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Investigação qualitativa em tempos de pandemia

INTRODUÇÃO

A investigação qualitativa permite a compreensão de realidades singulares que, dificilmente, são apreendidas a partir de um único prisma, assumindo-se cada vez mais como um campo inter e transdisciplinar11 Oliveira ESF, Baixinho CL, Presado MHCV. Qualitative research in health: a reflexive approach. Rev Bras Enferm [Internet]. 2019[cited 2020 Dec 28];72(4):830-1. Available from: https://doi.org/10.1590/0034-7167.2019-720401
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-22 Baixinho CL, Presado MH, Oliveira ESF. The place of qualitative research in Evidence-Based Practice. Rev Bras Enferm [Internet]. 2020 [cited 2020 Dec 29];73(5):e2020n5. Available from: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020730501
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, com métodos e técnicas especificas que implicam a relação entre o investigador e os participantes para a colheita, análise e validação das transcrições e análise efetuada pelo pesquisador.

A pandemia pelo SARS-CoV-2 introduziu limitações claras à investigação, pois dificultou a ida a campo, diminuiu a possibilidade de incursões nos contextos de pesquisa, especialmente nos serviços de saúde, afetando a utilização de técnicas que usam a palavra, o olhar e a empatia33 Minayo MCS, Costa AP. Técnicas que fazem uso da Palavra, do Olhar e da Empatia: pesquisa qualitativa em ação. Aveiro: Ludomedia; 2019.. Muitos estudos foram suspensos e/ou as atividades reorganizadas, em função dos próprios planos de contingência da COVID-19, e se, por um lado, a pandemia dificultou a pesquisa, por outro, fomentou a criatividade dos investigadores para responder a novos desafios.

As novas tecnologias emergiram como um instrumento de suporte à pesquisa qualitativa, permitindo a manutenção das redes de comunicação e colaboração entre investigadores, profissionais e participantes, colocando uma vez mais a investigação ao serviço da saúde coletiva tanto do ponto de vista do processo (transferência) quanto do conteúdo (conhecimento)44 Baixinho CL, Presado MH, Ribeiro J. Qualitative research and the transformation of public health. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2019[cited 2020 Dec 28];24(5):1583-3. Available from: https://doi.org/10.1590/1413-81232018245.05962019
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Consideramos que essas transformações, possíveis face às circunstâncias mundiais, suscitam algumas questões que precisam de discussão alargada, sobretudo pelos “pesquisadores qualitativos”. Indubitavelmente, a observação participante e as técnicas da etnografia não podem ser feitas online e implicam a presença real e não virtual do pesquisador. Porém, os grupos focais, o grupo nominal, as entrevistas e as rodas de conversa foram possíveis com a utilização de plataformas interativas que permitem o contato visual e a gravação, mas que colocam o investigador longe do contexto onde ocorre fenômeno e com uma visualização limitada dos participantes.

A existência de uma interface dificulta a construção de uma relação de confiança e empatia. Há elementos importantes não verbais que não são captados em pleno quais sejam a postura, o gesto e o contexto. Não são alcançados com profundidade, na sua totalidade, sem a interação face a face, como observam Minayo e Costa. Cada entrevista expressa de forma diferenciada a luz e as sombras da realidade, por isso, quando analisada, precisa incorporar o contexto e, sempre que possível, ser acompanhada e complementada por informações provenientes da observação do cenário em estudo33 Minayo MCS, Costa AP. Técnicas que fazem uso da Palavra, do Olhar e da Empatia: pesquisa qualitativa em ação. Aveiro: Ludomedia; 2019..

A ‘não presença’ coloca ainda limitações à análise e interpretação dos achados, mesmo com o ônus da reflexão pessoal e o uso da criatividade, implicando o conhecimento real e em profundidade do contexto33 Minayo MCS, Costa AP. Técnicas que fazem uso da Palavra, do Olhar e da Empatia: pesquisa qualitativa em ação. Aveiro: Ludomedia; 2019.. Essas questões, para além de reportadas como limitações ao estudo, podem influenciar e introduzir viés aos resultados, que devem ser bem ponderados.

A própria transferência do conhecimento qualitativa para os contextos de prática clínica ficou afetada, não só pelas barreiras que dificultam que a tomada da decisão por parte dos profissionais de saúde e da gestão seja baseada nos resultados mais pertinentes da pesquisa22 Baixinho CL, Presado MH, Oliveira ESF. The place of qualitative research in Evidence-Based Practice. Rev Bras Enferm [Internet]. 2020 [cited 2020 Dec 29];73(5):e2020n5. Available from: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020730501
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, mas porque acentuou o privilégio sobre modelos lineares e unidirecionais, para levar, passivamente, a informação científica aos utilizadores e consumidores22 Baixinho CL, Presado MH, Oliveira ESF. The place of qualitative research in Evidence-Based Practice. Rev Bras Enferm [Internet]. 2020 [cited 2020 Dec 29];73(5):e2020n5. Available from: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020730501
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, pelas limitações impostas à presença no contexto, diminuindo a possibilidade de pesquisas mais participativas com devolução dos resultados ao contexto.

Considerando tal reflexão, considera-se que a pandemia alterou a pesquisa qualitativa desde o desenho do estudo à introdução dos resultados na clínica, aumentou a intersubjetividade associada à pesquisa qualitativa, introduziu alterações a métodos e técnicas que podem afetar os resultados, voltandou a privilegiar os modelos lineares de transferência do conhecimento22 Baixinho CL, Presado MH, Oliveira ESF. The place of qualitative research in Evidence-Based Practice. Rev Bras Enferm [Internet]. 2020 [cited 2020 Dec 29];73(5):e2020n5. Available from: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020730501
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, com consequências na prática baseada na evidência. Urge a discussão sobre estes aspectos para garantir a validade dos resultados e a utilização, em segurança, da evidência qualitativa.

É este sentido de reflexão e questionamento que nos motiva a reunir nesta edição alguns artigos oriundos do Congresso Ibero-Americano em Pesquisa Qualitativa (CIAIQ), realizado, online, no ano de 2020, devido à atual pandemia. Trata-se aqui de uma condição desafiante para os pesquisadores que buscam essencialmente transpor os limites da realidade na busca de significados impostos neste cenário.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Oliveira ESF, Baixinho CL, Presado MHCV. Qualitative research in health: a reflexive approach. Rev Bras Enferm [Internet]. 2019[cited 2020 Dec 28];72(4):830-1. Available from: https://doi.org/10.1590/0034-7167.2019-720401
    » https://doi.org/10.1590/0034-7167.2019-720401
  • 2
    Baixinho CL, Presado MH, Oliveira ESF. The place of qualitative research in Evidence-Based Practice. Rev Bras Enferm [Internet]. 2020 [cited 2020 Dec 29];73(5):e2020n5. Available from: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020730501
    » https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020730501
  • 3
    Minayo MCS, Costa AP. Técnicas que fazem uso da Palavra, do Olhar e da Empatia: pesquisa qualitativa em ação. Aveiro: Ludomedia; 2019.
  • 4
    Baixinho CL, Presado MH, Ribeiro J. Qualitative research and the transformation of public health. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2019[cited 2020 Dec 28];24(5):1583-3. Available from: https://doi.org/10.1590/1413-81232018245.05962019
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232018245.05962019

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021
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