Acessibilidade / Reportar erro

Reflexividade ética na pesquisa qualitativa: o uso de filmes cinematográficos como instrumento de formação continuada

RESUMO

Objetivos:

analisar ético-estético-politicamente o cine-debate do filme “Human”, refletindo sobre a formação crítica dos investigadores na pesquisa qualitativa.

Métodos:

fundamentou-se na Bioética Narrativa o debate em roda das questões morais, como a essência da humanidade, o caráter compreensivo, relacional e reflexivo dos métodos qualitativos e o sentido ético e social das pesquisas qualitativas.

Resultados:

as narrativas das experiências de moralidade, carregadas de fatos e valorações, destacam a importância da reflexividade em todas as fases do processo da pesquisa qualitativa, do pensar temas e pergunta de pesquisa ao trabalho de campo, da análise dos dados à produção dos relatórios, fomentando a responsabilidade do pesquisador, tanto na intervenção para a compreensão e narração do mundo, quanto na sua possível transformação.

Considerações Finais:

a arte cinematográfica torna-se instrumento de reflexividade capaz de afetar e mobilizar, em uma fusão de horizontes de compreensão de universos diferentes que dialogam.

Descritores:
Pesquisa Qualitativa; Bioética; Ética; Cinema; Educação Continuada

ABSTRACT

Objectives:

to analyze ethically, aesthetically and politically the cine-debate of the movie “Human”, reflecting on training of researchers in qualitative research.

Methods:

the debate about moral questions as the essence of humanity was based on Narrative Bioethics; the comprehensive, relational and reflective character of qualitative methods; and the ethical and social sense of qualitative researches.

Results:

the narratives of the experiences of morality, loaded with facts and valuations, highlighting the importance of reflexivity in all phases of the qualitative research process, from thinking about themes and research questions to fieldwork, from data analysis to the production of reports, fostering the researcher’s responsibility both in the intervention for understanding and narrating the world, and in its possible transformation.

Final Considerations:

cinematographic art becomes an instrument of reflexivity capable of affecting and mobilizing students, in a fusion of horizons of understanding of different universes that dialogue.

Descriptors:
Research, Qualitative; Bioethics; Ethics; Motion Pictures; Education, Continuing

RESUMEN

Objetivos:

analizar ético-estético-políticamente el cine-debate de la película “Human”, reflexionando sobre la capacitación crítica de los estudiosos en la investigación cualitativa.

Métodos:

el debate en rueda de las cuestiones morales se fundamentó en la Bioética Narrativa, como la esencia de la humanidad, el carácter comprensivo, relacional y reflexivo de los métodos cualitativos y el sentido ético y social de las investigaciones cualitativas.

Resultados:

las narraciones de las experiencias de moralidad, cargadas de hechos y valoraciones, resaltan la importancia de la reflexividad en todas las fases del proceso de la investigación cualitativa, desde el elucubrar sobre el tema y la pregunta de la investigación hasta el trabajo de campo; desde el análisis de los datos hasta la producción de los reportes, incentivando la responsabilidad del investigador, tanto en la intervención para la comprensión y narración del mundo, como en su posible transformación.

Consideraciones Finales:

el arte cinematográfico se convierte en un instrumento de reflexividad capaz de afectar y movilizar en una fusión de horizontes de comprensión de diferentes universos que dialogan.

Descriptores:
Investigación Cualitativa; Bioética; Ética; Películas Cinematográficas; Educación Continua

Da proposta de um cine-debate para a promoção-formação da reflexividade

Como os filmes trazem consigo diferentes dimensões da realidade e seus múltiplos significados, tornam-se importantes veículos de comunicação, expressão e percepção do mundo. A pesquisa qualitativa, na busca pela compreensão da realidade e do contexto de pesquisa, promove a formação do pesquisador ao mesmo tempo em que desenvolve o próprio método. Como parte da programação do VIII Congresso Iberoamericano de Pesquisa Qualitativa em Saúde, que aconteceu na cidade de Florianópolis-SC-Brasil em 2018, foi promovido um cine-debate do filme “Human”. O documentário lançado em 2015 foi proposto desde seu lançamento para ser utilizado, também, como um projeto educacional. A partir de 40 anos de fotografias do planeta e da diversidade humana, o diretor Yan Arthus-Bertrand, que também é fotógrafo, ambientalista e fundador da Foundation Good Planet, em parceria com a Foundation Bettencourt Schueller (ambas sem fins lucrativos) e a France Television, buscou responder por que a humanidade não avança no sentido de sua convivência harmoniosa. Para além das estatísticas, a resposta foi encontrada nas histórias de vida captadas por sua lente: únicas e experienciais(11 Bettencourt Schueller Foundation. Goodplanet Foundation. Human [Internet]. 2015 [cited 2019 May 10]. Available from: http://www.human-themovie.org
http://www.human-themovie.org...
).

Com o envolvimento de 16 jornalistas, 20 operadores de câmeras, 5 editores e mais 12 pessoas, o diretor gravou e sintetizou 500 horas de tomadas aéreas e 2 mil horas de entrevistas, realizadas ao longo de 18 meses, com 2020 pessoas, em 60 países e 63 idiomas. O documentário realiza uma viagem multicultural pelo planeta, sem roteiro pré-estabelecido, construindo uma narrativa fílmica da universalidade humana, a partir das singularidades de cada entrevistado e suas vidas. São histórias que se misturam por meio de identidades e lugares diversos, mas que buscam, em comum, sentido, reconhecimento, aceitação e valorização. Trata-se de uma narração em três vozes poeticamente entrelaçadas: seres humanos, terra e música, conformando um convite à pausa, à introspecção e ao debate(11 Bettencourt Schueller Foundation. Goodplanet Foundation. Human [Internet]. 2015 [cited 2019 May 10]. Available from: http://www.human-themovie.org
http://www.human-themovie.org...
).

Human” apresenta-se como um interessante instrumento de formação continuada para abordagem da reflexividade ética na pesquisa qualitativa, entendida como uma atenção constante sobre como e o que ocorre no contexto empírico que afeta o pesquisador e a sua obra, afetando, por sua vez, o campo e a vida social(22 Minayo MCS, Guerriero ICZ. Reflexividade como éthos da pesquisa qualitativa. Ciênc Saúde Coletiva. 2014;19(4):1103-12. https://doi.org/10.1590/1413-81232014194.18912013
https://doi.org/10.1590/1413-81232014194...
). A expressão da consciência do pesquisador sobre sua conexão com a pesquisa, em um processo de voltar-se a si mesmo para analisar criticamente o efeito de si sobre a pesquisa, o impacto de suas interações com os participantes e a interação-repercussão de sua pesquisa com o mundo real, perpassa todos os níveis e fases do estudo. A reflexividade aparece tanto como um critério de qualidade da pesquisa qualitativa, quanto como habilidade humana que deve ser aprendida e desenvolvida, um componente central na formação de profissionais investigativos(33 Silva-Satlov I, Rivera Pérez R. Alfabetizacio´n cienti´fica para la salud global. una reflexio´n respecto a la formacio´n en investigacio´n. Interface (Botucatu). 2019;23:1-9. https://doi.org/10.1590/Interface.170444
https://doi.org/10.1590/Interface.170444...
).

Esta reflexão busca aprofundar a análise ético-estético-política iniciada na atividade pedagógico-coletiva desenvolvida naquele Congresso, instrumentalizadora de (auto)críticas comprometidas com as pesquisas qualitativas em saúde, protagonistas da construção de subjetividades e conformação de sujeitos pesquisadores. A atividade proposta convidou os interessados a assistirem juntos à terceira versão do filme “Human” (com acesso livre, disponibilizado pelos produtores via Youtube), que trata das temáticas do amor, da vida feminina, do trabalho e da pobreza. Vinte e duas pessoas aceitaram o convite e, em seguida, participaram de uma roda de conversa, analisando e conectando o filme à reflexividade, à pesquisa qualitativa e à formação de pesquisadores.

A pergunta “o que nos faz humanos?” estrutura e atribui consistência ao filme, desencadeando a problematização de conceitos e contextos relacionados à reflexividade, tais como: diversidade, complexidade, pluralidade, singularidade, condicionamentos, autodeterminação, irmandade, solidariedade e humanidade. Além disso, remete ao significado de qualidade: um conjunto de propriedades fundamentais ligadas ao ser, inseridas em um determinado objeto ou fenômeno e indicativas dos limites que separam uns dos outros, acarretando sua modificação, a modificação radical do próprio objeto ou fenômeno(44 Kosik K. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2002. 250 p.). Os fenômenos ou fatos, apesar de poderem ser considerados acontecimentos externos objetivos, não são de interesse da ciência por si mesmos, mas porque a eles é atribuída relevância social (valor), agregando-lhes uma perspectiva científica e transformando-os em constructos científicos de relações que ultrapassam o mero fato, para torná-los valor. Assim, a propriedade de qualificar, relacionada às percepções dos indivíduos sobre os diversos fatores da vida (social, cultural, econômica, relacional), está influenciada por necessidades e expectativas do observador ou pesquisador, suas vontades, desejos, objetivos e interesses. Tal fator leva os pesquisadores que empregam metodologias qualitativas a assumirem compromissos éticos de cidadania com as pessoas e os temas com os quais trabalham(22 Minayo MCS, Guerriero ICZ. Reflexividade como éthos da pesquisa qualitativa. Ciênc Saúde Coletiva. 2014;19(4):1103-12. https://doi.org/10.1590/1413-81232014194.18912013
https://doi.org/10.1590/1413-81232014194...
).

A globalização e a migração das pessoas pelo mundo, fomentando contemporaneamente a pluralidade moral, colocam assuntos como diferença, diversidade e cuidado em certa centralidade no âmbito das pesquisas sociais, amplificando a importância do enfoque qualitativo, já muito utilizado em algumas áreas da saúde(55 Souza CJ, Silvino ZR. The production of the professional master`s degree in nursing of the Federal University of Santa Catarina, 2013-2016. Rev Bras Enferm. 2018;71(suppl 6):2751-7. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0153
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0...
). No vasto campo do conhecimento científico, a pesquisa qualitativa faz suscitar perguntas e reflexões sobre a complexidade do humano como ser vivo imerso em relações, ambientes e contextos, ou seja, em sua práxis social. Trata-se, nesse sentido, de um reiterado e irresistível convite à reflexividade, o que aproxima o filme “Human” das metodologias qualitativas. Busca-se, nessa perspectiva, apreender a condição humana e refletir sobre o significado de sua existência, do papel do pesquisador e da própria pesquisa qualitativa, a partir do ser humano como sujeito histórico real e social que cria e recria a si próprio, “dotado de sentidos e potencialidades”, imerso num “infinito processo da humanização do homem”(66 Mattos MP. Viagem educacional e oficinas temáticas como ferramentas de formação construtivista em psicofarmacologia clínica. Reciis Rev Eletron Comun Inf Inov Saúde. 2018;(4):478-88. https://doi.org/10.29397/reciis.v12i4.1448
https://doi.org/10.29397/reciis.v12i4.14...
).

Roteiro e ação: fundamentos e estratégias metodológicas

O emprego do cinema na educação dos profissionais da área da saúde não é recente, sendo a primeira publicação sobre o seu uso na educação médica datado de 1979. Entretanto, a partir dos anos 2000, houve um importante aumento desse tipo de estratégia pedagógica não-tradicional, voltada a manter a atenção dos estudantes e gerar discussão sobre temas relevantes, como uma metodologia ativa(66 Mattos MP. Viagem educacional e oficinas temáticas como ferramentas de formação construtivista em psicofarmacologia clínica. Reciis Rev Eletron Comun Inf Inov Saúde. 2018;(4):478-88. https://doi.org/10.29397/reciis.v12i4.1448
https://doi.org/10.29397/reciis.v12i4.14...
) e de educação do olhar. Esse olhar é movimento em si mesmo, com potência formativa, crítica, reflexiva e transformadora, a partir das indagações que suscita e do posicionamento ético problematizador que dele emerge. O cinema e a experiência do cine-debate abrem a possibilidade aos participantes de considerarem a sua implicação nos processos de conhecimento e humanização(77 Lobo MO, Garcez FCM, Bezerra AJC, Gomes L. Relação médico-paciente idoso no cinema: visões de atendimento. Rev Bioét. 2017;25(2):382-91. https://doi.org/10.1590/1983-80422017252198
https://doi.org/10.1590/1983-80422017252...
).

O cinema, assim, transforma-se em um poderoso instrumento de aproximação ao real, seja pela sedução da linguagem artística ou pela sutileza e contundência das narrativas. Permite-se, através delas, “desnudar a própria existência humana como narrativa - temporal, circunstancial, concreta, repleta de emoção e de vida - possibilitando o distanciamento das margens estreitas dentro das quais a sociedade tem pensado a razão”(88 Hoffmann JB, Moratelli LB, Finkler M. Educação permanente em saúde: uma experiência do projeto "Bioética pelas Lentes do Cinema". Extensio. 2017;14(26):97-106. https://doi.org/10.5007/1807-0221.2017v14n26p97
https://doi.org/10.5007/1807-0221.2017v1...
). O uso do cinema, guiado pela Bioética Narrativa de inspiração hermenêutica - que se apoia em conceitos-chave, como responsabilidade e deliberação -, torna-se instrumento de acesso à pluralidade da realidade e à diversidade de percepções e perspectivas, exploração de múltiplas experiências distanciadas de um positivismo puro, imaginação como forma de conhecer e aprofundar a realidade, experimentação do desconhecido, possibilidade de diálogo (entre o saber do filme e o do espectador) e, ainda, traduções culturais, interpretação de experiências e de lugares diversos(88 Hoffmann JB, Moratelli LB, Finkler M. Educação permanente em saúde: uma experiência do projeto "Bioética pelas Lentes do Cinema". Extensio. 2017;14(26):97-106. https://doi.org/10.5007/1807-0221.2017v14n26p97
https://doi.org/10.5007/1807-0221.2017v1...
). Desnudando imagens e representações sociais, indaga-se quem são os vulnerados de cada obra, se habitam a vida social, que relações são estabelecidas e quais nossas responsabilidades. O filme-documentário pode condensar conhecimento e reflexo sensorial e sensitivo para uma maior proximidade com as representações sociais(99 Cerdá JM, Ramacciotti K. La enseñanza de Historia Social en la carrera de Enfermería. Interface (Botucatu). 2018;22(67):993-1002. https://doi.org/10.1590/1807-57622017.0464
https://doi.org/10.1590/1807-57622017.04...
).

Fundamentado nesse referencial, foi empregado o Método da Roda para estimular e facilitar o debate entre os participantes: a roda como espaço democrático de circulação da palavra, como um modo de cogestão e coprodução e em permanente movimento. Seguindo a análise do filme proposta por Flick(1010 Flick U. Introdução à Pesquisa Qualitativa. 4ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2009. 408 p.), duas leituras foram desenvolvidas: a leitura realista das histórias que constituem o filme ou uma descrição verídica do fenômeno, sendo seu significado desvelado por uma análise apurada dos conteúdos e dos aspectos formais das imagens; e uma leitura subversiva, destacando-se as ideias do autor que podem ter influenciado o filme e as dos intérpretes que podem influenciar a interpretação.

No cine-debate, os participantes receberam inicialmente um material informativo sobre a origem, os objetivos e a realização do filme “Human”. Posteriormente, apresentou-se a obra cinematográfica e justificou-se sua eleição relacionada à intencionalidade da proposta de trabalho. Frente à diversidade de temáticas suscitadas pelo filme e como forma de orientar sua apreciação e operacionalização do debate posterior, sugeriu-se a observação de eixos de análise relacionados à questão da reflexividade na pesquisa: as questões morais como essência da humanidade; o caráter compreensivo, relacional e reflexivo dos métodos qualitativos; e o sentido ético e social das pesquisas qualitativas. Terminada a exibição do filme, os participantes reposicionaram-se em roda para coletivamente analisar e compartilhar suas percepções obra a obra, traçando, ao mesmo tempo, um paralelo entre cenas, falas, olhares e a pesquisa qualitativa com seus desafios. Nesse processo, buscou-se o incremento da perspectiva de cada um e de todos. O debate foi mediado para estimular a participação do maior número de interlocutores, articulando os diferentes olhares e, principalmente, focalizando o objeto em pauta.

Entre o filme e as palavras: o debate sobre a pesquisa qualitativa a partir da arte e a arte como resultado de pesquisa

Human” é uma obra de arte concebida e construída à semelhança de um processo de pesquisa em ciências sociais e humanas. Seguindo um roteiro prévio de perguntas concatenadas, o filme constrói-se como parte da inquietação de seu criador, na procura por respostas só compreendidas a partir do contato humano. Não poucas vezes, o expectador sente-se um antropólogo em pleno campo de pesquisa. Uma situação de similitude vai se desvelando ao longo de todo o filme: no olhar como foco de convergência; na escuta das palavras e dos silêncios; na observação das expressões; no interesse autêntico sobre as narrativas; na atribuição dos sentidos; na busca do que é singular e, ao mesmo tempo, universal; na costura dos discursos; no agrupamento dos temas; na direcionalidade ética; e no objetivo político da intervenção. Essa perspectiva empática entre diretor e pesquisador, por vezes, parece se alterar entre entrevistados e expectadores na medida em que, na frente dos olhos centralizados na tela, a audiência passa a ser objeto de intervenção do documentário. A arte como instrumento de reflexividade, como recurso para afetar e mobilizar o outro através de uma fusão de horizontes de compreensão, deixa transparecer esses dois universos - ciência e arte -, que se conversam ou podem se complementar.

Na pesquisa qualitativa, há necessidade constante de julgamentos e tomada de decisões sobre o melhor caminho a seguir, havendo a necessidade, por isso, de manter a mente aberta, esperar o inesperado e ter uma atitude reflexiva. O discurso denomina formas específicas de construção de sentidos que podem ocorrer através da linguagem oral e escrita, mas também visual, auditiva e gestual. No filme, a sequência dos olhares, das “entre-vistas”, das bocas e rostos que falam tanto quanto as falas dos entrevistados protagonizam as cenas, ressaltados por uma luz única que incide justamente no que se quer destacar: a humanidade que capturamos na expressão da razão e da emoção do outro. Trata-se de um outro que sustenta seu olhar em direção à câmera, que sustenta seu silêncio, seu sofrimento, seus desejos e expectativas, valores, necessidades e desejos. Ao fazê-lo, exige reciprocidade: ao reconhecermos o outro, também nos reconhecemos; ao pensarmos o sentido da vida e da existência atribuído pelo outro, pensamos no nosso próprio.

Essa introspecção é favorecida pelas cenas de paisagens que intercalam as entrevistas, demarcando em conjunto com a musicalidade “passagens de capítulos”, sempre conformadas pela presença ou interferência direta das pessoas e iniciadas por preâmbulos que introduzem o expectador a uma nova pergunta, a ser respondida no próximo capítulo. A pergunta oculta que dá origem a essa passagem não precisa ser ouvida para ser compreendida, pois ampara-se no espaço do contar e ouvir as histórias. As cenas permitem vislumbrar inúmeras aproximações ou interpretações, tal como a travessia de uma ponte pênsil, sugestionando os caminhos difíceis, tortuosos e inseguros da vida e da própria pesquisa qualitativa, o que produz sentidos aos pesquisadores-expectadores.

A intencionalidade dos produtores do documentário-arte parece ter sido a de que a composição entre as falas, a música e as paisagens aguçassemm os cinco sentidos humanos: no gosto amargo da fome e da exuberante e iníqua desigualdade; no cheiro dos lugares e das pessoas que foram deixados para trás; no calor e no frio que acompanham as paisagens simbólicas da brevidade da vida humana; na visão da cicatriz deixada pelo arado na terra, da roupa estendida no solo, das flores sendo colhidas, enfim, do trabalho humano extrator da subsistência na terra; nos sons multiculturais que costuram um sentido de unidade para a humanidade.

Emoção, estética e poética misturam-se. São cenas que parecem buscar o contraponto entre as dimensões extraordinárias da natureza e a do ser humano, selecionadas a partir de um olhar voltado ao trabalho e vida humanos. Essas cenas amplificam-se no cotidiano, redimensionando o humano na natureza, na humanidade e no tempo, de modo que remetem à complexa teia de relações, ao poder de dominação do humano sobre a natureza e sobre si mesmo, como ser social, ao mesmo tempo em que está submisso à força e imensidão das paisagens. Além disso, essas cenas que sugerem entendimentos ocultos e entrelaçados, esperando descoberta, atribuição de significados, o que requer intervenção e suplicando transformação. Trata-se de um emaranhado que remete ao fazer da pesquisa qualitativa, do ver caótico inicial às entrelinhas que precisam ser desveladas, até à amarração que acontece entre participantes, objeto de pesquisa e pesquisador.

A reflexividade do pesquisador como uma tarefa permanente e inacabada

Diante da competitividade imposta à vida contemporânea, capitalisticamente subsumida a um hedonismo que categoriza, estigmatiza e exclui pessoas ou grupos de indivíduos por seu poder (ou não) de “compra”, reduzem-se os espaços públicos de convívio social e encontros permissíveis à contação de histórias. Somente isso já justificaria a riqueza da pesquisa qualitativa e a utilização do filme como indutores de reflexão ético-política. Entretanto, além disso, o documentário-arte aqui focalizado ou a pesquisa-arte-documentário alcança o que se pretende com uma pesquisa qualitativa: que outros sintam o que o pesquisador pode sentir, que outros vejam por meio de seus olhos e que escutem por meio de seus ouvidos, compreendendo, assim, as realidades em foco. Trata-se de racionalidade e emoções que clamam pela ética do pesquisador diante do pesquisado, seu contexto e história de vida, estabelecendo confiança e pensando criticamente. No espaço coletivo de debater o filme, propiciou-se pensar reflexivamente a pesquisa qualitativa, bem como a importância do processo reflexivo inserido na pesquisa como processo de ação(22 Minayo MCS, Guerriero ICZ. Reflexividade como éthos da pesquisa qualitativa. Ciênc Saúde Coletiva. 2014;19(4):1103-12. https://doi.org/10.1590/1413-81232014194.18912013
https://doi.org/10.1590/1413-81232014194...
).

Como na pesquisa qualitativa pesquisador e pesquisados são transformados pelo encontro e pelas trocas no processo de pesquisar, a reflexividade torna-se tema crítico e tarefa inacabável. Assim, a reflexividade, exercida na ou pela pesquisa, “requer a contextualização dos sujeitos e dos fenômenos no tempo e no espaço, e uma postura interativa e em intersubjetividade por parte do pesquisador”(22 Minayo MCS, Guerriero ICZ. Reflexividade como éthos da pesquisa qualitativa. Ciênc Saúde Coletiva. 2014;19(4):1103-12. https://doi.org/10.1590/1413-81232014194.18912013
https://doi.org/10.1590/1413-81232014194...
). A prática da reflexividade é, assim, marcada pela intersubjetividade e pela solidariedade universal, tornando-se permanente na pesquisa qualitativa, sem que seja possível isolar o conhecimento produzido da pessoa que o produziu. Nesse sentido, teoria e método tornam-se integrados, tendo em vista que o método não é um conjunto de regras ou receitas a serem seguidas, mas uma reflexão contínua e teoricamente fundada sobre as práticas sociais e relações pesquisadas.

A eticidade e a cientificidade devem ser vistas como ideias reguladoras de uma alta abstração, não apenas como sinônimo de modelos ou normas a serem seguidos(22 Minayo MCS, Guerriero ICZ. Reflexividade como éthos da pesquisa qualitativa. Ciênc Saúde Coletiva. 2014;19(4):1103-12. https://doi.org/10.1590/1413-81232014194.18912013
https://doi.org/10.1590/1413-81232014194...
), (66 Mattos MP. Viagem educacional e oficinas temáticas como ferramentas de formação construtivista em psicofarmacologia clínica. Reciis Rev Eletron Comun Inf Inov Saúde. 2018;(4):478-88. https://doi.org/10.29397/reciis.v12i4.1448
https://doi.org/10.29397/reciis.v12i4.14...
). Compreende-se que o “conhecimento não é contemplação”, mas expressão da práxis humana, na qual o homem é parte da natureza ao mesmo tempo em que a ultrapassa. Assim, comportando-se livremente com as próprias criações, procura destacar-se delas e levanta o problema do seu significado, buscando descobrir qual o seu próprio lugar no universo(44 Kosik K. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2002. 250 p.). A reflexividade permanentemente presente no trabalho de pesquisa qualitativa leva o pesquisador a observar-se a si próprio, bem como o seu comportamento no campo, em respeito aos seus interlocutores, perfazendo um processo de mão dupla: o pesquisador conhece as pessoas e as comunidades em estudo, modificando a si mesmo no processo de construção do conhecimento, ao mesmo tempo em que se torna conhecido por elas, podendo modificar seus processos de vida e ação. Assim, leva-se em conta, para além dos métodos e das técnicas, os atores e as atrizes, os autores e as autoras envolvidos no processo de conhecimento, compondo a ação de compreender, interpretar, relatar e divulgar resultados.

O olhar científico deve submeter o mundo das representações e do pensamento comum a um exame que ultrapasse seus aspectos imediatos, chegando a um lugar onde “as formas reificadas do mundo objetivo e ideal se diluem, perdem a sua fixidez, naturalidade e pretensa originalidade, para se mostrarem como fenômenos derivados e mediatos, como sedimentos e produtos da práxis social da humanidade”(44 Kosik K. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2002. 250 p.).

Assim, a realidade não é concebida como um estado já realizado e fora do tempo, aferrado a verdades dadas e predestinadas, prontas e acabadas, impressas de forma imutável na consciência humana, mas como partes de um processo no curso do qual a humanidade e o indivíduo realizam a sua própria verdade, operando a humanização do homem: um mundo em que a verdade devém. Destruindo uma pseudoconcreticidade das coisas e fenômenos mundanos “reificados”, a verdade não se torna nem inatingível, nem alcançável de uma vez para sempre, mas vai se fazendo, desenvolvendo-se e realizando-se a partir de um pensar que busque desvelar para além do homem reificado, em relações objetificadas, ilusórias e aparentes. Necessita-se, para tanto, de uma reflexão não fetichizada, que perceba a criação do ambiente humano como fato humano, dotado de condições de transparente racionalidade que descoisifique a práxis manipulada(44 Kosik K. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2002. 250 p.).

Quando o filme se propõe expor a diversidade humana, remove o véu da invisibilidade especialmente posto sobre os vulnerados da terra e da Terra - público que compõe o filme: rostos desdentados, albinos, amarelos, brancos, pretos ou pardos; rugas, sorrisos e lágrimas; vestes e adereços que nos falam de seus diferentes conceitos de felicidade, de suas angústias e dos inúmeros valores morais, prenhes de sobrevivência e cultura. As narrativas das experiências de moralidade, carregadas de fatos e valorações, destacam a importância da reflexividade no processo da pesquisa, em todas as suas fases, desde o pensar dos temas e da pergunta de pesquisa ao trabalho de campo, da análise dos dados à produção dos relatórios, fomentando a responsabilidade do pesquisador, tanto na intervenção para a compreensão e narração do mundo humanizado, quanto na sua possível transformação.

Esse aspecto remete a uma reflexão crítica sobre a própria eficácia social da pesquisa na qual se busca dar centralidade ao encontro, à entrevista, à escuta, ou seja, às subjetividades e intersubjetividades que se manifestam para além das palavras e que, nesse encontro, se recriam. A identificação do significado e do impacto da participação dos sujeitos em “Human” fica explícita nas cenas e falas finais, o que remete ao efeito que a pesquisa qualitativa causa nos sujeitos que dela participam, suscitando a necessidade dessa identificação, implicação e devolução.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A prática da reflexividade na pesquisa qualitativa torna-se um meio pelo qual o conhecimento produzido e o pesquisador que o produziu podem ser compreendidos como construção e resultado do processo investigativo. Diz respeito a uma percepção que remete à necessidade de reflexão crítica sobre a eficácia social da pesquisa, tanto para indivíduos, comunidades e pesquisadores, quanto para o desenvolvimento da própria ciência. Ao mesmo tempo em que se sugere a apresentação de resultados de pesquisa no formato audiovisual, como uma nova possibilidade ético-estético-política da arte mesclada à ciência, percebe-se a pesquisa social, humana e da saúde como uma ciência que pode estar entrelaçada à arte, especialmente em seu aspecto formativo e reflexivo.

REFERENCES

  • 1
    Bettencourt Schueller Foundation. Goodplanet Foundation. Human [Internet]. 2015 [cited 2019 May 10]. Available from: http://www.human-themovie.org
    » http://www.human-themovie.org
  • 2
    Minayo MCS, Guerriero ICZ. Reflexividade como éthos da pesquisa qualitativa. Ciênc Saúde Coletiva. 2014;19(4):1103-12. https://doi.org/10.1590/1413-81232014194.18912013
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232014194.18912013
  • 3
    Silva-Satlov I, Rivera Pérez R. Alfabetizacio´n cienti´fica para la salud global. una reflexio´n respecto a la formacio´n en investigacio´n. Interface (Botucatu). 2019;23:1-9. https://doi.org/10.1590/Interface.170444
    » https://doi.org/10.1590/Interface.170444
  • 4
    Kosik K. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2002. 250 p.
  • 5
    Souza CJ, Silvino ZR. The production of the professional master`s degree in nursing of the Federal University of Santa Catarina, 2013-2016. Rev Bras Enferm. 2018;71(suppl 6):2751-7. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0153
    » https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0153
  • 6
    Mattos MP. Viagem educacional e oficinas temáticas como ferramentas de formação construtivista em psicofarmacologia clínica. Reciis Rev Eletron Comun Inf Inov Saúde. 2018;(4):478-88. https://doi.org/10.29397/reciis.v12i4.1448
    » https://doi.org/10.29397/reciis.v12i4.1448
  • 7
    Lobo MO, Garcez FCM, Bezerra AJC, Gomes L. Relação médico-paciente idoso no cinema: visões de atendimento. Rev Bioét. 2017;25(2):382-91. https://doi.org/10.1590/1983-80422017252198
    » https://doi.org/10.1590/1983-80422017252198
  • 8
    Hoffmann JB, Moratelli LB, Finkler M. Educação permanente em saúde: uma experiência do projeto "Bioética pelas Lentes do Cinema". Extensio. 2017;14(26):97-106. https://doi.org/10.5007/1807-0221.2017v14n26p97
    » https://doi.org/10.5007/1807-0221.2017v14n26p97
  • 9
    Cerdá JM, Ramacciotti K. La enseñanza de Historia Social en la carrera de Enfermería. Interface (Botucatu). 2018;22(67):993-1002. https://doi.org/10.1590/1807-57622017.0464
    » https://doi.org/10.1590/1807-57622017.0464
  • 10
    Flick U. Introdução à Pesquisa Qualitativa. 4ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2009. 408 p.

Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Margarida Vieira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2019
  • Aceito
    09 Jan 2021
Associação Brasileira de Enfermagem SGA Norte Quadra 603 Conj. "B" - Av. L2 Norte 70830-102 Brasília, DF, Brasil, Tel.: (55 61) 3226-0653, Fax: (55 61) 3225-4473 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: reben@abennacional.org.br