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Promoção da saúde no enfrentamento da COVID-19: experiência de um Círculo de Cultura Virtual

RESUMO

Objetivo:

Relatar a experiência de um Círculo de Cultura Virtual com famílias brasileiras sobre o enfrentamento da COVID-19, como espaço promotor da saúde na vivência da pandemia.

Método:

Experiência oriunda de uma ação extensionista, realizou-se o Círculo de Cultura Virtual, fundamentado no Itinerário de Pesquisa de Paulo Freire. Contou com a participação de sete famílias de diferentes localidades do Brasil. Durante os diálogos, foi construída uma casa: o fundamento representou a investigação temática; paredes e telhado, a codificação e descodificação; portas e janelas, o desvelamento crítico.

Resultados:

O processo de ação-reflexão-ação favoreceu a aproximação e a integração dos participantes do Círculo de Cultura; apesar da distância geográfica, é estratégia inovadora para empoderamento e promoção da saúde.

Considerações finais:

O Círculo de Cultura Virtual constituiu-se em uma tecnologia leve para o cuidado em saúde, podendo ser explorado como uma ferramenta para a promoção da saúde, principalmente diante da impossibilidade presencial.

Descritores:
Quarentena; Infecções por Coronavírus; Promoção da Saúde; Saúde Mental; Adaptação Psicológica

ABSTRACT

Objective:

To report the experience of a Virtual Culture Circle with Brazilian families about coping with COVID-19, as a space that promotes health during the pandemic.

Method:

Experience resulting from an extension action, the Virtual Culture Circle was held based on Paulo Freire's Research Itinerary. It counted with the participation of seven families from different locations in Brazil. During the dialogues, a house was built: the foundation represented the thematic research; walls and roof, coding and decoding; doors and windows, the critical unveiling.

Results:

The action-reflection-action process favored the approach and integration of the participants of the Culture Circle; despite the geographical distance, it is an innovative strategy for empowerment and health promotion.

Final considerations:

The Virtual Culture Circle constituted a soft technology for health care and can be explored as a tool for promoting health, especially in scenarios where face-to-face meetings are an impossibility.

Descriptors:
Quarantine; Coronavirus Infections; Health Promotion; Mental Health; Psychological Adaptation, Nursing

RESUMEN

Objetivo:

Relatar experiencia de un Círculo de Cultura Virtual con familias brasileñas frente a la COVID-19, como espacio promotor de salud en la vivencia de la pandemia.

Método:

Experiencia oriunda de una acción extensionista, se realizó el Círculo de Cultura Virtual, fundamentado en la Investigación de Paulo Freire. Contó con la participación de siete familias de diferentes localidades de Brasil. Durante los diálogos, construyó una casa: el fundamento representó la investigación temática; paredes y techo, la codificación y descodificación; puertas y ventanas, la revelación crítica.

Resultados:

El proceso de acción-reflexión-acción favoreció la aproximación y la integración de los participantes del Círculo de Cultura; aunque la distancia geográfica, es estrategia innovadora para fortalecimiento y promoción de salud.

Consideraciones finales:

El Círculo de Cultura Virtual se constituyó en una tecnología leve para el cuidado en salud, pudiendo ser explorado como una herramienta para la promoción de salud, principalmente delante la imposibilidad presencial.

Descriptores:
Cuarentena; Infecciones por Coronavirus; Promoción de Salud; Salud Mental; Adaptación Psicológica

INTRODUÇÃO

O ano de 2019 terminou com uma notícia inesperada. Surgiu um novo vírus no território chinês, que adentrou o ano de 2020 causando a infecção de um número crescente de pessoas em todo o mundo. Foi denominado de "coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2" (SARSCoV-2). O SARS-CoV-2 causa a doença chamada Coronavirus Disease 2019, conhecida pela abreviatura COVID-19. O número que compõe o nome da doença se relaciona ao fato de a primeira notificação para a Organização Mundial da Saúde (OMS) ter ocorrido em dezembro de 2019(11 Guinai I, McPherson TD, Hunter JC, Kirking HL, Christiansen D, Joshi K, et al. First known person-to-person transmission of severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 (SARS-CoV-2) in the USA. Lancet. 2020;S0140-6736(20)30607-3. doi: 10.1016/S0140-6736(20)30607-3
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).

Em janeiro de 2020, a China evidenciou o aumento desordenado da disseminação do SARSCoV-2, registrando um número expressivo de indivíduos que desenvolveram COVID-19, os quais apresentavam desde quadros respiratórios leves, até síndrome respiratória aguda grave, sendo que os últimos precisavam de leitos de terapia intensiva com necessidade de suporte ventilatório, por meio de ventilação mecânica(11 Guinai I, McPherson TD, Hunter JC, Kirking HL, Christiansen D, Joshi K, et al. First known person-to-person transmission of severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 (SARS-CoV-2) in the USA. Lancet. 2020;S0140-6736(20)30607-3. doi: 10.1016/S0140-6736(20)30607-3
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). Nesse período, a atenção do mundo voltou-se para a China, acompanhando o desenvolvimento da doença e das medidas de controle implementadas. Em poucos dias, iniciaram-se os registros de casos de COVID-19 em diferentes países, sendo estes inicialmente relacionados a contato com o território chinês.

A rápida disseminação da COVID-19 para outros países além da China foi influenciada pelo processo de globalização, que é caracterizado como um fenômeno promovedor da articulação e interação do mundo por meio das questões políticas, culturais, sociais e econômicas, tornando o ambiente cada vez mais complexo e dinâmico(22 Celano AC, Guedes AL. Impactos da globalização no processo de internacionalização dos programas de educação em gestão. Cad EBAPE.BR [Internet]. 2014[cited 2020 Mar 29];12(1):45-61. Available from: http://www.scielo.br/pdf/cebape/v12n1/v12n1a05.pdf
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). Esse processo de globalização facilita e intensifica a comunicação e o deslocamento dos indivíduos no globo terrestre; é produtivo para o desenvolvimento humano, porém tem mostrado ao mundo que esse tipo de relação e mobilidade também acarreta perigo.

Diante do registro dessa disseminação da COVID-19, que extrapolou rapidamente as fronteiras dos países e dos continentes, com o avanço dos casos de transmissão comunitária do vírus em diferentes países - ou seja, quando não se consegue identificar a fonte da infecção -, a OMS classificou a COVID-19 como uma pandemia em março de 2020, que é quando uma doença está presente nos cinco continentes, circulando por um grande número de países(33 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Centro de Operações Emergenciais em Saúde Pública. Boletim Epidemiológico 04 - COE COVID-19, 04 de março de 2020 [Internet]. Brasília: MS; 2020 [cited 2020 Mar 29]. Available from: https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/marco/04/2020-03-02-Boletim-Epidemiol--gico-04-corrigido.pdf
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).

Com a declaração de pandemia, as discussões em nível mundial de quais seriam as medidas mais eficazes para o controle e prevenção da doença se intensificaram, sendo consenso: a higiene das mãos, higiene das superfícies e ambientes, etiqueta respiratória, medidas de precauções específicas adicionais às precauções-padrão nos serviços de saúde, não compartilhamento de objetos de uso pessoal, detecção e isolamento de casos suspeitos e confirmados, além de outras medidas não farmacológicas(33 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Centro de Operações Emergenciais em Saúde Pública. Boletim Epidemiológico 04 - COE COVID-19, 04 de março de 2020 [Internet]. Brasília: MS; 2020 [cited 2020 Mar 29]. Available from: https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/marco/04/2020-03-02-Boletim-Epidemiol--gico-04-corrigido.pdf
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).

Dentre as medidas não farmacológicas, destacam-se o distanciamento social, o isolamento e a quarentena. O distanciamento social é indicado para todos e estabelece que os indivíduos devem manter uma distância mínima de 2 metros entre si, considerada uma distância segura para que não ocorra contaminação. O isolamento é indicado para casos sintomáticos ou assintomáticos, com suspeita ou confirmação da doença, a fim de reduzir o contato destes com indivíduos sadios e evitar a transmissão da doença(44 Ministério da Saúde (BR). Portaria Nº 356, de 11 de março de 2020. Dispõe sobre a regulamentação e operacionalização do disposto na Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que estabelece as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (COVID-19) [Internet]. Brasília: MS; 2020 [cited 2020 Mar 29]. Available from: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-356-de-11-de-marco-de-2020-247538346
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).

A quarentena é determinada pelo gestor de saúde de determinado território, com base na análise do perfil epidemiológico e capacidade de atendimento dos serviços de saúde em resposta à epidemia, com o intuito de reduzir a circulação de pessoas e, dessa forma, desacelerar a velocidade de transmissão da doença e do número de indivíduos doentes que necessitam de assistência em unidade hospitalar e em leitos de terapia intensiva. Essa medida torna-se ainda mais importante em casos de doenças como a COVID-19, que não possui vacina ou medicamento específico para o seu tratamento. No Brasil, tal ação está regulamentada pela Portaria nº 356, de 11 de março de 2020(44 Ministério da Saúde (BR). Portaria Nº 356, de 11 de março de 2020. Dispõe sobre a regulamentação e operacionalização do disposto na Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que estabelece as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (COVID-19) [Internet]. Brasília: MS; 2020 [cited 2020 Mar 29]. Available from: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-356-de-11-de-marco-de-2020-247538346
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).

Com o avanço da transmissão comunitária do SARS-CoV-2 e o aumento expressivo do número de casos de COVID-19, diversas cidades e estados brasileiros decretaram quarentena para toda a população. Recomendou-se que as pessoas se mantivessem em casa, fechando escolas, comércios, com funcionamento apenas dos serviços essenciais, restringindo abruptamente as relações que os indivíduos mantinham em sua vida diária, seja na esfera do trabalho, amizade, família, relações religiosas, entre outras.

Esse movimento da quarentena provocou mudanças repentinas nos hábitos de vida da sociedade e transformou profundamente a rotina dos indivíduos e das famílias que convivem e compartilham a mesma casa, incluindo nesse turbilhão a restrição do amplo contato social e o distanciamento de diversos relacionamentos interpessoais, antes frequentes. Tal cinesia tem o potencial de causar diferentes sentimentos e reações nos indivíduos e famílias, dependendo da maneira como recebem, processam e enfrentam a situação, influenciando diretamente a saúde mental.

Os impactos psicológicos da quarentena vêm sendo estudados há algum tempo, tendo em vista que, em outros momentos da história, essa ação já foi instituída em diferentes locais para o controle de outras doenças transmissíveis. Dentre os principais efeitos para a saúde mental dos indivíduos que vivenciam a quarentena, destacam-se os negativos, tais como sintomas de estresse pós-traumático, confusão, raiva, tédio, frustração, ansiedade, insônia, irritabilidade, humor deprimido e medo de ser infectado. O desenvolvimento destes são influenciados pelo tempo de duração da quarentena, pelo acesso aos suprimentos essenciais, bem como pelo estado prévio da saúde mental da pessoa(55 Brooks SK, Webster RK, Smith LE, Woodland L, Wessely S, Greenberg N, et al. The psychological impact of quarantine and how to reduce it: rapid review of the evidence. Lancet. 2020;395:912-20. doi: 10.1016/S0140-6736(20)30460-8
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).

Apoiando-se nessas evidências, foram também identificadas ações para minimizar os efeitos negativos da quarentena sobre a saúde mental dos indivíduos, como: tornar menor possível o período de distanciamento social, prover os suprimentos essenciais, fornecer informações de qualidade para as pessoas compreenderem as medidas que estão sendo implementadas, além de estratégias visando reduzir o tédio e promover a comunicação entre os indivíduos. Quanto à última ação, enfatiza-se a importância dos recursos tecnológicos para comunicação e da internet, que favorecem a conexão e a aproximação entre pessoas distantes geograficamente(55 Brooks SK, Webster RK, Smith LE, Woodland L, Wessely S, Greenberg N, et al. The psychological impact of quarantine and how to reduce it: rapid review of the evidence. Lancet. 2020;395:912-20. doi: 10.1016/S0140-6736(20)30460-8
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).

De fato, vê-se que as pessoas ampliaram o uso de tecnologias para aproximarem-se umas das outras e manterem relacionamento com suas famílias. Nesse ínterim, buscando refletir sobre as repercussões da quarentena, pesquisadoras com experiência no uso do Círculo de Cultura de Paulo Freire empregaram essa ferramenta de maneira virtual, como uma ação extensionista de uma universidade pública do Sul do Brasil, para estabelecer conexão com algumas famílias brasileiras, no intuito de promover a saúde por meio do diálogo, oportunizando o compartilhamento de experiências.

OBJETIVO

Relatar a experiência de um Círculo de Cultura Virtual com famílias brasileiras, a fim de ofertar um espaço promotor da saúde no enfrentamento da COVID-19.

MÉTODOS

Organização do círculo de cultura virtual

A experiência foi fundamentada no Itinerário de Pesquisa de Paulo Freire, que possui uma proposta pedagógica libertadora, dá-se mediante diálogo horizontal e constitui-se de três momentos dialéticos e interligados: investigação temática; codificação e descodificação; desvelamento crítico. Essas etapas ocorrem em um espaço denominado de Círculo de Cultura, no qual cada partícipe traz as suas vivências e experiências, o seu saber, sendo que os indivíduos são ativos na sua aprendizagem, envolvendo a participação de todos. Há um mediador que desenvolve a interação do grupo, no intuito de alcançar o conhecimento coletivo e elaborar ações de intervenção(66 Heidemann ITSB, Dalmoni IS, Rumor PCF, Cypriano CC, Costa MFBNA, Durand MK. Reflexões sobre o Itinerário de Pesquisa de Paulo Freire: contribuições para a saúde. Texto Contexto Enferm. 2017;26(4):e0680017. doi: 10.1590/0104-07072017000680017
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).

Devido à necessidade de quarentena, tornou-se inevitável desenvolver o Círculo de Cultura de maneira virtual. Para tanto, utilizou-se o aplicativo Zoom® por meio da câmera do celular, o que possibilitou a participação das famílias de maneira interativa, mesmo estando cada uma em sua residência. A fim de efetivar o Círculo de Cultura e manter uma relação estreita entre os envolvidos, optou-se por convidar primeiramente uma família do convívio social das autoras, para facilitar a interação e aprofundamento das discussões. A partir de então, tal família convidou outras pessoas do seu convívio familiar, entre irmãos, pais, cunhados, avós e amigos, para integrarem o Círculo de Cultura Virtual (CCV), de modo que foram envolvidas sete famílias brasileiras nesse processo, totalizando a participação de 21 indivíduos, com idades entre 10 e 82 anos.

As sete famílias referiram ser de classe média e residiam em diferentes locais do território nacional, sendo: duas em São Paulo, duas no Rio de Janeiro, duas em Santa Catarina e uma em Goiás. O CCV foi realizado no dia 26 de março de 2020, durante o período de quarentena, com duração de duas horas e meia, tendo como mediadora uma enfermeira, doutora, experiente na condução desse tipo de abordagem. Cabe salientar que, no dia anterior ao início do CCV, as famílias foram orientadas sobre a utilização do aplicativo, e foi realizado um teste a fim de verificar a conexão com todos os envolvidos no processo, ajustando microfone e câmera do celular, bem como definir o local da residência onde as famílias permaneceriam durante a atividade, para proporcionar conforto e permitir que todos os integrantes fossem vistos e ouvidos pelos partícipes da atividade. Ainda, foi solicitado que cada família providenciasse uma cartolina e canetões que seriam utilizados no encontro.

No primeiro momento, foi apresentado aos partícipes a proposta, com a explanação da metodologia de trabalho que seria desenvolvida no CCV. As etapas do Itinerário de Pesquisa foram realizadas por meio da analogia com a construção de uma casa, que depende de todas as suas estruturas para manter-se edificada. Então, foi organizado um quebra-cabeça para realizar a construção da casa, adaptado pelas autoras de forma lúdica, com vistas a tornar a discussão acerca do enfrentamento da COVID-19 mais concreta, criativa, interativa e dialógica, conforme a Figura 1.

Figura 1
Etapas do Itinerário de Pesquisa

A casa foi sendo construída durante as reflexões, permanecendo fisicamente na residência da mediadora do CCV, que buscou constantemente o apoio e interação das famílias na missão de montar o quebra-cabeça. A investigação temática foi comparada aos fundamentos da casa. Para instigar o diálogo, questionou-se: "Quais as repercussões da pandemia COVID-19 em sua vida?" As famílias dialogaram amplamente e elegeram dois temas geradores para discussão no CCV, iniciando a construção da casa: 1) Fragilidades da quarentena; 2) Potencialidades da quarentena.

Para a etapa da codificação e descodificação, construíram-se as paredes e o telhado por meio de discussões mediadas por duas questões norteadoras: "Quais as fragilidades de vivenciar a quarentena? Quais as potencialidades de vivenciar a quarentena?" Com base nessas questões condutoras, as famílias em diálogo no CCV codificaram e descodificaram os temas geradores, sendo convidadas a escrever em um lado da cartolina as fragilidades na vivência da quarentena e, do outro lado, registrar as potencialidades que a quarentena proporcionava.

As famílias apresentaram e discutiram com o grupo suas percepções, fazendo emergir novas temáticas significativas que expressavam a situação vivenciada no momento; e, enquanto partilhavam, a mediadora anotou as principais reflexões, como representado na Figura 2. Para validar tais registros, a mediadora leu todas as anotações para os partícipes do CCV, incentivando a reflexão novamente sobre as temáticas.

Figura 2
Dois temas geradores, que foram codificados e desvelados no Círculo de Cultura Virtual com as famílias

A última etapa do Itinerário de Pesquisa é o desvelamento crítico, que ocorreu em um processo de ação-reflexão-ação das temáticas investigadas, em que as famílias foram convidadas a expressar o significado de vivenciar o CCV. Nesse momento, construíram as portas e janelas da casa, na perspectiva de que estas contatam os ambientes interno e externo de uma residência, tal como foi oportunizado pelos partícipes do Círculo; ou seja, eles puderam olhar para si e posteriormente para as reflexões exteriorizadas e construídas no grupo, para então ressignificarem as discussões realizadas e se empoderarem interna e mutuamente, fortalecendo-se e transformando-se em prol da saúde mental de toda a família na vivência da quarentena ocasionada pela COVID-19.

A partir do desenvolvimento deste CCV, foi organizado um projeto de pesquisa matricial, com o intuito de compreender a percepção dos brasileiros sobre o enfrentamento e sobre as repercussões da COVID-19 em suas vidas. Foi aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa.

Círculo de Cultura Virtual: uma ferramenta para promover saúde em tempos de COVID-19

Por meio dos diálogos no CCV, foram suscitados debates sobre as vivências do cotidiano da quarentena. Assim, o pensamento crítico-reflexivo dos partícipes foi amplamente compartilhado, e o encontro virtual tornou-se um espaço dinâmico de aprendizagem, que viabilizou a reflexão sobre as situações existenciais no enfrentamento da COVID-19.

As famílias participantes trocaram conhecimento durante o CCV, sendo que, quando se abrem espaços para a escuta das necessidades dos indivíduos, com oportunidade de troca de experiências e de informações, permitindo que todos possam falar sobre seus problemas e juntos buscar soluções, tais ações tornam-se também um instrumento para a promoção da saúde na comunidade(77 Menezes KKP, Avelino PR. Grupos operativos na Atenção Primária à Saúde como prática de discussão e educação: uma revisão. Cad Saúde Colet. 2016;24(1):124-30. doi: 10.1590/1414-462X201600010162
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). Somado a isso, os participantes solicitaram a realização de outros momentos similares para darem continuidade às discussões emergentes no enfrentamento da COVID-19, e isso evidencia que apreciaram intensamente participar desse espaço, o qual oportunizou saúde aos envolvidos e compartilhamento de vivências. O fato é que o isolamento físico se faz necessário no contexto da pandemia, mas não o social, ou seja, deve-se estimular o convívio social dos indivíduos e familiares por meio de dispositivos eletrônicos que promovam a comunicação, interação e promoção da saúde, assim como foi realizado nesta experiência.

Percebe-se que, de modo geral, pesquisadores e cientistas têm buscado ardentemente informações sobre a COVID-19, a fim de alcançar maiores possibilidades de cura dos indivíduos acometidos e prevenção de novos casos, o que é salutar e extremamente relevante na atual conjuntura. No entanto, chama-se a atenção para os pesquisadores e profissionais da saúde também voltarem os olhares para os indivíduos, famílias e comunidades que precisam enfrentar a situação atual, buscando estratégias de promover a saúde em tempos de pandemia, pois se acredita que as repercussões deste momento de crise irão se estender em longo prazo no modo de viver dos indivíduos e coletividades.

Nesse cenário, faz-se necessário transpor o modelo biomédico vigente e promover saúde como um bem e um direito de todo cidadão, sendo que as concepções e práticas sobre doença podem engessar as possibilidades do fazer saúde pautado nos modos de ser e viver da sociedade. Vale lembrar que a concepção de promoção da saúde resultou da Carta de Ottawa, de 1986, definindoa como o processo de qualificação dos indivíduos e coletividades para atuar na melhoria da sua qualidade de vida, considerando a importância dos determinantes sociais de saúde(88 Ivo MAS, Malta DC, Freitas MIF. Modos de pensar dos profissionais do Programa Academia da Saúde sobre saúde e doença e suas implicações nas ações de promoção de saúde. Physis: Rev Saúde Coletiva. 2019;29(1):e290110 doi: 10.1590/S0103-73312019290110
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).

Além disso, para que o Círculo de Cultura seja virtual ou presencial, se torne um espaço promotor de saúde, sugere-se que o mediador organize uma estratégia criativa e lúdica para percorrer as etapas do Itinerário Freireano, a fim de se aproximar da realidade dos participantes de maneira concreta, estabelecendo maior conexão com eles. O lúdico durante o processo educativo ativa a interação e a construção do conhecimento em conjunto, potencializando o protagonismo dos envolvidos na atividade e o exercício da autonomia, com expressão de sentimentos e ideias(99 Souza JB, Colliselli L, Madureira VSF. A utilização do lúdico como estratégia de inovação no ensino da enfermagem. Rev Enf C-Oeste Mineiro. 2017;7:e1227. doi: 10.19175/recom.v7i0.1227
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). Na experiência aqui relatada, a representação da casa foi escolhida por possibilitar a reflexão da situação das famílias partícipes, que se encontravam em quarentena em suas residências no período da realização do CCV; isso tornou a discussão mais concreta, criativa, interativa, dialógica, próxima da realidade dos participantes, bem como oportunizou a realização de todas as fases do Itinerário de Paulo Freire em um único encontro.

Nesse contexto, o CCV configura-se como uma tecnologia leve para o cuidado, sendo uma estratégia inovadora e criativa que surgiu devido às imposições e limitações em decorrência da COVID-19, pois possibilitou o diálogo entre as famílias que estavam distantes, permitindo aproximação social, reflexão e aprendizado de maneira ágil e com escassos recursos, em um período pandêmico. O uso de tecnologias leves no âmbito da enfermagem vem ganhado destaque, havendo a oportunidade de desenvolvê-las em prol do crescimento da profissão. Elas são produzidas no processo de trabalho, condensando em si as relações de subjetividade, interação, gerando acolhimento, vínculo e autonomia no encontro entre profissionais da saúde e indivíduos que carecem de cuidados(1010 Moraes de Sabino LM, Brasil DRM, Joselany ÁC, Santos MCL, Santos Alves MD, et al. The Use of Soft-Hard Technology in Nursing Practice: Concept Analysis. Aquichan. 2016;16(2):230-9. doi: 10.5294/aqui.2016.16.2.10
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).

Portanto, como sugestão, ressalta-se o desenvolvimento de oportunidades de acolhimento aos indivíduos por meio do CCV, a fim de promover a saúde. Esses espaços devem priorizar a troca de saberes e proporcionar diálogo, empoderamento e esperança para os indivíduos, famílias, comunidades, tanto em âmbito nacional quanto mundial. Nesse aspecto, a enfermagem destaca-se como estratégia potencial de interlocução entre comunidades e a assistência em saúde, podendo atuar em seu território mediante ações intersetoriais, principalmente na Atenção Primária à Saúde, buscando, assim, promover a saúde no seu sentido mais amplo.

Limitações do estudo

Esta experiência teve como limitação o fato de ter sido a primeira vivência das autoras no desenvolvimento do Círculo de Cultura por meio do ambiente virtual, sendo que novas oportunidades poderão ser conduzidas com maior tranquilidade e segurança, proporcionando novos olhares acerca dessa estratégia.

Contribuições para a área da enfermagem, saúde ou política

A partir da vivência exitosa relatada pelas pesquisadoras, este trabalho representa uma inovação na forma de desenvolver o Círculo de Cultura, pois permite extrapolar os limites da presença de todos os participantes em um mesmo espaço físico, ampliando as oportunidades de uso dessa estratégia metodológica como uma tecnologia leve para o cuidado.

Além disso, possibilita que a escuta com acolhimento, a troca de experiências e de informações sejam instrumentos de promoção de saúde e bem-estar nas famílias, mesmo distantes geograficamente. Portanto, a realização do CCV, fundamentado no referencial de Paulo Freire, despontou como uma ferramenta metodológica e assistencial para a enfermagem, sendo que, por meio de ações dialógicas libertadoras, permitiu o desenvolvimento de cuidado humano, integral e acolhedor, diante da necessidade de restrição social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O CCV, respaldado nos pressupostos teórico-filosófico-políticos de Paulo Freire, oportunizou um espaço de acolhimento e diálogo horizontal, promovendo a saúde dos participantes ao possibilitar um sentimento de confiança, construção do saber, liberdade de expressão, amorosidade, esperança. Isso permitiu refletir criticamente sobre a vida e seus desdobramentos, tomando consciência de sua existência, com reelaboração do conhecimento da sua realidade na vivência da quarentena gerada pela COVID-19.

Vislumbra-se que o desenvolvimento do CCV foi uma estratégia profícua, pois favoreceu a aproximação dos partícipes sem necessidade do contato físico, viabilizando a integração de pessoas distantes geograficamente. Essa inovação com a execução do CCV mostra-se como um potencial para promover a saúde de indivíduos e coletividade em tempos de pandemia, bem como para a realização de pesquisa do tipo ação-participante com o envolvimento de indivíduos independentemente da sua localização geográfica. Sugere-se, ainda, a realização de estudos que possam aprofundar as características possíveis de diferir em ambas as estratégias, o Círculo de Cultura presencial e o CCV.

  • FINANCIAMENTO
    Esta pesquisa foi apoiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).

REFERENCES

  • 1
    Guinai I, McPherson TD, Hunter JC, Kirking HL, Christiansen D, Joshi K, et al. First known person-to-person transmission of severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 (SARS-CoV-2) in the USA. Lancet. 2020;S0140-6736(20)30607-3. doi: 10.1016/S0140-6736(20)30607-3
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    Ministério da Saúde (BR). Portaria Nº 356, de 11 de março de 2020. Dispõe sobre a regulamentação e operacionalização do disposto na Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que estabelece as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (COVID-19) [Internet]. Brasília: MS; 2020 [cited 2020 Mar 29]. Available from: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-356-de-11-de-marco-de-2020-247538346
    » http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-356-de-11-de-marco-de-2020-247538346
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Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa
EDITOR ASSCOAIADO: Hugo Fernandes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    01 Abr 2020
  • Aceito
    20 Set 2020
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