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Por que sua dor nunca melhora? Estigma e enfrentamento de pessoas com doença falciforme

RESUMO

Objetivos:

analisar as características do estigma nas interações de pessoas com dor e doença falciforme e as estratégias de enfrentamento adotadas.

Métodos:

estudo qualitativo, realizado em unidades de referência na Bahia, entre janeiro e julho de 2018. Entrevistas em profundidade foram aplicadas a 25 adultos, seguidas de análise de conteúdo e interpretação à luz da Teoria Sociológica do Estigma.

Resultados:

quatro categorias emergiram dos dados: Estigma nas interações com familiares; Estigma nas interações com pessoas do público geral; Estigma nas interações com os trabalhadores de saúde; e Estratégias de enfrentamento do estigma.

Considerações Finais:

nas interações dos participantes, o estigma provocava descrédito dos relatos de dor, atribuição de rótulos e estereótipos, culpabilização por não melhorarem a saúde, discriminação, racismo, avaliação inadequada da dor e demora no atendimento. O enfrentamento incluiu silenciamento, encobrimento, comportamento agressivo, exposição ao risco, leitura de textos e de louvores religiosos e frequentação a igrejas.

Descritores:
Anemia Falciforme; Estigma Social; Dor; Enfermagem; Hemoglobina Falciforme

ABSTRACT

Objectives:

to analyze the characteristics of stigma in the interactions of people with pain and sickle cell disease and the coping strategies adopted.

Methods:

qualitative study, conducted in Bahia’s reference units between January and July 2018. In-depth interviews were applied to 25 adults, followed by content analysis and interpretation in light of the Sociological Theory of Stigma.

Results:

four categories emerged from the data: Stigma in interactions with family members; Stigma in interactions with people in the general public; Stigma in interactions with health workers; and Strategies for coping with stigma.

Final Considerations:

in the participants’ interactions, stigma produced discrediting pain reports, labeling and stereotyping, blaming patients for not improving their health, discrimination, racism, inadequate pain assessment, and delay in care. Coping included silencing, covering up, aggressive behavior, exposure to risk, reading religious texts and praises, and church attendance.

Descriptors:
Sickle Cell Disease; Social Stigma; Pain; Nursing; Sickle Cell Anemia

RESUMEN

Objetivos:

analizar características del estigma en interacciones de personas con dolor y enfermedad falciforme y estrategias de enfrentamiento adoptadas.

Métodos:

estudio cualitativo, realizado en Bahia, entre enero y julio de 2018. Entrevistas en profundidad fueron aplicadas a 25 adultos, seguidas de análisis de contenido e interpretación a la luz de la Teoría Sociológica del Estigma.

Resultados:

cuatro categorías emergieron de los datos: Estigma en interacciones con familiares; Estigma en interacciones con personas del público general; Estigma en interacciones con los trabajadores de salud; y Estrategias de enfrentamiento del estigma.

Consideraciones Finales:

en las interacciones de los participantes, el estigma provocaba descrédito de los relatos de dolor, atribución de rótulos y estereotipos, culpabilización por no mejoraren la salud, discriminación, racismo, evaluación inadecuada del dolor y retraso en la atención. El enfrentamiento incluyó silenciamiento, encubrimiento, comportamiento agresivo, exposición al riesgo, lectura de textos y de himnos religiosos y frecuentación a iglesias.

Descriptores:
Anemia Falciforme; Estigma Social; Dolor; Enfermería; Hemoglobina Falciforme

INTRODUÇÃO

A dor ocupa posição central na experiência de pessoas com doença falciforme (DF). Desde a infância, elas apresentam complicações agudas acompanhadas de dor, tais como: dactilite, sequestro esplênico, síndrome torácica aguda, acidente vascular cerebral, priapismo e enfartamento ósseo. Ao longo da vida, a dor pode aumentar em frequência e intensidade. As complicações crônicas da DF, a exemplo da necrose de extremidades ósseas e úlceras de perna, também produzem eventos dolorosos(11 Brennan-Cook J, Bonnabeau E, Aponte R, Augustin C, Tanabe P. Barriers to care for persons with sickle cell disease: the case manager’s opportunity to improve patient outcomes. Prof Case Manag. 2018;23(4):213-9. https://doi.org/10.1097/NCM.0000000000000260
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2 Tran H, Gupta M, Gupta K. Targeting novel mechanisms of pain in sickle cell disease. Hematology Am Soc Hematol Educ Program. 2017;2017(1):546-55. https://doi.org/10.1182/asheducation-2017.1.546
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-33 Vgontzas A, Charleston L 4th, Robbins MS. Headache and facial pain in sickle cell disease. Curr Pain Headache Rep. 2016;20(3):20. https://doi.org/10.1007/s11916-016-0546-z
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). A crise álgica é a causa mais comum de admissão nos serviços de emergência, tendo como principais queixas a dor, quase sempre generalizada, mas que também pode ser torácica, de cabeça, abdominal, nos membros inferiores e em úlceras de perna(22 Tran H, Gupta M, Gupta K. Targeting novel mechanisms of pain in sickle cell disease. Hematology Am Soc Hematol Educ Program. 2017;2017(1):546-55. https://doi.org/10.1182/asheducation-2017.1.546
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-33 Vgontzas A, Charleston L 4th, Robbins MS. Headache and facial pain in sickle cell disease. Curr Pain Headache Rep. 2016;20(3):20. https://doi.org/10.1007/s11916-016-0546-z
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). A dor pode ser descrita como lancinante, em pontadas, por irradiação, queimação, formigamento, choques elétricos ou dormência, entre outros tipos(11 Brennan-Cook J, Bonnabeau E, Aponte R, Augustin C, Tanabe P. Barriers to care for persons with sickle cell disease: the case manager’s opportunity to improve patient outcomes. Prof Case Manag. 2018;23(4):213-9. https://doi.org/10.1097/NCM.0000000000000260
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).

Nas crises dolorosas, por exemplo, as situações de estigma associado às complicações do adoecimento crônico podem resultar em barreiras no atendimento à pessoa adoecida e promover a passividade e a invisibilidade. Tudo isso contribui para o sofrimento não detectado pelos profissionais de saúde, constituindo uma discriminação institucional que favorece a demora no diagnóstico e a não inclusão do adoecido em programas de atenção integral(11 Brennan-Cook J, Bonnabeau E, Aponte R, Augustin C, Tanabe P. Barriers to care for persons with sickle cell disease: the case manager’s opportunity to improve patient outcomes. Prof Case Manag. 2018;23(4):213-9. https://doi.org/10.1097/NCM.0000000000000260
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).

Em sua “Teoria Social do Estigma”, Erving Goffman(44 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4a ed. Rio de Janeiro: LTC; 1988.) defende a existência de uma identidade deteriorada e estabelece a diferença entre a identidade social virtual (o que se espera que uma pessoa deva ser) e a identidade social real (aquela pautada nos atributos que a pessoa possui). O estigma diz respeito a uma marca ou atributo pessoal utilizado para classificar e desvalorizar um indivíduo que possui determinada característica avaliada como “anormal” e “desviante” da norma social. Nesse sentido, o estigma consiste numa classificação social que se baseia em certos atributos aceitos socialmente como positivos ou negativos. As pessoas possuidoras de atributos considerados positivos encaixam-se na categoria de “normais”, e aquelas vinculadas aos atributos tidos como negativos enquadram-se na categoria de “estigmatizadas”(44 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4a ed. Rio de Janeiro: LTC; 1988.). O processo de estigmatização não se reduz a um olhar crítico sobre a pessoa. Trata-se de processos de interação que a desqualificam e tendem a transformar a vítima em culpada(44 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4a ed. Rio de Janeiro: LTC; 1988.), além de suscitar discriminações e exclusão social de maior ou menor severidade(55 Volz PM, Tomasi E, Bruck NRV, Saes MO, Nunes BP, Duro SMS, et al. A inclusão social pelo trabalho no processo de minimização do estigma social pela doença. Saúde Soc. 2015;24(3):877-86. https://doi.org/10.1590/S0104-12902015130040
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-66 Lucas JW, Phelan JC. Stigma and Status: The Interrelation of Two Theoretical Perspectives. Soc Psychol Q. 2012;75(4):310-33. https://doi.org/10.1177/0190272512459968
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).

Quando relacionado à saúde, o estigma diz respeito a uma forma particular de desvalorização, julgamento ou desqualificação social dos indivíduos com base em uma condição de saúde-doença(77 Bulgin D, Tanabe P, Jenerette C. Stigma of sickle cell disease: a systematic review. Issues Ment Health Nurs. 2018;39(8):675-86. https://doi.org/10.1080/01612840.2018.1443530
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-88 Phelan JC, Lucas JW, Ridgeway CL, Taylor CJ. Stigma, status, and population health. Soc Sci Med. 2014;103:15-23. https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2013.10.00
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). Sua existência amplia o sofrimento e o peso da doença sobre os adoecidos e suas famílias(77 Bulgin D, Tanabe P, Jenerette C. Stigma of sickle cell disease: a systematic review. Issues Ment Health Nurs. 2018;39(8):675-86. https://doi.org/10.1080/01612840.2018.1443530
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).

Pessoas que experienciam estigma podem adotar estratégias positivas ou negativas de enfrentamento. As estratégias positivas são aquelas que contribuem para a saúde e bem-estar, sentimentos de estima e inclusão; já as estratégias negativas são aquelas que prejudicam a saúde, favorecem a adoção de hábitos não saudáveis, aprofundam o isolamento, os sentimentos de solidão e a autodepreciação(99 Nascimento LA, Leão A. Estigma social e estigma internalizado: a voz das pessoas com transtorno mental e os enfrentamentos necessários. Hist Cienc Saude-Manguinhos. 2019;26(1):103-21. https://doi.org/10.1590/s0104-59702019000100007
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).

A literatura concernente à experiência na DF denuncia a existência do estigma sem, contudo, debruçar-se sobre como se expressa nas diversas interações. O presente estudo contribui para preencher essa lacuna, ao aprofundar o conhecimento acerca das características desse fenômeno e suscitar reflexões sobre os efeitos do estigma nos encontros de cuidado. Durante seu desenvolvimento, este estudo foi guiado pela questão: Como as pessoas com DF vivenciam e enfrentam o estigma?

OBJETIVOS

Analisar as características do estigma nas interações de pessoas com dor e DF e as estratégias de enfrentamento.

MÉTODOS

Aspectos éticos

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Feira de Santana. Durante consultas de enfermagem, as pessoas foram convidadas a participar e receberam informações sobre os objetivos do estudo. Aquelas que aceitaram, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Foi mantido o anonimato com uso da letra “E” (Entrevistado”), seguida de numeração sequencial indicando a ordem das entrevistas.

Tipo do estudo

Estudo qualitativo, cujo desenho seguiu as recomendações do Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ)(1010 Tong A, Sainsbury P, Craig J. Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ): a 32-item checklist for interviews and focus groups. Int J Health Care Qual Assur. 2007;19(6):349-57. https://doi.org/10.1093/intqhc/mzm042
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).

Cenário do estudo

Estudo realizado na capital e no interior do estado da Bahia, entre janeiro e julho de 2018, em duas unidades de referência que oferecem atendimento às pessoas com DF.

Fonte de dados

Os dados foram produzidos por pessoas com DF usuárias das unidades de referência onde o estudo foi realizado. A seleção de participantes deu-se por conveniência. Para aqueles que aceitaram participar, adotaram-se como critérios de inclusão: ser adulto de ambos os sexos, atendido no centro de referência, ter idade a partir dos 18 anos, com diagnóstico de DF e histórico de crises álgicas. O critério de exclusão foi estar com dor no momento da coleta de dados.

Coleta e organização dos dados

Na produção dos dados, uma das autoras conduziu entrevistas em profundidade. Estas(1111 Peters K, Halcomb E. Interviews in qualitative research. Nurse Res. 2015;22(4):6-7. https://doi.org/10.7748/nr.22.4.6.s2
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)foram guiadas por um roteiro testado previamente no momento-piloto da investigação, que tinha como base questões relacionadas ao tratamento recebido pelas pessoas com DF e ao compartilhamento de contextos que marcaram sua experiência com o serviço.

Além disso, questões abertas eram formuladas durante a interação que ia se configurando à medida que a entrevista acontecia. Assim, estão sujeitas às imprevisibilidades das características pessoais do participante e do contexto, o que permite a interferência do entrevistador, a formulação de perguntas adicionais, a reordenação e o esclarecimento de perguntas, para aprofundar tópicos introduzidos pelo entrevistado(1111 Peters K, Halcomb E. Interviews in qualitative research. Nurse Res. 2015;22(4):6-7. https://doi.org/10.7748/nr.22.4.6.s2
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).

As entrevistas, guiadas pelo roteiro validado previamente em teste-piloto(1010 Tong A, Sainsbury P, Craig J. Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ): a 32-item checklist for interviews and focus groups. Int J Health Care Qual Assur. 2007;19(6):349-57. https://doi.org/10.1093/intqhc/mzm042
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), registrou as seguintes questões norteadoras: “Conte-me como as pessoas em geral tratam as pessoas com DF”, “Você já vivenciou alguma situação marcante com essas pessoas? Conte-me o que aconteceu”. Questões semelhantes sobre a interação com familiares e trabalhadores da saúde foram também aplicadas. A coleta deu-se em ambiente privativo, apenas com a presença do participante e da entrevistadora. As entrevistas, cuja duração variou entre 40 e 50 minutos, foram gravadas em MP3 e, em seguida, transcritas na íntegra pela própria entrevistadora. Para alcançar a saturação teórica, foram adotados os cinco passos procedimentais: registro de dados brutos (fontes primárias); imersão nos dados; compilação das análises individuais de cada entrevista; agrupamento temático; alocação de temas e tipos de enunciados em um quadro(1212 Fontanella BJB, Luchesi BM, Saidel MGB, Ricas J, Turato ER, Melo DG. Amostragem em pesquisas qualitativas: proposta de procedimentos para constatar saturação teórica. Cad Saúde Pública. 2011;27(2):389-94. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2011000200020
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).

Análise dos dados

Todo o material coletado foi submetido à análise de conteúdo nas seguintes fases: Pré-análise, na qual se deu a organização do material textual; Exploração do material com codificação e classificação por semelhança dos núcleos de sentido; Tratamento dos resultados com constituição de categorias e subsequente inferência e interpretação(1313 Erlingsson C, Brysiewicz P. A hands-on guide to doing content analysis. Afr J Emerg Med. 2017;7(3):93-9. https://doi.org/10.1016/j.afjem.2017.08.001
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).

Os dados organizados em categorias foram expostos em um quadro explicativo das características do estigma. Na sequência, passaram por validação por triangulação de pesquisadores. Para tanto, a equipe de pesquisa, composta por três doutoras, uma doutoranda e uma mestranda, realizou individualmente as etapas de análise. Em seguida, houve discussão, confronto e concordância quanto às categorias empíricas. Ao final, os resultados foram interpretados à luz da Teoria Sociológica do Estigma, de Erving Goffman(44 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4a ed. Rio de Janeiro: LTC; 1988.), ampliada por Link e Phelan(66 Lucas JW, Phelan JC. Stigma and Status: The Interrelation of Two Theoretical Perspectives. Soc Psychol Q. 2012;75(4):310-33. https://doi.org/10.1177/0190272512459968
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,88 Phelan JC, Lucas JW, Ridgeway CL, Taylor CJ. Stigma, status, and population health. Soc Sci Med. 2014;103:15-23. https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2013.10.00
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).

RESULTADOS

Caracterização da população do estudo

Participaram do estudo 25 adultos, sendo 13 homens e 12 mulheres, com idades entre 20 e 53 anos. Pretos e pardos predominaram, com apenas dois participantes autodeclarados não negros. Dezoito dos entrevistados não concluíram o ensino médio, e apenas dois tiveram acesso ao ensino superior, embora incompleto. Em sua maioria, eram indivíduos de baixa renda, constatada pela predominância de desempregados, com apenas dois aposentados devido às complicações da DF. Quanto ao tipo de DF, a maioria era acometida pela anemia falciforme (AF), representada pela hemoglobinopatia do tipo HbSS. Como complicações da doença, apresentaram, além da crise álgica, úlceras de perna e priapismo - ereção involuntária e dolorosa.

Estão representadas na Figura 1, as características do estigma encontradas nas interações que as pessoas com dor e DF participantes da pesquisa estabeleciam com familiares, com pessoas do público geral e com trabalhadores da saúde bem como a síntese das estratégias de enfrentamento. Assim, a interrelação e convergência dos diversos componentes presentes na estigmatização estão expostas nas cinco colunas da figura. Na primeira, o “rótulo” informa as distinções e qualificações simplistas empregadas pelas pessoas para classificar as diferenças humanas; na segunda coluna, o “estereótipo” manifesta as crenças culturais dominantes que ligam pessoas rotuladas às características indesejáveis - aos estereótipos negativos; o “descrédito”, terceira coluna, expõe o aspecto sobre a pessoa que é desacreditada; a forma como as pessoas rotuladas são colocadas em categorias distintas, de modo a realizarem algum grau de separação entre “nós” e “eles” é revelada na quarta coluna - “afastamento”; e a quinta coluna “perda de status/discriminação” registra as perdas de posição e discriminação que levam a resultados desiguais(88 Phelan JC, Lucas JW, Ridgeway CL, Taylor CJ. Stigma, status, and population health. Soc Sci Med. 2014;103:15-23. https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2013.10.00
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).

Figura 1
Características do estigma dirigido às pessoas com dor e doença falciforme

As quatro categorias que emergiram dos dados - Estigma nas interações com familiares, Estigma nas interações com pessoas do público geral, Estigma nas interações com os trabalhadores de saúde e Estratégias de enfrentamento do estigma - são apresentadas a seguir.

Categoria 1 - Estigma nas interações com familiares

A desqualificação da pessoa com dor e DF ocorria tanto nas interações que aconteciam nos espaços públicos quanto nas vivenciadas em suas próprias casas. Esse descrédito expressava-se por meio de atitudes de desprezo dirigidas pelos familiares e também por estranhos, que empregavam adjetivos depreciativos para se referirem a essas pessoas. Tais adjetivos eram assimilados e conformavam a autoimagem, bem como uma identidade deteriorada. Dessa forma, a pessoa sentia-se incompreendida pela família, que a julgava preguiçosa ou pouco colaborativa com as atividades do cotidiano familiar.

Eles [os familiares] nunca compreendem que se tiver alguma coisa ali que é para todos fazerem, se a gente não pode fazer, eles não compreendem. Eles acham que a gente é preguiçoso, que não quer fazer, não quer ajudar. Aí as pessoas ficam com essa “alfinetação” assim: “Ah, por que você não faz isso, não faz aquilo?”; “A culpa é sua”; “Tem é que morrer logo”; “Fica dando trabalho, joga logo no hospital.” (E9)

Foi mencionado o afastamento ou abandono por parte da família, o qual ocorria especialmente em situações de dificuldades físicas que requeriam maior atenção e cuidado de proteção, como era o caso das crises dolorosas, complicações mais frequentes da doença.

Eu só fiquei com raiva uma vez [um episódio de crise dolorosa] que minha tia me deixou lá [no hospital] e não queria que eu voltasse mais pra casa dela. Me deixou lá no hospital [choro]. Já fui “enxotado” [expulso] da casa de meu padrasto. Não gosto muito de ficar lembrando. (E8)

Rótulos de "descuidado" e "desatento" vinculavam a imagem da pessoa adoecida à de alguém desinteressado em colaborar.

Categoria 2 - Estigma nas interações com pessoas do público geral

No convívio social, também ocorria o descrédito, e era comum que a pessoa com DF em processo de dor crônica fosse excluída de sua rede social, além de rotulada de “queixosa”, “doente” e “incapaz” de exercer atividades praticadas pelos demais.

Diante disso, para serem consideradas “normais”, as pessoas adoecidas sentiam-se pressionadas pelos amigos, que não compreendiam suas limitações para se envolverem em determinados tipos de atividades que estimulavam processos dolorosos.

Às vezes, o colega fala “vamos na piscina tomar um banho!”, e a gente não pode se jogar nessas aventuras. A gente não pode ir, e eles não querem entender, e aí pega a gente e joga dentro da água. (E3)

Falavam: “Você não pode nem jogar bola, você é doente!” [...] eles [colegas do bairro] me discriminaram dizendo que eu não podia ficar no time deles, porque eu era doente, que eu sentia dor demais. (E4)

Tem gente que acha que é uma doença contagiosa, que às vezes é frescura, que a gente não tá sentindo o que a gente sente. É difícil achar pessoas que saibam lidar com a doença. (E15)

Desse modo, sob pressão social direta, os adoecidos tendiam a submeter-se às condições e aos prejuízos à saúde e ao bem-estar, para evitar a discriminação e afastamento do seu grupo de pertença. Assim, viam-se desafiados a superar barreiras e limites para provarem que conseguiam ir além, aproximando-se ao máximo do que consideravam “normal” para se sentirem aceitos.

Eu lembro que tinham dois times no bairro. Aí, no time que diziam que era da primeira, joguei uma vez, mas não me colocaram mais, porque eu senti dor. Aí eu fui jogar no da segunda. Eu lutei tanto, só de raiva, porque eles diziam que eu era doente. Então ganhamos nos pênaltis. Depois fui parar no hospital [risos]. (E4)

No tocante à inserção das pessoas com DF no mercado de trabalho, é importante destacar a explícita incompreensão por parte dos empregadores e também dos colegas de trabalho. Quando conseguiam inserir-se, eram frequentemente desqualificadas e adjetivadas de forma depreciativa e ofensiva pelos colegas, os quais as viam como sujeitos que fingiam estar doentes.

Eu já passei discriminação no trabalho. Eu lembro que apresentei dois atestados, porque senti muita dor. A empresa disse: “Você está é brincando com a gente, todo dia atestado, você está inventando essa doença.” Com sete meses, me dispensaram. Disse que eu estava fazendo corpo mole, que eu era preguiçoso, que eu estava me encostando, porque tinha carteira assinada. Eu trabalhava tanto, e o povo dizia que eu estava fingindo. (E4)

Categoria 3 - Estigma nas interações com os trabalhadores de saúde

Em geral, a frequência de idas das pessoas com DF aos serviços de saúde era alta. Isso ocorria, entre outras razões, pela busca de alívio para complicações, como as crises álgicas. Nesses momentos, as interações com os profissionais de saúde eram marcadas por questionamentos quanto à necessidade de visitar a unidade, colocando em dúvida suas narrativas de dor. Desde a recepção, espaço de primeiro contato, variados grupos de trabalhadores da saúde iniciavam julgamentos sobre a decisão do adoecido. Ora vigilantes, que reclamavam da frequência com a qual o indivíduo retornava ao serviço, ora enfermeiros e médicos, que atuavam no diagnóstico, avaliação e tratamento da crise dolorosa, revelavam descrédito quanto às queixas apresentadas. Para os participantes, o descrédito atribuído às suas narrativas resultava do desconhecimento dos profissionais e da falta de qualificação para a avaliação, diagnóstico e manejo clínico da dor na DF.

Várias vezes, ele [o vigilante do serviço] dizia: “Rapaz, todo dia você com essa dor.” As enfermeiras diziam: “Você de novo? O que é que você faz que não fica bom dessa dor? Todo mundo fica bom e você não fica. Quem vai lhe tratar agora é [...]” Porque essa [...] era malvada na injeção, sabe? Que era pra eu não voltar mais lá. (E4)

As crises álgicas colocavam adoecidos face a face com profissionais que levantavam dúvidas sobre a necessidade de atendimento de emergência e os rotulavam de dependentes de drogas farmacológicas, atribuindo-lhes o estereótipo de viciados.

A enfermeira e o médico falaram: “Todo dia esse rapaz aqui?! Dá remédio, parece que ele tá viciado em remédios.” Aí, a enfermeira disse: “Será que ele já acostumou com o efeito do remédio?” (E11)

[...] médicos dizendo que somos drogados, viciados em morfina, que a dor não é tanta como a gente fala e que a gente vai no posto simplesmente pela morfina, porque somos drogados, viciados, dependentes e que a gente quer aquilo ali. (E16)

Nas interações ocorridas nos serviços de saúde, a percepção do estigma era atravessada pela percepção de atitudes racistas. As pessoas com DF percebiam-se discriminadas durante o atendimento não somente em razão das marcas da doença, mas também por causa da cor da sua pele. Elas alegavam diferenciação no atendimento a pessoas não negras em relação às negras.

Falavam que eu estava com dengo, que não viam motivo para estar gemendo. A maior dor que doía era a discriminação, racismo, preconceito. Eles diziam: “Você, um negão desse sadio?” Eu dizia: “Está doendo muito.” Mas eles não acreditavam. (E4)

Tinha uma enfermeira lá da noite, e ela me discriminou: “Você não fica bom dessa dor nunca, né? Só dando trabalho pra gente. É porque é baiano, é porque é negro. Se fosse branco, não fazia isso”. (E11)

O racismo foi percebido nos discursos de profissionais que, durante o atendimento, criticavam a pessoa em crise de dor, desvalorizando-a, julgando-a fraca, débil, reforçando que a pessoa negra “deve suportar mais a dor”, pois acreditavam que corpos negros possuíam limiar de dor maior quando comparados aos não negros. Essa crença favorecia a não valorização da dor da pessoa negra, a qual era frequentemente reprovada e responsabilizada por suas queixas.

Categoria 4 - Estratégias de enfrentamento do estigma

Em face das experiências do estigma, as pessoas adotavam diversas estratégias para seu enfrentamento, dentre as quais destacava-se resistência a retornar ao serviço de saúde. Os homens que experienciaram episódios de dor e priapismo descreveram como vergonhoso o constrangimento vivenciado no encontro com a equipe de saúde, que zombava, desvalorizava e culpabilizava-os.

Falar sobre as marcas do estigma causava constrangimento e vergonha de expor seu problema. O receio do julgamento moral fazia-os recordarem o sofrimento. Assim, os indivíduos preferiam silenciar o problema e elaboravam histórias para justificar a situação em que se encontravam, a fim de evitarem a aplicação de rótulos e a recorrência da discriminação.

Muitas vezes, eu falava: “Não, eu caí”. Minha tia ia e falava que era outra coisa, pra não me expor, porque a médica falou que não era pra estar expondo, porque é um assunto que é delicado [dor secundária ao priapismo], porque podem falar que é “tarado” […] as pessoas não entendem o que é. (E7)

Eu não gosto de falar, não. Me sinto mal quando falo. Eu prefiro guardar pra mim mesmo, o tanto que já passei, o tanto que já sofri [choro]. (E8)

Ao vivenciarem o estigma, as pessoas adoecidas afastavam-se de pessoas do seu convívio social, uma vez que ficavam constrangidas com os olhares e questionamentos alheios sobre sua condição. Dessa forma, elas preferiam frequentar locais onde supostamente não seriam reconhecidas como doentes e/ou incapazes nem, portanto, estigmatizadas. Elas optavam por isolar-se cada vez mais das pessoas.

Eu me recolho. Eu não brigo com ninguém, não xingo ninguém, não desejo mal a ninguém, simplesmente me afasto. Eu não bebia e comecei a beber. Eu não gostava de micareta, eu não brigava e comecei a brigar. Eu fiquei assim desesperado, porque todo mundo me discriminava. (E3)

Já briguei muito por causa dos meus problemas também. Eu não gosto muito de falar, não [lágrimas]. (E8)

Perceber-se estigmatizado podia gerar revolta nos adoecidos, que passavam a agir de forma defensiva. Isso encorajava-os a assumir atitudes agressivas, negligenciar o autocuidado ou recorrer ao uso de substâncias psicoativas no intuito de esquecer ou fugir problemas. A atitude de esquivar-se do problema (p.ex., não tocar no assunto) era um comportamento estratégico para omissão de informações que podiam colocá-los em posição de desvalorização diante dos demais sujeitos.

Frequentar igrejas, ouvir música (louvores) e ler textos religiosos, a fim de buscar fortalecimento, foram estratégias positivas de enfrentamento do estigma mencionadas pelos participantes em busca de resiliência.

DISCUSSÃO

Pessoas com DF vivenciam a dor total, na qual há um somatório das dores física, social, psicológica e espiritual, acrescidas da experiência racial. Além disso, cada episódio de dor suscita sentimentos de medo, proximidade da morte, revolta, impotência, insegurança e desconfiança. Nesse sentido, durante a experiência de dor, aspectos sensitivos, emocionais e culturais interseccionam-se e merecem ser investigados e considerados no atendimento à pessoa com DF(1414 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Hospitalar e de Urgência. Doença falciforme: enfermagem nas urgências e emergências: a arte de cuidar [Internet]. Brasília; 2014 [cited 2016 Oct 30]. 76 p. Available from: http://biblioteca.cofen.gov.br/wp-content/uploads/2015/06/doenca_falciforme_enfermagem_urgencias_emergencias.pdf
http://biblioteca.cofen.gov.br/wp-conten...
).

Este estudo evidenciou que pessoas com dor e DF vivenciam o estigma nos variados ambientes nos quais transitam - familiar, social, profissional - e também nos contextos de atenção à saúde(1515 Jenerette CM, Brewer C. Health related stigma in young adults with sickle cell disease. J Natl Med Assoc. 2010;102(11):1050-5. https://doi.org/10.1016/s0027-9684(15)30732-x
https://doi.org/10.1016/s0027-9684(15)30...
). Outras experiências de estigma relacionadas às doenças demonstram que, quando este é percebido, torna-se fonte primária para a ocorrência do estigma introjetado, isto é, incorporado inconscientemente ao eu do indivíduo. No primeiro caso, são percebidas as atitudes ou comportamentos estigmatizantes dos outros; no segundo, o estigma é autoaplicado por meio de sentimentos de autodesvalorização, como a autoculpabilização, vergonha, raiva e arrependimento(77 Bulgin D, Tanabe P, Jenerette C. Stigma of sickle cell disease: a systematic review. Issues Ment Health Nurs. 2018;39(8):675-86. https://doi.org/10.1080/01612840.2018.1443530
https://doi.org/10.1080/01612840.2018.14...
,99 Nascimento LA, Leão A. Estigma social e estigma internalizado: a voz das pessoas com transtorno mental e os enfrentamentos necessários. Hist Cienc Saude-Manguinhos. 2019;26(1):103-21. https://doi.org/10.1590/s0104-59702019000100007
https://doi.org/10.1590/s0104-5970201900...
,1515 Jenerette CM, Brewer C. Health related stigma in young adults with sickle cell disease. J Natl Med Assoc. 2010;102(11):1050-5. https://doi.org/10.1016/s0027-9684(15)30732-x
https://doi.org/10.1016/s0027-9684(15)30...
). Embora investigar o estigma introjetado não tenha sido objetivo do presente estudo, ele foi manifestado nas narrativas dos participantes.

No contexto familiar, o estigma é percebido na aplicação de adjetivos depreciativos por parte dos familiares, na falta de compreensão durante os episódios de dor e nas atitudes de abandono. Estudo realizado com indivíduos estigmatizados indicam problemas na família, incluindo rejeição e violência por parte dos familiares, o que gera sentimentos de abandono associados à perda de vínculo com pessoas queridas(1616 Hamann HA, Ostroff JS, Marks EG, Gerber DE, Schiller JH, Lee SJ. Stigma among patients with lung cancer: a patient-reported measurement model. Psychooncol. 2014;23(1):81-92. https://doi.org/10.1002/pon.3371
https://doi.org/10.1002/pon.3371...
).

As atitudes de familiares em relação aos estigmatizados expressam perda de status, relações assimétricas e violência, por meio das quais se estabelece a desigualdade pautada no autoritarismo e explicitada por desqualificações, repreensões, constrangimentos, humilhações, negligência e até agressões físicas, em que o ser humano é tratado como não sujeito(1717 Nunes M, Torrenté M. Stigma and violence in dealing with madness: narratives from psychosocial care centers in Bahia and Sergipe, Northeastern Brazil. Rev Saúde Pública. 2009;43(suppl 1):101-8. https://doi.org/10.1590/s0034-89102009000800015
https://doi.org/10.1590/s0034-8910200900...
).

No convívio social, os adoecidos sentem-se excluídos de sua rede social, que os considera doentes e incapazes. Em particular, os homens também se sentem pressionados pelos amigos e até se sujeitam a condições que trazem prejuízo à sua saúde e bem-estar, para serem aceitos e reafirmarem sua masculinidade(1818 Couto MT, Dantas SMV. Gender, masculinities, and health in review: production of the field in the journal Saúde e Sociedade. Saude Soc. 2016;25(4):857-68. https://doi.org/10.1590/s0104-12902016172308
https://doi.org/10.1590/s0104-1290201617...
). Assim, a pessoa que sofre estigma por causa de alguma doença e de suas implicações pode ter dificuldade em se relacionar não só com a família, mas também com amigos, vizinhos, colegas de trabalho e até mesmo com pessoas de seu convívio social mais distante(11 Brennan-Cook J, Bonnabeau E, Aponte R, Augustin C, Tanabe P. Barriers to care for persons with sickle cell disease: the case manager’s opportunity to improve patient outcomes. Prof Case Manag. 2018;23(4):213-9. https://doi.org/10.1097/NCM.0000000000000260
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). O estigma no convívio social está, portanto, relacionado à violência interpessoal pertencente à esfera pública e perpassa relações de convívio social.

Esse tipo de violência interpessoal era também vivenciado por pessoas com DF que participaram de pesquisa realizada no Pará. Elas relataram que, em seu cotidiano, frequentemente eram afetadas por estereótipos, sendo desqualificadas em diversos estágios da vida e estigmatizadas. Os apelidos revelavam características julgadas peculiares. Assim, dentre outros, destacaram-se: “coitadinho”, para exprimir sentimento de pena em relação à doença; “fraco”, por ser visto como anêmico; “esqueleto” decorria da anorexia; “boneco de vidro” referia-se às persistentes crises de dor; “perna podre” ocorria em casos de pessoas com úlceras de perna; “doente” indicava incapacitado para o trabalho(1919 Ezenwa MO, Molokie RE, Wilkie DJ, Suarez ML, Yao Y. Perceived injustice predicts stress and pain in adults with sickle cell disease. Pain Manag Nurs. 2015;16(3):294-306. https://doi.org/10.1016/j.pmn.2014.08.004
https://doi.org/10.1016/j.pmn.2014.08.00...
).

A depender das atividades para as quais são solicitadas, as pessoas com DF têm dificuldade de interagir com sua rede social. Banhos de piscina, por exemplo, foram relatados como um empecilho na interação social, uma vez que águas em baixas temperaturas estimulam crises de dor. Além disso, os adoecidos são sempre lembrados das responsabilidades com o autocuidado e de evitar banhos dessa natureza(2020 Costa DO, Araújo FA, Xavier ASG, Araújo LS, Silva UB, Santos EA, et al. Self-care of men with priapism and sickle cell disease. Rev Bras Enferm. 2018;71(5):2418-24. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0464
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0...
). Assim, evitar banhos de rio e de piscina ou até mesmo ficar com roupa molhada em praias, por conta do frio, foram medidas de autocuidado adotadas pelos participantes, para evitar crises vasoclusivas, corroboradas na literatura(1919 Ezenwa MO, Molokie RE, Wilkie DJ, Suarez ML, Yao Y. Perceived injustice predicts stress and pain in adults with sickle cell disease. Pain Manag Nurs. 2015;16(3):294-306. https://doi.org/10.1016/j.pmn.2014.08.004
https://doi.org/10.1016/j.pmn.2014.08.00...
). No entanto, existiam aqueles que preferiam submeter-se às condições que tendiam a desencadear crises dolorosas, no intuito de serem aceitos pelos grupos de amigos.

Algumas pessoas que sofrem estigma podem desenvolver estratégias para superar as barreiras impostas pela sociedade, a fim de provar a capacidade de além das expectativas pré-definidas pelo senso comum(44 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4a ed. Rio de Janeiro: LTC; 1988.). Dessa forma, os indivíduos visam aproximar-se ao máximo do padrão de “normalidade” para serem aceitos pelos integrantes de sua rede social. No entanto, ao participarem de atividades que desafiam a capacidade física, eles adotam um enfrentamento que coloca a vida em risco.

No que diz respeito às atividades laborais, os participantes deste estudo relataram também que a dor, por vezes, impedia-os de trabalhar. Além disso, os episódios de dor ocorridos no ambiente de trabalho acarretavam situações de ofensa e adjetivação pejorativa. A imprevisibilidade e cronicidade das crises álgicas provocadas pela DF dificultam não somente a conquista do emprego, mas também a manutenção deste, uma vez que a fadiga, o cansaço e a indisposição são avaliados pelos patrões e colegas de trabalho como má vontade e irresponsabilidade(2121 Blake A, Asnani V, Leger RR, Harris J, Odesina V, Hemmings DL, et al. Stigma and illness uncertainty: adding to the burden of sickle cell disease. Hematology. 2018;23(2):122-30. https://doi.org/10.1080/10245332.2017.1359898
https://doi.org/10.1080/10245332.2017.13...
-2222 Ola BA, Yates SJ, Dyson SM. Living with sickle cell disease and depression in Lagos, Nigeria: a mixed methods study. Soc Sci Med. 2016;161:27-36. https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2016.05.029
https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2016...
).

Estudo evidenciou que o desconhecimento da enfermidade reflete-se em estigma no ambiente de trabalho, e as pessoas com DF são rotuladas de preguiçosas e mentirosas, sendo comum a demissão(2222 Ola BA, Yates SJ, Dyson SM. Living with sickle cell disease and depression in Lagos, Nigeria: a mixed methods study. Soc Sci Med. 2016;161:27-36. https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2016.05.029
https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2016...
). O rótulo utilizado para descrever a pessoa é o que motiva os demais sujeitos a desejarem distância social(2323 Link BG, Phelan JC. Conceptualizing Stigma. Annu Rev Sociol. 2001;27:363-85. https://doi.org/ 10.1146/annurev.soc.27.1.363
https://doi.org/ 10.1146/annurev.soc.27....
).

No caso dos homens com dor e DF, sexo mais prevalente entre os participantes deste estudo, deixar de trabalhar é motivo de frustração, uma vez que é um aspecto relacionado não só à força física, como também ao fato de ser socialmente considerado chefe e responsável pela manutenção da família. Tal frustração acompanha o medo do isolamento, do abandono e da perda do papel social e econômico exercido dentro da família(2424 Cordeiro RC, Ferreira SL, Santos AC. The illness of women and men with sickle cell disease: a Grounded Theory study. Rev Latino-Am Enfermagem. 2015;23(6):1113-20. https://doi.org/ 10.1590/0104-1169.0594.2656
https://doi.org/ 10.1590/0104-1169.0594....
).

Atitudes de desrespeito, sujeição, aborrecimento ou constrangimento, sobretudo quando o assédio discriminatório é provocado por profissionais de saúde, podem ser reflexo de informações incorretas ou limitadas sobre a doença. Desse modo, a falta de qualificação para cuidar da pessoa com DF em suas complicações resulta da invisibilidade da doença nos currículos de formação profissional(1919 Ezenwa MO, Molokie RE, Wilkie DJ, Suarez ML, Yao Y. Perceived injustice predicts stress and pain in adults with sickle cell disease. Pain Manag Nurs. 2015;16(3):294-306. https://doi.org/10.1016/j.pmn.2014.08.004
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,2525 Wesley KM, Zhao M, Carroll Y, Porter JS. Caregiver perspectives of stigma associated with sickle cell disease in adolescents. J Pediatr Nurs. 2016;31(1):55-63. https://doi.org/10.1016/j.pedn.2015.09.011
https://doi.org/10.1016/j.pedn.2015.09.0...
).

Ter sua dor desvalorizada e mal avaliada e o retardo no atendimento nas situações de crise dolorosa foram apontados por todos os participantes. Estudo indica que a espera prolongada para o manejo da dor favorece a piora desse sintoma(2525 Wesley KM, Zhao M, Carroll Y, Porter JS. Caregiver perspectives of stigma associated with sickle cell disease in adolescents. J Pediatr Nurs. 2016;31(1):55-63. https://doi.org/10.1016/j.pedn.2015.09.011
https://doi.org/10.1016/j.pedn.2015.09.0...
). A desvalorização da dor parte, inclusive, dos profissionais que geralmente são responsáveis pela recepção, acolhimento e administração dos medicamentos, como destacado em estudo(2626 Matthie N, Jenerette C. Sickle cell disease in adults: developing an appropriate care plan. Clin J Oncol Nurs. 2015;19(5):562-7. https://doi.org/10.1188/15.CJON.562-567
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).

Pesquisa indica que a dor é descrita pelas pessoas com DF como “persistente”, “sempre presente”, “consistente” e “recorrente”; uma dor constante que pode causar mudanças psicológicas e psicopatológicas, como depressão, ansiedade e distúrbios de personalidade. Assim, a dor pode levar a pessoa ao desequilíbrio, torná-la nervosa, agressiva, sem saber o que fazer, solicitando medicamentos a todo momento aos profissionais de saúde(2727 Coleman B, Ellis-Caird H, McGowan J, Benjamin MJ. How sickle cell disease patients experience, understand and explain their pain: an interpretative phenomenological analysis study. Br J Health Psychol. 2016;21(1):190-203. https://doi.org/10.1111/bjhp.12157
https://doi.org/10.1111/bjhp.12157...
-2828 Goldstein-Leever A, Peugh JL, Quinn CT, Crosby LE. Disease self-efficacy and health-related quality of life in adolescents with sickle cell disease. J Pediatr Hematol Oncol. 2018;42(2):141-4. https://doi.org/10.1097/MPH.0000000000001363
https://doi.org/10.1097/MPH.000000000000...
).

Estigmatizadores estão em posições nas quais podem subordinar, regular ou excluir os outros com base no poder(88 Phelan JC, Lucas JW, Ridgeway CL, Taylor CJ. Stigma, status, and population health. Soc Sci Med. 2014;103:15-23. https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2013.10.00
https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2013...
). Nas relações de poder que se estabelecem entre trabalhadores da saúde e pessoas em adoecimento, existe uma expectativa dos profissionais de disciplinar e docilizar os corpos. Quanto mais o usuário reclama por mais medicamentos ou critica a ação do profissional por não lhe conferir medidas capazes de reduzir seu sofrimento, mais é rotulado e discriminado(2929 Carvalho EMMS, Espírito Santo FH, Izidoro C, Santos MLSC, Santos RB. Nursing care to people suffering with sickle cell disease in emergency unit. Ciênc Cuid Saúde. 2016;15(2):328-35. https://doi.org/10.4025/cienccuidsaude.v15i2.29262
https://doi.org/10.4025/cienccuidsaude.v...
). Neste estudo, as pessoas com DF revelaram receber tratamento descortês e negligente nas crises dolorosas. Receber tratamento para alívio da dor constitui-se em um direito humano e deve ser considerado uma questão ética e não apenas clínica. Dito isso, é fundamental que a crise álgica seja enfrentada pelos profissionais de saúde como uma prioridade no atendimento de pessoas com DF nas unidades de saúde(3030 Silveira NB, Silveira RS, Avila LI, Gonçalvez NGC, Lunard VL, Enderle CF. Therapeutic nursing procedures in the context of pain: patient’s perception. Enferm Foco. 2016;7(1):61-5. https://doi.org/10.21675/2357-707X.2016.v7.n1.669
https://doi.org/10.21675/2357-707X.2016....
).

A intersecção do estigma com o racismo estrutural, evidenciada neste estudo, revela o fracasso coletivo das instituições de saúde em oferecer um serviço apropriado e profissional às pessoas com base em sua cor, cultura e etnia(3131 Sampaio EO. Racismo Institucional: desenvolvimento social e políticas públicas de caráter afirmativo no Brasil. Interações [Internet]. 2003 [cited 2019 Sep 13];4(6):77-83. Available from: http://www.interacoes.ucdb.br/article/view/561/598
http://www.interacoes.ucdb.br/article/vi...
). No caso da DF, o estigma está atravessado pelo racismo, principalmente pelo fato de a maioria da população com DF ser negra e pertencer às camadas mais baixas da sociedade. Desse modo, o estigma leva à interseção de marcas de depreciação social, prejudicando tanto a interação do indivíduo adoecido com os profissionais de saúde quanto a qualidade do cuidado que lhe é oferecido(2626 Matthie N, Jenerette C. Sickle cell disease in adults: developing an appropriate care plan. Clin J Oncol Nurs. 2015;19(5):562-7. https://doi.org/10.1188/15.CJON.562-567
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).

No presente estudo, um participante recorda ter sido questionado sobre a dor por ser negro e aparentemente forte. A ideia de que pessoas negras possuem maior capacidade de suportar a dor, quando comparado ao limiar das pessoas de pele não negra, ainda é difundida nos serviços de saúde na atualidade. Estudo sobre a vivência do preconceito racial e de classe na DF verificou a existência desse mito entre os profissionais de saúde(3232 Collier R. “Complainers, malingerers and drug-seekers” - the stigma of living with chronic pain. CMAJ. 2018;190(7):E204-5. https://doi.org/10.1503/cmaj.109-5553
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). Tal equívoco revela-se quando, em meio a uma crise de dor provocada pela doença, os profissionais que deveriam prestar assistência adequada e humanizada alegam que a pessoa pode suportar a dor sem analgesia, usando como justificativa a cor da sua pele(2626 Matthie N, Jenerette C. Sickle cell disease in adults: developing an appropriate care plan. Clin J Oncol Nurs. 2015;19(5):562-7. https://doi.org/10.1188/15.CJON.562-567
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,3232 Collier R. “Complainers, malingerers and drug-seekers” - the stigma of living with chronic pain. CMAJ. 2018;190(7):E204-5. https://doi.org/10.1503/cmaj.109-5553
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).

A atribuição de responsabilidade ao adoecido pelas repetidas crises álgicas emergiu dos depoimentos, indicando a “culpabilização” enquanto característica do estigma, que, consequentemente, fundamenta atitudes discriminatórias. Sociólogos contemporâneos afirmam que a concepção da dor, que, na modernidade, era tida como uma punição merecida por alguma conduta reprovável, ainda está profundamente enraizada no discurso atual. O resultado disso é o conformismo doloroso e a banalização, por parte de profissionais da saúde, da dor referida pela pessoa enferma, evidenciando, assim, o estigma da pessoa com dor(3232 Collier R. “Complainers, malingerers and drug-seekers” - the stigma of living with chronic pain. CMAJ. 2018;190(7):E204-5. https://doi.org/10.1503/cmaj.109-5553
https://doi.org/10.1503/cmaj.109-5553...
-3333 Peltzer K, Pengpid S. Anticipated stigma in chronic illness patients in Cambodia, Myanmar and Vietnam. Nagoya J Med Sci. 2016;78(4):423-35. https://doi.org/10.18999/nagjms.78.4.423
https://doi.org/10.18999/nagjms.78.4.423...
).

Os homens com DF sofrem discriminação e preconceito ao apresentarem crise de priapismo, uma das complicações da DF. Muitos culpabilizam o adoecido, por confundirem com ereção peniana relacionada ao desejo sexual, de modo que o tratam com desrespeito, rotulações e exposição demasiada, gerando constrangimento e vergonha(2222 Ola BA, Yates SJ, Dyson SM. Living with sickle cell disease and depression in Lagos, Nigeria: a mixed methods study. Soc Sci Med. 2016;161:27-36. https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2016.05.029
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,3434 Maia HAAS, Alvaia MA, Carneiro JM, Xavier ASG, Bessa Jr J, Carvalho ESS. Acesso de homens com doença falciforme e priapismo nos serviços de emergência. BrJP. 2019;2(1):20-6. https://doi.org/10.5935/2595-0118.20190005
https://doi.org/10.5935/2595-0118.201900...
).

Em face das marcas visíveis, como as feridas e a icterícia, por exemplo, a discriminação deriva da aparência. Na dor, não há visibilidade. O descrédito incide sobre o que o sujeito informa sentir. Nesse sentido, enquanto eles tentam esconder marcas visíveis, como as feridas e os olhos amarelados, nos eventos de dor haverá um esforço para tentar provar que ela é real, de forma que as suas narrativas sejam validadas pelos profissionais(1919 Ezenwa MO, Molokie RE, Wilkie DJ, Suarez ML, Yao Y. Perceived injustice predicts stress and pain in adults with sickle cell disease. Pain Manag Nurs. 2015;16(3):294-306. https://doi.org/10.1016/j.pmn.2014.08.004
https://doi.org/10.1016/j.pmn.2014.08.00...
).

Pessoas acometidas por doenças estigmatizantes utilizam técnicas de controle de informação com o objetivo de esconder ou eliminar marcas que se tornam símbolos de estigma. Assim, os sujeitos tendem a manipular informações sobre a doença, no intuito de controlar ou evitar uma situação estigmatizadora em potencial(3333 Peltzer K, Pengpid S. Anticipated stigma in chronic illness patients in Cambodia, Myanmar and Vietnam. Nagoya J Med Sci. 2016;78(4):423-35. https://doi.org/10.18999/nagjms.78.4.423
https://doi.org/10.18999/nagjms.78.4.423...
). Na situação da DF, o silenciamento sobre a doença não ajuda a acessar cuidado, visto que a abordagem da pessoa com DF pode ocorrer de forma inapropriada. Assim, as pessoas devem ser incentivadas a informar que têm a DF sempre que buscarem ajuda profissional.

No grupo estudado, por receio da discriminação antecipada, as ações de controle do estigma implicavam em manejar a dor em casa e retardar ao máximo a busca por serviços de saúde. Desse modo, mantinham o isolamento enquanto a dor não atingisse níveis intoleráveis. A atitude de retardar a busca por serviços de emergência para controlar a dor e outras complicações sinaliza que os adoecidos já introjetaram o estigma. Por assumirem os estereótipos, eles vivenciam o papel do estigma antecipado, isto é, a expectativa de ser estereotipado negativamente ou discriminado em futuros encontros por ter a DF(3535 Bediako SM, Lanzkron S, Diener-West M, Onojobi G, Beach MC, Haywood Jr C. The measure of sickle cell stigma: initial findings from the improving patient outcomes through respect and trust study. J Health Psychol. 2016;21(5):808-20. https://doi.org/10.1177/1359105314539530
https://doi.org/10.1177/1359105314539530...
). Assim, a pessoa adota o isolamento social, o qual representa a falta de interação, contato ou comunicação social, identificado pelo distanciamento psicológico, social ou físico da pessoa adoecida de sua rede de relacionamento(3636 Santos WA, Fuly PSC, Santos MLSC, Souto MD, Reis CM, Castro MCF. Evaluation of social isolation among patients with odor in neoplastic wounds: integration review. Rev Enferm UFPE. 2017;11(supl 3):1495-503. https://doi.org/10.5205/reuol.10263-91568-1-RV.1103sup201723
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-3737 Ouro FL, Sousa AR, Moreira WC, Santos WN, Carvalho ESS, Pereira Á. Impacts on sexuality of men living with chronic wounds: integrative review. Rev Enferm UFPE. 2017;11(2):675-90. https://doi.org/10.5205/1981-8963-v11i2a11987p675-690-2017
https://doi.org/10.5205/1981-8963-v11i2a...
).

Ao se perceberem estigmatizados, os participantes experimentaram sentimentos de revolta, que os levaram a agir de forma agressiva ou a recorrer ao consumo de substâncias psicoativas. A pessoa estigmatizada oscila entre o retraimento e a agressividade, por não conseguir preencher padrões rígidos de normalidade impostos pela sociedade, tendendo a considerar-se indigno, incompleto e inferior(77 Bulgin D, Tanabe P, Jenerette C. Stigma of sickle cell disease: a systematic review. Issues Ment Health Nurs. 2018;39(8):675-86. https://doi.org/10.1080/01612840.2018.1443530
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,3838 Müller T. Stigma, the moral career of a concept: some notes on emotions, agency, teflon stigma, and marginalizing stigma. Symb Interact. 2020;43(1):3-20. https://doi.org/10.1002/symb.473
https://doi.org/10.1002/symb.473...
).

Dentre as motivações para o uso do álcool, destacam-se a tentativa de refugiar-se de problemas e esquecê-los ou ainda utilizá-lo como auxílio para lidar com situações desagradáveis(3939 Silva RA, Menezes JA. Reflexões sobre o uso de álcool entre jovens quilombolas. Psicol Soc. 2016;28(1):84-93. https://doi.org/10.1590/1807-03102015v28n1p084
https://doi.org/10.1590/1807-03102015v28...
). Tais afirmações confirmam os achados deste estudo, no qual foi possível observar que o estigma da pessoa com dor e DF foi o ponto de partida para o consumo abusivo do álcool.

O enfrentamento positivo foi evidenciado pela aproximação dos participantes a práticas religiosas. Eles informaram recorrer aos cultos, às leituras e à escuta de música gospel para superar as adversidades da discriminação da DF. Estudos envolvendo população negra e com DF demonstraram que, além de ampliar a rede de suporte social(4040 Gomes MV, Xavier ASG, Carvalho ESS, Cordeiro RC, Ferreira SL, Morbeck AD. “Waiting for a miracle”: Spirituality/Religiosity in coping with sickle cell disease. Rev Bras Enferm. 2019;72(6):1554-61. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0635
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0...
) e promover bem-estar psicológico, o relacionamento com o divino e com as práticas religiosas é um fator protetor diante do estigma racial(4141 Butler-Barnes ST, Martin PP, Hope EC, Copeland-Linder N, Scott ML. Religiosity and coping: racial stigma and psychological well-being among African American girls. J Relig Health. 2018;57(5):1980-95. https://doi.org/10.1007/s10943-018-0644-9
https://doi.org/10.1007/s10943-018-0644-...
).

Limitações do estudo

Dentre as limitações do estudo, destaca-se a impossibilidade de aprofundar o debate tanto sobre o intercruzamento dos elementos pessoal, social e do ego para compreensão da identidade deteriorada quanto sobre os níveis do estigma estrutural. Além disso, foram ouvidas pessoas majoritariamente usuárias dos serviços públicos, de baixa escolaridade e negras que vivenciavam também o racismo. Nesse sentido, os resultados deste estudo não podem ser generalizados, visto que os processos de interação podem ser influenciados por diferenciais de classe e raça/cor.

Contribuições para a área da Enfermagem, Saúde ou Política Pública

Os resultados deste estudo evidenciam a necessidade de: maior difusão do conhecimento sobre a DF na esfera pública e de formação profissional; compreensão dos desdobramentos sociais nos indivíduos adoecidos, visando prevenir atitudes discriminatórias que ampliam sua vulnerabilidade.

Ao reconhecerem as características do estigma, trabalhadores da saúde podem adotar uma postura autovigilante sobre as atitudes de descuidado operadas pelo estigma durante as interações nas unidades prestadoras de serviços. Novos estudos e intervenções que possam explorar o estigma sob a perspectiva dos estigmatizadores são recomendados como pontos de partida para o enfrentamento do estigma dirigido aos adoecidos e para a redução de suas consequências.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estigma vivenciado pelas pessoas com dor e DF ocorre nos variados contextos de interação: círculo familiar, ambiente de trabalho ou de atenção à saúde. Os adoecidos por DF sofrem violência, são desqualificados, diminuídos, adjetivados com termos pejorativos e vítimas de abandono e maus-tratos. Isso se traduz em déficit no manejo da doença, baixa adesão às medidas de autocuidado e dificuldades no acesso ao tratamento, orientações de qualidade, ações preventivas e profiláticas de complicações que impactem a qualidade de vida dos indivíduos.

A equipe multiprofissional, ao prestar assistência integral e possibilitar o acesso às orientações de qualidade, pode contribuir para vencer a invisibilidade da doença, esclarecer dúvidas, desmistificar crenças que colocam o adoecido em condição de depreciação, bem como sensibilizar a família e a sociedade quanto às limitações físicas e psicoemocionais que a dor produz na pessoa com DF.

No contexto dos serviços de saúde, urge qualificar os profissionais sobre a DF nos diversos níveis de atenção, a fim de que reconheçam a dor como uma das complicações mais severas da doença, para que estejam aptos a avaliar e tratar o episódio de dor, entendendo que constitui uma emergência clínica. Assim, é essencial que, durante a interação com os adoecidos, prevaleça a pergunta: “O que posso fazer para lhe ajudar a não sentir tanta dor?”

  • FOMENTO
    Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), PDE 203809/2018-1.

AGRADECIMENTO

Associação Feirense de Pessoas com Doença Falciforme, Associação Baiana de Pessoas com Doença Falciforme, College of Nursing - University of South Carolina.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Mirtzy Reichembach

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    21 Jul 2020
  • Aceito
    30 Jan 2021
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