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Sofrimento psíquico na pandemia de COVID-19: prevalência e fatores associados em uma faculdade de enfermagem

RESUMO

Objetivo:

analisar a prevalência e os fatores associados ao sofrimento psíquico em estudantes e trabalhadores de uma faculdade pública de enfermagem durante a pandemia de COVID-19.

Métodos:

estudo transversal, realizado por inquérito estruturado baseado na internet com amostra de 477 estudantes e trabalhadores. Foram calculadas prevalências e as Razões de Prevalência ajustadas foram obtidas por Regressão de Poisson, com controle de variância robusta e técnica stepwise backward.

Resultados:

a prevalência de sofrimento psíquico foi 19,29% (IC95%:15,98-23,09). A testagem (RP 1,55;p-valor 0,026) e pertencimento ao grupo de risco (1,71;p-valor 0,005) da COVID-19, percepção da atmosfera familiar (RP 3,10;p-valor <0,001), sentimentos de solidão (RP 2,64; p-valor <0,001) e violência familiar (RP 2,21;p-valor 0,005) se associaram ao sofrimento.

Conclusões:

a elevada magnitude do evento e sua associação com a COVID-19, a solidão e a dinâmica familiar despertam a necessidade de construção de estratégias que promovam um lugar de proteção pelas escolas.

Descritores:
Enfermagem; Estudantes de Enfermagem; Angústia Psicológica; Pandemias; Infecções por Coronavírus.

ABSTRACT

Objective:

to analyze the prevalence and factors associated with psychological distress in students and workers at a public nursing college during the COVID-19 pandemic.

Methods:

this is a cross-sectional study, carried out by a structured survey based on the internet with a sample of 477 students and workers. Prevalence ratios were calculated and adjusted Prevalence Ratios were obtained by Poisson Regression, with robust variance control and stepwise backward technique.

Results:

the prevalence of psychological distress was 19.29% (95%CI: 15.98-23.09). Testing (PR 1.55; p-value 0.026) and belonging to the COVID-19 risk group (1.71; p-value 0.005), perception of family atmosphere (PR 3.10; p-value <0.001), feelings of loneliness (PR 2.64; p-value <0.001) and family violence (PR 2.21; p-value 0.005) were associated with distress.

Conclusions:

the high magnitude of the event and its association with COVID-19, loneliness and family dynamics arouse the need to build strategies that promote a place of protection for schools.

Descriptors:
Nursing; Students, Nursing; Psychological Distress; Pandemics; Coronavirus Infections

RESUMEN

Objetivo:

analizar la prevalencia y los factores asociados al malestar psicológico en estudiantes y trabajadores de una facultad pública de enfermería durante la pandemia de COVID-19.

Métodos:

estudio transversal, realizado mediante una encuesta estructurada basada en internet con una muestra de 477 estudiantes y trabajadores. Se calcularon las razones de prevalencia y se obtuvieron las razones de prevalencia ajustadas mediante Regresión de Poisson, con control de varianza robusto y técnica stepwise backward.

Resultados:

la prevalencia de distrés psicológico fue de 19,29% (IC 95%: 15,98-23,09). Prueba (RP 1,55; p-value 0,026) y pertenencia al grupo de riesgo (1,71; p-value 0,005) de COVID-19, percepción del ambiente familiar (RP 3,10; p-value<0,001), sentimientos de soledad (RP 2,64; p-value<0,001) y la violencia familiar (RP 2,21; p-value 0,005) se asociaron con el sufrimiento.

Conclusiones:

la alta magnitud del evento y su asociación con COVID-19, la soledad y la dinámica familiar despiertan la necesidad de construir estrategias que promuevan un lugar de protección para las escuelas.

Descriptores:
Enfermería; Estudiantes de Enfermería; Distrés Psicológico; Pandemias; Infecciones por Coronavirus

INTRODUÇÃO

A necessidade de adaptação da população mundial às medidas recomendadas para a contenção da COVID-19, declarada pandemia em março de 2020, trouxe fortes repercussões ao campo da saúde mental. A ausência de imunizantes e tratamentos eficazes para combater a infecção, somada ao volume de casos e mortes pela doença, resultou na necessidade de adoção de medidas de distanciamento físico-social para conter a progressão da doença(11 Rafael RMR, Neto M, Carvalho MMB, Leal David HMS, Acioli S, Araujo Faria MG. Epidemiology, public policies and covid-19 pandemics in Brazil: what can we expect? Rev Enferm. 2020;28:1-6. https://doi.org/10.12957/REUERJ.2020.49570
https://doi.org/10.12957/REUERJ.2020.495...
). O avanço da pandemia nos países americanos encontrou conjunturas políticas e econômicas instáveis, relações regionais e internacionais tensas e sistemas de saúde debilitados(22 Lima LD, Pereira AMM, Machado CV. Crisis, conditioning factors, and challenges in the coordination of Brazil's federative State in the context of COVID-19. Cad Saúde Publica. 2020;36. https://doi.org/10.1590/0102-311X00185220
https://doi.org/10.1590/0102-311X0018522...
). No caso do Brasil, um país de proporções territoriais continentais, a conjuntura foi ainda mais desafiadora, em função do baixo investimento em políticas públicas, que vem culminando na acentuação das desigualdades sociais e de saúde(11 Rafael RMR, Neto M, Carvalho MMB, Leal David HMS, Acioli S, Araujo Faria MG. Epidemiology, public policies and covid-19 pandemics in Brazil: what can we expect? Rev Enferm. 2020;28:1-6. https://doi.org/10.12957/REUERJ.2020.49570
https://doi.org/10.12957/REUERJ.2020.495...
-22 Lima LD, Pereira AMM, Machado CV. Crisis, conditioning factors, and challenges in the coordination of Brazil's federative State in the context of COVID-19. Cad Saúde Publica. 2020;36. https://doi.org/10.1590/0102-311X00185220
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).

Nesse contexto, pondera-se que as estratégias restritivas de circulação e aglomeração de pessoas, embora necessárias na perspectiva sanitária, interferem na abordagem de clínica territorial preconizada pela saúde mental. Para este campo, a noção de território ultrapassa a simples delimitação espacial, constituindo-se como um espaço de produção de vida, com dimensões objetivas e subjetivas que afetam as dinâmicas relacionais e a saúde psíquica das pessoas e dos coletivos(33 Husky MM, Kovess-Masfety V, Swendsen JD. Stress and anxiety among university students in France during Covid-19 mandatory confinement. Compr Psychiatry. 2020;102:152191. https://doi.org/10.1016/j.comppsych.2020.152191
https://doi.org/10.1016/j.comppsych.2020...
).

Sob esta ótica, os impactos negativos da pandemia sobre a saúde mental são evidenciados no aumento das vivências de sofrimento, expressas em ansiedade, raiva, confusão e transtornos mentais comuns (TMC), que podem envolver depressão, insônia, dificuldades de concentração, irritabilidade, queixas somáticas, fadiga e sentimentos de inutilidade(44 Kontoangelos K, Economou M, Papageorgiou C. Mental health effects of COVID-19 pandemia: A review of clinical and psychological traits. Psychiatry Investig. 2020;17:491-505. https://doi.org/10.30773/pi.2020.0161
https://doi.org/10.30773/pi.2020.0161...
-55 Xiong J, Lipsitz O, Nasri F, Lui LMW, Gill H, Phan L, et al. Impact of COVID-19 pandemic on mental health in the general population: a systematic review. J Affect Disord. 2020;277:55-64. https://doi.org/10.1016/j.jad.2020.08.001\
https://doi.org/10.1016/j.jad.2020.08.00...
). Assim, os TMC têm repercussões sobre as relações sociais e laborais, a qualidade de vida e o desempenho das atividades cotidianas, advindas do estado de sofrimento psíquico(66 Portugal FB, Campos MR, Gonçalves DA, Mari JJ, Fortes SLCL. Qualidade de vida em pacientes da atenção primária Do Rio de Janeiro e São Paulo, Brasil: Associações com eventos de vida produtores de estresse e saúde mental. Cienc e Saude Coletiva. 2016;21:497-508. https://doi.org/10.1590/1413-81232015212.20032015
https://doi.org/10.1590/1413-81232015212...
).

De conceituação variável e delimitação complexa, o sofrimento psíquico é um fenômeno registrado na história e que comumente transparece sob a forma de doenças, transtornos, distúrbios mentais e até loucura, acompanhados de rótulos que produzem estigmas e potencializam o sofrimento(77 Psíquico S, La EN, Manique M, Crivelatti B, Durman S, Hofstatter LM. Sofrimento psíquico na adolescência. Texto Contexto Enferm. 2006;15(spe):64-70. https://doi.org/10.1590/S0104-070706000500007
https://doi.org/10.1590/S0104-0707060005...
). Sofrer psiquicamente é inerente à condição de humanidade, contudo demanda cuidados quando esta vivência compromete a vida do indivíduo e provoca doenças somáticas.

Por sua associação com as singularidades individuais e por sua característica inespecífica, o sofrimento psíquico é de difícil mensuração, o que dificulta sua identificação pelos profissionais da saúde. Dentre outras questões, tal sofrimento se relaciona com situações desestabilizadoras e desgastes emocionais, que se manifestam por meio de sentimentos de tristeza, frustração, impotência e incapacidade, sendo compatíveis com os TMC(88 Oliveira AFC, Teixeira ER, Athanázio AR, Soares RS. Psychic suffering and psychodynamics in the nurse's work environment: an integrative review. O Braz J Nurs. 2020;19. https://doi.org/10.17665/1676-4285.20206353
https://doi.org/10.17665/1676-4285.20206...
).

A compreensão ampliada de saúde mental apreende a centralidade do sujeito no processo de cuidar, afastando-se, assim, do foco no diagnóstico psiquiátrico e na doença como fatores que validam a existência-sofrimento das pessoas, preocupando-se com as vivências e seus impactos, objetivos e subjetivos sobre o contexto da vida em sociedade. Este olhar, além de uma perspectiva teórica, é capaz de reorientar os cuidados no campo da saúde e, mais especificamente, da saúde mental(99 Rotelli F, Leonardis O, Mauri D. Desinstitucionalização, uma outra via. A reforma psiquiátrica italiana no contexto da europa ocidental e dos “países avançados". Desinstitucionalização. 2nd ed., São Paulo: Hucitec; 2019, p. 17–60.).

Logo, de forma desvinculada da nosografia psiquiátrica, o estudo da psicodinâmica compreende o sofrimento psíquico como a expressão de sentimentos associados às experiências negativas de existência que prejudicam a relação da pessoa com o mundo(88 Oliveira AFC, Teixeira ER, Athanázio AR, Soares RS. Psychic suffering and psychodynamics in the nurse's work environment: an integrative review. O Braz J Nurs. 2020;19. https://doi.org/10.17665/1676-4285.20206353
https://doi.org/10.17665/1676-4285.20206...
). Neste sentido, o termo "sofrimento psíquico" abarca os TMC, mas escapa aos limites diagnósticos, pois vislumbra o sofrimento e as necessidades individuais como objetos centrais do cuidado.

Somado ao sofrimento potencialmente produzido por uma emergência sanitária de proporções mundiais como a COVID-19, o sentimento de solidão advindo do distanciamento físico-social também é um aspecto que merece ser estudado. Embora a solidão seja compreendida como experiência comum às pessoas, o evento tem se mostrado como um importante preditor de sofrimento psíquico, especialmente vinculado às síndromes depressivas e de ansiedade(1010 Killgore WDS, Cloonan SA, Taylor EC, Miller MA, Dailey NS. Three months of loneliness during the COVID-19 lockdown. Psychiatry Res. 2020;293:1-2. https://doi.org/10.1016/j.psychres.2020.113392
https://doi.org/10.1016/j.psychres.2020....
-1111 Bu F, Steptoe A, Fancourt D. Who is lonely in lockdown? cross-cohort analyses of predictors of loneliness before and during the COVID-19 pandemic. Public Health. 2020;186:31-4. https://doi.org/10.1016/j.puhe.2020.06.036
https://doi.org/10.1016/j.puhe.2020.06.0...
). A profusão de sentimentos negativos oriundos do distanciamento físico-social, somada às incertezas frente ao diagnóstico de COVID-19, são elementos que podem afetar a saúde física, psíquica e as relações sociais das pessoas(1212 Barros MBA, Lima MG, Malta DC, Szwarcwald CL, Azevedo RCS, Romero D, et al. Relato de tristeza/depressão, nervosismo/ansiedade e problemas de sono na população adulta brasileira durante a pandemia de COVID-19. Epidemiol Serv Saude. 2020;29:e2020427. https://doi.org/10.1590/s1679-49742020000400018
https://doi.org/10.1590/s1679-4974202000...
).

Ainda que a literatura atual já se avolume em relação ao sofrimento psíquico na pandemia de COVID-19(44 Kontoangelos K, Economou M, Papageorgiou C. Mental health effects of COVID-19 pandemia: A review of clinical and psychological traits. Psychiatry Investig. 2020;17:491-505. https://doi.org/10.30773/pi.2020.0161
https://doi.org/10.30773/pi.2020.0161...
-55 Xiong J, Lipsitz O, Nasri F, Lui LMW, Gill H, Phan L, et al. Impact of COVID-19 pandemic on mental health in the general population: a systematic review. J Affect Disord. 2020;277:55-64. https://doi.org/10.1016/j.jad.2020.08.001\
https://doi.org/10.1016/j.jad.2020.08.00...
), ainda há uma importante lacuna no comportamento deste fenômeno nas comunidades acadêmicas. É importante considerar que, mesmo frente à interrupção das aulas presenciais nas escolas e universidades, as instituições formadoras da área da saúde, como no caso das faculdades de enfermagem, estão invariavelmente envolvidas no enfrentamento da pandemia no Brasil e no mundo, restando a necessidade melhor reconhecer o fenômeno do sofrimento neste contexto. Neste sentido, o estudo traz a seguinte questão de pesquisa: qual a prevalência e quais são os fatores associados ao sofrimento psíquico em estudantes e trabalhadores de uma faculdade pública de enfermagem durante o período da pandemia de COVID-19?

OBJETIVO

Analisar a prevalência e os fatores associados ao sofrimento psíquico em estudantes e trabalhadores de uma faculdade pública de enfermagem durante a pandemia de COVID-19.

MÉTODOS

Aspectos éticos

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foram respeitados os preceitos éticos de participação voluntária e consentida de cada participante, conforme Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.

Desenho, período e local do estudo

Trata-se de um estudo seccional da linha de base da pesquisa "Pandemia de COVID-19 e vida acadêmica: coorte sobre a situação da doença, condições sociais e experiências acadêmicas". Em função da pandemia de COVID-19 e com a interrupção de atividades presenciais nas escolas e universidades, foi desenhada uma coorte baseada na internet (E-Survey), em que o subconjunto de dados coletados no período de 4 de junho a 3 de setembro de 2020 foi analisado neste manuscrito. Para a comunicação dos resultados, a composição deste artigo seguiu as diretrizes do Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology (STROBE)(1313 Von Elm E, Altman DG, Egger M, Pocock SJ, Gøtzsche PC, Vandenbroucke JP. The Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology (STROBE) statement: guidelines for reporting observational studies. PLoS Med. 2007;4:1623-7. Available from: https://doi.org/10.1371/journal.pmed.0040296
https://doi.org/10.1371/journal.pmed.004...
) e do Checklist for Reporting Results of Internet E-Surveys (CHERRIES)(1414 Eysenbach G. Improving the quality of web surveys: the Checklist for Reporting Results of Internet E-Surveys (CHERRIES). J Med Internet Res. 2004;6:1-6. https://doi.org/10.2196/jmir.6.3.e34
https://doi.org/10.2196/jmir.6.3.e34...
). O cenário de estudo foi uma faculdade pública de enfermagem do estado do Rio de Janeiro, cujos programas de formação se desenvolvem nos níveis de graduação, pós-graduação lato sensu, incluindo 14 programas de residência, além de mestrado e doutorado.

População do estudo

A população-alvo desta investigação constituiu a totalidade da comunidade acadêmica da Faculdade, perfazendo 954 potenciais participantes, sendo: 326 estudantes de graduação; 410 estudantes de cursos de pós-graduação lato sensu; 88 estudantes de pós-graduação (nível de mestrado e doutorado); 104 docentes; 26 funcionários administrativos. Com a técnica de amostragem por conveniência, toda a comunidade com vínculo ativo na ocasião da coleta de dados foi elegível a participar da investigação. Este manuscrito adotou como critério de exclusão os participantes que não responderam ao item correspondente ao desfecho do estudo, como o sofrimento psíquico.

O recrutamento dos sujeitos ocorreu em duas fases. Na primeira fase da coleta, foram enviados, por e-mail, uma carta-convite contendo os objetivos e procedimentos da pesquisa, um link com o questionário eletrônico e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para os casos sem resposta, com consentimento ou não de participação, um novo e-mail foi encaminhado após três dias. Na permanência de ausência de contato, deu-se início à segunda fase, o contato telefônico, mantendo-se os intervalos de três dias entre as tentativas. Nesta fase, foram utilizados recursos de envio de mensagem e ligações, sobretudo por compreender que alguns sujeitos poderiam não ter acesso à internet. Nos casos em que as duas tentativas foram frustradas, lançou-se mão de um terceiro e-mail. Os casos de ausência de resposta nas fases de recrutamento foram considerados perdas.

Protocolo do estudo

Um estudo piloto com 30 participantes foi realizado no mês de junho de 2020, antes do período de coleta. O grupo do estudo piloto foi composto por estudantes de todos os níveis de formação, professores e funcionários administrativos, tendo como proposta testar a dinâmica de coleta de dados e resolver problemas de interpretação sobre os itens do instrumento. Após os ajustes indicados pelo estudo piloto, o instrumento final foi composto por 136 itens, sendo 80 itens obrigatórios e 27 telas de formulário eletrônico.

Para o atendimento do objetivo proposto, este manuscrito tem como variável desfecho o sofrimento psíquico, aferido por item único, "Você se sente que está em sofrimento ou precisando de apoio profissional?", com opção binária de resposta (Não/Sim). Por ser item não obrigatório no instrumento de coleta de dados, nem todos os participantes da pesquisa responderam esta questão. As covariáveis do estudo foram tratadas em três módulos: características sociodemográficas, características clínicas e características de distanciamento social e do ambiente domiciliar.

A aferição das características sociodemográficas se deu pelas variáveis "faixa etária", aferida como variável numérica e transformada em categórica (intervalos de idade), cor/etnia, gênero, orientação sexual, categoria funcional na instituição e trabalho na linha de frente. Destaca-se que, pela amostra diminuta de pessoas trans (n=1) e ausência de outras identidades de gênero no grupo recrutado, a variável foi recategorizada em "mulher" e "homem". A categoria funcional foi aferida com múltiplas respostas de acordo com o nível de formação e trabalho dos respondentes, mas recategorizada em professor, técnico administrativo, estudantes de graduação, de pós-graduação lato e stricto sensu. O trabalho na linha de frente foi aferido pelo item "Pela Faculdade de Enfermagem e/ou fora dela, você está na linha de frente de atuação na pandemia (assistência à saúde, limpeza, assessoria ao público, etc)?"; com resposta binária (Não/Sim).

As características clínicas mapearam a situação de grupo de risco para COVID-19, familiar em grupo de risco, a testagem e o resultado positivo para a doença, o histórico positivo com contactante domiciliar, o histórico positivo de manifestação clínica de Síndrome Gripal (SG) e de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG).

A testagem e o resultado positivo para a doença foram apreendidos por meio de itens que questionavam a realização de teste, o tipo de teste realizado e seu resultado. A variável "grupo de risco" foi composta por, ao menos, uma reposta positiva para os diagnósticos de: gravidez, pós-parto, obesidade e doenças crônicas (cardiopatias, diabetes, hepatopatias, neuropatias, imunodeficiências, nefropatias, câncer e doenças respiratórias crônicas), além da classificação "acima de 60 anos" por meio da variável "faixa etária". Já a variável "familiar em grupo de risco" foi aferida por meio do item "Algum familiar que reside com você tem alguma das doenças anteriormente relatadas?".

O histórico positivo de manifestações clínicas de síndromes respiratórias seguiu as definições de caso propostas pelo Ministério da Saúde, considerando SG quando presentes duas ou mais das seguintes características: febre (37,8ºC), sensação de febre, dor de garganta, cefaleia, tosse, coriza e perdas olfativas e de paladar(1515 Ministério da Saúde (BR). Protocolo de Manejo Clínico da Covid-19 na Atenção Especializada. Brasília: MS; 2020.). Foi considerado histórico positivo de SRAG quando positivo para SG com ao menos um dos seguintes marcadores: dispneia ou desconforto respiratório com pressão persistente no tórax, saturação de oxigênio abaixo de 95% em ar ambiente, ou cianose.

Por fim, o último módulo de características teve por objetivo mapear quatro variáveis potencialmente preditoras do distanciamento social e das características ambiente domiciliar e familiar. Servindo como marcador do distanciamento social, a variável "recebeu/realizou visitas" foi considerada positiva quando presentes em um dos dois itens de aferição: "Você está indo à casa de parentes e/ou amigos?" e "Você está recebendo em casa parentes e/ou amigos?".

A atmosfera familiar, aqui compreendida como uma avaliação geral do lugar que se vive, foi apreendida por meio do item "Como você avalia o ambiente que você tem vivido neste período de distanciamento social (na pandemia)?", tendo como categorias de resposta: "excelente"; "bom"; "regular"; "ruim"; "péssimo"; "não sei"; "não quero responder". O tratamento das respostas seguiu a agregação das classificações "bom" e "ruim" em uma só categoria, assim como as respostas "regular", "ruim" e "péssimo". Para os casos de "não sei" e "não quero responder", foram considerados dados ausentes.

O histórico de violência familiar e a violência familiar atual foram apreendidos pelos itens "Eu já sofri violência no meu ambiente domiciliar em períodos anteriores a pandemia" e "No período de distanciamento social (durante a pandemia), eu sofri violência no meu ambiente domiciliar". Em ambos itens, o padrão de respostas seguiu uma escala ordinal com cinco categorias, variando de concordo totalmente a discordo totalmente. Respostas "não concordo nem discordo" foram consideradas como dados ausentes. Ao considerar que a aferição das situações de violência pode, por si, só gerar sofrimento psíquico aos respondentes, o item não foi considerado obrigatório no instrumento de coleta de dados. Quando isso ocorreu, a análise de dados considerou como dado ausente tal como as respostas de "não concordo nem discordo".

Por fim, esse módulo também aferiu os sentimentos de solidão por meio da Escala Brasileira de Solidão, adaptada transculturalmente e validada para uso no Brasil(1616 Barroso SM, Andrade VS, Midgett AH, Carvalho RGN. Evidências de validade da escala Brasileira de Solidão UCLA. J Bras Psiquiatr. 2016;65:68-75. https://doi.org/10.1590/0047-2085000000105
https://doi.org/10.1590/0047-20850000001...
). Adotando os pontos de corte propostos por Barroso, Andrade & Oliveira(1717 Barroso SM, Andrade VS, Oliveira NR. Escala Brasileira de Solidão: análises de resposta ao item e definição dos pontos de corte. J Bras Psiquiatr. 2016;65:76-81. https://doi.org/10.1590/0047-2085000000106
https://doi.org/10.1590/0047-20850000001...
), foi considerado como solidão mínima o intervalo de 0 a 22 pontos do escore; como leve, entre 23 e 35 pontos; como moderada, entre 36 e 47; como intensa, quando alcançou entre 48 e 60 pontos. Este manuscrito utiliza a recategorização "mínima/leve" e "moderada/intensa".

Análise e tratamento de dados

Para os procedimentos de análise e processamento da base de dados, utilizou-se o software Stata SE 15. Foram calculados a prevalência e o Intervalo de Confiança a 95% (IC95%) do desfecho do estudo, além da distribuição das covariáveis. As análises bivariadas aconteceram por meio de Razões de Prevalência (RP) brutas e os IC95%, aplicando-se o Teste Qui-Quadrado. Considerando o desfecho binário, todas as variáveis com valor de p <0,30 nas análises bivariadas integraram o modelo inicial de regressão, com o objetivo de verificar os fatores associados ao sofrimento psíquico. Por meio de Regressão de Poisson com controle de variância robusta e aplicando-se a técnica stepwise backward manual, foi construído o modelo final quando todas as variáveis presentes apresentaram valor de p <0,05, resultando nas RP ajustadas.

RESULTADOS

Dos 954 sujeitos elegíveis ao estudo, 498 responderam aos questionários eletrônicos da linha de base da coorte, perfazendo a taxa de resposta de 52,20%. Desses, 21 (4,22%) foram excluídosl por não responderem o item do instrumento que correspondia ao desfecho do estudo. Assim, a amostra final analisada foi de 477 participantes. A prevalência de sofrimento psíquico foi de 19,29% (IC95%: 15,98 - 23,09).

A Tabela 1 apresenta a distribuição e as RP brutas das variáveis sociodemográficas em função do sofrimento psíquico. Com exceção da faixa etária de 30 a 39 anos e das categorias funcionais de estudantes de graduação e de pós-graduação stricto sensu, não foram observadas diferenças estatisticamente significantes entre as prevalências por subgrupo populacional. As variáveis cor/etnia e orientação sexual também figuram entre aquelas com p-valor inferior ao ponto de corte de 0,30 e, portanto, foram admitidas no modelo final de regressão.

Tabela 1
Distribuição das variáveis e razão de prevalência bruta das características sociodemográficas em função do autorrelato de sofrimento psíquico na comunidade acadêmica de uma faculdade pública de enfermagem no período de 4 de junho a 3 de setembro de 2020, Rio de Janeiro, Brasil, 2020 (N=477)

A distribuição e as RP bruta entre as características clínicas associadas à COVID-19 e ao sofrimento psíquico são apresentadas na Tabela 2. Ter apresentado manifestação clínica compatível com SG apresentou efeito redutor da prevalência de sofrimento em 38% (valor de p 0,014), sendo a única variável com diferença estatisticamente significante neste subconjunto. No entanto, com exceção do histórico de contato positivo com casos de COVID-19 (p-valor 0,545), todas as variáveis foram introduzidas no modelo final de regressão.

Tabela 2
Distribuição e razão de prevalência bruta das características clínicas em função do autorrelato de sofrimento psíquico na comunidade acadêmica de uma faculdade pública de enfermagem no período de 4 de junho a 3 de setembro de 2020, Rio de Janeiro, Brasil, 2020 (N=477)

A distribuição e as RP bruta entre as características de distanciamento social, da avaliação do ambiente domiciliar e do sofrimento psíquico são apresentadas na Tabela 3. Observa-se que a presençã de sentimentos moderados e intensos de solidão (valor de p <0,001), a avaliação regular, ruim ou péssima do ambiente domiciliar (valor de p <0,001) e a presença de histórico de violência no domcílio (valor de p 0,001) e no momento atual (valor de p <0,001) foram fatores associados ao sofrimento psíquico de estudantes e trabalhadores.

Tabela 3
Distribuição e razão de prevalência bruta das características de distanciamento social e do ambiente domiciliar em função do autorrelato de sofrimento psíquico na comunidade acadêmica de uma faculdade pública de enfermagem no período de 4 de junho a 3 de setembro de 2020, Rio de Janeiro, Brasil, 2020 (N=477)

A Tabela 4 apresenta o modelo final da regressão múltipla, tendo cinco fatores associados e efeito de, no mínimo, 55% sobre a prevalência de sofrimento psíquico (valor de p <0,05). Os menores efeitos foram observados nas variáveis relacionadas à doença, tais como testagem para COVID-19 (RP 1,55; valor de p 0,026) e o pertencimento ao grupo de risco (RP 1,71; valor de p 0,005). Em relação às variáveis do grupo "ambiente domiciliar", observou-se que a percepção regular, ruim ou péssima sobre a atmosfera familiar e domiciliar (RP 3,10; valor de p <0,001), os sentimentos moderados ou severos de solidão (RP 2,65; valor de p <0,001) e ter sofrido violência familiar no período da pandemia (RP 2,21; valor de p 0,005) foram fatores associados ao sofrimento psíquico.

Tabela 4
Modelo final de Regressão de Poisson em função do autorrelato de sofrimento psíquico na comunidade acadêmica de uma faculdade pública de enfermagem no período de 4 de junho a 3 de setembro de 2020, Rio de Janeiro, Brasil, 2020 (N=477)

DISCUSSÃO

A estimativa dos efeitos da pandemia de COVID-19 sobre a saúde mental das pessoas tem sido tema recorrente na literatura atual, ao passo que existe certo consenso em afirmar que a pandemia tem produzido marcas que ficarão impressas na história desta geração, sobretudo pelas elevadas ocorrências de síndromes depressivas, ansiosas e estressoras(44 Kontoangelos K, Economou M, Papageorgiou C. Mental health effects of COVID-19 pandemia: A review of clinical and psychological traits. Psychiatry Investig. 2020;17:491-505. https://doi.org/10.30773/pi.2020.0161
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,1818 Moreira WC, Sousa AR, Nóbrega MPSS. Mental illness in the general population and health professionals during covid-19: a scoping review. Texto Contexto Enferm. 2020;29:e20200215. https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2020-0215
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). Contudo, ainda são poucas as investigações que se debruçam de modo mais sistemático sobre as populações escolares e os ambientes universitários.

No Brasil, este manuscrito é o primeiro a estimar a prevalência de sofrimento psíquico em estudantes e trabalhadores do ensino superior da área da saúde, mais especificamente da enfermagem, cuja prevalência foi de 19,29%. Este resultado é compatível com as prevalências estimadas na Espanha(1919 Odriozola-González P, Planchuelo-Gómez Á, Irurtia MJ, Luis-García R. Psychological effects of the COVID-19 outbreak and lockdown among students and workers of a Spanish university. Psychiatry Res. 2020;290. https://doi.org/10.1016/j.psychres.2020.113108
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), Bangladesh(2020 Khan AH, Sultana MS, Hossain S, Hasan MT, Ahmed HU, Sikder MT. The impact of COVID-19 pandemic on mental health & wellbeing among home-quarantined Bangladeshi students: a cross-sectional pilot study. J Affect Disord. 2020;277:121-8. https://doi.org/10.1016/j.jad.2020.07.135
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) e China(2121 Cao W, Fang Z, Hou G, Han M, Xu X, Dong J, et al. The psychological impact of the COVID-19 epidemic on college students in China. Psychiatry Res. 2020;287:1-5. https://doi.org/10.1016/j.psychres.2020.112934
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), que variam entre 15% e 34,19% para os transtornos depressivos, ansiosos e de estresse em estudantes e trabalhadores universitários. Pesquisa realizada com estudantes no contexto da enfermagem também caminha no sentido de demonstrar níveis de estresse moderado(2222 Aslan H, Pekince H. Nursing students' views on the COVID-19 pandemic and their perceived stress levels. Perspect Psychiatr Care. 2020;57(2):695-701. https://doi.org/10.1111/ppc.12597
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), coadunando com os achados de investigações entre acadêmicos de outros campos da saúde(2323 Abdulghani HM, Sattar K, Ahmad T, Akram A. Association of COVID-19 pandemic with undergraduate medical students' perceived stress and coping. Psychol Res Behav Manag. 2020;13:871-81. https://doi.org/10.2147/PRBM.S276938
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).

Entretanto, é preciso parcimônia na comparação destes achados em função das distintas formas de aferição entre as pesquisas. Enquanto a comunidade internacional tem se preocupado em classificar o sofrimento em transtornos mentais, este estudo se baseou em sentimentos percebidos pelos próprios sujeitos, ou seja, no autorrelato de sofrimento psíquico.

O sofrimento psíquico vislumbrado em um regime etiológico ou psicopatológico é lugar comum das investigações neste campo, tal como os estudos internacionais desenvolvidos durante a pandemia. Contudo, é possível representá-lo por meio de suas múltiplas expressões no cotidiano das pessoas, sejam elas clínicas ou não. Compreendendo que o sofrimento psíquico é produto e também produtor de subjetividade, o sujeito pode exteriorizar o mal-estar sob a forma de demandas, queixas ou pedidos de ajuda(2424 Dunker CIL. Formas de apresentação do sofrimento psíquico: alguns tipos clínicos no Brasil contemporâneo. Rev Subjetiv. 2004;4:94-111. https://doi.org/10.5020/23590777.4.1.94
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), os quais são passíveis de mensuração.

Diante da diversidade de manifestações dessas demandas, um caminho para identifica-las é o próprio item que investigou o desfecho desta pesquisa (e.g., Você se sente que está em sofrimento ou precisando de apoio profissional?). Deste lugar de observação, é possível compreender outros fatores associados ao sofrimento e que têm sido pouco observados em regimes mais tradicionais de pesquisas. Independente das variáveis sociodemográficas, identificaram-se dois grupos de fatores associados ao sofrimento: aqueles vinculados à clínica da COVID-19 e os voltados à dinâmica familiar e domiciliar.

Especificamente sobre as variáveis clínicas, como o diagnóstico e o pertencimento aos grupos de risco para a COVID-19, subentende-se que o sofrimento pode estar fortemente ligado ao medo. Os significados de finitude comumente atribuídos às situações de risco à saúde guardam fundamento em anos de acúmulo acadêmico(2525 Santos R, Mohr AM. A (de)vida angústia de morte: considerações a partir da filosofia e da psicanálise. Nat Humana [Internet] 2018 [cited 2020 Dec 03];20:169-87. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/nh/v20n1/v20n1a11.pdf
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). Neste sentido, é coerente pensar que o cenário epidemiológico, com muitas mortes de profissionais de saúde e de pessoas próximas aos estudantes e trabalhadores universitários, possa gerar medo, que pode transparecer como angústia e sofrimento. Resultado similar foi encontrado em pesquisa com estudantes universitários chineses, sinalizando o medo da infecção como elemento associado à ansiedade(2121 Cao W, Fang Z, Hou G, Han M, Xu X, Dong J, et al. The psychological impact of the COVID-19 epidemic on college students in China. Psychiatry Res. 2020;287:1-5. https://doi.org/10.1016/j.psychres.2020.112934
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).

Adicionalmente, há de se considerar que a pandemia introduziu novos estressores na vida social. Além do medo de contrair a doença e das incertezas sobre o próprio futuro(1212 Barros MBA, Lima MG, Malta DC, Szwarcwald CL, Azevedo RCS, Romero D, et al. Relato de tristeza/depressão, nervosismo/ansiedade e problemas de sono na população adulta brasileira durante a pandemia de COVID-19. Epidemiol Serv Saude. 2020;29:e2020427. https://doi.org/10.1590/s1679-49742020000400018
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), o esgarçamento das relações sociais, a virtualização da vida, a tensão econômica e os impactos gerados pela reclusão durante a quarentena devem ser incluídos nos modelos analíticos. Estudo realizado com 1.593 participantes no epicentro da epidemia na China, na província de Hubei, detectou maiores prevalências de ansiedade (12,9%) e depressão (22,4%) em pessoas afetadas pela quarentena, quando comparadas com pessoas não afetadas(2626 Lei L, Huang X, Zhang S, Yang J, Yang L, Xu M. Comparison of prevalence and associated factors of anxiety and depression among people affected by versus people unaffected by quarantine during the COVID-19 Epidemic in Southwestern China. Med Sci Monit. 2020;26:1-12. https://doi.org/10.12659/MSM.924609
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). Estudo similar, realizado na província de Chingling, identificou prevalências ainda superiores de ansiedade (35,1%), enquanto os sintomas depressivos (20,1%) foram relativamente próximos ao encontrado em Hubei(2727 Huang Y, Zhao N. Generalized anxiety disorder, depressive symptoms and sleep quality during COVID-19 outbreak in China: a web-based cross-sectional survey. Psychiatry Res. 2020;288:112954. https://doi.org/10.1016/j.psychres.2020.112954
https://doi.org/10.1016/j.psychres.2020....
).

Ainda que a quarentena não seja determinante para a manifestação do sentimento de solidão, trabalhos apontam que é inegável o seu aprofundamento em decorrência dela(1111 Bu F, Steptoe A, Fancourt D. Who is lonely in lockdown? cross-cohort analyses of predictors of loneliness before and during the COVID-19 pandemic. Public Health. 2020;186:31-4. https://doi.org/10.1016/j.puhe.2020.06.036
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,2828 Killgore WDS, Cloonan SA, Taylor EC, Lucas DA, Dailey NS. Loneliness during the first half-year of COVID-19 Lockdowns. Psychiatry Res. 2020;294:113551. https://doi.org/10.1016/j.psychres.2020.113551
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). Estudo conduzido com 6.186 participantes nos Estados Unidos, com aferições mensais entre abril e setembro de 2020, identificou scores superiores de sentimentos de solidão, que se acentuavam com o tempo entre americanos que relatavam estar em confinamento (lockdown)(2828 Killgore WDS, Cloonan SA, Taylor EC, Lucas DA, Dailey NS. Loneliness during the first half-year of COVID-19 Lockdowns. Psychiatry Res. 2020;294:113551. https://doi.org/10.1016/j.psychres.2020.113551
https://doi.org/10.1016/j.psychres.2020....
). A perspectiva de agravamento desses sentimentos durante a quarentena é confirmada pelo estudo de Bu(1111 Bu F, Steptoe A, Fancourt D. Who is lonely in lockdown? cross-cohort analyses of predictors of loneliness before and during the COVID-19 pandemic. Public Health. 2020;186:31-4. https://doi.org/10.1016/j.puhe.2020.06.036
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), cujos achados sugerem a equivalência de fatores de risco entre o momento antes da COVID-19 e o atual. Jovens adultos, do sexo feminino, com menor renda, que vivem sozinhas e que residem em zonas urbanas, têm maiores riscos de desenvolver níveis mais severos de solidão. Ademais, ao tomar por base que estes sentimentos são considerados antecedentes de situações depressivas e preditores de agravos letais, como a tentativa de suicídio(1010 Killgore WDS, Cloonan SA, Taylor EC, Miller MA, Dailey NS. Three months of loneliness during the COVID-19 lockdown. Psychiatry Res. 2020;293:1-2. https://doi.org/10.1016/j.psychres.2020.113392
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), parece urgente a construção de práticas de aproximação que facilitem o diálogo entre os diversos atores que compõem o ambiente universitário. A identificação precoce de situações de sofrimento pelos pares pode ser estratégia potente na condução dos casos, com maiores chances de implementação de práticas de cuidado em tempo oportuno.

Soma-se o fato das piores avaliações sobre a atmosfera familiar ampliarem a força de associação com o sofrimento psíquico na amostra. Embora seja comum a idealização de uma família acolhedora e a associação do lar como um local seguro, é importante refletir que parte expressiva das violências contra as crianças, mulheres e idosos ocorre justamente por parentes e no ambiente domiciliar(2929 Marques ES, Moraes CL, Hasselmann MH, Deslandes SF, Reichenheim ME. Violence against women, children, and adolescents during the COVID-19 pandemic: overview, contributing factors, and mitigating measures. Cad Saude Publica. 2020;36. https://doi.org/10.1590/0102-311X00074420
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). É consenso que os eventos violentos aumentaram durante a pandemia, ampliando-se os casos fatais(3030 Campbell AM. An increasing risk of family violence during the Covid-19 pandemic: strengthening community collaborations to save lives. Forensic Sci Int Reports. 2020;2:100089. https://doi.org/10.1016/j.fsir.2020.100089
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). Com isso, a construção de um senso comum de família protetora também parece ser um importante elemento para a sistemática negação e ocultação das violações, e isso merece ser proximamente acompanhado pelos ambientes formadores, reforçando seu papel e engajamento político nesses contextos.

Se, por um lado, as medidas de distanciamento e a interrupção das aulas presenciais em escolas e universidades foram recursos importantes para a contenção da curva de progressão da COVID-19, por outro, ficou claro o quanto algumas pessoas se tornaram mais expostas aos ambientes adversos à promoção da saúde psicossocial e física. Frente à configuração dialética que se estabelece na relação entre as ações que visam reduzir as aglomerações, mas que, ao mesmo tempo, produzem sofrimento psíquico pelo distanciamento social em domicílio, parece fundamental a constituição de grupos de trabalho que envolvam a escola, as estruturas sociais e, fundamentalmente, os próprios sujeitos, para a formulação de estratégias solidárias de enfrentamento dos impactos da pandemia. Para tanto, é essencial que a escola, como um espaço de socialização potente para desvelar situações comumente censuradas pelo ambiente domiciliar, torne-se corresponsável por esse fenômeno, criando espaços de produção de cuidado e proteção da vida.

Limitações do estudo

A despeito da relevância destes dados, é fundamental que sua interpretação seja realizada à luz de suas limitações. A primeira e talvez mais importante é o fato do sofrimento psíquico ter sido aferido por meio do autorrelato, ao passo que esta estimação tende a capturar os casos mais graves e, portanto, percebidos (ou potencialmente percebidos) pelos sujeitos. Por outro lado, é possível haver casos de sofrimento psíquico ainda não reconhecidos, por medo, vergonha ou desconhecimento de suas formas de manifestação. Neste sentido, instrumentais específicos e validados para a captura deste fenômeno devem ser empregados em futuras investigações sobre o tema. Mesmo com todo o investimento de múltiplas formas de recrutamento durante a coleta de dados, a amostragem por conveniência pode ter produzido viés de seleção. A presença deste viés pode ter imputado menores chances de resposta por pessoas em maior vulnerabilidade, como os estudantes e trabalhadores sem acesso à internet.

Contribuições para a enfermagem

Uma vez apontada a escassez de pesquisas que tratam da temática deste estudo, acredita-se que os dados aqui produzidos poderão contribuir para o fomento de reflexões acerca da saúde mental durante esta e eventualmente outras emergências sanitárias de grande magnitude. Os dados apontam para a necessidade de reforçar o lugar da Escola, que também produz o reconhecimento das necessidades humanas de estudantes e trabalhadores, impulsionando a construção de políticas de proteção e cuidado em saúde mental.

CONCLUSÕES

Foi observada a elevada magnitude do sofrimento psíquico entre estudantes e trabalhadores, compatível com investigações similares em outros cenários. O estudo desvelou que as potenciais expressões de medo da COVID-19, associadas ao diagnóstico e ao pertencimento aos grupos de risco, as percepções sobre a atmosfera familiar, as violências e o sentimento de solidão têm produzido sofrimento psíquico durante a pandemia. O reconhecimento destes fatores convoca as escolas, especialmente aquelas dedicadas à formação de profissionais de saúde, a ocupar lugar na identificação precoce do sofrimento e de suas causas na comunidade para a formulação de estratégias de cuidado e proteção.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Álvaro Sousa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    26 Jan 2021
  • Aceito
    02 Abr 2021
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