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Reflexões sobre sistemas de notificação de incidentes de segurança do paciente

RESUMO

Objetivo

Refletir sobre principais características e recomendações de Sistemas de Notificação de Incidentes, discutir a participação da população na notificação e pontuar desafios no sistema brasileiro.

Método

Estudo de reflexão, com base na Portaria nº 529/13, que instituiu o Programa Nacional de Segurança do Paciente, na RDC nº 36/13; acrescentaram-se reflexões de especialistas.

Resultados:

Os sistemas de notificação são fonte para aprendizado e monitoramento, permitem detecção precoce de incidentes, investigações e, principalmente, geração de recomendações ante recorrências, além de suscitar informações para pacientes-familiares. Existe pouca participação da população nas notificações, independentemente do tipo de sistema e de características como confidencialidade, anonimato e obrigatoriedade.

Considerações finais:

No Brasil, embora a notificação seja obrigatória, é urgente avançar no envolvimento e participação da população, profissionais e instituições. Simplificar a inserção de dados melhorando a interface e a importação de dados do sistema de notificação é um objetivo a ser alcançado.

Descritores:
Serviços de Saúde; Dano ao Paciente; Segurança do Paciente; Administração Hospitalar; Pacientes

ABSTRACT

Objective:

To reflect on the main characteristics and recommendations of Incident Reporting Systems, discuss the population’s participation in reporting, and point out challenges in the Brazilian system.

Method:

Reflection study, based on Ordinance No. 529/13, which instituted the National Patient Safety Program, under Collegiate Board Resolution (CBR) No. 36/13; reflections by experts were added.

Results:

Reporting systems are a source for learning and monitoring, allow early detection of incidents, investigations and, mainly, the generation of recommendations prior to recurrences, in addition to raising information for patients and relatives. There is little participation of the population in the reporting, regardless of the type of system and characteristics such as confidentiality, anonymity, and mandatory nature.

Final Considerations:

In Brazil, although reporting is mandatory, there is an urgency to advance the involvement and participation of the population, professionals, and institutions. To simplify data entry by improving the interface and importing data from the reporting system is an objective to be achieved.

Descriptors:
Health Services; Patient Harm; Patient Safety; Hospital Administration; Patients

RESUMEN

Objetivo

Reflejar sobre principales características y recomendaciones de Sistemas de Notificación de Incidentes, discutir la participación de la población en la notificación y puntuar desafíos en el sistema brasileño.

Método

Estudio de reflexión, con base en en Decreto nº 529/13, que instituyó el Programa Nacional de Seguridad del Paciente, en la RDC nº 36/13; acrecentaron reflexiones de especialistas.

Resultados:

Sistemas de notificación son fuente para aprendizaje y monitoreo, permiten detección precoz de incidentes, investigaciones y, principalmente, generación de recomendaciones ante recurrencias, además de suscitar informaciones para pacientes-familiares. Hay poca participación de la población en las notificaciones, independientemente del tipo de sistema y de características como confidencialidad, anonimato y obligatoriedad.

Consideraciones finales:

En Brasil, aunque la notificación sea obligatoria, es urgente avanzar en envolvimiento y participación de la población, profesionales e instituciones. Simplificar inserción de datos mejorando interface e importación de datos del sistema de notificación es un objetivo.

Descriptores:
Servicios de Salud; Daño al Paciente; Seguridad del Paciente; Administración Hospitalaria; Pacientes

INTRODUÇÃO

Incidentes no cuidado da saúde acontecem com uma frequência inaceitável e atingem pacientes que procuram serviços de saúde para prevenir, diagnosticar, tratar ou se reabilitar. Quando um incidente, com ou sem danos, acontece, é essencial entender as causas e fatores contribuintes, tão bem quanto suas consequências, para possibilitar o desenvolvimento de ações de mitigação e soluções que possam preveni-lo. Conceitua-se como incidente, uma circunstância ou erro não intencional que causou ou poderia ter causado danos ao paciente(11 World Health Organization (WHO). Minimal Information Model for Patient Safety Incident Reporting and Learning Systems[Internet]. 2014. [cited 2018 Apr 16]. Available from: www.WHO-HIS-SDS-2016.22-eng%20(1).pdf
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).

Após 20 anos da publicação do relatório To Err is Human: Building a Safer Health Care System, que revelou as fragilidades dos serviços de saúde nos Estados Unidos da América (EUA), muitas ações e campanhas foram desenvolvidas e implantadas, em diversos países, em prol da segurança do paciente (SP). Apesar dos progressos, é preciso avançar para que as instituições aprendam com os erros do passado, trabalhem em equipe, melhorem a formação dos profissionais de saúde, apliquem conhecimentos baseados em evidências e escutem os pacientes e familiares(22 Kohn LT, Corrigan JM, Donaldson MS, Committee on Quality of Health Care in America, Institute of Medicine. To err is human: building a safer health system[Internet]. Washington: National Academy Press. 2000. [cited 2018 Jul 14]. Available from: http://www.nap.edu/catalog/9728.html
http://www.nap.edu/catalog/9728.html...
).

Nesse cenário, os sistemas de notificação de incidentes (SNIs) surgem como estratégia que auxilia na identificação de riscos, contribui para coleta de dados, análise e implementação da cultura de SP(11 World Health Organization (WHO). Minimal Information Model for Patient Safety Incident Reporting and Learning Systems[Internet]. 2014. [cited 2018 Apr 16]. Available from: www.WHO-HIS-SDS-2016.22-eng%20(1).pdf
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). Os SNIs têm como principais objetivos: promover o retorno de informações aos notificadores, associando os resultados obtidos com as medidas de prevenção e detecção de riscos no cuidado; determinar as causas dos incidentes; e propor práticas seguras para a redução de danos(11 World Health Organization (WHO). Minimal Information Model for Patient Safety Incident Reporting and Learning Systems[Internet]. 2014. [cited 2018 Apr 16]. Available from: www.WHO-HIS-SDS-2016.22-eng%20(1).pdf
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). Os SNIs, às vezes chamados de sistemas de incidentes críticos, ou ainda, sistemas de aprendizado de SP, são definidos como relatórios estruturados com agrupamento e análise de incidentes notificados em serviços de saúde(33 Ontario Health Technology. Patient Safety Learning Systems: a systematic review and qualitative synthesis. Ont Health Technol Aval Serv [Internet]. 2017;17(3):1-23 [cited 2020 Mar 9]. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5357133/
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).

Durante alguns anos, os SNIs em saúde concentraram-se na classificação das ocorrências de incidentes para fins estatísticos, no intuito de fornecer uma base para a tomada de decisões políticas. Com o passar do tempo e o aumento de publicações na área, percebeu-se que a comparação de dados coletados em diferentes sistemas e países tornou-se difícil, tendo em vista a falta de consenso nos conceitos utilizados nesses sistemas, no sentido de se manter uma classificação única(11 World Health Organization (WHO). Minimal Information Model for Patient Safety Incident Reporting and Learning Systems[Internet]. 2014. [cited 2018 Apr 16]. Available from: www.WHO-HIS-SDS-2016.22-eng%20(1).pdf
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).

O Brasil dispõe de um SNI, denominado NOTIVISA 2.0 (módulo Assistência à Saúde), instituído a partir da publicação da Portaria n° 529, de 1º de abril de 2013, que estabeleceu o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP)(44 Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 529, de 1º de abril de 2013. Institui o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP) [Internet]. Brasília, DF; 2013[cited 2019 Oct 5]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt0529_01_04_2013.html
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). Na sequência, foi publicada a RDC nº 36/2013(55 Ministério da Saúde (BR). Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Resolução da Diretoria Colegiada Nº 36, de 25 de julho de 2013 [Internet]. Brasília, DF; 2013[cited 2019 Oct 5]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2013/rdc0036_25_07_2013.html
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), que orienta quanto à operacionalização do PNSP. O SNI nacional possibilita a notificação por cidadãos, profissionais da saúde e pelos Núcleos de Segurança do Paciente (NSPs), instância do serviço de saúde criada para promover e apoiar a implementação de ações voltadas à SP. A notificação pelo cidadão é voluntária, enquanto a notificação de eventos adversos (EAs) pelos NSPs é obrigatória. Os dados são analisados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e divulgados de forma agregada em boletins específicos para esse fim(44 Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 529, de 1º de abril de 2013. Institui o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP) [Internet]. Brasília, DF; 2013[cited 2019 Oct 5]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt0529_01_04_2013.html
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-55 Ministério da Saúde (BR). Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Resolução da Diretoria Colegiada Nº 36, de 25 de julho de 2013 [Internet]. Brasília, DF; 2013[cited 2019 Oct 5]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2013/rdc0036_25_07_2013.html
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).

Antes da criação do SNI supracitado, destaca-se várias iniciativas sobre SP que foram implementadas com ou sem SNI, como o Programa Nacional de Acreditação Hospitalar, Rede Sentinela, Política Nacional de Segurança com Hemoderivados, Programa Nacional de Avaliação em Serviços de Saúde, dentre outras. Acredita-se que a reflexão proposta neste texto perpassa pela importância dos SNIs como fonte para o aprendizado, monitoramento de tendências e padrões subjacentes para permitir a detecção precoce de incidentes, investigações e, principalmente, geração de recomendações abrangentes e contemporâneas a serem realizadas em caso de possíveis recorrências, bem como para suscitar informações precisas a pacientes e ou familiares sobre incidentes notificados.

OBJETIVO

Refletir sobre as principais características e recomendações de Sistemas de Notificação de Incidentes (SNIs), discutir a participação da população na notificação de incidentes e pontuar desafios para o sistema brasileiro de notificação.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo de reflexão, construído com base na Portaria nº 529, de 1º de abril de 2013, do Ministério da Saúde, que instituiu o PNSP e considerou a prioridade da SP em serviços de saúde na agenda política dos Estados-Membros da OMS, da qual o Brasil faz parte(44 Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 529, de 1º de abril de 2013. Institui o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP) [Internet]. Brasília, DF; 2013[cited 2019 Oct 5]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt0529_01_04_2013.html
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).

Esta reflexão também foi fundamentada na RDC nº 36, de 25 de julho de 2013, que instituiu, dentre outras ações, a de vigilância, monitoramento e notificação de EA pelos serviços de saúde, por meio das ferramentas eletrônicas disponibilizadas pela Anvisa, constituindo um sistema on-line de notificação, com garantia de retorno às unidades notificantes(55 Ministério da Saúde (BR). Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Resolução da Diretoria Colegiada Nº 36, de 25 de julho de 2013 [Internet]. Brasília, DF; 2013[cited 2019 Oct 5]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2013/rdc0036_25_07_2013.html
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). Além dessa documentação legal, foram acrescidas reflexões sobre SNIs de experts em SP, membros da Rede Brasileira de Enfermagem e Segurança do Paciente (REBRAENSP); e aquelas extraídas da revisão de literatura.

O texto está organizado em três partes: a primeira, sobre características e recomendações de SNIs em diferentes países, seguida da participação da população na notificação de incidentes e, por último, sobre os desafios para o sistema brasileiro de notificação de incidentes.

RESULTADOS

Características e recomendações de sistemas de notificação de incidentes

Entre as principais características dos SNIs, destacam-se a garantia da confidencialidade dos dados, o anonimato do notificador e a obrigatoriedade da notificação de incidentes, segundo determinação da legislação específica(11 World Health Organization (WHO). Minimal Information Model for Patient Safety Incident Reporting and Learning Systems[Internet]. 2014. [cited 2018 Apr 16]. Available from: www.WHO-HIS-SDS-2016.22-eng%20(1).pdf
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). Outro aspecto relevante, que resulta do funcionamento adequado de um SNI, é o desenvolvimento da cultura de SP, na qual os gestores e os demais profissionais envolvidos no cuidado do paciente assumem responsabilidade pela sua própria segurança, colegas, pacientes e familiares(44 Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 529, de 1º de abril de 2013. Institui o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP) [Internet]. Brasília, DF; 2013[cited 2019 Oct 5]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt0529_01_04_2013.html
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). Como apontado previamente, um fato preocupante quanto à notificação é a falta de uniformidade no que é notificado, pois, quando é realizada, faltam informações importantes ou estas são pouco exploradas.

Para facilitar a uniformidade nos sistemas de notificação, a OMS padronizou o modelo mínimo de informações, denominado Minimal Information Model for Patient Safety Incident Reporting and Learning Systems (MIM OS), ou Modelo de informações mínimas para a notificação de incidentes e sistemas de aprendizagem para SP (MIM SP), com objetivo de apresentar uma lista de categorias de informações mínimas que devem ser coletadas ao notificar um EA(11 World Health Organization (WHO). Minimal Information Model for Patient Safety Incident Reporting and Learning Systems[Internet]. 2014. [cited 2018 Apr 16]. Available from: www.WHO-HIS-SDS-2016.22-eng%20(1).pdf
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).

Os SNIs são complexos e os profissionais envolvidos com seus processos enfrentam dificuldades, principalmente para aprenderem com as notificações geradas(66 European Commission, Patient Safety and Quality of Care Working Group. Key findings and recommendations on Reporting and learning systems for patient safety incidents across Europe [Internet]. Brussels, Belgium; 2014 [cited 2019 Aug 5]. Available from: http://buonepratiche.agenas.it/documents/More/8.pdf
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). Nessa direção, as principais questões a serem discutidas são: Em que nível de governança os sistemas de notificação devem operar? De quem é a responsabilidade para determinar a obrigatoriedade da notificação? Quando pode ser voluntária? Que tipos de incidentes devem ser notificados? Como garantir que os notificadores não sofram punições(11 World Health Organization (WHO). Minimal Information Model for Patient Safety Incident Reporting and Learning Systems[Internet]. 2014. [cited 2018 Apr 16]. Available from: www.WHO-HIS-SDS-2016.22-eng%20(1).pdf
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)? Pautando-se no entendimento e esclarecimento dessas questões, é possível conhecer a dimensão do problema, investigar e analisar os dados obtidos, além de possibilitar o desenvolvimento de soluções para sua prevenção.

Na publicação do grupo de trabalho Patient Safety and Quality of Care, subgrupo The reporting and learning system, da European Commission, os autores citam as principais características e recomendações para a construção e viabilidade dos SNIs, listadas a seguir(66 European Commission, Patient Safety and Quality of Care Working Group. Key findings and recommendations on Reporting and learning systems for patient safety incidents across Europe [Internet]. Brussels, Belgium; 2014 [cited 2019 Aug 5]. Available from: http://buonepratiche.agenas.it/documents/More/8.pdf
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).

  1. Existem SNIs obrigatórios e voluntários nos Estados-Membros da Comissão Europeia. Cada tipo de SNI tem suas vantagens e desvantagens.

  2. SNI obrigatório deve ser acompanhado por regulamentações sobre isenção de sanções aos notificadores e de regras claras sobre confidencialidade dos dados.

  3. Os tipos de incidentes que podem ser relatados variam. No entanto, uma ampla definição permite o relato de quaisquer incidentes, incluindo quase erros e incidentes sem danos, fornecendo um recurso valioso para aprendizagem e melhorias de sistemas.

  4. Todos os trabalhadores em serviços de saúde, e não apenas os profissionais de saúde, devem estar capacitados para relatar incidentes relacionados à SP.

  5. As notificações de pacientes e familiares devem ser incentivadas, pois são recursos importantes para o aprendizado e a melhoria da SP.

  6. SNIs devem ser separados de reclamações, ações disciplinares e procedimentos de litígio. Profissionais de saúde que notificam devem ser protegidos de ações disciplinares ou legais. A confidencialidade do relator e anonimização dos dados devem ser asseguradas.

  7. Os relatórios anonimizados devem ser publicados regularmente; e o aprendizado, disseminado amplamente, a fim de apoiar o desenvolvimento e monitoramento de iniciativas para melhorar a segurança do paciente e prevenir incidentes.

Vale ilustrar características de SNIs de alguns países da Comunidade Europeia, tais como: se a notificação é voluntária ou obrigatória, quem está autorizado a notificar os incidentes e se são regulamentados por leis (Quadro 1)(66 European Commission, Patient Safety and Quality of Care Working Group. Key findings and recommendations on Reporting and learning systems for patient safety incidents across Europe [Internet]. Brussels, Belgium; 2014 [cited 2019 Aug 5]. Available from: http://buonepratiche.agenas.it/documents/More/8.pdf
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). Este quadro contribui para se analisar o avanço do sistema nacional em comparação com o status internacional.

Quadro 1
Características dos sistemas de notificação de incidentes de alguns países europeus quanto a quem está autorizado a relatar os incidentes e sua regulamentação legal

Os Estados Unidos da América (EUA) não possuem um SNI único, mas 21 dos 50 Estados operam-no de forma obrigatória, sendo que, em muitos, está em vigor há décadas. Além disso, os tipos de eventos notificáveis variam amplamente. No Brasil, encontram-se SNIs tanto por iniciativa pública(44 Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 529, de 1º de abril de 2013. Institui o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP) [Internet]. Brasília, DF; 2013[cited 2019 Oct 5]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt0529_01_04_2013.html
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) quanto por iniciativa privada, como no Sistema da Organização Nacional de Acreditação, pelo ONA Integrare, dentre outros com apoio, participação e função distintas.

Para que haja melhor aproveitamento dos SNIs, é importante o cumprimento das etapas a seguir de forma a favorecer a análise dos dados no sistema(77 Yu A, Flott K, Chainani N, Fontana G, Darzi A. Patient Safety 2030 [Internet]. London, UK: NIHR Imperial Patient Safety Translational Research Centre; 2016[cited 2019 Aug 5]. Available from: https://www.imperial.ac.uk/media/imperial-college/institute-of-global-health-innovation/centre-for-health-policy/Patient-Safety-2030-Report-VFinal.pdf
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).

  1. Entrada de dados: deve haver uma cultura de aprendizagem independente e não punitiva;

  2. Coleta de dados: a maneira pela qual a informação é coletada e manuseada é importante para determinar a qualidade da notificação;

  3. Análise de dados: os dados do SNI devem ser analisados para determinar as lições aprendidas e as medidas de melhoria e tendências;

  4. Feedback: deve abordar vulnerabilidades específicas, disseminar as lições aprendidas e as medidas de melhoria para indivíduos e organizações;

  5. Monitoramento dos efeitos das medidas adotadas e de sua contribuição para a mudança de atitude e conhecimento do pessoal envolvido.

Na prática, o sucesso dos SNIs perpassa, também, por questões relacionadas ao notificador, que podem ser entendidas como fatores impeditivos para a notificação: cultura institucional punitiva, processo de notificação complicado, falta de anonimato e confidencialidade, aumento da carga e do tempo de trabalho, falta de clareza e definição de quem e do que notificar, medo de resposta negativa e de ser visto como incompetente por colegas de trabalho, não acreditar que o incidente possa acontecer novamente, supor que o incidente já aconteceu antes e já foi relatado, falta de feedback e de crença de que a notificação levará a uma mudança(77 Yu A, Flott K, Chainani N, Fontana G, Darzi A. Patient Safety 2030 [Internet]. London, UK: NIHR Imperial Patient Safety Translational Research Centre; 2016[cited 2019 Aug 5]. Available from: https://www.imperial.ac.uk/media/imperial-college/institute-of-global-health-innovation/centre-for-health-policy/Patient-Safety-2030-Report-VFinal.pdf
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).

Os SNIs e seus relatórios têm valor reconhecido quando se obtém uma resposta construtiva e os profissionais de saúde observam que a instituição está disposta a mudar com base em seus comentários, contribuindo dessa forma com a solidificação da cultura de segurança. De acordo com a OMS, a medida mais importante para o sucesso dos SNIs é o uso dos resultados das análises dos incidentes notificados para formular medidas de prevenção e recomendações para mudanças no sistema, bem como para devolver a análise dos dados aos notificadores(11 World Health Organization (WHO). Minimal Information Model for Patient Safety Incident Reporting and Learning Systems[Internet]. 2014. [cited 2018 Apr 16]. Available from: www.WHO-HIS-SDS-2016.22-eng%20(1).pdf
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).

Participação da população na notificação de incidentes

Os pacientes e famílias podem fornecer informações sobre o sucesso e falha de cuidado, percepções que raramente são detectadas por outros métodos. De acordo com a OMS, as notificações podem ser realizadas pelas organizações de saúde, cuidadores, profissionais, pacientes, familiares ou, ainda, por órgãos de defesa do consumidor(11 World Health Organization (WHO). Minimal Information Model for Patient Safety Incident Reporting and Learning Systems[Internet]. 2014. [cited 2018 Apr 16]. Available from: www.WHO-HIS-SDS-2016.22-eng%20(1).pdf
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). No Brasil, as notificações provindas de pacientes e famílias tornaram-se possíveis com a criação do SNI, entretando ainda são raras. Pesquisa realizada na Dinamarca, cujo SNI está em vigor desde 2004, demonstra que as notificações preenchidas por pacientes também são poucas(88 Christiansen AB, Simonsen S, Nielsen GA. Patients own safety incidents reports to the Danish Patient Safety Database possess a unique but underused learning potential in patient safety. J Patient Saf. 2019 May 22. doi: 10.1097/PTS.0000000000000604
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).

Para melhorar esse cenário, os profissionais de saúde devem encorajar os pacientes e familiares para notificar incidentes de segurança sob a sua ótica, de forma que ajudem as organizações de saúde a ampliar seu entendimento sobre a localização das falhas e lacunas, bem como a identificar suas causas e mitigar danos. Ações de melhoria podem ser implementadas, quais sejam: envolver o paciente e familiar no plano terapêutico, nas passagens de plantão, nas transferências de cuidado entre as unidades (handovers), na alta hospitalar, no cuidado domiciliar e no encaminhamento para outros níveis de assistência. Uma interessante experiência foi citada pelo Great Ormond Street Hospital for Children, em Londres, que utiliza o instrumento Self-reporting Real-time Bedside, no qual os pacientes-famílias podem fazer a notificação do incidente, e as informações são analisadas no mesmo dia por um comitê da instituição, que efetua melhorias imediatas na assistência e feedback ao notificador(99 Sign up to Safety Patient Engagement in Patient Safety Group. Yorkshire Quality and Safety Research Group and Valid Research Ltd. Patient engagement in patient safety: a framework for the NHS [Internet]. London, 2016[cited 2019 Jun 25]. Available from: https://www.england.nhs.uk/signuptosafety/wp-content/uploads/sites/16/2016/05/pe-ps-framwrk-apr-16.pdf
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).

A coleta de dados, realizada rotineiramente com pacientes, é considerada também uma estratégia para estimular a notificação de incidentes pela população. A participação do paciente representa uma perspectiva única e valiosa a respeito do seu próprio cuidado, planejado e não planejado, o que contribui com o aprendizado e para criar serviços de saúde centrados nas pessoas. Essas informações podem ser obtidas por meio de questionários e perguntas pré-estabelecidas de forma simples e rápida, ou tão somente mediante escuta ativa no decorrer da realização do cuidado, valorizando a comunicação efetiva entre paciente, família e profissional(77 Yu A, Flott K, Chainani N, Fontana G, Darzi A. Patient Safety 2030 [Internet]. London, UK: NIHR Imperial Patient Safety Translational Research Centre; 2016[cited 2019 Aug 5]. Available from: https://www.imperial.ac.uk/media/imperial-college/institute-of-global-health-innovation/centre-for-health-policy/Patient-Safety-2030-Report-VFinal.pdf
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).

Vale destacar que o formulário de notificação do SNI, a ser utilizado por pacientes e familiares, deve atender às necessidades dessa população, que tem pouco domínio de termos técnicos e não recebe treinamento para sua utilização. Ressalta-se que pacientes e familiares devem ter consciência de que a notificação de incidentes não é uma denúncia formal para procedimentos de litígio(66 European Commission, Patient Safety and Quality of Care Working Group. Key findings and recommendations on Reporting and learning systems for patient safety incidents across Europe [Internet]. Brussels, Belgium; 2014 [cited 2019 Aug 5]. Available from: http://buonepratiche.agenas.it/documents/More/8.pdf
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), mas, sim, contribui como uma alavanca para melhorar o atendimento e a segurança.

Desafios para o sistema brasileiro de notificação de incidentes

Os desafios para o SNI no Brasil incluem: 1) agilizar a implementação do PNSP; 2) implantar a composição multiprofissional, maturidade e fortalecimento dos NSPs; 3) sedimentar a cultura de SP; 4) avaliar o sistema vigente, que inclui a qualidade das informações obtidas, de modo a promover o aprendizado dos profissionais e o aperfeiçoamento de sistemas e processos da organização; 5) ampliar informações sobre a existência e possibilidade de notificação anônima, para profissionais e usuários; 6) gerar feedback construtivo, ou seja, com recomendações para os notificadores, dentre outros.

Como reflexão aos desafios supracitados, vale lembrar que, no Brasil, de acordo com a RDC nº 36, a notificação de incidentes é obrigatória nas instituições de saúde, em todos os níveis de complexidade, com exceção dos consultórios, laboratórios clínicos, serviços móveis, domiciliares e de longa permanência(55 Ministério da Saúde (BR). Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Resolução da Diretoria Colegiada Nº 36, de 25 de julho de 2013 [Internet]. Brasília, DF; 2013[cited 2019 Oct 5]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2013/rdc0036_25_07_2013.html
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). Em concordância com outros pesquisadores, entende-se que a estratégia nacional de tornar mandatória a implementação do PNSP é positiva, uma vez que estimula as instituições a se responsabilizarem por sua aprendizagem e reorganização, conforme os incidentes notificados, na medida em que a aproximação com a realidade facilita a tomada de decisão(1010 Faustino TN, Batalha EMSDS, Vieira SL, Nicole AG, Morais AS, Tronchin DMR, et al. National Patient Safety Program in Brazil: incidents reported between 2014 and 2017. J Patient Saf. 2018. doi: 10.1097/PTS.0000000000000496
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).

Nosso país possui aproximadamente 134 mil instituições de saúde que atendem aos critérios de obrigatoriedade, das quais pelo menos 6.760 são hospitais. Todavia, o número de NSPs, segundo a última divulgação da ANVISA que contempla esses dados, é de 4.356, e o número de NSPs que fizeram pelo menos uma notificação foi de apenas 1.664(1111 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Relatórios dos Estados: eventos adversos. Número de NSPs cadastrados por UF: março de 2014 a abril de 2019. Brasília, DF, 2019 [cited 2019 Oct 5]. Available from: https://www20.anvisa.gov.br/segurancadopaciente/index.php/publicacoes/category/relatorios-dos-estados
https://www20.anvisa.gov.br/segurancadop...
), sugerindo que a criação desses núcleos pode ter acontecido apenas para cumprir a legislação, não sendo, de fato, incorporado como uma ferramenta efetiva, capaz de gerar mudanças no sistema de saúde e de consolidar uma cultura de segurança. Nesse sentido, acredita-se que, seis anos após ser promulgada a legislação vigente sobre o SNI, com intensa divulgação, não existe mais espaço para o seu não cumprimento e que, talvez, seja necessário aproximar os serviços de vigilância estaduais e municipais às instituições de saúde, com a finalidade não só de fiscalizar, mas também de desenvolver parcerias, dada a importância disso para a segurança dos usuários nos sistemas de saúde.

O SNI nacional apresenta uma navegabilidade complexa e gera dúvidas ao notificador quanto ao local correto para relatar e especificar o tipo de incidente. Destaca-se que esse SNI deveria ser único ou possuir uma única plataforma, para facilitar o detalhamento do incidente no preenchimento dos campos e o envio dos dados, pois o atual procedimento de notificação ocorre em três bases diferentes: NOTIVISA 1.0, NOTIVISA 2.0 e, recentemente, o VigiMed. Um aspecto importante a ser considerado é que os danos podem levar à judicialização dos casos, na busca por indenizações materiais e ou morais e, consequentemente, perdas patrimoniais das instituições ou dos profissionais envolvidos. Sobre isso, somente em 2016, de acordo com dados do Relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), tramitaram nos tribunais do Brasil 57.739 processos relacionados a erros médicos(1212 Conselho Nacional de Justiça (BR). Justiça em números 2017: ano-base 2016 [Internet]. Brasília, DF; 2017[cited 2019 Aug 9]. Available from: https://www.cnj.jus.br/pesquisa-judiciarias/justica-em-numeros/
https://www.cnj.jus.br/pesquisa-judiciar...
). Esse relatório não define o que se classifica como erro médico, mas provavelmente considera todos os erros clínicos que motivaram a abertura de processos. Devido à judicialização dos casos, os SNIs devem garantir o sigilo e proteção de dados, com o objetivo de proteger os profissionais e dissipar o medo da notificação, retaliação e exposição.

No que diz respeito à culpabilidade dos profissionais envolvidos em EA, tem-se observado uma evolução nesse sentido, havendo análise à luz da responsabilização. Atualmente, três países possuem legislação que, além de enfocar a segurança do paciente, também protege os profissionais de processos judiciais: Dinamarca (2004), Estados Unidos (2005 e 2016) e Itália (2017)(1313 Bellandi T, Tartaglia R, Sheikh A, Donaldson L. Italy recognizes patient safety as a fundamental right. BMJ. 2017;357:j2277. doi: 10.1136/bmj.j2277
https://doi.org/10.1136/bmj.j2277...
).

A lei italiana assenta-se em três princípios: a segurança é um direito de todos em qualquer serviço de saúde; se as diretrizes e práticas seguras, estabelecidas pelo Instituto Nacional de Saúde, forem observadas, o profissional estará protegido de processos judiciais, inclusive em caso de resultado adverso; e ações judiciais contra profissionais serão possíveis unicamente quando houver malícia ou negligência grave(1313 Bellandi T, Tartaglia R, Sheikh A, Donaldson L. Italy recognizes patient safety as a fundamental right. BMJ. 2017;357:j2277. doi: 10.1136/bmj.j2277
https://doi.org/10.1136/bmj.j2277...
).

O Brasil precisa avançar no quesito de proteção do profissional envolvido no EA, embora se observe o cumprimento da legislação referente à segurança do paciente e ao papel investigatório dos conselhos de classe.

Contribuições para enfermagem

O estudo de reflexão destaca a importância dos SNIs como fonte de aprendizado e, por sua vez, de prevenção de incidentes pelas equipes de enfermagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A maioria dos SNIs estudados compartilha características como a garantia da confidencialidade dos dados, o sigilo do notificador e a obrigatoriedade da notificação. A participação da população na notificação de incidentes é incentivada, pois é reconhecida a importância das informações que os pacientes e famílias podem fornecer; apesar disso, os relatórios têm mostrado percentuais mínimos, tanto no Brasil como no exterior. Entre os principais desafios para o sistema brasileiro de notificação de incidentes está o fortalecimento dos NSPs, a unificação da plataforma para realizar as notificações e a sedimentação da cultura de segurança. E para melhor viabilidade do sistema, recomenda-se que se realize a distinção entre incidentes e reclamações; ações disciplinares e procedimentos de litígio.

Os SNIs devem possibilitar a geração de relatórios de forma automática e agregar valor à sua implementação; para tanto, é necessário tornar o uso mais simples, priorizar os eventos a serem relatados, medir o progresso feito por meio da análise dos registros e dar feedback com recomendações aos notificadores, permitindo-lhes criar barreiras e mitigar riscos. Vale chamar atenção para o fato de que a existência de diferentes SNIs no Brasil gera dificuldades operacionais para os profissionais na análise das notificações e, consequentemente, na construção de políticas públicas voltadas ao cuidado seguro.

Espera-se que, com a informação, envolvimento e participação da população e dos profissionais da saúde, associados à maturidade adquirida ao longo do tempo e à experiência acumulada, o SNI nacional bem como outros existentes nas instituições de saúde possam melhorar aspectos atualmente conflitantes e ou diversificados; e possam, também, contribuir para a construção de um ambiente de prática seguro, o qual viabilize a redução dos riscos a todos.

REFERENCES

Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Mitzy Reichembach

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2020
  • Aceito
    31 Out 2020
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