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Tarsila do Amaral e Glete de Alcântara: história em arte e fotografia

RESUMO

Objetivos:

analisar a tela “Retrato de Glette de Alcântara” e discutir o efeito da tela para Tarsila do Amaral e para a enfermagem brasileira.

Métodos:

estudo na perspectiva histórica, no domínio da cultura visual, com análise em duas fases: pré-iconografia e iconografia.

Resultados:

Tarsila do Amaral traz à baila a mulher Glete de Alcântara, sem os atributos que identificam a enfermagem. Neste sentido, a representação de mulher na tela trata-se de uma pessoa alinhada à moda do penteado de sua época, de traje elegante, com seriedade e altivez acentuada pelo olhar fixo e direcionado.

Considerações finais:

houve a tentativa de avançar para além da vida profissional de Glete de Alcântara e suas redes de relacionamento da retratada, bem como se aproximar da trajetória de Tarsila do Amaral, para além da estética e o reconhecimento conquistado.

Descritores:
História; História da Enfermagem; Fotografia; Enfermagem; Arte

ABSTRACT

Objectives:

to analyze the canvas “Retrato de Glete de Alcântara” (freely translated as Portrait of Glete de Alcântara) and discuss the effect of the canvas for Tarsila do Amaral and for Brazilian nursing.

Methods:

a study in the historical perspective, in the field of visual culture, with analysis in two phases: pre-iconography and iconography.

Results:

Tarsila do Amaral brings up the woman Glete de Alcântara without the attributes that identify nursing. In this sense, the representation of women on the canvas is a person aligned with the hairstyle of her time, elegantly dressed, with seriousness and haughtiness accentuated by a fixed and directed look.

Final considerations:

an attempt was made to advance beyond Glete de Alcântara’s professional life and her portrayed relationship networks, as well as to approach Tarsila do Amaral’s trajectory, beyond the aesthetics and recognition gained.

Descriptors:
History; History of Nursing; Photography; Nursing; Art

RESUMEN

Objetivos:

analizar la pantalla “Retrato de Glette de Alcântara” (traducido libremente como Retrato de Glete de Alcântara) y discutir el efecto de la pantalla para Tarsila do Amaral y para la enfermería brasileña.

Métodos:

estudio en la perspectiva histórica, en el dominio de la cultura visual con análisis en dos fases: pre-iconografía e iconografía.

Resultados:

Tarsila do Amaral trae a la baila a la mujer Glete de Alcántara, sin los atributos que identifican a la enfermería. En este sentido, la representación de mujer en la pantalla, se trata de una persona alineada a la moda del peinado de su época de traje elegante, con seriedad y altivez acentuada por la mirada fija y dirigida.

Consideración finales:

se intentó avanzar más allá de la vida profesional de Glete de Alcântara y sus redes de relaciones retratadas, así como acercarse a la trayectoria de Tarsila do Amaral, más allá de la estética y el reconocimiento adquiridos.

Descriptores:
Historia; Historia de la Enfermería; Fotografía; Enfermería; Art

INTRODUÇÃO

A década de 1960 para a pintora Tarsila do Amaral foi marcada pela simplificação das formas, ordem e uso de tons azuis em suas obras, quando trouxe a brasilidade na perspectiva da cultura visual. Em meados da década anterior, fase denominada Neo Pau-Brasil da pintora, ela inicia a pintura em tela denominada “Retrato de Glette de Alcântara”. A artista, para os críticos, foi considerada pioneira na reflexão da ecologia do país pelo onírico(11 Amaral AA. Tarsila: sua obra e seu tempo. 3a ed. São Paulo: Edusp; 2003.).

Para Glete de Alcântara, a década de 1950 foi marcada pelas discussões sobre a criação de uma nova Faculdade de Medicina na Universidade de São Paulo: a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (1948). Foi estruturada em 26 de dezembro de 1951, sob a Lei Estadual nº 1467, em especial, no Artigo no 13, que determinava a criação da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, anexa à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo(22 São Paulo (Estado). Lei n. 1.467 de 26 de dezembro de 1951. Dispõe sobre organização e finalidade da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo (1951 dez 28); Caderno Executivo, p.2-3.).

São duas trajetórias de vida que se cruzam e que conduzem ao questionamento: qual o motivo que levou Tarsila do Amaral representar pictoriamente Glete de Alcântara? Ademais, justificar o presente estudo poderia ser redundante no aspecto da importância da trajetória da retratada, mas articulá-la à obra de arte assinada por Tarsila do Amaral é a possibilidade de entendermos a decodificação da representação pictórica de Glete de Alcântara e o efeito para a artista e para a enfermagem brasileira.

OBJETIVOs

Analisar a tela “Retrato de Glette de Alcântara” e discutir o efeito da tela para Tarsila do Amaral e para a enfermagem brasileira.

MÉTODOs

Aspectos éticos

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da EERP-USP, em fevereiro de 2013. Houve autorização para uso da imagem da herdeira da artista, que possui o mesmo nome dessa e dos detentores da obra física.

Referencial teórico-metodológico

Para a construção da narrativa histórica, fontes documentais e literatura de aderência foram utilizadas para a construção da trama, tendo por resultado a decodificação da tela pelo método de aproximação de Erwin Panofsky(33 Panofsky E. Significado nas artes visuais. 4a ed. São Paulo: Editora Perspectiva; 2011.) como representação pictórica.

O termo “representação” foi adotado no sentido de evocação mimética pela ausência sugerida pela presença, na visão subjetiva do artista, tendo por produto a representação do ausente pela ilusão do registro fiel. Dito de outra forma, o retrato não se trata da pessoa em carne e osso, mas uma das formas de representar pela ausência biológica, o que é a ilusão do real(44 Ginzburg C. Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Cia. das Letras; 2001.-55 Gombrich EH. Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. 4a ed. São Paulo: Martins Fontes; 2007.).

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo na perspectiva histórica, no domínio da cultura visual.

Procedimentos metodológicos

Para a seleção das fontes históricas, recorremos aos acervos físicos e sítios eletrônicos articulados com a literatura de aderência referente à trajetória de vidas das duas personagens da história a ser narrada, articulada à história da arte. A delimitação temporal foi concentrada nas décadas de 1950 e 1960, sem perder de vista os antecedentes, tendo por justificativa o período de confecção da pintura.

Fonte de dados

Os dados para a construção da narrativa histórica se deram pelo registro da imagem do quadro intitulado “Retrato de Glette de Alcântara”, localizada no município de Araraquara, São Paulo, na Coleção Laura Gimenes de Marqui, e em literaturas de aderência para análise e discussão.

Coleta e organização dos dados

Os dados foram coletados em sítio eletrônico (http://www.base7.com.br/tarsila), no Catálogo Raisonné® de Tarsila do Amaral(66 Base 7 Projetos Culturais, Pinacoteca do Estado de São Paulo. Catálogo Raisonné de Tarsila do Amaral. [Internet]. 1966[cited 2017 Aug 10]. Available in: http://www.base7.com.br/tarsila/
http://www.base7.com.br/tarsila/...
), em documentos de literatura sobre a vida de Glete de Alcântara no Centro Histórico da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, em arquivos gerais da Universidade de São Paulo, em teses e no registro imagético do quadro apresentado no estudo.

A organização dos dados ocorreu pelo jogo de escala(77 Porto F, Neto M, Silva TF, Trigueiro KF, Nassar PR, Neves HA. San Camilo de Léllis: Caridad y bondad en la prestación del cuidado. Rev Cult Cuidados [Internet]. 2017[cited 2017 Aug 10]; 21: 32-42. Available from: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/ibc-163340
https://pesquisa.bvsalud.org/portal/reso...
), quando o contexto micro dialogou com o macro e vice-versa, pela redução do objeto de estudo, rumo à representação pictórica da artista, que assinou a obra sobre Glete de Alcântara.

Análise dos dados

A análise ocorreu em duas fases: pré-iconografia e iconografia(33 Panofsky E. Significado nas artes visuais. 4a ed. São Paulo: Editora Perspectiva; 2011.). A primeira entendida como primária, sendo aparente, natural, de nível mais básico como a camada da percepção da obra em sua forma pura e a segunda como secundária ou convencional, nível que avança mais um degrau da análise e traz a equação cultural e conhecimento iconográfico, por meio da matriz de análise adaptada para pintura(88 Neto M, Porto F, Nascimento AS. Application of semiotics in the analysis of facsimiles: a documentary research [Internet]. O Braz J Nurs [Internet]. 2002[cited 2017 Aug 10];11(3):848-64. Available in: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/3705/pdf_1
http://www.objnursing.uff.br/index.php/n...
), para a representação pictórica da retratada pela artista. Assim sendo, a análise, como resultado, conduziu a discussão do efeito da obra da artista para a enfermagem brasileira.

RESULTADOS

O retrato intitulado “Retrato de Glette de Alcântara”, datado de 1960, tem as dimensões de 64,5 x 54,5 cm, de autoria de Tarsila do Amaral.

A tela e a moldura predominam em tons azuis - moldura e fundo da tela -, o que destaca a retratada em tons claros (indumentária e cútis) e escuro (penteado), em posição de close de olhar fixo para o espectador. Os atributos pessoais ostentados são representações de um par de brincos e colar de duas voltas, com referencial em pérolas. A indumentária remete à parte, talvez, de um vestido com decote tipo canoa, conhecido em francês como bateau (99 Callan GO. Enciclopédia da moda. São Paulo: Companhia das Letras; 2007.), contornando o colo do peito em renda transparente.

Figura 1
Retrato de Glette de Alcântara (Tarsila do Amaral-1960)

Fotógrafa: Luciana Barizon Luchesi. Araraquara, 2016.


O primeiro atributo pessoal a ser tratado é a representação da pérola presente na tela. Sabe-se, pelos escritos, que a pérola é oriunda dos moluscos de água salgada/doce, na presença de agente irritante que cristaliza o carbonato de cálcio, utilizado para ornamentar indumentárias desde antiguidade. Foi potencializado no século XIX, quando do cultivo para comercialização, se tornou visível o uso a partir da década de 1920, tendo por referência o século XIX, quando Alexandra Caroline Charllote Louisa Julia - princesa de Gales - ditou a moda à época ao usar colar de pérola em carreira(99 Callan GO. Enciclopédia da moda. São Paulo: Companhia das Letras; 2007.-1010 Lurie A. A linguagem das roupas. Rio de Janeiro: Rocco; 1997.), o que conduz à decodificação de elegância, poder e prestígio.

Na composição da representação de Glete de Alcântara, as pérolas - em colar e brincos - são atributos que se destacam na pintura. Os brincos são pontos que realçam, discretamente, a fisionomia da retratada, ao oferecer dois focos pequenos de luz pelo brilho do brinco e que funciona como referência para o contorno do rosto, seguido da proposta de alinhamento dos cabelos em tom escuro. O colar em torno do pescoço até o início do tórax na tela se comunica, visualmente, com os brincos, por se tratar do mesmo material, oferecendo harmonia e equilíbrio ao preencher o colo do peito com luz e sombra, sútil, no trajeto perfilado das pérolas por tamanho.

O cabelo, pelo alinhamento, segue a tendência da moda de corte reto e com balanço(1111 Fischer-Mirikin T. Os significados ocultos da roupa feminina: o código de vestir. Rio de Janeiro: Rocco; 2001.). Sabe-se, pelas consultas fotográficas, que Glete de Alcântara tinha o cabelo curto e meio ondulado, o que pode conduzir o espectador à ilusão de que, por exemplo, se trata de penteado em coque. Mesmo assim, o penteado oferece contorno à fisionomia, tendo, por consequência, o destaque das sobrancelhas e olhos em tons escuros, e nariz e lábios em tons avermelhados para a representação de cútis corada.

A leitura de renda na pintura se trata de tecido com desenhos em aberturas confeccionados à mão ou à máquina, comum para se adornar vestidos, véus e xales(99 Callan GO. Enciclopédia da moda. São Paulo: Companhia das Letras; 2007.), que ao mesmo tempo em que mostra, também, esconde. Ela oferece leveza e sutil volume corporal na indumentária. Isto pode ser visualizado em virtude da transparência ilusória da representação, que faz se visualizar na ausência de manga na indumentária e presença da tez de parte do braço.

A função da renda, neste tipo de modelagem, pode ser considerada dupla, ou seja, de acabamento prolongado no decote e substituta da manga. Seu destaque se dá pelo jogo da transparência e a delicada padronagem floral em tons claros, que adornam o tecido e chamam a atenção do espectador, em especial, para aqueles com repertório da época vitoriana, ao se remeter a ascensão da classe média e o desenvolvimento do capitalismo industrial(1212 Pezzolo DB. Moda e Arte: releitura no processo de criação. São Paulo: Senac; 2013.).

A gestualidade da retratada, delimitada na representação do olhar fixo, remete a significação do gatilho mental de compreensão de quem é visto e quem o vê. A articulação se faz pela comunicação visual e do ambiente onde pode se encontrar(1313 Belting H. Por uma antropologia das imagens. Rev Concinnitas. 2005;1(8):64-78.-1414 White K. 101 Lições a serem aprendidas na escola de artes. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2013.). O olhar fixo da retratada pode, por um lado, ser interpretado como se ela estivesse pronta para olhar e ser olhada, como uma das formas de comunicação - representação pictórica e espectador; outro seria como se a representação do olhar dela olhasse diretamente para o espectador para recebê-lo no ambiente visual da tela; também se pode atribuir como se aquele olhar se encontrasse em permanente vigilância do espaço presente; ou, então, como se convidasse para adentrar pela tela, no entendimento de portal simbólico(1515 Neto M. Aleitamento materno e cuidado nos modos de ver pela janela de Madona Litta de Da Vinci [Tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Escola de Enfermagem Alfredo Pinto; 2014.)de fundo azul, para conhecê-la ou até mesmo para se relembrar de fatos e acontecimentos de ligação entre a retratada e o espectador.

Ressaltamos que a artista plástica Tarsila do Amaral é autora de 10 esculturas, 38 gravuras, 60 decalques, 442 ilustrações e estudos de ilustrações, 1.319 desenhos, estudos e anotações, 28 aquarelas e guaches, e 278 pinturas, cuja tela de Glete de Alcântara está inserida, atualmente pertencente à coleção de Laura Gimenes de Marqui. A obra da artista perpassa por 4 fases, a saber: a primeira, denominada de Pau-Brasil até meados da década de 1920; a segunda, intitulada Antropofágica no movimento modernista, idealizada pelo seu marido na época, Oswald de Andrade, em 1928; a terceira fase, dita social e a quarta chamada de Neo Pau-Brasil, quando se dedicaram as obras com referência nas paisagens de fazendas, casamentos e procissões, na década de 1950(1616 Gotlib NB. Tarsila do Amaral: a modernista. 4a ed. São Paulo: Editora Senac; 2012.-1717 Brandão A. A mulher, a representação, a arte e a resistência. Os últimos anos de Tarsila do Amaral [Internet]. In: Anais IV fórum de pesquisa científica em arte. 2006; Curitiba, PR, Brasil. Curitiba: Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba; 2006[cited 2017 Aug 10]. p.218-226. Available from: http://www.embap.pr.gov.br/arquivos/File/anais4/angela_brandao.pdf
http://www.embap.pr.gov.br/arquivos/File...
).

Em síntese, mediante o resultado da análise pré e iconográfica da tela referente à hexis corporal, atributos pessoais e tons de cores distribuídos na tela, Tarsila do Amaral traz à baila a mulher Glete de Alcântara, sem os atributos que remetem a enfermagem, exceto pelo nome conhecido pelos profissionais da área, no campo acadêmico, bem como alguns médicos e historiadores de ofício. Neste sentido, a representação de mulher na tela trata-se de pessoa alinhada à moda do penteado de sua época de traje elegante, com seriedade e altivez acentuada pelo olhar fixo e direcionado.

DISCUSSÃO

Glete de Alcântara, nascida em 24 de junho de 1910, na cidade de São Sebastião do Paraíso, Minas Gerais, cursou Enfermagem no Canadá, em 1944, e se tornou docente da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP). Lecionou as matérias de Enfermagem Médica e Técnica de Enfermagem e, ainda, foi aprimorar sua formação nos Estados Unidos da América para obtenção do título Master of Arts, pelo Teacher’s College da University of Columbia como bolsista da Fundação Kellog. À época, também iniciou a segunda graduação em Licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo, interrompida, mas com diplomação em 1952(1818 Alcântara G. Memorial. [Concurso para Docência]. São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto; 1963.).

Em 1952 Glete de Alcântara foi contratada como diretora da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto-USP (EERP-USP), de acordo com a ata da 312ª Sessão do Conselho Universitário da USP. Essa ata foi datada de 5 de março de 1952, onde o Conselheiro Prof. Dr. Zeferino Vaz agradeceu ao Prof. Paulo César de Azevedo Antunes (diretor da Faculdade de Higiene e Saúde Pública da USP) pela indicação de Profa. Glete de Alcântara para dirigir a EERP-USP, criada em 1951(1919 Universidade de São Paulo. Conselho Universitário. Ata da 312a sessão (1952 05 mar).).

O legado de Glete de Alcântara é amplo e estendeu às estratégias implementadas pela posição privilegiada no âmbito político da enfermagem brasileira como presidente na Associação Brasileira de Enfermagem (Gestão 1952-1954 e 1972-1974) e em virtude da sua defesa de cátedra (1963). Ela foi considerada a primeira enfermeira catedrática da América Latina.

A obra em análise é assinada por Tarsila do Amaral (1886-1973). Nascida em Capivari, São Paulo, filha de Lydia Dias de Aguiar do Amaral e José Estanislau do Amaral, fazendeiros tradicionais do interior de São Paulo, sendo educada em casa(1616 Gotlib NB. Tarsila do Amaral: a modernista. 4a ed. São Paulo: Editora Senac; 2012.). No início do século XX, ela estudou na Europa, quando produziu suas primeiras obras. Foi casada com André Teixeira, com quem teve uma filha em 1906. Casou-se outras vezes, sendo considerada uma mulher à frente de sua época em uma sociedade conservadora(11 Amaral AA. Tarsila: sua obra e seu tempo. 3a ed. São Paulo: Edusp; 2003.).

Em sua trajetória artística, conheceu nomes da arte moderna, tais como Anita Malfati, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Menotti Del Piecchia. Realizou exposições na Rússia, onde proferiu conferência sobre a arte no Brasil, na década de 1920. Em 1931 retornou ao Brasil quando, em virtude de sua passagem pela Rússia, foi considerada suspeita, presa por um mês pelo contexto de conflito latente antes da II Guerra Mundial(1616 Gotlib NB. Tarsila do Amaral: a modernista. 4a ed. São Paulo: Editora Senac; 2012.).

A década de 1950 representou a sua fase Neo Pau-Brasil, mas ela enfrentava dificuldades financeiras que a levaram à venda de imóveis, mesmo diante da comercialização de suas obras(1616 Gotlib NB. Tarsila do Amaral: a modernista. 4a ed. São Paulo: Editora Senac; 2012.). Nesse cenário de dificuldades financeiras, ocorre a encomenda para pintar o retrato a óleo de Glete de Alcântara pelo seu irmão Antônio de Alcântara.

O encontro de Tarsila do Amaral com Antônio Alcântara deve-se à recomendação de Décio de Almeida Prado (1917-2000)(66 Base 7 Projetos Culturais, Pinacoteca do Estado de São Paulo. Catálogo Raisonné de Tarsila do Amaral. [Internet]. 1966[cited 2017 Aug 10]. Available in: http://www.base7.com.br/tarsila/
http://www.base7.com.br/tarsila/...
). Ele era crítico teatral, ensaísta e professor da Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo (1948-1963) e casado com Ruth Alcântara, irmã de Glete de Alcântara(2020 Faria JR, Arêas V, Aguiar F. Décio de Almeida Prado: um homem de teatro. São Paulo: Edusp; 1997.). Entender a rede de amigos da artista e da retratada elucida os indícios sobre a produção da tela.

Glete de Alcântara era a filha primogênita da família com nove irmãos - cinco mulheres e quatro homens. Com a morte da mãe, ela tomou para si a educação de seus irmãos menores. Isto implicou a relação afetiva com eles, apesar de registro que “a sua vida tendeu mais para o lado profissional que para o lado pessoal. Não obstante, ou talvez por isso mesmo, a dimensão afetiva ocupou grande espaço em sua trajetória profissional”(2121 Mendes IAC, Leite JL, Leite JL, Trevizan MA. REBEn (Brazilian Journal of Nursing) in the context of the brazilian nursing: the importance of Glete de Alcântara [Internet]. Rev Bras Enferm [Internet]. 2002[cited 2017 Aug 10];55(3):270-4. Available in: http://dx.doi.org/10.1590/S0034-71672002000300006
http://dx.doi.org/10.1590/S0034-71672002...
), o que não afastava o afeto e apreço do irmão em presenteá-la com uma tela assinada por Tarsila do Amaral.

Outro dado que merece destaque trata-se da informação que Glete de Alcântara teria posado para Tarsila do Amaral aos 53 anos(66 Base 7 Projetos Culturais, Pinacoteca do Estado de São Paulo. Catálogo Raisonné de Tarsila do Amaral. [Internet]. 1966[cited 2017 Aug 10]. Available in: http://www.base7.com.br/tarsila/
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), mas ocorre divergência do dado sob argumentação com base no ano de nascimento da retratada em 1910 e a datação da tela de 1960, logo ela teria 50 anos. Seja como for, a artista com 74 anos e a retratada com 50 anos, elas escreveram ao menos uma página da história da arte brasileira articulada à da enfermagem pelo registro da obra.

Duas inferências podem ser feitas dessa informação: se realmente a produção se deu em 1960, pode ter sido inspirado no desejo do irmão presentear Glete de Alcântara na passagem de seus 50 anos, o que questionaria a idade de 53 anos mencionada no catálogo. Por outro lado, se fosse aos 53 anos, significaria que o quadro teria como data real 1963, ano emblemático para a docente que defendeu a primeira tese de cátedra de enfermagem da América Latina e, por isso, a encomenda do presente. As duas informações apresentam justificativas importantes.

O desenrolar do novelo da trama para a construção da narrativa histórica, no sentido de se chegar ao efeito da tela para Tarsila do Amaral e para a enfermagem brasileira, por meio da retratada, se aproxima ao final. Mas, ainda, nos cabe entender sobre a dificuldade financeira que a artista passava para a construção da narrativa.

Sabemos que as décadas de 1920 e 1930 foram de consagração para a artista, apesar que anos 1950 foi criticada pelo suposto esgotamento da sua capacidade criativa, em virtude das releituras das obras dos mestres do passado, como as das Meninas de Velázquez e das Mulheres de Argel de Delacroix. Para homenagear e ao mesmo tempo reavaliar sua produção desse período, Sérgio Milliet organizou a exposição retrospectiva de Tarsila do Amaral no Museu de Arte Moderna de São Paulo(11 Amaral AA. Tarsila: sua obra e seu tempo. 3a ed. São Paulo: Edusp; 2003.).

Além das críticas sofridas e do movimento de Sérgio Milliet em apoiá-la, Tarsila sofria pela perda de sua neta Beatriz (1949) e de seu último amor, Luís Martins, nos anos 1950. Isto, somado à venda da fazenda pela dificuldade financeira, no início da década de 1960, lhe deixava certo vazio e saudade na vida com seus amigos(1717 Brandão A. A mulher, a representação, a arte e a resistência. Os últimos anos de Tarsila do Amaral [Internet]. In: Anais IV fórum de pesquisa científica em arte. 2006; Curitiba, PR, Brasil. Curitiba: Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba; 2006[cited 2017 Aug 10]. p.218-226. Available from: http://www.embap.pr.gov.br/arquivos/File/anais4/angela_brandao.pdf
http://www.embap.pr.gov.br/arquivos/File...
).

O decorrer dos anos de 1960, pelos registros encontrados, aponta ter sido promissor, pois recebeu novo reconhecimento pelo conjunto da obra, por meio de exposições retrospectivas, realizadas no(a): Casa do Artista Plástico; VII Bienal de São Paulo; XXXII Bienal de Veneza; Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; e Museu de Arte Contemporânea de São Paulo. As duas últimas foram consideradas as de maior reconhecimento de sua carreira(1717 Brandão A. A mulher, a representação, a arte e a resistência. Os últimos anos de Tarsila do Amaral [Internet]. In: Anais IV fórum de pesquisa científica em arte. 2006; Curitiba, PR, Brasil. Curitiba: Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba; 2006[cited 2017 Aug 10]. p.218-226. Available from: http://www.embap.pr.gov.br/arquivos/File/anais4/angela_brandao.pdf
http://www.embap.pr.gov.br/arquivos/File...
).

A recomendação de Décio de Almeida Prado a Antônio Alcântara, pelo exposto, deixa transparecer apoio à fase que passava Tarsila do Amaral e a oportunidade de ele prestigiar sua irmã Glete de Alcântara, com uma obra da artista pelo reconhecimento conquistado no passado, o que acreditamos ter sido de bons ventos para a artista.

Pensar na articulação da análise com a discussão é traçar o efeito da tela para Tarsila do Amaral e para a enfermagem brasileira, por meio da representação de Glete de Alcântara, quando foi a oportunidade de refletir a princípio sobre duas personalidades que cruzaram seus destinos na trajetória de vida.

Neste sentido, para alguns espectadores desavisados da tela, ela pode se tratar da pintura de uma mulher que Tarsila do Amaral admirava ou que a ela foi comissionada, pela tradição de se retratar pessoas, como Retrato de Fernanda de Castro (1922), Retrato de Mário de Andrade (1922), Retrato de Oswald de Andrade (1922), Retrato de Vera Vicente de Azevedo (1937), Retrato de Mathilde Theresa Franco do Amaral (1957) e o último no gênero feminino de Glete de Alcântara (1960)(66 Base 7 Projetos Culturais, Pinacoteca do Estado de São Paulo. Catálogo Raisonné de Tarsila do Amaral. [Internet]. 1966[cited 2017 Aug 10]. Available in: http://www.base7.com.br/tarsila/
http://www.base7.com.br/tarsila/...
); para outros, a lembrança de uma mulher importante para a enfermagem pelo legado deixado, despida da representação dos atributos pessoais da profissão; e para os familiares, a lembrança do parentesco. Para as duas últimas possibilidades, a representação conduz a saudade do convívio familiar e/ou profissional, mas não se pode negar se tratar de ilusão visual, pois mesmo presente em representação pictórica, ela se encontra ausente.

Pensar à época, como em tempos atuais, ter posse de uma tela assinada por Tarsila do Amaral não se tratava/trata de baixo valor financeiro e/ou simbólico pela representatividade que significa a obra de arte, além de ver nela pintada. Isto posto, entendemos que a pintura agrega capital cultural, o que resulta em poder e prestígio de dois nomes reconhecidos, cada um em sua área de atuação em um mesmo documento, a tela.

Glete de Alcântara possuía interesse por cultura de um modo geral, arte, música, literatura, entre outros e quando gostava de algo desse âmbito se dedicava profundamente ao seu estudo. A autora e amiga destaca memória do quadro de Tarsila, encomendada por familiar, dentre as obras de arte presentes na casa da docente, entre outras obras(2222 Rothschild HA. Aspectos culturais e personalidade de Glete de Alcântara. In: Angerami ELS, Pelá NTR. organizadores. Glete de Alcântara: Vida e obra. São Paulo: Rev Tribunais; 1976. p. 29-33.).

Diante do que foi dito, o quadro ficou em poder da família por, aproximadamente, quatro décadas e depois por motivos adversos ele não teria mais sido visto, quando na busca de documentação sobre a retratada, ele é encontrado. Isto deve ser denominado de Coleção Laura Gimenes de Marqui, pois ele compõe o Catálogo Raisonné Tarsila do Amaral disponível na internet, para o deleite dos admiradores de Tarsila do Amaral e de Glete de Alcântara.

Limitações do estudo

No desenrolar da trama para a construção da narrativa histórica sobre a tela da retratada Glete de Alcântara, reconhecemos que lacunas foram deixadas, mas elas pela abordagem do estudo são pertinentes e salutares. Isto posto, deve-se ressaltar que a construção historiográfica não se dá com o ponto final. Ela é inacabada, por ser verosímil e contínua, quando outras documentações são encontradas e as versões e interpretações podem ser (re)escritas para o avanço da construção do conhecimento.

Assim, acreditar em ponto final na história trata-se de equivoco, pois como tivemos a oportunidade de ler, ainda, temos muito a saber, como quem foi a pessoa Glete de Alcântara. Investigar suas relações no campo político profissional, nas artes, relacionamento com os familiares, dentre tantos outros aspectos é entender sua cultura; caso contrário, seria a perda da maior riqueza do registro de sua vida humana.

Contribuições para a área da enfermagem, saúde ou política pública

A contribuição do estudo foi evidenciar, por meio da cultura visual, outro aspecto da retratada. Foi a possibilidade de discutir a articulação social e cultural da família Alcântara, o que vai para além da imagem e o legado da retratada para a profissão. Entender este aspecto é trilhar pelos indícios das suas conquistas empreendidas, talvez, antes pouco articulada na investigação historiográfica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo, como outros que tentam avançar para além da vida profissional de uma personalidade, visou entender a trajetória de vida articulada às redes de relacionamento da retratada, que, às vezes, se encontram nos subterrâneos da memória e dos acervos documentais. Ademais, se aproximar da trajetória de Tarsila do Amaral foi outra oportunidade de entender a luta da artista, com suas dificuldades, para além da estética e o reconhecimento conquistado. Foi banhar-se na cultura visual da arte que a escrita da história possibilita e mostra o que os pesquisadores em enfermagem são capazes de produzir, por meio de um documento imagético, com interpretações iconográficas sobre além do visto, mas pelo invisível e dentro de suas limitações.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Aparecida Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Antonio José de Almeida Filho

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    28 Out 2017
  • Aceito
    27 Out 2019
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