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Entre o dito e o não dito acerca da autonomia do enfermeiro: (des)continuidades nos discursos

RESUMO

Objetivo:

conhecer como se constitui a autonomia na prática profissional do enfermeiro no contexto hospitalar.

Métodos:

estudo qualitativo, analítico, assentado no referencial teórico metodológico de Foucault. O material empírico foi composto por artigos publicados na Revista Brasileira de Enfermagem e entrevistas narrativas realizadas com 18 enfermeiros de um hospital público da região Sul do Brasil. A coleta de dados ocorreu entre os meses de dezembro de 2017 a maio de 2018. O discurso foucaultiano foi adotado para a análise de dados.

Resultados:

a autonomia na prática profissional do enfermeiro perpassa pela centralidade do saber, pelo posicionamento político e pelas condições de trabalho. Esses fatores se revelam como dispositivos de poder na construção da governabilidade do enfermeiro.

Considerações Finais:

o investimento em espaços voltados para o debate das interfaces da autonomia do enfermeiro pode suscitar novas posturas sobre a prática profissional e favorecer a transformação da prática de enfermagem.

Descritores:
Enfermeiros; Autonomia Profissional; Prática Profissional; Trabalho; Hospitais

ABSTRACT

Objective:

to know how autonomy is constituted in the nurse’s professional practice in the hospital context.

Methods:

Qualitative analytical study, based on Foucault’s methodological theoretical framework. The empirical material consisted of articles published in the Revista Brasileira de Enfermagem and narrative interviews conducted with 18 nurses from a public hospital in southern Brazil. Data collection took place between December 2017 and May 2018, being analyzed through Foucauldian discourse analysis.

Results:

Autonomy in the professional practice of nurses goes through the core of knowledge, the political positioning and the working conditions. These factors are revealed as power instruments in the construction of nurse governability.

Final Considerations:

It is believed that the investment focused on the debate of the nurse’s autonomy interfaces could raise new attitudes about professional practice and favor the transformation of nursing practice.

Descriptors:
Nurses; Professional Autonomy; Professional Practice; Work; Hospitals

RESUMEN

Objetivo:

saber cómo se constituye la autonomía en la práctica profesional de los enfermeros en el contexto hospitalario.

Métodos:

investigación analítica, cualitativa, basada en el marco teórico metodológico de Foucault. El material empírico consistió en artículos publicados en la Revista Brasileira de Enfermagem y en entrevistas narrativas realizadas con 18 enfermeros de un hospital público en el sur de Brasil. El período de recolección de datos fue de diciembre de 2017 y mayo de 2018. Se adoptó el discurso de Foucault para el análisis de datos.

Resultados:

la autonomía en la práctica profesional de los enfermeros pasa por la centralidad del conocimiento, el posicionamiento político y las condiciones de trabajo. Estos factores se revelan como dispositivos de poder en la construcción de la gobernabilidad de los enfermeros.

Consideraciones finales:

la inversión en espacios centrados en el debate de las interfaces de autonomía de los enfermeros puede generar nuevas actitudes sobre la práctica profesional y favorecer la transformación de la práctica de enfermería.

Descriptores:
Enfermeros; Autonomía Profesional; Práctica Profesional; Trabajo; Hospitales

INTRODUÇÃO

A autonomia profissional do enfermeiro se apresenta como um tema complexo, cuja necessidade de exploração mais detalhada advém da configuração atual do seu trabalho. Progressivamente, tem ganhado novos contornos por influência de fatores diversos, mas por vezes, com práticas ainda centradas no modelo biomédico(11 Santos EI, Alves YR, Gomes AMT, Silva ACSS, Mota DB, Almeida EA. Social representations of nurses' professional autonomy among non-nursing health personnel. Rev Enferm UERJ [Internet]. 2015;23(4):481-7. doi: 10.12957/reuerj.2015.17944
https://doi.org/10.12957/reuerj.2015.179...
).

Entende-se por autonomia profissional do enfermeiro quando este, dotado de independências moral e intelectual, usufrui da capacidade de governar-se pelos próprios meios e toma decisões livremente, estabelecendo sua prática individual ou coletiva. A autonomia profissional pressupõe competência e liberdade para fazer escolhas conscientes dentre as opções possíveis(22 Berti HW, Braga EM, Godoy IW, Spiri C, Bocchi SC. Movement undertaken by newly graduated nurses towards the strengthening of their professional autonomy and towards patient autonomy. Rev Lat Am Enferm. 2008;16(2):184-91. doi: 10.1590/S0104-11692008000200003
https://doi.org/10.1590/S0104-1169200800...
).

O modo como o enfermeiro percebe a autonomia traz consciência a respeito dos espaços onde pode atuar e sobre suas ações para lidar melhor com decisões e escolhas no exercício da profissão(33 Kraemer FZ, Duarte MLC, Kaiser DE. Autonomia e trabalho do enfermeiro. Rev Gaúcha Enferm. 2011;32(3):487-94. doi: 10.1590/S1983-14472011000300008
https://doi.org/10.1590/S1983-1447201100...
). O comportamento crítico e reflexivo acerca das condições de possibilidades de governar a si mesmo permite liberdade na tomada de decisões dentro de seus conhecimentos e a realização de tarefas de modo a gerar resultados satisfatórios em seu trabalho(44 Rigue AC, Dalmolin GL, Speroni KS, Bresolin JZ, Rigue AA. Work Satisfaction: Perception of Nurses of a University Hospital. Cogitare Enferm. 2016;21(3):01-9. doi: 10.5380/ce.v21i3.46199
https://doi.org/10.5380/ce.v21i3.46199...
).

Estudos evidenciam que a autonomia profissional do enfermeiro ainda é limitada e, por vezes, anulada no interior das organizações de saúde(11 Santos EI, Alves YR, Gomes AMT, Silva ACSS, Mota DB, Almeida EA. Social representations of nurses' professional autonomy among non-nursing health personnel. Rev Enferm UERJ [Internet]. 2015;23(4):481-7. doi: 10.12957/reuerj.2015.17944
https://doi.org/10.12957/reuerj.2015.179...
,55 Baykara ZG, Sahinoglu S. An evaluation of nurse’s professional autonomy in Turkey. Nurs Ethics. 2014;21(4):447-60. doi: 10.1177/0969733013505307
https://doi.org/10.1177/0969733013505307...
-66 Melo CMM, Florentino TC, Mascarenhas NB, Macedo KS, Silva MC, Mascarenhas SN. Professional autonomy of the nurse: some reflections. Esc Anna Nery. 2016;20(4):e20160085. doi: 10.5935/1414-8145.20160085
https://doi.org/10.5935/1414-8145.201600...
), sendo um objetivo a ser alcançado na luta pelas conquistas profissionais da categoria(77 Santos EI, Alves YR, Silva ACSS, Gomes AMT. Professional autonomy and nursing: representations of health professionals. Rev Gaúcha Enferm. 2017;38(1):e59033. doi: 10.1590/1983-1447.2017.01.59033
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). Nessa perspectiva, este estudo visa colocar em análise as condições de possibilidades em que ocorre o comportamento dos enfermeiros no que diz respeito à autonomia profissional no contexto hospitalar, já que, conforme Foucault(88 Foucault M. A hermenêutica do sujeito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2014. 518p.-99 Foucault M. Microfísica do poder. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2017. 432p.), na relação saber e poder, os saberes são dispositivos políticos que auxiliam os mecanismos de poder. Assim, todo conhecimento, seja ele científico ou ideológico, só pode existir a partir de condições políticas necessárias para a formação tanto do sujeito quanto dos domínios de saber. A investigação do saber não deve remeter a um sujeito de conhecimento, que seria sua origem, mas às relações de poder que o constituem. Não há saber neutro, todo saber é político, porque todo saber tem sua gênese em relações de poder. Todo saber assegura o exercício de um poder. Assim posto, o saber lapida as práticas de governabilidade do enfermeiro e viabiliza o exercício da autonomia.

Dessa maneira, a seguinte questão de pesquisa norteou o estudo e permitiu compreender as (des) continuidades históricas que atravessam a autonomia no governo de si do enfermeiro: Como se constitui a autonomia na prática profissional do enfermeiro no contexto hospitalar?

OBJETIVO

Conhecer como se constitui a autonomia na prática profissional do enfermeiro no contexto hospitalar.

MÉTODOS

Aspectos éticos

Por se tratar de pesquisa envolvendo seres humanos, os aspectos éticos foram respeitados de acordo com a Resolução Nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.

Referencial teórico-metodológico

Estudo fundamentado nas reflexões do teórico Michel Foucault acerca da constituição do sujeito, perpassando pelas relações de poder e cuidado de si, que refletem a possibilidade de o enfermeiro libertar-se e conduzir-se como sujeito ético e autônomo.

Tipo de estudo

Estudo de abordagem qualitativa, analítico, realizado mediante Análise Discursiva.

Cenário do estudo

Fizeram parte do cenário do estudo as unidades de internação de clínica cirúrgica e médica I e II de um hospital público de grande porte da região Sul do Brasil. O cenário deste estudo foi um hospital de ensino, geral, público, de nível terciário, que atende 100% pelo Sistema Único de Saúde (SUS), tem por finalidade a formação profissional e desenvolve o ensino, a pesquisa e a extensão por meio da assistência em saúde à comunidade.

Fonte de dados

A pesquisa foi desenvolvida em duas etapas: uma etapa documental e uma etapa empírica. A etapa documental ocorreu por meio da análise dos artigos publicados na Revista Brasileira de Enfermagem (REBEn) entre os anos de 1986 a 2017. A etapa empírica ocorreu por meio de entrevistas narrativas com enfermeiros atuantes em unidades de internação de clínica cirúrgica e médica I e II de um hospital público de grande porte da região Sul do Brasil.

Coleta e organização dos dados

A etapa documental foi realizada em dezembro de 2017 e envolveu a investigação virtual minuciosa nos títulos e resumos, e a leitura na íntegra dos artigos publicados na REBEn, com o objetivo de selecionar os que discutissem a autonomia profissional do enfermeiro no contexto hospitalar. Foram obtidos 44 artigos com os seguintes critérios de inclusão: artigos que trabalhassem a temática proposta, disponíveis online e publicados no período de 1986 a 2017. A delimitação temporal foi decorrente da aprovação da Lei Nº 7498, em 25 de junho de 1986, que dispõe sobre a regulamentação do Exercício Profissional da Enfermagem. Foram excluídos editoriais, resumos de teses e dissertações e resenhas de livros.

Na tentativa de esmiuçar a produção do periódico acerca da temática proposta, a seleção dos artigos não ficou engessada ao termo autonomia, e também incluiu busca por produções utilizando os termos: tomada de decisão, ética, moral, gênero e submissão, pois estes reproduzem temas que podem estar relacionados à autonomia. Após a seleção e separação do material secundário encontrado, foi realizada a leitura na íntegra de todo corpo documental, que remeteu ao objeto de estudo. Os artigos foram identificados pela letra A, seguida de um número sequencial.

Na etapa empírica, foram realizadas entrevistas narrativas no período de abril a maio de 2018, no próprio cenário da pesquisa, em local e horário de preferência do entrevistado. Foram entrevistados dois representantes de cada turno de trabalho, contemplando os três turnos de trabalho, o que totalizou 18 enfermeiros. Os requisitos exigidos para participação na pesquisa foram: que o indicado aceitasse a gravação da entrevista e estivesse lotado há pelo menos um ano no setor.

O critério de escolha dos participantes ocorreu pela técnica denominada “bola de neve”, e apenas o primeiro participante de cada unidade foi escolhido mediante sorteio da relação de trabalhadores atuantes no cenário de estudo. Para o encerramento da produção de dados, foi utilizado o critério de saturação de dados.

O tempo médio de duração das entrevistas foi de 15 minutos. A entrevista foi guiada pelas seguintes solicitações: descreva situações que você percebe ou entende como exercendo autonomia. Cite exemplos. Descreva situações que você entende como limitantes no exercício da autonomia. Cite exemplos. As respostas foram gravadas em um microgravador digital - MP3 player e posteriormente, transcritas pelo próprio pesquisador. Os depoimentos dos enfermeiros foram identificados pela letra E, seguida de um número sequencial.

Análise dos dados

Finalizadas as etapas de coleta do material secundário e produção de dados, estes foram fichados e transcritos em um único documento. Na sequência, foi iniciada a análise de discurso sob a ótica foucaultiana, onde, na constituição do agir autônomo do sujeito enfermeiro podem existir discursos hegemônicos que produzem saberes e verdades sobre o governo de si mesmo. Entre os conceitos que permeiam esta análise do discurso, estão os enunciados, o discurso, as regras de formação, a formação discursiva, e a prática discursiva como referência para a análise do presente estudo. A prática do discurso é um conjunto de regras anônimas e históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa(1010 Foucault M. A Arqueologia do Saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2016. 254p.).

Neste sentido, o que é dito pelos enfermeiros e o que está escrito nos artigos publicados por enfermeiros se equivalem. Isto é, não se trata de explicar e separar artigos e entrevistas, mas de inscrevê-los no interior de uma visão de conjunto sempre em movimento. Assim, uma analítica foucaultiana permitiria operar com o que de produtivo poderia ser extraído das fontes documentais e dos ditos e não-ditos dos participantes selecionados para material de análise, com cada um dos conceitos utilizados. Assim, são problematizados os significados produzidos, promovidas estratégias de estranhamento e fica visível um modo de conduzir-se, levando em consideração a autonomia do enfermeiro e sua articulação com o contexto histórico e político.

RESULTADOS

Com base na análise dos dados, foram definidas três formações discursivas: “a interface do conhecimento no desenvolvimento da autonomia”; “a interface das condições de trabalho no desenvolvimento da autonomia”; e “a interface da visibilidade do enfermeiro no desenvolvimento da autonomia”.

A interface do conhecimento no desenvolvimento da autonomia

Tanto os artigos como os depoimentos dos participantes sustentam o discurso de que o conhecimento é condição primordial para o desenvolvimento da autonomia. Os excertos articulam o conhecimento com a tomada de decisão, o empoderamento do enfermeiro, o conhecimento propriamente dito do exercício profissional, a relação saber/poder e a dicotomia teoria/prática.

Limita [...] a questão do pouco conhecimento, quando o enfermeiro tem pouco domínio sobre o assunto, limita a tomada de decisão. Quanto mais empoderado e esclarecido do seu fazer, mais autônomo o enfermeiro se torna. [...] Falta um pouco do conhecimento do exercício profissional, de voltar aos livros e ver qual é realmente a nossa possibilidade. Muitas vezes, isso esbarra na falta de conhecimento, de você não ter domínio sobre o que o enfermeiro realmente teria autonomia para fazer. (E8)

Não temos a intenção de negar a relação entre saber e poder, porém o saber por si só não constitui garantia de poder, mas sim o saber aplicado à práxis. [...] o que ocorre com frequência é um distanciamento e até mesmo uma separação entre teoria e prática (REBEn, 1992). (A12)

No excerto a seguir, é interessante observar que o discurso do conhecimento científico está atrelado à uma temática emergente, a questão da governança.

O conhecimento científico [...] possibilita ao enfermeiro maior segurança para a tomada de decisão clínica e gerencial no contexto [do trabalho...]. O processo decisório consciente e pautado no conhecimento sustenta a governança dos enfermeiros sobre a prática de enfermagem (REBEn, 2017). (A44)

É possível detectar a regularidade discursiva nos artigos analisados, tanto os publicados na década de noventa do século XX, como os publicados na primeira década do século XXI, sobre a fragmentação do processo formativo das escolas de enfermagem, que não estimula os estudantes a construírem consciência política, tão necessária para a prática autônoma. Um excerto faz referência à ausência de especificidade do objeto de trabalho do enfermeiro e à divergência de projeção profissional para a academia e o mercado de trabalho. Outro aspecto considerado é o não dito veiculado nos discursos dos enfermeiros; ou seja, estes profissionais não articulam a autonomia ao processo de construção da consciência política, tal como enunciado nos artigos.

[...Há] necessidade de uma formação nas escolas de enfermagem baseada no processo de conscientização política, para que os futuros enfermeiros tenham a visão de que a enfermagem pode e deve se constituir como profissão autônoma e capaz de transformar a sua realidade (REBEn, 1998). (A17)

[...] formação profissional não fomentadora de uma prática autônoma e a ausência de especificidade do papel próprio [destaca-se] como geradora de limitações ao exercício de uma prática autônoma. [...] Muito mais do que uma deficiência do aparelho formador, acredita-se em um descompasso entre os objetivos nos quais a formação se desenvolve e aqueles adotados pelo mercado para o desempenho dos novos profissionais. (REBEn, 2008). (A33)

Conforme os discursos analisados, as capacitações e os cursos complementares potencializam o desenvolvimento das competências e habilidades do enfermeiro, o que repercute no reconhecimento profissional e na autonomia. Além disso, quando a atualização oferecida vai ao encontro apenas dos interesses institucionais, ela limita a autonomia do profissional.

Eu sempre falo, às vezes, as pessoas acham que eu gosto de aparecer, mas eu nunca tive problema aqui com médico, [...] nunca tive problema de autonomia, pois seguido fazia curso de atualização. (E6)

As atividades de educação continuada nas instituições de saúde têm um papel extremamente importante, porque permitem não só que o conhecimento seja atualizado e outras experiências revistas. No entanto, o que acontece em muitas instituições hospitalares [...] é limitar as atividades da educação continuada para interesses mais próprios da instituição, principalmente os tecnológicos e regimentais. Esta condição limita consideravelmente a autonomia profissional do enfermeiro (REBEn, 2006). (A28)

A busca do conhecimento por meio de capacitações e atualizações profissionais potencializa as competências e habilidades do enfermeiro, o que repercute em maior reconhecimento e autonomia no exercício laboral (REBEn, 2017). (A44)

A interface das condições de trabalho no desenvolvimento da autonomia

A presente formação discursiva está relacionada às condições de trabalho do enfermeiro, que é tratada sob diferentes aspectos. A submissão ao modelo hegemônico de saúde e às condições políticas e econômicas, a atuação institucionalizada, a desorganização como grupo social, a despolitização, a divisão e organização do objeto de trabalho, bem como a comparação ao trabalho doméstico, têm efeitos de poder sobre o modo do enfermeiro se constituir como sujeito autônomo, e foram visibilizados nos discursos do final da década de oitenta do século XX. Esses discursos também foram reforçados na primeira década do século XXI, além de permeados pelo entendimento de que a abertura de espaços para desenvolver o trabalho criativo e resgatar o cuidado ao paciente precisava ser considerada para aprimorar a autonomia.

É força de trabalho no processo produtivo. É profissão auxiliar, meio e não profissão fim. Não têm identidade própria, bem como proposta de modelo da assistência. É mão-de-obra submetida ao mercado capitalista; [...] É evidente a desorganização da enfermagem enquanto grupo social. [...] Outro fator importante que interfere na prática e organização é o nível de despolitização da categoria. [...] A questão central da problemática da enfermagem internamente está relacionada com a divisão e o seu objeto de trabalho. (REBEn, 1988). (A5)

O trabalho [...] de enfermagem pode ser comparado ao trabalho doméstico, não contabilizado. O que não é contabilizado não tem seu valor econômico ressaltado. O que não tem seu valor econômico ressaltado, não tem em um modelo como o nosso, seus direitos respeitados. [...] O trabalho social por si só não representou a liberdade e a autonomia (REBEn, 1988). (A8)

Infelizmente, o que se observa em nossa realidade é a supremacia da atuação institucionalizada, causando delimitação da atuação profissional, em detrimento do estímulo à atuação criativa para o aperfeiçoamento profissional. E isso é uma deficiência que está presente desde a formação do enfermeiro na graduação (REBEn, 2009). (A34)

A enfermagem é, ainda, bastante submissa à hierarquia hospitalar, ao paradigma mecanicista e ao modo de produção capitalista. A consequência mais importante dessa submissão [...é a restrição da] institucionalização da autonomia do saber da enfermagem, que é relacionado à ampla dimensão do processo de cuidar. [...] A responsabilização pelo cuidado está presente como atividade autônoma, porém, não é considerada prioritária. [...] Esse desvio da ação cuidadora, além de traduzir a perda da autonomia no plano do saber em relação à pessoa em cuidado e à equipe de enfermagem, é inteiramente consistente com o paradigma mecanicista hegemônico no contexto de um hospital moderno. (REBEn, 2006). (A28)

Nos discursos dos enunciados do final da década de oitenta e noventa do século XX, circulam aspectos como a relação de dominação e subserviência entre a equipe de enfermagem, a competição de saberes, o despreparo para o gerenciamento de conflitos e a utilização de algumas estratégias pelo enfermeiro, para o enfrentamento de resistências entre a equipe. Nos discursos da primeira década do século XXI, estas mesmas formas de exercício de poder permearam a prática da enfermagem.

Os enfermeiros sempre requereram ao longo de sua existência forte apoio [...da] equipe de enfermagem - hierarquizada e subordinada tecnicamente àqueles profissionais diplomados. Tal fato fez da enfermagem uma profissão que experimenta na própria estrutura interna, forte concorrência, não só na divisão de trabalho como, e principalmente, na disputa por mercado de serviços de enfermagem, dificultando sua efetiva profissionalização. (REBEn, 1999). (A18)

Duas dimensões existentes no trabalho da enfermagem determinam e explicam a situação de conflito encontrada na categoria, já que o saber e o fazer, ou seja, o trabalho intelectual e o manual têm cabido a indivíduos distintos, provocando desigualdades de valorização social e acirrando os conflitos existentes na equipe de enfermagem (REBEn, 1988). (A6)

A relação enfermeira/técnico/ auxiliar de enfermagem, apesar de serem da mesma equipe profissional, é permeada pela relação de dominação, controle e subserviência. Esses profissionais, que antes, respondiam diretamente para o médico, e mesmo sendo uma relação de dominação, não havia conflitos, mesmo porque, os saberes não competiam. Ao passarem a responder para a enfermeira, começaram a surgir animosidades e as lutas se instalaram (REBEn, 2006). (A29)

Podem-se apontar como estratégias, utilizadas pelas enfermeiras, para o enfrentamento das relações de poder: a exposição de sua opinião e a adoção de uma postura mais firme, frente a manifestações de resistência de alguns funcionários a mudanças (REBEn, 2001). (A20)

O enunciado a seguir, expresso pelo enfermeiro, sinaliza a descontinuidade entre os discursos apresentados anteriormente, pois sinaliza a questão do assédio moral como mecanismo de intimidação do enfermeiro. Tal fato, além de gerar desconforto e medo de se posicionar frente à situação vivenciada, interfere no desempenho profissional do enfermeiro.

A equipe de enfermagem, principalmente os técnicos, quando são cobrados por nós, e cobranças que são atribuições deles, [...] muitas vezes, eles revidam que isso é assédio moral, que estamos “pegando no pé” e isso acaba, não deixando com medo, mas com receio de falar e acabamos deixando para a chefia chamar para conversar depois. [...] Percebo que às vezes eles, não que não devam ser, mas parece que são muito empoderados em intimidar o enfermeiro. [...] E isso é uma coisa que me atrapalha, principalmente se preciso resolver ou chamar a atenção de manhã cedo e daí eles passam a manhã toda me cortando. (E5)

Outra nuance evidenciada no enunciado a seguir é a questão da hierarquia tácita, onde o enfermeiro, no seu turno de trabalho, exerce a autonomia na tomada de decisão e na solução de problemas, mesmo com a existência de um enfermeiro chefe do setor, fato que o torna referência para equipe de enfermagem. No entanto, um enunciado contrapõe-se ao afirmar que o enfermeiro não consegue exercer a autonomia pelo fato de seu fazer estar atrelado à estrutura organizacional.

A estrutura organizacional está inserida em um contexto político, social e econômico e, embora impacte o fazer de enfermagem, não impede o enfermeiro de tomar decisões relacionadas ao seu processo de trabalho.

Embora tenha o enfermeiro chefe de setor, sabemos que a equipe de enfermagem sempre tem o enfermeiro do turno como referência. Então, sempre se reportam ao enfermeiro. (E1)

Embora exista um discurso formal de que os enfermeiros gerentes possuem autonomia para tomar decisões relacionadas ao seu trabalho, na prática profissional, os enfermeiros encontram barreiras organizacionais, retrato de um sistema político em que os administradores superiores apresentam objetivos parcialmente conflitantes (REBEn, 2015). (A41)

Diversos enunciados sustentam a discursividade sobre fatores limitadores da autonomia do enfermeiro no gerenciamento do serviço, sendo eles: a falta de recursos humanos e materiais, a dependência de outros serviços, a ausência de prescrições médicas, o distanciamento entre enfermeiro/médico, bem como a falta de apoio institucional na aplicação de sanções ao funcionário e no gerenciamento de leitos das unidades. No tocante ao gerenciamento de leitos, um discurso destoa da regularidade apresentada, pois visibiliza o Núcleo Interno de Regulação de Leitos (NIR) como parceiro no gerenciamento da unidade. Ele corresponde ao Núcleo responsável pelo gerenciamento do acesso aos serviços de atenção aos usuários do SUS, internos e externos, do Hospital Universitário pesquisado, por meio da organização e gestão do fluxo interno, visando otimizar a utilização da capacidade instalada.

Gerenciamento de leitos não é responsabilidade nossa, é do NIR, mas temos autonomia de ajudar a gerenciar os leitos. Muitas vezes, organizamos todos os isolamentos e depois informamos para eles, porque o que eles querem é saber quantos leitos vagos irão ficar. (E7)

O que está me limitando é a questão da autonomia dos leitos, como a regulação dos leitos ampliou para todos os andares, perdemos um pouco essa autonomia de regular os leitos, os pacientes, as clínicas. (E15)

O que [...] poderia ser melhor trabalhado é a distância médico enfermeiro e também a questão de gerenciar a equipe. Aqui [...] trabalhamos muito com conscientização, [...] é um bom caminho, mas tenho comigo que, muitas vezes, você precisa de algum respaldo maior [...] para cobrar mais do funcionário. [...] Falta também [...] alguém que faça a ligação entre chefia [de enfermagem] e chefia [da medicina] [...] para uma melhor autonomia em relação ao paciente, por exemplo, o paciente irá fazer uma tomografia, só tomamos conhecimento no momento que o setor de tomografia entra em contato, poxa eu também estou no cuidado, eu também sou responsável. (E7)

A satisfação profissional também está atrelada à autonomia do enfermeiro, segundo visibilizado nos artigos analisados. Desta maneira, abre-se para discussão os seguintes enunciados:

Aspectos como a deficiência relacionada aos recursos humanos e materiais, a própria estrutura física da instituição, que não dispõe de acomodações apropriadas para os profissionais de enfermagem realizarem suas refeições e/ou descansarem, contribui para a insatisfação das servidoras (REBEn, 2005). (A26)

Investir em fatores que promovem o ambiente, considerando aspectos relacionais e de autonomia, e principalmente os aspectos estruturais de participação da enfermagem no controle das práticas, tomadas de decisões, gerenciamento e suporte organizacional para o trabalho, bem como o tempo de trabalho na UTI e disposição para o trabalho, promove a satisfação profissional (REBEn, 2017). (A42)

Face ao contexto apresentado, infere-se que investimentos no aprimoramento das condições e relações de trabalho, especialmente no ambiente de práticas da enfermagem, contribuem para a autonomia do enfermeiro e satisfação desse profissional. Os enfermeiros entrevistados não articularam a autonomia à satisfação profissional.

A interface da visibilidade do enfermeiro no desenvolvimento da autonomia

Outra interface da autonomia profissional do enfermeiro apontada nos artigos foi a visibilidade da profissão frente à equipe de saúde e a sociedade. No final do século XX, foram identificados discursos abordando aspectos influentes na invisibilidade do enfermeiro e, concomitantemente, na sua autonomia profissional, a saber: o desconhecimento das atribuições, o afastamento do seu objeto de trabalho e a delegação da sua prática profissional, a falta de produção de conhecimento científico, a fragilidade política, a busca por reconhecimento, os diferentes graus de formação entre a equipe de enfermagem e a dependência do trabalho assalariado em instituições de saúde.

Já, no início do século XXI, alguns discursos se perpetuaram e outros se desvelaram, como a descontinuidade ao apontar que a autonomia pode ser efetivada por profissionais que, em seu cotidiano profissional, desenvolvam as atividades com criatividade, iniciativa, segurança, experiência e disposição para enfrentar desafios. E também na coparticipação durante a tomada de decisões e no conhecimento sobre os diferentes cenários de atuação do enfermeiro. Além disso, foi evidenciada a não articulação da autonomia com a visibilidade profissional pelos enfermeiros, tal como nos excertos dos artigos.

Nenhuma enfermeira tem dúvidas quanto ao que se espera dela em termos de postura e aparência pessoal, mas poucas sabem dizer quais são suas reais atribuições. O atrelamento às necessidades do sistema, entre outros, fez da enfermeira um profissional afastado do seu próprio objeto de trabalho, ligada ao controle dos demais componentes da equipe, através da administração, já não produz o conhecimento necessário à sua prática, que também já não é sua, pois está delegada. Encontra-se assim a profissional enfermeira: sem identidade, não produzindo um conhecimento que propulsione a profissão ao encontro das necessidades da maioria da população, frágil e desestruturada politicamente (REBEn, 1989). (A9)

Outro aspecto relevante trata dos diferentes graus de formação da equipe de Enfermagem, dentre os quais a sociedade, de um modo geral não percebe a diferença, quando é atendida por esses profissionais (REBEn, 2005). (A25)

Se desejamos uma profissão autônoma, livre do comando de outros, trabalhando a interdisciplinaridade, precisamos criar meios diferentes dos que já existem para transformar a nossa prática e sermos reconhecidos pela sociedade. [...] Consideramos que este possa provar que existem instrumentos, como a criatividade, e características, como a disposição para enfrentar desafios, que contribuem para o desenvolvimento de uma prática profissional autônoma (REBEn, 1998). (A17)

O fenômeno da visibilidade profissional aparece como emergente das manifestações de conhecimento técnico-científico por parte do ser enfermeiro, na coparticipação na tomada das decisões referentes ao cliente ou ao gerenciamento da unidade e na forma humanizada de cuidar. [...] Atributos como iniciativa, experiência e segurança que ele transmite à equipe foram apontados como fatores de visibilidade (REBEn, 2007). (A31)

Dado o exposto, foi possível constatar que a autonomia na prática profissional do enfermeiro perpassa pela centralidade do saber, pelo posicionamento político e pelas condições de trabalho.

DISCUSSÃO

A discussão da formação discursiva “a interface do conhecimento no desenvolvimento da autonomia”, apresenta como debate a importância do enfermeiro se constituir como sujeito do conhecimento e sujeito sociopolítico, uma vez que o saber articulado à prática produz condições de possibilidade para o empoderamento desse profissional e contribui para a legitimidade e visibilidade da profissão.

Diante do que foi discutido, os enfermeiros entrevistados não vinculam a prática autônoma com questões políticas, tal como visibilizado nos artigos. Isso possivelmente se deve ao fato de o enfermeiro não se identificar como um sujeito sociopolítico e não reconhecer seu espaço de atuação como um espaço ético-político propício à atuação ética.

Resultado semelhante foi encontrado na literatura, em estudo cujo objetivo era construir e validar um guia de atributos da competência política do enfermeiro. Foi observado que os enfermeiros possuem uma percepção ainda limitada e fragmentada acerca do que é competência política, sem articulação desta com a prática, o que caracteriza uma classe profissional relativamente despreparada, com vocação direcionada ao saber fazer da técnica(1111 Melo WS, Oliveira PJF, Monteiro FPM, Santos FCA, Silva MJN, Calderon CJ, et al. Guide of attributes of the nurse’s political competence: a methodological study. Rev Bras Enferm. 2017;70(3):526-34. doi: 10.1590/0034-7167-2016-0483
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0...
).

Os resultados desta pesquisa demonstraram que a fragmentação da formação profissional e a desarmonia entre os propósitos acerca da atuação do enfermeiro para o ensino e para o mercado de trabalho contribuem para o distanciamento do enfermeiro como sujeito político. Como contraponto, nos excertos, o aperfeiçoamento profissional por meio de cursos e capacitações foi apontado como meio de conceder condições para uma conduta ética do enfermeiro.

O momento da graduação é oportuno e fecundo para trabalhar e desenvolver a competência política no aluno, pois é durante a formação que se constrói e lapida a figura do futuro profissional, agregando valores e os mais diversos saberes. Apesar de a dimensão técnica compor boa parte da matriz curricular dos cursos de enfermagem, o sistema de saúde necessita e exige competências políticas e éticas dos profissionais, as quais favorecem o reconhecimento do enfermeiro como profissional completo e competente(1212 Bellaguarda MLR, Padilha MI, Pereira Neto AF, Pires D, Peres MAA. Reflexão sobre a legitimidade da autonomia da enfermagem no campo das profissões de saúde à luz das ideias de Eliot Freidson. Esc Anna Nery. 2013;17(2):369-74. doi: 10.1590/S1414-81452013000200023
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).

No tocante à dissonância entre o ensino universitário e o mercado de trabalho, essa diferenciação ocorre frequentemente, pois a academia busca formar profissionais pensantes e com forte capacidade para exercer sua cidadania. Já o mercado de trabalho objetiva indivíduos com notável destreza manual, velocidade e precisão na execução das tarefas que lhes são atribuídas(1313 Santos EI, Gomes AMT, Oliveira DC, Marques SC, Bernardes MMR. Challenges and confrontations in care by nurses: a study of social representations. Online Braz J Nurs [Internet]. 2014;13(2):207-18. doi: 10.5935/1676-4285.20144365
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).

Nesta perspectiva, pesquisadores(1414 Souza e Souza LP, Silva WSS, Mota EC, Santana JMF, Siqueira LG, Silva CSO, et al. Os desafios do recém-graduado em Enfermagem no mundo do trabalho. Rev Cuba Enferm [Internet]. 2015 [cited 2018 Oct 15];30(1):4-18. Available from: http://www.revenfermeria.sld.cu/index.php/enf/article/view/127/79. Portuguese.
http://www.revenfermeria.sld.cu/index.ph...
) evidenciam a necessidade de reformular a formação acadêmica, não apenas referente à revisão de conteúdos, mas também na construção de estratégias de integração dos estudantes ao mundo do trabalho, antecipando o que encontrarão e como agir diante desta transição. É preciso pensar uma formação orientada para o trabalho, que integre habilidades teóricas e práticas, atitudes e valores éticos, e ao mesmo tempo contemple conhecimentos gerais e específicos(1515 Mota DB, Gomes AMT, Silva ACSS, Ramos RS, Nogueira VPF, Belém LS. Representações sociais da autonomia do enfermeiro para acadêmicos de enfermagem. Rev Cuid. 2018;9(2):2215-232. doi: 10.15649/cuidarte.v9i2.528
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-1616 Georgiou E, Papathanassoglou EDE, Pavlakis A. Nurse-physician collaboration and associations with perceived autonomy in Cypriot critical care nurses. Nurs Crit Care. 2017;22(1):29-39. doi: 10.1111/nicc.12126
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).

Em suma, a articulação da efetivação da autonomia profissional ao domínio do conhecimento produz verdades que subjetivam e governam o modo de ser e de agir do enfermeiro e legitimam a relação de saber/poder, por meio da qual o sujeito enfermeiro é constituído. O saber confere empoderamento ao sujeito enfermeiro e permite a subjetivação de um discurso verdadeiro em uma prática e em um exercício de si sobre si(88 Foucault M. A hermenêutica do sujeito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2014. 518p.).

A constituição do enfermeiro em sujeito autônomo também decorre das condições em que esse profissional desenvolve o seu fazer, já que as práticas assistenciais no contexto hospitalar são permeadas por verdades instituídas e relações de poder, o que pode ser visibilizado pela formação discursiva “a interface das condições de trabalho no desenvolvimento da autonomia”.

Ao analisar as verdades dessa rede discursiva, percebe-se a continuidade das condições laborais que repercutem negativamente no governo de si do enfermeiro. Conforme os discursos, as verdades que circulam apontam a predominância da atuação institucionalizada e assujeitada, que sustenta o modelo hegemônico de saúde, e ambos esses fatores são limitadores de uma atuação ética.

Em estudo cujo objetivo foi refletir sobre a autonomia profissional da enfermeira no contexto do modelo assistencial biomédico, os autores concluíram que a autonomia profissional da enfermeira é limitada e condicionada pelas demandas do trabalho médico(66 Melo CMM, Florentino TC, Mascarenhas NB, Macedo KS, Silva MC, Mascarenhas SN. Professional autonomy of the nurse: some reflections. Esc Anna Nery. 2016;20(4):e20160085. doi: 10.5935/1414-8145.20160085
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). A concretização da autonomia profissional da enfermeira ocorrerá a partir da construção de um campo de saber próprio que não seja subsidiário da prática médica.

A aparente permissividade nos modos de ser e agir do enfermeiro no contexto hospitalar, associada ao distanciamento do seu objeto de trabalho, resulta em desmotivação, tensões e conflitos. Assim sendo, emerge dos discursos, como possibilidade ética do sujeito enfermeiro, o resgate das práticas dos cuidados diretos, já que esses não são desempenhados em sua plenitude no cotidiano da profissão.

Os discursos também trazem à tona os conflitos internos existentes entre a equipe de enfermagem, os quais estão relacionados especialmente à competição de saberes e ao despreparo do enfermeiro no gerenciamento de conflitos. O profissional de nível médio não se adapta ao fato de receber ordens e ser cobrado em suas atribuições, enquanto o profissional de nível superior reconhece no comportamento dos subordinados essa resistência e julga-a como algo prejudicial à relação interna da equipe(1717 Araújo MPS, Medeiros SM de, Quental LLC. Interpersonal relations among nursing staff: fragilities and strengths. Rev Enferm UERJ [Internet]. 2016;24(5):e7657. doi: 10.12957/reuerj.2016.7657
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). Daí o debate que a hierarquização do conhecimento constitui uma fonte geradora dos conflitos entre os profissionais e repercute negativamente nos modos de subjetivação do enfermeiro.

O gerenciamento do serviço pelo enfermeiro também foi destaque entre os discursos analisados. Compreender a interligação entre as ferramentas de gestão e cuidado permitirá que o enfermeiro se reestruture e atue de forma integral nos diversos cenários de atuação da enfermagem. A partir de um “novo” pensamento sobre quais são as atribuições da enfermagem, é possível aprimorar a prática e, assim, evidenciar a singularidade da atuação da enfermagem como profissão do cuidado(1818 Siewert JS, Rodrigues DB, Malfussi L, Andrade SR. Management of Integral Care in Nursing: reflections under the perspective of Complex Thinking. Rev Min Enferm. 2017;21:e-1047. doi: 10.5935/1415-2762.20170057
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), favorecer a satisfação profissional e a prática autônoma.

As características do ambiente influenciam os resultados da satisfação profissional e práticas do cuidado de enfermagem(1919 Bacha AM, Grassiotto OR, Gonçalves SP, Higa R, Fonsechi-Carvasan GA, Machado HC, et al. Job satisfaction of nursing staff in a university hospital. Rev Bras Enferm. 2015;68(6):819-26. doi: 10.1590/0034-7167.2015680619i
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). Portanto, investir em fatores que promovam o ambiente, considerando aspectos relacionais e de autonomia e, principalmente, os aspectos estruturais de participação da enfermagem no controle das práticas, tomadas de decisões, gerenciamento e suporte organizacional para o trabalho, promove a satisfação profissional(2020 Oliveira EM, Barbosa RL, Andolhe R, Eiras FR, Padilha KG. Nursing practice environment and work satisfaction in critical units. Rev Bras Enferm. 2017;70(1):73-80. doi:10.1590/0034-7167-2016-0211
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) e viabiliza a valorização do fazer e a visibilidade profissional do enfermeiro.

Nesse panorama, a formação discursiva “a interface da visibilidade do enfermeiro no desenvolvimento da autonomia” é trazida para discussão. A literatura evidencia uma frágil valorização social e visibilidade mediática do trabalho da enfermagem(2121 Fonseca LF, Silva MJP. Desafiando a imagem milenar da enfermagem perante adolescentes pela internet: impacto sobre suas representações sociais. Ciênc Cuid Saúde. 2012;11(Supl):54-62. doi: 10.4025/cienccuidsaude.v11i5.17052
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), fato que contribui para o fortalecimento das relações de poder existentes nas relações de trabalho desse sujeito.

Ao avaliar o trabalho do enfermeiro em um cenário hospitalar sob um olhar foucaultiano, as forças institucionais demonstram, em geral, mais força do que as iniciativas do trabalhador(2222 Rezende MCC, Ferreira Neto JL. Processos de subjetivação na experiência de uma equipe de enfermagem em oncologia. Psicol Saúde [Internet]. 2013 [cited 2018 Jun 09];5(1):40-8. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rpsaude/v5n1/v5n1a07.pdf
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). Infere-se que isto ocorra especialmente pelo fato do hospital ser uma instituição permeada por normas, rotinas e hierarquias, o que faz com que as relações de poder se produzam e se reproduzam(2323 Baptista MKS, Santos RM, Duarte SJH, Comassetto I, Trezza MCSF. O paciente e as relações de poder-saber cuidar dos profissionais de enfermagem. Esc Anna Nery. 2017;21(4):e20170064. doi: 10.1590/2177-9465-EAN-2017-0064
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). O trabalho do enfermeiro no ambiente hospitalar é permeado por formas de exercício de poder que normalizam o seu comportamento, dificultam a sua reinvenção em sujeito autônomo e esteta de si, uma vez que a estrutura hospitalar revela-se como um núcleo de dominação de forte intensidade(2222 Rezende MCC, Ferreira Neto JL. Processos de subjetivação na experiência de uma equipe de enfermagem em oncologia. Psicol Saúde [Internet]. 2013 [cited 2018 Jun 09];5(1):40-8. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rpsaude/v5n1/v5n1a07.pdf
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). Mesmo assim, visibilizam-se espaços de resistências, capazes de enfraquecer a hegemonia tradicional nas instituições de saúde, possibilitando que o enfermeiro tenha a sua governabilidade reinventada.

Limitações do estudo

A limitação deste estudo foi o fato de ter sido desenvolvido apenas em lócus hospitalar. Sugere-se, assim, a construção de novos estudos com esse enfoque temático tanto na área hospitalar quanto na atenção primária de saúde, de modo a proporcionar o aprofundamento desse conhecimento de acordo com as diferentes realidades.

Contribuições para a área da Enfermagem

Este estudo é relevante para a área da Enfermagem, pois subsidiará outras pesquisas, visando aprofundar o debate sobre as questões associadas aos diferentes modos de ser enfermeiro no ambiente hospitalar. Além disso, auxiliará os enfermeiros assistenciais a repensarem o seu fazer profissional, de modo a transformar a sua realidade e assim, legitimar o cuidado ético de si mesmo e uma prática profissional mais autônoma.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os discursos que circulam como verdade mostram o conhecimento como condição sine qua non para desenvolver a autonomia do enfermeiro no ambiente hospitalar, assim como as interfaces das condições de trabalho e da visibilidade exercem poder sobre a prática autônoma do enfermeiro.

Apesar dos múltiplos fatores que contribuem para o assujeitamento do enfermeiro no serviço hospitalar, foram identificados aspectos capazes de potencializar a prática autônoma desse profissional e assim, mobilizar as relações de poder instituídas no seu ambiente laboral. O investimento em espaços voltados para o debate das interfaces da autonomia do enfermeiro, tanto no meio acadêmico quanto nas instituições de saúde, poderia suscitar novas posturas e favorecer a transformação da prática de enfermagem. Além disso, poderia transmutar as relações de poder instituídas nesse cenário e potencializar o exercício da autonomia do enfermeiro.

  • FOMENTO
    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Fátima Helena Espírito Santo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    24 Maio 2019
  • Aceito
    21 Nov 2019
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