemental.pdf
    » http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_pratico_matriciamento_saudemental.pdf
  • 5
    Carandina L, Almeida MAS. Botucatu em dados. Botucatu: Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Faculdade de Medicina de Botucatu; 2005.
  • 6
    Azevedo DM, Gondim MCSM, Silva DS. Apoio matricial em saúde mental: percepção de profissionais no território. Rev Pesqui Cuid Fundam Online. 2013;5(1):3311-22. doi: 10.9789/2175-5361.2013v5n1p3311
    » https://doi.org/10.9789/2175-5361.2013v5n1p3311
  • 7
    Jorge MSB, Vasconcelos MGF, Castro Junior EF, Barreto LA, Rosa LRS, Lima LL. Solvability of mental health care in the Family Health Strategy: social representation of professionals and users. Rev Esc Enferm USP. 2014;48(6):1059-65. doi: 10.1590/S0080-623420140000700014
    » https://doi.org/10.1590/S0080-623420140000700014
  • 8
    Moura RFS, Silva CRC. Saúde mental na atenção básica: sentidos atribuídos pelos agentes comunitários de saúde. Psicol Cienc Prof. 2015;35(1):199-210. doi: 10.1590/1982-3703001832013
    » https://doi.org/10.1590/1982-3703001832013
  • 9
    Pinto AGA, Jorge MSB, Vasconcelos MGF, Sampaio JJC, Lima GP, Bastos VC, et al. Apoio matricial como dispositivo do cuidado em saúde mental na atenção primária: olhares múltiplos e dispositivos para resolubilidade. Cienc Saude Colet. 2012;17(3):653-60. doi: 10.1590/S1413-81232012000300011
    » https://doi.org/10.1590/S1413-81232012000300011
  • 10
    Costa FRM, Lima VV, Silva RF, Fioroni LN. Challenges of matrix support as educational practice: mental health in primary healthcare. Interface (Botucatu). 2015;19(54):491-502. doi: 10.1590/1807-57622013.0816
    » https://doi.org/10.1590/1807-57622013.0816

Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Hugo Fernandes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    19 Abr 2018
  • Aceito
    20 Maio 2018
Associação Brasileira de Enfermagem SGA Norte Quadra 603 Conj. "B" - Av. L2 Norte 70830-102 Brasília, DF, Brasil, Tel.: (55 61) 3226-0653, Fax: (55 61) 3225-4473 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: reben@abennacional.org.br