Comprometimento e entrincheiramento com a carreira em trabalhadores da Atenção Primária à Saúde

RESUMO

Objetivo:

Avaliar os níveis de comprometimento e entrincheiramento com a carreira de trabalhadores da Atenção Primária à Saúde.

Métodos:

Estudo transversal com 393 trabalhadores, utilizando as versões brasileiras das Escalas de Comprometimento com a Carreira (ECC) e de Entrincheiramento na Carreira (EEC).

Resultados:

Os níveis de Comprometimento [75,5 - 77,5] foram superiores (p<0,001) aos de Entrincheiramento [66,7 - 69,2]. Os níveis de Identidade [82,7 - 85,5] foram superiores (p<0,001) aos níveis de Investimentos [60,4 - 65,0]. Os níveis de Resiliência com a carreira [75,1 - 79,2] foram superiores (p<0,001) aos níveis de Custos emocionais com a carreira [69,0 - 72,1]. Os níveis de Planejamento [64,2 - 67,1] foram inferiores (p<0,001) aos níveis de Limitação de alternativas [68,1 - 71,0].

Conclusão:

Predominou o vínculo de comprometimento com a carreira, evidenciando identificação e relação positiva dos trabalhadores com a carreira, os quais permanecem na Atenção Primária à Saúde porque se identificam com a profissão.

Descritores:
Mobilidade Ocupacional; Atenção Primária à Saúde; Emprego; Pessoal de Saúde; Saúde do Trabalhador

ABSTRACT

Objective:

Assess levels of career commitment and career entrenchment among Primary Health Care workers.

Methods:

This Cross-sectional study addressed 393 workers using the Brazilian versions of the Career Commitment Measure (CCM) and Career Entrenchment Measure (CEM).

Results:

Levels of Career commitment [75.5-77.5] were higher (p<0.001) than Career Entrenchment [66.7-69.2]. Identity levels [82.7-85.5] were higher (p<0.001) than Investment levels [60.4-65.0]. Career resilience levels [75.1-79.2] were higher (p<0.001) than Emotional costs [69.0-72.1]. Planning levels [64.2-67.1] were lower (p<0.001) than levels of limitedness of career alternatives [68.1-71.0].

Conclusion:

The highest scores were obtained in Career commitment, showing the workers’ identification and positive relationship with their careers, that is, these workers remain in Primary Health Care services because they identify themselves with their professions.

Descriptors:
Career Mobility; Primary Health Care; Employment; Health Personnel; Occupational Health

RESUMEN

Objetivo:

Evaluar los niveles de compromiso y afianzamiento con la carrera del personal de la Atención Primaria de Salud.

Métodos:

Se trata de un estudio transversal, realizado entre 393 trabajadores, en el que se utilizaron las versiones brasileras de las Escalas de Compromiso con la Carrera (ECC) y de Afianzamiento con la Carrera (EEC).

Resultados:

Los niveles de Compromiso [75,5 - 77,5] eran superiores (p<0,001) a los de Afianzamiento [66,7 - 69,2]. Los niveles de Identidad [82,7 - 85,5] eran superiores (p<0,001) a los de Inversión [60,4 - 65,0]. Los niveles de Resiliencia con la carrera [75,1 - 79,2] eran superiores (p<0,001) a los de Costo emocional [69,0 - 72,1]. Los niveles de Planificación [64,2 - 67,1] eran inferiores (p<0,001) a los de Limitación de alternativas [68,1 - 71,0].

Conclusión:

Predominó el vínculo de compromiso con la carrera, lo que demuestra una identificación y relación positiva de los trabajadores con la misma y permanecen en la Atención Primaria de Salud porque se identifican con la profesión.

Descriptores:
Movilidad Laboral; Atención Primaria de Salud; Empleo; Personal de Salud; Salud Laboral

INTRODUÇÃO

No Brasil, o enorme contingente que compõe a força de trabalho de profissionais da Atenção Primária à Saúde (APS) apresenta forte componente de vulnerabilidade social e trabalhista. A literatura aponta que as condições de trabalho desses profissionais são precárias, com vínculos trabalhistas frágeis, contratos temporários e baixa remuneração, além de ausência de planos de cargos e salários e aumento das terceirizações, gerando elevada rotatividade dos profissionais, adoecimento e comprometimento da capacidade resolutiva do Sistema Único de Saúde (SUS)^(1-2).

Nesse contexto, o processo de trabalho nos serviços da APS estrutura-se com uma demanda crescente e um escopo de práticas que, a cada dia, incorpora novas atribuições, levando o trabalhador à sobrecarga e ao esgotamento. Tal configuração pode causar insatisfação profissional, frustração e desinteresse, gerando uma situação conflituosa no trabalhador, que acreditava crescer, sentir-se satisfeito e realizado com o trabalho^(3-5).

Esse cenário repercute nos vínculos do trabalhador com a carreira, tornando-se, por esse motivo, relevante compreender como os profissionais da APS estão vinculados aos serviços de saúde. Os vínculos com a carreira - comprometimento e entrincheiramento - são formados a partir da motivação dos trabalhadores e compreendem comportamentos divergentes, que podem causar importantes impactos sociais, organizacionais, pessoais e sanitários^(6-7).

O comprometimento com a carreira consiste numa relação positiva do trabalhador com sua profissão, podendo fornecer significado e continuidade no trabalho. Quando comprometido, o trabalhador sente-se envolvido com a organização, o trabalho e a carreira. Deseja permanecer e desenvolver-se na carreira, superando os obstáculos que porventura surgirem^(7-8).

Por outro lado, o entrincheiramento com a carreira é entendido como a estagnação do trabalhador em uma posição profissional, decorrente da falta de alternativas, da necessidade de não perder os investimentos até então realizados, bem como evitar os custos emocionais relacionados à mudança de trabalho. Avalia a tendência do profissional, mesmo insatisfeito, de permanecer na carreira em virtude dos investimentos já realizados, das perdas emocionais em caso de mudança de carreira e da falta de perspectivas numa nova ocupação^(7-9).

O comprometimento e o entrincheiramento na carreira buscam explicar a intenção ou a persistência do trabalhador em um curso de ação que delimita sua ocupação e seus investimentos, com objetivo de construir uma trajetória pessoal de êxito que resulte, igualmente, em benefícios para a sociedade. É possível perceber que o entrincheiramento na carreira independe do nível de comprometimento com ela, tratando-se, portanto, de vínculos distintos, independentes e não opostos, mas que podem ter impactos diferenciados sobre o desempenho^(6,10-11).

No Brasil, a literatura sobre comprometimento e entrincheiramento com a carreira ainda é escassa, especialmente entre profissionais que atuam na APS. Um estudo com enfermeiros de instituições hospitalares mostrou predomínio de comprometimento com a carreira, que pode estar associado à permanência desses trabalhadores na Enfermagem por se identificarem com a profissão⁽⁷⁾.

Estudos internacionais com profissionais da saúde evidenciam elevados níveis de comprometimento com a carreira, destacando que a idade, o setor de trabalho e o tempo de atuação interferem nos níveis de comprometimento^(12-13).

OBJETIVO

Avaliar os níveis de comprometimento e entrincheiramento com a carreira de trabalhadores da Atenção Primária à Saúde.

MÉTODOS

Aspectos éticos

Antecedendo a coleta dos dados, o estudo recebeu parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto.

Desenho, período e local do estudo

Trata-se de estudo transversal, descritivo e analítico, realizado em 2018, em dois municípios do estado de São Paulo, Brasil, com amostra não probabilística, de conveniência, que incluiu os trabalhadores das equipes de APS.

O primeiro município (Município A) está situado ao norte do estado de São Paulo, a 452 km da capital. É um município de grande porte e, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), possui população estimada de 438.354 habitantes. O município é sede da Divisão Regional de Saúde XV, a maior do estado de São Paulo e referência no atendimento à saúde.

No momento da coleta, o município estava dividido em cinco Distritos de Saúde. A APS era responsável por 27 serviços municipais, sendo 10 Unidades Básicas de Saúde (UBS) e 17 Unidades Básicas de Saúde da Família (UBSF), com 40 equipes de Estratégia Saúde da Família (ESF), responsáveis pela cobertura de 24% da população do município.

O segundo município (Município B) está situado na região oeste do estado, a 596 km da capital. É um município de pequeno porte, com população de 33.707 habitantes. O município é centro de referência na área da saúde para nove municípios da região da Nova Alta Paulista. Na estruturação do modelo de saúde local, a APS era realizada por quatro Unidades Básicas de Saúde (UBS), com dez equipes de ESF e cobertura de 100% da população do município.

População e amostra; critérios de inclusão e exclusão

A população do estudo foi composta por 549 trabalhadores que atuam nas equipes de ESF dos municípios (enfermeiros, médicos, auxiliares/técnicos de enfermagem, Agentes Comunitários de Saúde - ACS), sendo 410 no Município A e 139 no Município B. Foram incluídos no estudo os profissionais que atuavam na ESF há, pelo menos, seis meses. Trabalhadores que estavam de férias e/ou afastados das atividades profissionais por qualquer outro motivo, no período da coleta dos dados, foram excluídos do estudo. A amostra foi definida por conveniência e composta por 393 profissionais da ESF.

Protocolo do estudo

Para a coleta dos dados, foram utilizados três instrumentos: o primeiro, contendo questões sociodemográficas e profissionais, como sexo, idade, escolaridade, estado civil, renda familiar, tipo de contrato, gerente ou não da unidade e tempo de atuação na APS; a versão brasileira da Escala de Comprometimento com a Carreira (ECC) de Carson e Bedeian^(8,14); e a versão brasileira da Escala de Entrincheiramento na Carreira (EEC) desenvolvida por Carson, Carson e Bedeian^(9,15).

A ECC é constituída por 12 itens, distribuídos em três fatores: identidade, resiliência e planejamento. Os itens são frases que descrevem atitudes e comportamentos em relação à carreira profissional^(8,14). A EEC também contém 12 itens, distribuídos em três fatores: investimentos de carreira, custos emocionais e limitação de alternativas na carreira. Os itens da EEC descrevem percepções e sentimentos sobre a possibilidade de uma mudança na carreira profissional^(9,15). As escalas apresentam validação em contextos nacionais e internacionais realizada por pesquisadores da psicologia, administração e área afins.

Em ambas as escalas, as respostas são assinaladas numa escala Likert de cinco pontos, indicando o grau de concordância com as frases, sendo: 1 = discordo totalmente; 2 = discordo; 3 = indiferente; 4 = concordo; 5 = concordo totalmente.

A coleta de dados foi agendada com as gerentes das unidades de saúde e realizada durante a reunião da equipe. Após a explanação dos objetivos do estudo pelos pesquisadores, foram coletadas as assinaturas no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) dos trabalhadores que consentiram participar do estudo. Logo em seguida, os questionários foram entregues aos profissionais, que responderam e depositaram em envelope, sem identificação, para preservar a identidade. Como houve profissionais que não quiseram responder os questionários naquele momento, os pesquisadores agendaram data para retornar e receber os instrumentos respondidos (aproximadamente uma semana).

Análise dos resultados e estatística

A análise dos dados foi realizada com o programa SPSS, versão 23.0. Inicialmente, realizaram-se análises descritivas (tendência central e dispersão) e exploratórias, para investigação da exatidão da entrada dos dados, distribuição dos casos omissos, tamanho e descrição da amostra. O indicador de consistência interna Alpha de Cronbach foi utilizado para verificar a confiabilidade das medidas dos construtos teóricos utilizados no questionário. Os valores obtidos para as escalas dos vínculos com a carreira foram comprometimento com a carreira α=0,795 e entrincheiramento com a carreira α=0,792, considerados pela literatura bons indicadores de confiabilidade⁽¹⁶⁾.

Os dados sociodemográficos e profissionais foram utilizados para caracterizar a população do estudo. Para verificar os níveis dos vínculos estabelecidos pelos trabalhadores, inicialmente foram calculados o escore médio e o desvio padrão dos construtos, numa escala de zero a 20 para cada fator (identidade, planejamento e resiliência; investimentos, limitação de alternativas e custo emocionais) e zero a 60 para os construtos (comprometimento e entrincheiramento). Em seguida, as médias de cada fator/construto foram padronizadas para uma escala de zero a 100 e classificadas em três categorias, de acordo com o valor médio obtido: baixo (zero a 33,3), médio (33,4 a 66,7) e alto (66,8 a 100,0).

Compararam-se, então, os níveis dos vínculos com as carreiras dos trabalhadores entre os dois municípios, utilizando o Teste t. Por fim, verificou-se a diferença dos níveis dos vínculos com as carreiras, segundo variáveis sociodemográficas e profissionais, utilizando o Teste t para duas médias ou teste de análise de variância (ANOVA) para três ou mais médias, considerando nível de significância de 95% (p≤ 0,05).

RESULTADOS

Na Tabela 1, pode-se observar a distribuição do perfil sociodemográfico e profissional dos trabalhadores, segundo o município estudado. Do universo de trabalhadores elencados para o estudo, foram selecionados 393 (71,6%), sendo 313 (76,3%) no Município A e 80 (57,6%) no Município B. O maior contingente de trabalhadores foi de Agentes Comunitários de Saúde, que representaram 45,0% do total de participantes do estudo. Observou, ainda, prevalência de trabalhadores do sexo feminino (80,9%), faixa etária de 31 a 45 anos (46,6%), ensino médio (49,1%), concursados (76,6%), atuantes em atividades assistenciais (87,3%), com renda entre dois e cinco salários mínimos (61,6%) e tempo de atuação na APS entre um e dois anos (36,4%).

Tabela 1
Características sociodemográficas e profissionais dos trabalhadores da Atenção Primária à Saúde, segundo município estudado

Variáveis	Município A	Município B
	n (%)	n (%)
Total	313 (100,0)	80 (100,0)
Categoria Profissional
Médico	32 (10,2)	9 (11,3)
Enfermeiro	77 (24,6)	15 (18,8)
Auxiliar/Técnico de enfermagem	71 (22,7)	12 (15,0)
Agente comunitário de saúde	133 (42,5)	44 (55,0)
Sexo
Masculino	50 (16,0)	21 (26,3)
Feminino	260 (83,1)	58 (72,5)
Não responderam	3 (1,0)	1 (1,3)
Faixa Etária (anos)
21 a 30	47 (15,0)	11 (13,8)
31 a 45	145 (46,3)	38 (47,5)
46 a 60	100 (31,9)	25 (31,3)
61 ou mais	9 (2,9)	-
Não responderam	12 (3,8)	6 (7,5)
Escolaridade
Ensino Médio	149 (47,6)	44 (55,1)
Graduação	67 (21,4)	17 (21,3)
Pós-graduação	97 (31,0)	18 (22,5)
Não responderam	-	1 (1,3)
Tipo de Contrato
Concursado	235 (75,1)	66 (82,5)
Contratado	73 (23,3)	14 (17,5)
Não responderam	5 (1,6)	-
Natureza da Atuação
Gerencial	36 (11,5)	10 (12,5)
Assistencial	274 (87,5)	69 (87,6)
Não responderam	3 (1,0)	-
Renda Familiar (salário mínimo)
Até 1	23 (7,3)	12 (15,0)
De 2 a 5	185 (59,1)	57 (71,3)
De 6 a 10	61 (19,5)	6 (7,5)
Mais de 10	38 (12,1)	5 (6,3)
Não responderam	6 (1,9)	-
Tempo atuação na APS (anos)
< 1 a 2	122 (39,0)	21 (26,3)
> 2 a 10	49 (15,7)	30 (37,5)
> 10 a 20	65 (20,8)	12 (15,0)
> 20	62 (19,8)	15 (18,8)
Não responderam	15 (4,8)	2 (2,5)

• APS - Atenção Primária à Saúde;*Valor do Salário Mínimo: R$ 937,00.

A análise dos vínculos com a carreira apresentados na Tabela 2 mostra que não houve diferenças estatisticamente significativas entre os trabalhadores dos dois municípios. Os valores obtidos foram altos para a maioria dos fatores e para os dois construtos (comprometimento e entrincheiramento com a carreira), com exceção do fator Planejamento com a Carreira, para o qual os trabalhadores do Município A obtiveram escore médio (65,0), enquanto os trabalhadores do Município B atingiram escore alto (68,2). Para o fator Investimentos na Carreira, os trabalhadores obtiveram escore médio em ambos os municípios (63,0 e 61,7 para Município A e B, respectivamente).

Tabela 2
Escores médios e desvios padrão para os construtos e as dimensões dos tipos de vínculos com a carreira dos trabalhadores da Atenção Primária à Saúde

Vínculos com a Carreira	Município A	Município B	Valor de p
	Média (±dp)	Média (±dp)
Comprometimento com a Carreira	76,5 (9,7)	76,8 (11,2)	0,805
Identidade com a carreira	84,3 (14,2)	83,4 (14,5)	0,606
Planejamento com a carreira	65,0 (13,7)	68,2 (18,3)	0,078
Resiliência com a carreira	77,6 (20,4)	75,6 (20,5)	0,456
Entrincheiramento com a Carreira	67,7 (12,1)	68,7 (13,9)	0,530
Investimentos na carreira	63,0 (22,5)	61,7 (24,3)	0,654
Limitação de alternativas na carreira	69,2 (14,5)	71,1 (13,4)	0,289
Custos emocionais na carreira	70,1 (15,3)	72,4 (17,8)	0,238

Os níveis de Comprometimento com a carreira [IC95%: 75,5 - 77,5] apresentados pelos trabalhadores da atenção primária foram estatisticamente superiores (p<0,001) aos níveis de Entrincheiramento com a carreira [IC95%: 66,7 - 69,2]. Da mesma forma, os níveis de Identidade com a carreira [IC95%: 82,7 - 85,5] foram estatisticamente superiores (p<0,001) aos níveis de Investimentos com a carreira [IC95%: 60,4 - 65,0], bem como os níveis de Resiliência com a carreira [IC95%: 75,1 - 79,2] foram estatisticamente superiores (p<0,001) aos níveis de Custos emocionais com a carreira [IC95%: 69,0 - 72,1]. Contudo, os trabalhadores apresentaram níveis de Planejamento com a carreira [IC95%: 64,2 - 67,1] estatisticamente inferiores (p<0,001) aos níveis de Limitação de alternativas na carreira [IC95%: 68,1 - 71,0].

Em relação à análise dos vínculos com a carreira dos trabalhadores da atenção primária, segundo características sociodemográficas e profissionais (Tabela 3), observou-se que os médicos possuem maior nível de Identidade com a carreira (92,4) e de Investimentos com a carreira (79,5) do que os demais trabalhadores, enquanto os ACS apresentaram os menores níveis de Identidade com a carreira (79,0) e de Investimentos com a carreira (52,3). Os enfermeiros são os profissionais que apresentam maior nível de Limitação de alternativas na carreira (73,4).

Tabela 3
Distribuição dos escores médios e desvios padrão para os construtos e as dimensões dos tipos de vínculos com a carreira, segundo características sociodemográficas e profissionais dos trabalhadores da Atenção Primária à Saúde

Variáveis Sociodemográficas e Profissionais	Comprometimento com a Carreira				Entrincheiramento com a Carreira
	Identidade	Planejamento	Resiliência	Construto Geral	Investimentos	Limitação de Alternativas	Custos Emocionais	Construto Geral
Categoria Profissional
Médico	92,4 (10,7)(b)	61,7 (10,4)(a)	72,4 (22,9)(b)	76,6 (9,4)(b)	75,9 (25,5)(b)	71,3 (15,2)(b)	67,1 (17,2)(b)	72,6 (15,7)(b)
Enfermeiro	87,2 (10,1)(b)	63,5 (13,1)(a)	77,1 (20,6)(b)	76,7 (8,5)(b)	71,4 (21,5)(b)	73,4 (10,5)(b)	71,2 (12,7)(b)	72,3 (9,4)(b)
Auxiliar/Técnico de enfermagem	87,4 (11,7)(b)	68,0 (15,3)(b)	75,6 (20,8)(b)	77,8 (10,5)(b)	68,9 (21,6)(b)	71,2 (16,3)(b)	68,9 (14,8)(b)	69,9 (12,2)(b)
Agente comunitário de saúde	79,0 (16,0)(b)	66,6 (16,0)(a)	79,0 (19,4)(b)	75,8 (10,7)(b)	52,3 (18,7)(a)	66,4 (14,2)(a)	71,8 (17,4)(b)	63,7 (11,8)(a)
Valor de p	0,000	0,054	0,250	0,533	0,000	0,001	0,247	0,000
Faixa Etária (anos)
21 a 30	78,8 (17,8)(b)	66,0 (15,8)(a)	80,8 (18,4)(b)	76,3 (9,0)(b)	56,5 (24,5)(a)	66,3 (14,9)(a)	71,8 (15,2)(b)	65,1 (13,0)(a)
31 a 45	84,6 (13,6)(b)	64,7 (15,0)(a)	78,6 (19,8)(b)	77,0 (9,8)(b)	63,9 (22,2)(a)	71,0 (12,6)(b)	70,7 (15,1)(b)	68,9 (11,7)(b)
46 a 60	85,1 (13,2)(b)	66,8 (13,8)	74,3 (20,7)(b)	75,9 (10,4)(b)	63,6 (22,7)(a)	68,6 (15,6)(b)	69,6 (16,4)(b)	67,6 (13,1)(b)
61 ou mais	91,0 (14,4)(b)	59,0 (11,7)(a)	58,3 (28,8)(a)	70,8 (11,6)(b)	62,5 (25,2)(a)	72,9 (21,4)(b)	75,7 (24,7)(b)	72,0 (16,9)(b)
Valor de p	0,012	0,352	0,005	0,296	0,167	0,116	0,628	0,162
Escolaridade
Ensino Médio	82,6 (13,7)(b)	67,5 (15,3)	78,4 (20,0)(b)	77,0 (10,8)(b)	58,5 (20,6)(a)	68,6 (15,1)(b)	69,5 (17,0)(b)	65,8 (12,3)(a)
Graduação	82,1 (17,6)(b)	65,5 (14,9)(a)	76,1 (19,6)(b)	75,5 (9,1)(b)	57,2 (23,1)(a)	66,5 (13,7)(a)	71,9 (15,1)(b)	65,4 (12,1)(a)
Pós-graduação	88,4 (10,9)(b)	63,0 (13,2)(a)	76,0 (21,7)(b)	76,7 (9,0)(b)	74,0 (22,4)(b)	73,6 (12,2)(b)	71,4 (14,4)(b)	73,6 (11,2)(b)
Valor de p	0,001	0,035	0,547	0,526	0,000	0,001	0,425	0,000
Tipo de Contrato
Concursado	82,4 (14,8)(b)	66,8 (15,0)	79,3 (19,7)(b)	77,1 (10,2)(b)	61,5 (21,9)(a)	69,0 (14,2)(b)	71,0 (16,1)(b)	67,4 (12,3)(b)
Contratado	89,9 (10,4)(b)	62,0 (13,2)(a)	71,3 (21,2)(b)	75,3 (9,2)(b)	67,5 (25,0)(b)	72,2 (13,7)(b)	69,2 (14,9)(b)	70,1 (12,8)(b)
Valor de p	0,000	0,005	0,001	0,127	0,029	0,056	0,332	0,083
Natureza da Atuação
Gerencial	87,4 (10,2)(b)	65,4 (14,2)(a)	78,3 (19,0)(b)	78,1 (7,5)(b)	73,0 (18,8)(b)	72,5 (6,9)(b)	68,3 (12,0)(b)	71,5 (7,7)(b)
Assistencial	83,6 (14,7)(b)	65,7 (14,9)(a)	77,1 (20,5)(b)	76,3 (10,3)(b)	61,4 (23,1)(a)	69,2 (15,0)(b)	70,9 (16,3)(b)	67,5 (12,9)(b)
Valor de p	0,031	0,890	0,695	0,172	0,000	0,014	0,194	0,004
Renda Familiar (salário mínimo)
Até 1	82,4 (14,1)(b)	70,1 (16,6)	79,3 (18,7)(b)	78,0 (9,8)(b)	57,6 (17,2)(a)	70,1 (12,9)(b)	74,1 (17,9)(b)	67,5 (10,2)(b)
De 2 a 5	82,9 (14,9)(b)	66,0 (15,3)(a)	78,0 (20,0)(b)	76,6 (10,6)(b)	59,3 (22,4)(a)	68,4 (15,0)(b)	70,7 (16,1)(b)	66,3 (12,5)(a)
De 6 a 10	85,7 (12,1)(b)	65,2 (12,5)(a)	75,1 (21,4)(b)	75,9 (8,9)(b)	71,2 (22,5)(b)	73,8 (12,5)(b)	68,6 (12,7)(b)	71,8 (11,6)(b)
Mais de 10	89,1 (12,9)(b)	60,6 (12,6)(a)	76,2 (21,7)(b)	76,4 (9,1)(b)	74,9 (23,1)(b)	70,1 (12,9)(b)	69,0 (17,0)(b)	72,1 (13,1)(b)
Valor de p	0,040	0,039	0,682	0,794	0,002	0,000	0,056	0,361
Tempo atuação na APS (anos)
< 1 a 2	80,6 (16,9)(b)	64,4 (14,5)(a)	77,6 (20,0)(b)	75,3 (10,6)(b)	53,8 (22,7)(a)	65,8 (14,2)(a)	73,2 (16,3)(b)	64,5 (12,3)(a)
> 2 a 10	87,1 (13,0)(b)	67,0 (15,3)	75,8 (20,1)(b)	77,7 (9,7)(b)	67,3 (21,7)(b)	73,4 (12,5)(b)	72,1 (15,8)(b)	71,4 (12,1)(b)
> 10 a 20	83,8 (12,0)(b)	66,2 (15,2)(a)	79,1 (20,9)(b)	77,0 (10,2)(b)	63,6 (20,4)(a)	71,0 (15,2)(b)	69,3 (15,2)(b)	68,0 (11,8)(b)
> 20	87,5 (11,4)(b)	65,9 (15,4)(a)	75,7 (21,7)(b)	77,1 (9,5)(b)	73,8 (22,0)(b)	71,0 (13,9)(b)	66,9 (15,0)(b)	71,2 (12,7)(b)
Valor de p	0,001	0,638	0,691	0,342	0,000	0,000	0,001	0,031

• ^a
  Nível Médio.
• ^b
  Nível Alto

Os trabalhadores mais jovens apresentaram menor nível de Identidade com a carreira (78,8) e maior nível de Resiliência com a carreira (80,8). Aqueles que possuíam pós-graduação apresentaram maior nível de Identidade com a carreira (88,4), Investimentos com a carreira (74,0) e Limitação de alternativas na carreira (73,6), e menor nível de Planejamento com a carreira (63,0).

Os trabalhadores concursados apresentaram menor nível de Identidade com a carreira (82,4), com maiores níveis de Planejamento com a carreira (66,8) e Resiliência com a carreira (79,3) do que os trabalhadores contratados (p<0,05). Aqueles que exerciam atividade gerencial nas UBS apresentaram maiores níveis de Identidade com a carreira (87,4), Investimentos com a carreira (73,0) e Limitação de alternativas na carreira (72,5) do que os trabalhadores que exerciam atividades assistenciais.

Observou-se ainda que, quanto maior a renda, maiores eram os níveis de Identidade com carreira (p = 0,040) e de Investimentos com a carreira (p=0,002), e menor o nível de Planejamento com a carreira (p=0,039). Trabalhadores com menor renda (até um salário mínimo) ou renda muito alta (acima de seis salários mínimos) apresentaram maior nível de Limitação de alternativas na carreira (p=0,000).

Em relação ao tempo de atuação na atenção primária, os trabalhadores com até dois anos de atuação apresentaram menores níveis de Identidade com a carreira (80,6), Investimentos com a carreira (53,8) e Limitação de alternativas na carreira (65,8), e maiores Custos emocionais com a carreira (73,2).

Os níveis de comprometimento e entrincheiramento com a carreira em relação ao sexo foram equivalentes, não havendo diferenças significativas entre profissionais do sexo masculino e feminino (p>0,05).

DISCUSSÃO

Os profissionais deste estudo correspondem à composição da equipe mínima da ESF, conforme recomendações da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB)⁽¹⁷⁾. Seu perfil corrobora o apresentado por estudos realizados em diferentes regiões do país^(3-5,18-22).

O fato de a maioria dos profissionais ser do sexo feminino ratifica o fenômeno da feminilização, que vem ocorrendo em grande parte das profissões da saúde, desde os anos 1990, com exceção da Enfermagem, na qual ocorre a masculinização⁽²³⁾.

Os altos níveis de comprometimento com a carreira evidenciam que os profissionais possuem uma relação positiva com a profissão, encontrando significado na atuação em serviços de APS, embora haja dificuldades. Esses resultados corroboram estudos internacionais com profissionais não médicos do Conselho Acadêmico de Medicina da Família dos Estados Unidos e Canadá⁽¹²⁾, e com enfermeiros egípcios⁽¹³⁾ e sauditas⁽²⁴⁾. No entanto, são superiores aos apresentados por enfermeiros brasileiros de unidades hospitalares⁽⁷⁾. O apoio social recebido pelos profissionais impacta positivamente no nível de comprometimento com a carreira^(13,24).

Contudo, diante das diferenças territoriais, laborais e de estilo de vida dos profissionais, nas várias regiões do Brasil, bem como das flexibilizações trabalhistas ocorridas nos últimos anos, acredita-se que esses resultados positivos não representam a realidade de todos os trabalhadores da APS, no Brasil⁽²⁵⁾. É provável que profissionais que demonstram vínculos trabalhistas precários apresentem resultados diferentes.

Nesse contexto, apesar da proposta de fortalecimento dos vínculos de trabalho, por meio do Programa Nacional de Desprecarização do Trabalho no SUS, que visa implementar de políticas de humanização, celebração de contratos efetivos e melhores salários, os dados do Terceiro Ciclo da Avaliação Externa do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) mostram que cerca de 40% dos trabalhadores da APS ainda possuem contratos precários, com vínculos temporários ou informais^(26-27). Se, por um lado, a estabilidade do vínculo empregatício dos profissionais da APS, associada a um plano de carreira que valorize o crescimento e o desenvolvimento profissional, pode aumentar os níveis de comprometimento com a carreira, por outro, a flexibilização da legislação trabalhista e consequente deterioração de contratos, que fragiliza a estabilidade dos trabalhadores, reduz direitos sociais e agrava a precarização do trabalho, favorecendo o aumento dos níveis de entrincheiramento entre os trabalhadores^(7,12,28).

Além disso, os níveis de planejamento com a carreira, classificados como médios, evidenciam limitações na capacidade de os profissionais estabelecerem metas para o desenvolvimento na carreira^(7-8), sobretudo entre as categorias de menor escolaridade, como os Auxiliares/Técnicos de Enfermagem e os ACS que, em geral, possuem maiores restrições financeiras. Outrossim, trabalhadores com formação universitária, os quais, em geral, possuem maior escolaridade e maior renda, demonstraram maiores níveis de perdas de investimentos e perdas emocionais em caso de mudança de ocupação, levando a níveis mais elevados de entrincheiramento (estagnação) com a carreira.

No contexto contemporâneo das relações de trabalho, essa estagnação do trabalhador em uma posição profissional, decorrente da falta de alternativas e necessidade de não perder investimentos e de evitar os custos emocionais relacionados à mudança de trabalho, pode gerar inseguranças, perda de autoestima, desarranjos sociais, afetivos e sentimento de fracasso. Dessa forma, a abordagem dos profissionais limita-se aos problemas de saúde da população e à implementação de ações que respondam efetivamente às necessidades da comunidade, comprometendo a qualidade e a resolutividade dos serviços de APS^(28-29).

Considerando a sociologia das profissões, que estabelece uma categorização de fases da vida profissional a partir da idade e do tempo de formado até a entrada do trabalhador no mercado de trabalho, verifica-se que a maioria dos profissionais deste estudo encontram-se na fase de maturidade profissional. Nessa fase, os profissionais estão preparados para se inserir, de forma definitiva, no mercado de trabalho, pois se encontram qualificados e com suas capacidades técnicas, cognitivas e práticas plenamente desenvolvidas^(23,30). Essa maturidade profissional é reforçada pelos níveis de identidade com a carreira significativamente maiores entre os profissionais mais velhos e com maior tempo de atuação na APS.

Nesse contexto, os elevados níveis de identidade com a carreira confirmam que os profissionais deste estudo são apegados emocionalmente à carreira, desejam crescer e ser reconhecidos profissionalmente, e que o trabalho que realizam interfere positivamente na sua autoestima. Esse cenário é considerado favorável, pois o foco na carreira pode aumentar a possibilidade de os profissionais investirem em suas capacidades e conhecimentos, contribuindo para o aumento de seu desempenho^(6-8).

Os altos níveis de resiliência com a carreira evidenciam que os profissionais são capazes de superar situações adversas relacionadas ao trabalho na APS, geralmente associadas a questões organizacionais e de gestão, como as condições precárias de trabalho, a falta de autonomia e de reconhecimento profissional, o déficit de profissionais e a sobrecarga da equipe^(29,31). Profissionais com bons níveis de resiliência com a carreira são vistos como capazes de trabalhar em equipe, articulando independência e cooperação, aspectos importantes para atender as prerrogativas da PNAB⁽¹⁷⁾.

Ao mesmo tempo em que os profissionais mais jovens demonstram maior resiliência com a carreira, a luta pela inserção e manutenção no mercado de trabalho, a presença de múltiplos empregos, a dupla ou tripla jornada de trabalho e a concomitância entre trabalho diurno e noturno podem gerar desgaste e sofrimento^(32-33). Decorrem daí a necessidade e a importância da resiliência com a carreira entre os profissionais.

De acordo com a literatura, a resiliência pode representar novo enfoque na dimensão da positividade nas ações dos profissionais, face aos desafios e às adversidades que enfrentam no dia a dia, com possibilidades de aprendizagens e transformações que poderão repercutir na prática⁽²⁹⁾. Evidencia-se, portanto, que os vínculos dos trabalhadores com a carreira representam uma questão de saúde pública que pode prejudicar o fortalecimento da ESF e da APS como componentes organizadores do SUS. Nesse sentido, exigências do trabalho que não se ajustam à capacidade, às expectativas e necessidades dos profissionais da APS, estimulando o entrincheiramento e prejudicando o comprometimento, representam um desafio contemporâneo à saúde do trabalhador.

Limitações do estudo

Como limitações do estudo, destacam-se a dificuldade de comparação dos resultados com outras pesquisas sobre o tema, devido à escassez de investigações em instituições de saúde, especialmente com trabalhadores da APS, e a restrição do campo de estudo a dois municípios paulistas, inviabilizando a análise comparativa e discussão em diferentes regiões do país. Assim, recomenda-se a realização de novos estudos com trabalhadores das demais regiões do Brasil, a fim de possibilitar comparação dos níveis de comprometimento e entrincheiramento com a carreira de trabalhadores da APS inseridos em diferentes realidades e contextos laborais, permitindo o aprofundamento da discussão sobre a temática.

Contribuições para a área da enfermagem e saúde pública

O estudo contribui para o (re)direcionamento e a implementação de políticas públicas que fortalecem o desenvolvimento pessoal e laboral dos trabalhadores da APS, contribuindo para a consolidação da Política Nacional de Atenção Básica, o aumento da resolutividade dos serviços de APS e o fortalecimento do SUS.

CONCLUSÕES

O vínculo que predominou entre os trabalhadores da APS foi o comprometimento com a carreira, evidenciando que os profissionais apresentaram maior vínculo de identificação e relação positiva com a carreira do que de estagnação. Esse vínculo indica que os trabalhadores permanecem na carreira porque se identificam com a ocupação/profissão, apresentando resiliência e, em menor intensidade, autoconhecimento sobre suas potencialidades e limitações.

Em relação ao entrincheiramento, os resultados evidenciaram que, antes de deixar a profissão, os médicos consideram os investimentos realizados na carreira, a falta de alternativas profissionais fora de sua área de atuação e as perdas emocionais. Já os enfermeiros e auxiliares/técnicos de enfermagem avaliam a falta de alternativas profissionais fora de sua área de atuação, os investimentos realizados na carreira e os custos emocionais. Por fim, os ACS avaliam os custos emocionais, a falta de alternativas profissionais fora de sua área de atuação e os investimentos realizados na carreira.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho

EDITOR ASSOCIADO: Alexandre Balsanelli

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  01 Out 2021
• Data do Fascículo
  2022

Histórico

• Recebido
  19 Mar 2021
• Aceito
  19 Abr 2021