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Mulheres negras na história da enfermagem: a competência cultural na trajetória de Maria Barbosa Fernandes

RESUMO

Objetivos:

conhecer a trajetória profissional da enfermeira negra Maria Barbosa Fernandes e analisar elementos de sua prática profissional a partir do modelo de competência cultural de Campinha-Bacote.

Métodos:

estudo histórico-social com análise dos achados à luz do Modelo de Competência Cultural.

Resultados:

Maria Barbosa foi a primeira mulher negra a diplomar-se enfermeira na Escola de Enfermagem Carlos Chagas (1935-1938), e a documentação sobre a sua história permitiu inferir a vivência de discriminação e invisibilidade. Entretanto, sua trajetória profissional foi marcada por cuidados atentos às singularidades e à realidade sociocultural dos indivíduos, com destaque para a atuação em cenários de vulnerabilidade.

Considerações Finais:

o pareamento da temática da mulher negra na enfermagem ao referencial de Competência Cultural consiste em um convite à valorização da diversidade na profissão e à busca de avançar em direção ao cuidado comprometido com a superação de desigualdades, por meio de práticas inclusivas e cuidados culturalmente sensíveis.

Descritores:
História da Enfermagem; Educação em Enfermagem; Competência Cultural; Mulheres; Fatores Socioeconômicos

ABSTRACT

Objectives:

to know the professional trajectory of the black nurse Maria Barbosa Fernandes and to analyze elements of her professional practice based on the cultural competence model of CampinhaBacote.

Methods:

historical-social study with an analysis of the findings in light of the Cultural Competence model.

Results:

Maria Barbosa was the first black woman to earn a nursing degree at the Escola de Enfermagem Carlos Chagas (Carlos Chagas Nursing School) (1935-1938), and the documentation about her history allowed us to infer the experience of discrimination and invisibility. However, her professional trajectory was marked by careful attention to the singularities and the sociocultural reality of individuals, with an emphasis on acting in vulnerable scenarios.

Final Considerations:

the pairing of the theme of black women in nursing with the reference of Cultural Competence consists of an invitation to value diversity in the profession and seek to move towards care committed to overcoming inequalities, through inclusive practices and culturally sensitive care.

Descriptors:
History of Nursing; Education, Nursing; Cultural Competency; Women; Socioeconomic Factors

RESUMEN

Objetivos:

conocer la trayectoria profesional de la enfermera negra Maria Barbosa Fernandes y analizar elementos de su práctica profesional a partir del modelo de competencia cultural de Campinha-Bacote.

Métodos:

estudio histórico-social con análisis de los hallazgos a la luz del Modelo de Competencia Cultural.

Resultados:

Maria Barbosa ha sido la primera mujer negra a diplomarse enfermera en la Escuela de Enfermaría Carlos Chagas (1935-1938), y la documentación sobre su historia permitió inferir la vivencia de discriminación e invisibilidad. Entretanto, su trayectoria profesional ha sido marcada por cuidados atentos a las singularidades y a la realidad sociocultural de los individuos, con destaque para la actuación en escenarios de vulnerabilidad.

Consideraciones Finales:

el emparejamiento de la temática de la mujer negra en la Enfermaría al referencial de Competencia Cultural consiste en una invitación a la valorización de la diversidad en la profesión y a la búsqueda de avanzar en dirección al cuidado comprometido con la superación de desigualdades, por medio de prácticas inclusivas y cuidados culturalmente sensibles.

Descriptores:
Historia de la Enfermaría; Educación en Enfermaría; Competencia Cultural; Mujeres; Factores Socioeconómicos

INTRODUÇÃO

As desigualdades sociais, nos diversos setores e aspectos, permeiam a história da sociedade brasileira. No setor saúde, especialmente, reconhecer as diferentes necessidades dos grupos sociais mediante políticas universais e redistributivas é assumir a noção de equidade defendida pela Reforma Sanitária Brasileira(11 Miranda GMD, Mendes ACG, Silva ALA. Public policies challenges on the background of demographic transition and social changes in Brazil. Interface. 2017;21(61):309-20. doi: 10.1590/1807-57622016.0136
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).

Como forma de enfrentamento das desigualdades, encontram-se diversas estratégias, com destaque para a atuação da enfermagem. Em uma perspectiva de cuidado enquanto prática social, o trabalho da enfermagem consiste em reduzir riscos, orientar, educar, formar, informar, fomentar a participação social na elaboração de políticas públicas e participar dos processos de autocuidado, considerando sujeitos que são abertos, ecológicos, em equilíbrio, com capacidade de cuidar de si: autoeco-organizadores(22 Salviano MEM, Nascimento PDFS, Paula MA, Vieira CS, Frison SS, Maia MA, Souza KV, Borges EL. Epistemology of nursing care: a reflection on its foundations. Rev Bras Enferm. 2016;69(6):1172-7. doi: 10.1590/0034-7167-2016-0331
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0...
-33 Queirós PJP. Reflections for a nursing epistemology. Texto Contexto Enferm. 2014 [cited 2019 Mar 13]; 23(3):776-81. doi: 10.1590/0104-07072014002930013
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).

Desse modo, ao levarmos em conta que a atuação da enfermagem é marcada por diversas desigualdades que permeiam a realidade social dos sujeitos assistidos, o referencial teórico de Competência Cultural se destaca. Ademais, considera-se que a diversidade entre as(os) líderes de enfermagem é essencial para desenvolver práticas inclusivas e fornecer cuidados culturalmente sensíveis(44 Jefferies k, Goldberg L, Aston M, Murphy GT. Understanding the invisibility of black nurse leaders using a black feminist poststructuralist framework. J Clin Nurs. 2018 [cited 2019 Mar 13];27(15-16):3225-34. doi: 10.1111/jocn.14505
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).

Assim, a Competência Cultural tem sido estudada como uma abordagem para reduzir as desigualdades de saúde por meio de serviços efetivos e culturalmente responsivos à diversidade étnica e cultural dos sujeitos(55 Campinha-Bacote J. The process of Cultural Competence in the Delivery of Healthcare Services: a model of care. J Transcult Nurs. 2002 [cited 2019 Mar 13];13(3):181-4. doi: 10.1177/10459602013003003
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). Inicialmente, os estudos aportados pelo referencial de Competência Cultural encontravam-se focados em diferenças raciais e étnicas, porém passou-se a englobar também outros grupos populacionais marginalizados em risco de estigmatização, além da raça e etnia, ou que têm diferenças nas necessidades de cuidados de saúde que resultem em iniquidades(66 Moita MAG, Silva AL. Modelos de Competência Cultural: Uma Análise Crítica. Pensar Enferm [Internet]. 2016 [cited 2019 Mar 13];20(2):72-88. Available from: http://pensarenfermagem.esel.pt/files/Doc4_72_88.pdf
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).

Moita e Silva (2016), a partir do estudo crítico realizado acerca de modelos teóricos e metodológicos de Competência Cultural existentes, enfatizam o aspecto processual do desenvolvimento dessa competência, de modo contínuo, dinâmico e em permanente evolução(66 Moita MAG, Silva AL. Modelos de Competência Cultural: Uma Análise Crítica. Pensar Enferm [Internet]. 2016 [cited 2019 Mar 13];20(2):72-88. Available from: http://pensarenfermagem.esel.pt/files/Doc4_72_88.pdf
http://pensarenfermagem.esel.pt/files/Do...
).

Entre os referenciais de Competência Cultural, encontra-se o modelo proposto por CampinhaBacote, que se desenvolve no escopo da prestação de cuidados de saúde e reúne os campos de Enfermagem Transcultural, Antropologia Médica e Aconselhamento Multicultural. Nesse modelo, a Competência Cultural é compreendida como um processo, a partir de cinco dimensões em integração, a saber: cultural awareness, cultural knowledge, cultural skill, cultural encounters e cultural desire (termos mantidos em inglês de modo a ser fiel à referência original). Tais elementos estão relacionados, e não há uma definição estática para cada um(55 Campinha-Bacote J. The process of Cultural Competence in the Delivery of Healthcare Services: a model of care. J Transcult Nurs. 2002 [cited 2019 Mar 13];13(3):181-4. doi: 10.1177/10459602013003003
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).

Por meio de uma releitura de tal modelo, pode-se compreender que cultural awareness resulta da forma como um indivíduo examina sua experiência profissional e pessoal, identificando preconceitos e suposições; cultural knowledge está relacionado ao aprendizado sobre a diversidade cultural dos grupos; cultural skill consiste no desenvolvimento de habilidades para coletar informações culturais e atuar de modo culturalmente relevante; o termo cultural encounters é relativo à interação entre grupos culturalmente diversos; e cultural desire seria como uma automotivação para tornar-se culturalmente competente(77 Kohlbry PW. The Impact of International Service-Learning on Nursing Students’ Cultural Competency. J Nurs Scholarsh. 2016[cited 2019 Mar 13];48(3):303-11. doi: 10.1111/jnu.12209
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). A leitura de Gonzáles (2013) do modelo de Campinha-Bacote auxilia na integração das diversas dimensões a partir do destaque dado à cultural desire, ao modo genuíno de motivação da pessoa ou profissional(88 Marrero González, CM. Enfoque del modelo de Purnell y Campinha-Bacote en la práctica de los profesionales sanitarios. Rev Enferm. 2013 [cited 2019 nov 26];7(3). Available from: http://ene-enfermeria.org/ojs/index.php/ENE/article/view/278.
http://ene-enfermeria.org/ojs/index.php/...
). A motivação, por sua vez, mobiliza as demais dimensões; a utilização e o desenvolvimento de habilidades e conhecimentos culturais; e, ainda, o movimentar-se na direção de (auto)encontros.

Nesse contexto delineado entre a enfermagem, as desigualdades e a Competência Cultural, destaca-se - na Escola de Enfermagem Carlos Chagas (EECC), que deu origem à Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (EEUFMG) - a inserção da egressa Maria Barbosa Fernandes (no período de 1935-1938), mulher negra, que se dedicou a cuidar de públicos marginalizados e cuja presença marca o início da flexibilização do espaço de ensino para a inserção das mulheres fora do padrão para a época na enfermagem profissional mineira. O perfil dessa exaluna da EECC chamou atenção das pesquisadoras por ter sido a primeira negra a se formar na Escola e por sua trajetória profissional ser marcada por cuidados de enfermagem sensíveis à singularidade e à realidade sociocultural dos seres humanos.

Estudar e compreender a enfermagem a partir dos estereótipos de gênero é um movimento ainda incipiente nas pesquisas brasileiras; e, a partir disso, empreender este estudo constituiu um importante desafio a ser transgredido. Acredita-se que a compreensão da trajetória histórica de Maria Barbosa permitirá refletir sobre a importância do desenvolvimento da Competência Cultural para a formação e prática de enfermeiros.

OBJETIVOS

Conhecer a trajetória profissional da enfermeira negra Maria Barbosa Fernandes e analisar elementos de sua prática profissional a partir do modelo de Competência Cultural de Campinha-Bacote(55 Campinha-Bacote J. The process of Cultural Competence in the Delivery of Healthcare Services: a model of care. J Transcult Nurs. 2002 [cited 2019 Mar 13];13(3):181-4. doi: 10.1177/10459602013003003
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).

MÉTODOS

Aspectos éticos

O estudo centrou-se em fontes documentais disponíveis para consulta pública, sendo isento do parecer de um Comitê de Ética em Pesquisa.

Tipo de estudo

Pesquisa de natureza histórico-social, que contou com análise qualitativa dos achados. Ela faz parte dos estudos que vêm sendo desenvolvidos pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Ensino e Prática de Enfermagem (NUPEPE). O NUPEPE inclui linhas de pesquisa concernentes ao estudo da formação e prática de enfermagem, bem como vem envidando esforços em estudos no âmbito das desigualdades sociais e competências para a formação do enfermeiro, inclusive na dimensão histórica da profissão.

Procedimentos metodológicos

A aproximação com os referenciais de Competência Cultural fez com que as pesquisadoras, as quais também trabalham com estudos históricos, se debruçassem sobre o acervo do Centro de Memória da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (CEMENF-UFMG) e percebessem que o perfil de Maria Barbosa era um bom exemplo de como enfermeiros, impactados por questões sociais, podem agregar competências para diminuição das desigualdades.

Cenário do estudo

O cenário de estudo foi a cidade de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, nos anos de 1930, 1940 e 1950. É nesse contexto que se passam os principais acontecimentos analisados na trajetória profissional de Maria Barbosa Fernandes: a Escola de Enfermagem Carlos Chagas, as instituições em que atuou como enfermeira e o seu destacado trabalho junto às prostitutas da região central da cidade.

Fonte de dados

Os dados foram coletados a partir de três documentos principais que estão sob a guarda do Centro de Memória da Escola de Enfermagem da UFMG: Ficha de inscrição de Maria Barbosa Fernandes na Escola de Enfermagem Carlos Chagas (1935)(99 Fernandes MB. Ficha de Inscrição na Escola de Enfermagem Carlos Chagas. Belo Horizonte (MG): Centro de Memória da Escola de Enfermagem da UFMG; 1935.); entrevista cedida pela egressa em 1998(1010 Fernandes MB. Entrevista. Belo Horizonte (MG): Centro de Memória da Escola de Enfermagem da UFMG; 1998; I(IV):22.); Jornal Cinco pras Dez, produzido pelas alunas internas da EECC nas décadas de 1930 e 1940(1111 Memorial Maria Barbosa Fernandes. Jornal Cinco praz dez. Escola de Enfermagem Carlos Chagas. Belo Horizonte (MG): Centro de Memória da Escola de Enfermagem da UFMG;1938; I(VI):3.).

Coleta e organização dos dados

De posse dos documentos, buscou-se destacar as contribuições de Maria Barbosa mais significativas para a qualificação do cuidado de enfermagem culturalmente competente. A consulta ao acervo do CEMENF foi feita no segundo semestre do ano de 2018.

Análise dos dados

Após levantamento de fontes documentais que possibilitaram investigar o passado da primeira mulher negra formada na EEUFMG/EECC, realizou-se a análise dos achados à luz do Modelo de Competência Cultural(55 Campinha-Bacote J. The process of Cultural Competence in the Delivery of Healthcare Services: a model of care. J Transcult Nurs. 2002 [cited 2019 Mar 13];13(3):181-4. doi: 10.1177/10459602013003003
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).

RESULTADOS

A Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais originou-se da EECC. A Escola Carlos Chagas foi criada em 07 de julho de 1933, no âmbito do estado de Minas Gerais e procurou seguir os parâmetros da escola modelo de enfermagem moderna no país, a Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN), conquistando a equiparação ao padrão Anna Nery em 1942(1212 Santos FBO, Marques RDC. Nurses graduated from Escola de Enfermagem Carlos Chagas: Work areas. 1936-1948. Esc Anna Nery. 2015[cited 2019 Mar 13];19(2):363-8. doi: 10.5935/1414-8145.20150050
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-1313 Santos FBO, Carregal FAS, Rodrigues RD, Marques RDC,Sena RRD. História da enfermagem brasileira (1950-2004): o que tem sido discutido na literatura? Rev Enferm Cent-Oeste Min. 2018[cited 2019 Mar 13];8(e):1-14. doi: 10.19175/recom.v7i0.1876
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). Ao seguir o padrão Anna Nery, a EECC modelou o seu escopo de alunas ingressas para a não aceitação nem de homens nem mulheres negras, perfis que estavam presentes na enfermagem brasileira antes da chegada da Missão Parsons. Desse modo, os critérios de seleção consideravam um arquétipo nightingaleano da enfermeira-modelo: mulheres brancas, jovens, classe média e formalmente instruídas(1414 Lombardi MR, Campos VP. A enfermagem no Brasil e os contornos de gênero, raça/cor e classe social na formação do campo profissional. Rev ABET [Internet]. 2018[cited 2019 Mar 13];17(1):28-46. doi: 10.22478/ufpb.1676-4439.2018v17n1.41162
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).

Entretanto, as expectativas de adesão dessa camada social na EECC não foram cumpridas desde a sua criação. A necessidade de formar enfermeiras para o suprimento das demandas da saúde pública brasileira obrigou as escolas de enfermagem a aceitarem mulheres fora do padrão para a época, ampliando, assim, a possibilidade de as mulheres negras ingressarem nas escolas de enfermagem, entre elas a EECC.

Foi nesse contexto que se inseriu Maria Barbosa Fernandes. Ela nasceu em 15 de setembro de 1918 em Santa Bárbara, município do interior de Minas Gerais. Não tinha lembranças da terra natal, pois foi criada com as tias paternas em Belo Horizonte, onde cursou o primário (Grupo Escolar Barão de Macaúbas, bairro Floresta), o ginásio e o aperfeiçoamento em contabilidade. Seus pais permaneceram em Santa Bárbara (o pai trabalhava na estrada de ferro; eram cinco filhos: dois homens casados, duas mulheres solteiras e Maria Barbosa; após alguns anos, todos foram morar na capital de Minas Gerais). Solteira, relatou ter criado um filho adotivo. Era católica(99 Fernandes MB. Ficha de Inscrição na Escola de Enfermagem Carlos Chagas. Belo Horizonte (MG): Centro de Memória da Escola de Enfermagem da UFMG; 1935.

10 Fernandes MB. Entrevista. Belo Horizonte (MG): Centro de Memória da Escola de Enfermagem da UFMG; 1998; I(IV):22.
-1111 Memorial Maria Barbosa Fernandes. Jornal Cinco praz dez. Escola de Enfermagem Carlos Chagas. Belo Horizonte (MG): Centro de Memória da Escola de Enfermagem da UFMG;1938; I(VI):3.).

Ficou sabendo do Curso de Enfermagem da EECC por meio de uma instrutora da Escola - Edelvira Costa Santos. O interesse veio pela curiosidade que sentiu ao ver o uniforme que Edelvira usava: “Essa freira é diferente.” Conta que, no início do curso, tinha medo dos cadáveres e nojo dos mesmos, pois tinha medo de morrer, mas depois se acostumou. As aulas eram conjuntas com os alunos da Faculdade de Medicina. Ela relatava que as alunas de Enfermagem ficavam muito compenetradas porque a diretora Laís Moura Netto dos Reys dizia: “Nada de gracinhas.” Os alunos da Medicina faziam graça e as chamavam de “Madalenas arrependidas” por causa do uso do véu(1010 Fernandes MB. Entrevista. Belo Horizonte (MG): Centro de Memória da Escola de Enfermagem da UFMG; 1998; I(IV):22.).

Incentivada por sua tia, fez os testes de seleção (teste de conhecimentos gerais) e ingressou na EECC em 1935. Nessa época, a Escola era paga, uma pequena importância, porém Maria, em sua entrevista, não informou quem arcava com a despesa(1010 Fernandes MB. Entrevista. Belo Horizonte (MG): Centro de Memória da Escola de Enfermagem da UFMG; 1998; I(IV):22.). Formou-se em 1938, ainda na gestão de Laís Moura Netto dos Reys. Enquanto era aluna, a EECC funcionou no Hospital São Vicente, atual Hospital das Clínicas da UFMG. As aulas teóricas eram dadas na Faculdade de Medicina, e ela fez estágio no Hospital São Vicente, na Santa Casa de Belo Horizonte, no Hospital de Pronto Socorro e no Dispensário de Tuberculose no Morro das Pedras(1010 Fernandes MB. Entrevista. Belo Horizonte (MG): Centro de Memória da Escola de Enfermagem da UFMG; 1998; I(IV):22.).

Após formada, fez estágio de saúde pública em Salvador (Bahia) com o apoio de Marina Andrade Resende (egressa da EECC e figura importante na Associação Brasileira de Enfermagem - ABEn). Trabalhou no Hospital de Pronto Socorro de Belo Horizonte, atual Hospital João XXIII, por 8 anos, orientando alunas da Escola, inclusive Waleska Paixão, posteriormente diretora da EECC, no período de 1940-1948(1010 Fernandes MB. Entrevista. Belo Horizonte (MG): Centro de Memória da Escola de Enfermagem da UFMG; 1998; I(IV):22.).

Mais tarde, trabalhou em saúde pública fazendo visitas domiciliares nos prostíbulos da Rua Guaicurus e Avenida Santos Dumont (na zona boêmia de Belo Horizonte) e orientando pacientes com doenças venéreas no Centro de Saúde Carlos Chagas. Relatou ter sido uma “experiência gratificante”:

Olha, na saúde pública eu comecei a trabalhar na Zona [risos] . O pessoal disse na época: Ih!, eu falei que nãotinha importância, tudo éserviço. [...] Eu tinha que ir nas casas todas, conversar com as mulheres, os hotéis. Porque na época, no cassino estava aparecendo muita gente doente. [...] Eu nãotenho o que reclamar, elas [as prostitutas] me atendiam muito bem. Às vezes falavam comigo: ‘Nãopode ficar aínão’ [para nãoser confundida com prostituta]. Aíeu falava assim: Eu posso, eu sou enfermeira, preciso conversar com ela [a prostituta] e todos jáme conhecem porque a gente ia com a roupa de véue tudo. [...] Quando eu chegava nos hotéis, procurava a gerente, a gerente chamava: Oh, a enfermeira estáaqui. Se estiver ocupada nãoabra a porta, quem estiver livre faz o favor de vir aqui. [...] Elas me contavam sobre a vida delas. Era uma miséria! Na Lagoinha [bairro de Belo Horizonte-MG] tinha um lugar chamado “Buraco Quente”. Láera ruim, viu? O esgoto todo arrebentado, caindo aquelasujeira toda, a gente nãosabia nem onde pisar. Arranjei atécasamento para elas mudarem de vida e tudo mais. Mas tinha umas que nãotinha jeito e acabavam morrendo, né?! Violentada, assassinada e tudo(1010 Fernandes MB. Entrevista. Belo Horizonte (MG): Centro de Memória da Escola de Enfermagem da UFMG; 1998; I(IV):22.).

Trabalhou também acompanhando alunas em estágios da Escola de Enfermagem Hugo Werneck, atual Escola de Enfermagem da Pontifícia Universidade Católica (PUC-MG). Teve também uma participação bastante ativa na Associação Brasileira de Enfermagem - Seção Minas Gerais (ABEn-MG) e aposentou-se em 1987, com 50 anos de profissão(1010 Fernandes MB. Entrevista. Belo Horizonte (MG): Centro de Memória da Escola de Enfermagem da UFMG; 1998; I(IV):22.).

Maria Barbosa relatava que havia outras negras na EECC, mas que foram desistindo, e ela foi a primeira negra a se formar. Apesar de afirmar em sua entrevista que não sofreu preconceito, o jornal da EECC, denominado Cinco pras Dez(1111 Memorial Maria Barbosa Fernandes. Jornal Cinco praz dez. Escola de Enfermagem Carlos Chagas. Belo Horizonte (MG): Centro de Memória da Escola de Enfermagem da UFMG;1938; I(VI):3.), faz menção a Maria Barbosa como um ser humano invisível, caçoando do fato de ela ser tímida e pouco falante:

DISCUSSÃO

Figura 1
Memorial, Maria Barbosa Fernandes

Maria Barbosa Fernandes: mulher negra e enfermeira

No contexto da enfermagem da primeira metade do século XX, vislumbrava-se a profissionalização da prática com o surgimento das primeiras escolas formais. Nessa época, traçouse um perfil ideal de estudantes no intuito de elevar o status do cuidado, anteriormente caracterizado por representações desqualificadoras. Assim, os critérios de inserção nos cursos incluíam: ser mulher branca, ter vocação para a arte do cuidado, possuir formação educacional e religiosa, preferencialmente cristã(1414 Lombardi MR, Campos VP. A enfermagem no Brasil e os contornos de gênero, raça/cor e classe social na formação do campo profissional. Rev ABET [Internet]. 2018[cited 2019 Mar 13];17(1):28-46. doi: 10.22478/ufpb.1676-4439.2018v17n1.41162
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).

Essas definições aumentaram as distâncias entre pessoas negras e brancas na enfermagem e, no processo de legitimar a profissão por meio da alta valorização do modelo nightingaleano, foram desconsideradas as práticas historicamente realizadas pelos negros cuidadores, raízes do cuidado no Brasil entre idosos, enfermos e crianças(1515 Campos PFS. O debate entre história e enfermagem pré-profissional nas aquarelas de Jean-Baptiste Debret (1816-1831). Cult Cuid. 2015[cited 2019 Mar 13];19(43):95-105. doi: 10.14198/cuid.2015.43.10
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).

Pires, Fonseca e Padilla (2016) realizaram uma reflexão sobre os estereótipos de gênero na profissão de enfermagem a partir da análise das desigualdades vividas por mulheres brasileiras em Portugal e por sua vez pela enfermagem brasileira. Em uma cultura judaico-cristã, que dicotomiza as variáveis frágil ou forte, vítima ou culpada e santa ou pecadora, a mulher brasileira é vislumbrada enquanto mulata, sensual, exótica e sexual; em contraponto à mulher portuguesa, associada à branquidade e às imagens de santidade e pureza(1616 Pires MRGM, Fonseca RMGS, Padilla B. Policy of care in the criticism towards gender stereotypes. Rev Bras Enferm. 2016[cited 2019 Mar 13];69(6):1156-62. doi: 10.1590/0034-7167-2016-0441
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).

De forma similar à inserção de mulheres brasileiras em Portugal, o ingresso de mulheres negras na profissão de enfermagem - sob influências de uma moral cristã - era considerado indesejado. Isso porque, sob o modelo nightingaleano, enquanto se almejavam representações brancas, santificadas, puras, associadas à benevolência, caridade e nobreza da enfermagem, as mulheres negras eram tomadas na qualidade de seres hipersexualizados, pecadores, fonte de perigo, de contágio de doenças, ignorantes, degenerados e indisciplinados(1515 Campos PFS. O debate entre história e enfermagem pré-profissional nas aquarelas de Jean-Baptiste Debret (1816-1831). Cult Cuid. 2015[cited 2019 Mar 13];19(43):95-105. doi: 10.14198/cuid.2015.43.10
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-1616 Pires MRGM, Fonseca RMGS, Padilla B. Policy of care in the criticism towards gender stereotypes. Rev Bras Enferm. 2016[cited 2019 Mar 13];69(6):1156-62. doi: 10.1590/0034-7167-2016-0441
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).

Nesse sentido, a EECC, sendo a primeira escola de enfermagem do Brasil situada fora do estado do Rio de Janeiro(1313 Santos FBO, Carregal FAS, Rodrigues RD, Marques RDC,Sena RRD. História da enfermagem brasileira (1950-2004): o que tem sido discutido na literatura? Rev Enferm Cent-Oeste Min. 2018[cited 2019 Mar 13];8(e):1-14. doi: 10.19175/recom.v7i0.1876
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), abriu espaço para alunas fora do padrão almejado à época. Assim, se inseriu Maria Barbosa Fernandes em 1935, sendo a primeira mulher negra a diplomar-se enfermeira na EECC. O processo de seleção da Escola não contava com um documento que descrevesse os critérios de avaliação do perfil pretendido, estando sujeito a uma avaliação subjetiva por parte da direção.

Embora não desejadas, as negras, pardas e mulatas começam a se matricular nas escolas de enfermagem. Em estudo com o recorte temporal de 1940 a 1960 sobre as características socioculturais das alunas da Escola Luiza de Marilac, a primeira no Rio de Janeiro para religiosas moldada de acordo com padrão oficial Anna Nery, constatou-se um índice elevado de evasão entre as alunas negras. Algumas se transferiam para outras escolas de enfermagem ou alegavam problemas de saúde para não continuar. Nenhuma foi excluída por problemas disciplinares ou por desempenho acadêmico insuficiente. As dificuldades financeiras precisam ser consideradas, ainda que não apareçam nos relatórios oficiais como motivo da desistência(1717 Ferreira LO, Brotto RB. Nordestinas and normalistas: A study on the sociocultural characteristics of the students of a Catholic nursing school in Brazil (1940-1960). Hist Unisinos [Internet]. 2018[cited 2019 Jun 11]; 22(4):579-591. doi: 10.4013/htu.2018.224.06
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).

A abertura para alunas divergentes do padrão desejado para a época está contextualizada pelo desenvolvimento da saúde pública, o que gerou alta demanda por profissionais. O contexto nacional pedia reformas nesse campo, que enfrentava um quadro sanitário dramático.

Em prol de melhorar a saúde pública no país, o governo de Getúlio Vargas (1930-1945) investiu em estratégias políticas, formativas e em serviços nacionais responsáveis pelas campanhas de combate às endemias. Uma importante estratégia utilizada foi o investimento na formação de médicos sanitaristas e enfermeiros, com o intuito de prevenir e combater as doenças que afligiam a população da época (tuberculose, malária, febre amarela e peste)(1212 Santos FBO, Marques RDC. Nurses graduated from Escola de Enfermagem Carlos Chagas: Work areas. 1936-1948. Esc Anna Nery. 2015[cited 2019 Mar 13];19(2):363-8. doi: 10.5935/1414-8145.20150050
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). Esse contexto é o cenário vivenciado por Maria Barbosa. Vale destacar que suas características e as necessidades de formação de enfermeiras impostas por tal conjuntura se sobrepuseram ao preconceito, contribuindo para a entrada dela no curso de Enfermagem da EECC.

Maria Barbosa era solteira, católica, nasceu no interior de Minas Gerais, mas foi criada na capital do estado. Cursou Enfermagem num período em que havia a necessidade de uma contribuição financeira para pagar os estudos na EECC - e, importante destacar, em um momento histórico no qual a grande preocupação das mulheres era arranjar um bom casamento e ser mãe(1818 Vasconcelos MCC. Uma mulher educada no oitocentos: a escrita feminina no Diário da Viscondessa de Arcozelo. Revista Educação em Questão.2015[cited 2019 Mar 13];53(39):104-31. doi: 10.21680/1981-1802.2015v53n39ID8522
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). Maria Barbosa desafiou os padrões estabelecidos ao adotar um filho e buscar a profissão na enfermagem, ainda que por “curiosidade” e incentivo familiar.

Acerca da posição social de Maria Barbosa como mulher negra, estudos das Ciências Sociais apontam os efeitos da globalização e consequentemente da colonização sobre as relações de poder e desigualdades de gênero e raça. A entrada do homem branco europeu nos países colonizados resultou no posicionamento das mulheres e dos negros(as) nativos como seres não humanos(1919 Lugones M. Rumo a um feminismo descolonial. Est Fem [Internet]. 2014 [cited 2019 Aug 11];22(3):935-52. Available from: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/36755/28577
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). Além disso, o capitalismo, ao ser fundado na exploração dos povos e da natureza, está associado a um contexto antropológico em que “a mulher está para o homem, assim como a natureza está para a cultura”(2020 Ortner Sherry B. Está a mulher para o homem assim como a natureza para a cultura? In: Rosaldo, Michelle Zimbalist; Lamphere, Louise. A Mulher, a cultura e a sociedade [Internet]. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1979 [cited 2019 Nov 26];95-120. Available from: http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/19074
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). Importante demarcar que as estudiosas citadas neste parágrafo não entendem que a desigualdade é um produto isolado do colonialismo/globalização, mas que esses movimentos tiveram efeitos sobre o fenômeno da desigualdade de gênero e raça.

Considera-se ainda que a posição ocupada na sociedade é tangida pelo cruzamento de diversos marcadores de opressão sobre os corpos das mulheres, em especial raça/cor e orientação sexual(2121 Davis A. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo Editorial; 2016. 248p.), mas incluindo ainda aspectos da renda/condição socioeconômica, de geração e de regionalização. Portanto, o perfil de Maria Barbosa, descrito nos resultados, pode explicar em parte o seu silenciamento relatado pelos colegas no memorial: “Essa colega passou pela escola tão calada.”

Noutra via, nota-se a ocorrência de uma prática autônoma ao se considerar que Maria Barbosa adentrava espaços de atuação inovadores, tais como os prostíbulos. Esse fato pode estar relacionado ao status de legitimidade conferido a ela pelo título de enfermeira, apesar de mulher negra. Ou seja, do ponto de vista das relações de poder, ser enfermeira confere uma posição diferenciada por causa do acesso ao conhecimento legitimado de saúde.

Ademais, destaca-se que as características históricas das práticas de saúde do período aqui relatado eram marcadas por uma transição gradual de abordagens higienistas e impositivas para abordagens voltadas para mudança de comportamento, englobando abordagem dialógica e situacional(2222 Carvalho FFB. A saúde vai à escola: a promoção da saúde em práticas pedagógicas. Physis (Rio J.). 2015[cited 2019 Mar 13];25(4):1207-27. doi: 10.1590/S0103-73312015000400009
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). Assim, Maria Barbosa apresentava elementos de uma prática avançada de enfermagem, caracterizada pela preocupação com subjetividade dos sujeitos e cenários diferenciados de atuação.

Prática de enfermagem de Maria Barbosa e a Competência Cultural

Em relação à prática de Maria Barbosa, realizou-se uma análise com amparo no Modelo de Competência Cultural(55 Campinha-Bacote J. The process of Cultural Competence in the Delivery of Healthcare Services: a model of care. J Transcult Nurs. 2002 [cited 2019 Mar 13];13(3):181-4. doi: 10.1177/10459602013003003
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), considerando os seguintes elementos: cultural awareness, cultural knowledge, cultural skill, cultural encounters e cultural desire.

Dados da entrevista com Maria Barbosa demonstram que ela negava a vivência de situações de preconceito por ser uma mulher negra na profissão de enfermagem. Entretanto, ao analisar a imagem e a notícia retiradas do memorial, nota-se a existência de práticas discriminatórias e preconceituosas direcionadas a ela. De modo similar, as primeiras alunas afro-brasileiras da Escola de Enfermagem de São Paulo enfrentaram episódios de discriminação racial e rebaixamento, apesar do destaque na vida profissional, alcançando méritos e honrarias(2323 Campos PFS, Carrijo AR. Ilustre inominada: Lydia das Dôres Matta e enfermagem brasileira pós-1930. Hist Cienc Saúde-Manguinhos [Internet]. 2019[cited 2019 Aug 16];26(1):165-185. doi: 10.1590/s0104-59702019000100010
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).

Experiências de discriminação e depreciação foram comuns ao longo da educação e prática de enfermeiras negras, resultando em sentimentos de marginalização e isolamento(44 Jefferies k, Goldberg L, Aston M, Murphy GT. Understanding the invisibility of black nurse leaders using a black feminist poststructuralist framework. J Clin Nurs. 2018 [cited 2019 Mar 13];27(15-16):3225-34. doi: 10.1111/jocn.14505
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). Assim, pode-se inferir haver uma interdição discursiva de Maria Barbosa acerca das relações de poder e vivências de racismo, desencadeadas pelo fato de ser uma mulher negra, com perfil fora do padrão para a época na enfermagem profissional mineira.

Infere-se que o fato de ser mulher negra na enfermagem e a vivência de situações discriminatórias influíam na autoexaminação de Maria Barbosa, na consciência de si, no reconhecimento do lugar ocupado por si. Sob o modelo de Competência Cultural, estes são fatores importantes para análise no que se refere a cultural awareness, em relação aos valores próprios e influências no cuidado prestado. Talvez o reconhecimento de si, favorecido por contextos de menor impacto da negritude para a profissão, tenham contribuído para o potencial de cuidado culturalmente adequado.

No que se refere ao cultural knowledge, independente de uma análise do conteúdo do curso de Enfermagem, o relato sobre a prática de Maria Barbosa demonstra que ela tinha um entendimento do valor da pessoa humana na diversidade cultural e das possibilidades do cuidado enquanto prática social (enfatizados pela preocupação com o ponto de vista dos pacientes, com a integralidade, com as condições sanitárias e também com os aspectos da vida íntima e social, tais como a violência e o abuso). Tal conhecimento pode ter sido desenvolvido nas experiências pessoais e profissionais, no estágio e em sua inserção na ABEn-MG.

Continuando a discussão do modelo de Competência Cultural, em relação a cultural skill, destaca-se sua comunicação dialógica (estar aberta aos relatos, relacionar-se “com o gerente” dos hotéis), amparada em habilidades de observação, no conhecimento e na legitimidade conferida pela profissão (ser enfermeira) para adentrar os espaços considerados inadequados para uma mulher naquela época.

O marco histórico para discussão do aconselhamento sobre doenças sexualmente transmissíveis ocorreu somente em 1980, durante o processo de (re)democratização brasileiro. Esse aconselhamento deve ser realizado pelos profissionais de saúde de nível superior, sendo que o trabalho do aconselhador consistia em informar, avaliar riscos e prestar apoio emocional(2424 Galindo WCM, Francisco AL, Rios LF. Reflexões sobre o Trabalho de Aconselhamento em HIV/Aids. Trends Psychol. 2015[cited 2019 Mar 13];23(4):815-29. doi: 10.9788/TP2015.4-02
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). Isso reafirma a posição de Maria Barbosa como uma mulher à frente do seu tempo, pois já utilizava essa estratégia cerca de 40 anos antes desse período.

Os cultural encounters podem ser analisados nas cenas do cuidado que eram rotineiramente produzidas por atuação de Maria Barbosa, sejam nas visitas domiciliares, na orientação de doenças venéreas, no acompanhamento de discentes, sejam na preocupação com a adequação à linguagem do outro. Desse modo, no transcorrer de sua prática, nota-se que ocorria a interação com grupos culturalmente diversos - encontro de profissionais de saúde, estudantes de Enfermagem (ambos os grupos residindo em área central de Belo Horizonte de baixo risco) e usuárias, moradoras de bairro de alta vulnerabilidade de Belo Horizonte (Lagoinha, bairro da região Noroeste).

O cultural desire é evidenciado no relato acerca de Maria Barbosa por sua motivação em prol de uma prática diferenciada e com público diferenciado, estando aberta para aprender com o outro. Mais do que ter necessidade de ir aos locais antes negligenciados, Maria Barbosa desejava conhecer a realidade do outro, desejava mudar a realidade, inclusive tentando “arranjar casamento” para as prostitutas; preocupava-se com as condições locais e com o saneamento das áreas pelas quais passava.

Limitações do estudo

Ao desvelar a história de Maria Barbosa Fernandes, desnudaram-se as singularidades dessa mulher negra que podem ou não ser/ter sido a realidade de tantas outras mulheres negras enfermeiras brasileiras. Sendo assim, este estudo não propõe a generalização destes achados, pois se assume que os diferentes contextos sociais, econômicos, políticos e culturais são elementos determinantes para delinear outros sujeitos com diferentes características nos mesmos tempos históricos ou em outros.

Contribuições para a área da enfermagem

Ao desnudar parte da história da nossa profissão, tocando em discussões que são fortes para delinear os rumos que foram dados a profissionalização da enfermagem brasileira na primeira metade do século XX, como a dificuldade de inserção e aceitação de mulheres negras, oportunizou-se refletir sobre a profissão e sobre a gênese de tantas desigualdades que se formam nela e para além dela em nossa sociedade.

Assumindo a relevância de cuidados culturalmente competentes, a exemplo do que fez a egressa da EECC, Maria Barbosa Fernandes, abriu-se um leque de questionamentos de como temos nos implicado verdadeiramente para a superação dessas desigualdades.

Acredita-se que este exercício de repensar a prática e a formação do enfermeiro na perspectiva de aproximação com a Competência Cultural pode atender a uma demanda premente da população brasileira por um cuidado sensível, (re)significado em sua essência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Adotar as temáticas de raça e etnia na enfermagem se constitui como um grande desafio, por ser um tema que nem sempre é confortável e desafia o pensamento convencional. Foi necessária uma abordagem crítica que incluísse as relações de poder e efeitos discursivos sobre indivíduos e instituições. Investiu-se em uma discussão que pareasse a temática ao referencial de Competência Cultural, buscando formas de avançar em direção ao cuidado comprometido com a superação de desigualdades, necessidades cruciais ainda nos dias de hoje.

A história e prática analisadas demonstram a intersecção, na figura de Maria Barbosa, de elementos das cinco dimensões do processo de Competência Cultural descritos por CampinhaBacote, desenvolvidos sejam pela formação, sejam pela própria vivência de Maria Barbosa. Além disso, a análise realizada acerca da prática de Maria Barbosa, com aporte no modelo de Campinha-Bacote, demonstra que a Competência Cultural resulta de fato na possibilidade de ofertar um cuidado comprometido com a superação de desigualdades que influenciam incisivamente o contexto de saúde.

Portanto, ao romper com os estereótipos de enfermeira esperados para a época e se dedicar à enfermagem de um modo culturalmente competente, Maria Barbosa se apresenta como uma importante “personagem” para a história da enfermagem e para a mudança da prática.

É preciso considerar que discursos institucionais e históricos perpetuam barreiras para a enfermagem negra, resultando em sua invisibilidade. Este estudo merece destaque enquanto instrumento de visibilização das contribuições das mulheres negras para a enfermagem e para a saúde pública brasileiras, em um compromisso histórico que é preciso assumir, de modo a não permitir que tais discriminações e opressões continuem ocorrendo na profissão e na sociedade.

No contexto atual, tem-se de considerar que os processos de seleção para admissão de candidatos à universidade no Brasil passaram por muitas mudanças que conferem maior transparência e redução da subjetividade nos critérios para a entrada; além do sistema de cotas que apoia a redução de assimetrias nas oportunidades de ingresso ao ensino. Contudo, a inserção é apenas um passo, pois as desigualdades ainda são enormes no ambiente de ensino (e trabalho), o que constitui um convite para o entendimento deste estudo não como algo superado, mas como pauta prioritária a ser enfrentada concretamente pela enfermagem.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Aparecida Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Ana Fátima Carvalho Fernandes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2019
  • Aceito
    10 Jan 2020
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