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Enfermagem no Brasil: análises socioeconômicas com foco na composição racial

RESUMO

Objetivos:

analisar características socioeconômicas de enfermeiros e técnicos de enfermagem residentes no Brasil segundo cor/raça.

Métodos:

com base na amostra do Censo Demográfico 2010, foram selecionados 62.451 profissionais de enfermagem (enfermeiros e técnicos) residentes noBrasil. Diferenças da renda mensal foram estimadas por modelos multivariados, estratificados por grupos de cor ou raça (branca, parda e preta).

Resultados:

a maioria eram técnicos (61,9%) de cor branca (54,3%). A renda de enfermeiros brancos superou em mais de ¼ a dos pardos e pretos; entreos técnicos, brancos tinham renda aproximadamente 11% maior do que a de pardos e pretos.

Conclusões:

diferenças entre rendimentos dos trabalhadores da enfermagem estavam associadas ao pertencimento étnico-racial, revelando situações nas quais profissionais de cor/raça branca apresentaram, sistematicamente, condições mais favoráveis de trabalho e renda, em relação aos pretos e pardos.

Descritores:
Recursos Humanos de Enfermagem; Fatores Socioeconômicos; Fatores Raciais; Categorias de Trabalhadores; Censos

ABSTRACT

Objectives:

to analyze the socioeconomic characteristics of nurses and nursing technicians living in Brazil according to color/race.

Methods:

based on the 2010 Demographic Census sample, 62,451 nursing professionals (nurses and technicians) living in Brazil were selected. Differences in monthly income were estimated by multivariate models, stratified by color or race groups (white, brown, and black).

Results:

the majority were technicians (61.9%) of white color (54.3%). The income of white nurses exceeded that of brown and black nurses by more than a quarter; among technicians, white professionals had an income approximately 11% higher than brown and black nurses.

Conclusions:

differences between incomes of nursing workers were associated with ethnic/racial background, revealing situations in which white professionals systematically presented more favorable job and income conditions than black and brown professionals.

Descriptors:
Nursing Staff; Socioeconomic Factors; Racial Factors; Occupational Groups; Censuses

RESUMEN

Objetivos:

analizar características socioeconómicas de enfermeros y técnicos de enfermería residentes en Brasil segundo color/raza.

Métodos:

con base en la muestra del Censo Demográfico 2010, fueron seleccionados 62.451 profesionales de enfermería (enfermeros y técnicos) residentes en Brasil. Diferencias de la renta mensual fueron estimadas por modelos multivariados, estratificados por grupos de color o raza (blanca, mestiza y negra).

Resultados:

la mayoría eran técnicos (61,9%) de color blanca (54,3%). La renta de enfermeros blancos superó en más de ¼ a de los mestizos y negros; entre los técnicos, blancos tenían renta aproximadamente 11% mayor que la de mestizos y negros.

Conclusiones:

diferencias entre rendimientos de los trabajadores de la enfermería estaban relacionadas al pertenecer étnico-racial, revelando situaciones en las cuales profesionales de color/raza blanca presentaron, sistemáticamente, condiciones más favorables de trabajo y renta, en relación a los negros y mestizos.

Descriptores:
Personal de Enfermería; Factores Socioeconómicos; Factores Raciales; Grupos Profesionales; Censos

INTRODUÇÃO

Na maior parte dos países, inclusive Brasil, os profissionais de enfermagem representam a categoria com maior contingente de pessoas dentre todos os trabalhadores que atuam no setor saúde (> 50% do total)(11 World Health Organization-WHO. State of the world's nursing 2020: investing in education, jobs and leadership. Geneva: World Health Organization [Internet]. 2020 [cited 2020 Sep 25]. Available from: https://www.who.int/publications-detail/nursing-report-2020
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). Nesse segmento, estão incluídos enfermeiros, técnicos de enfermagem, auxiliares de enfermagem, obstetrizes, parteiras e outras profissionais autônomas. Ainda que se reconheça a existência do debate a respeito de identidades profissionais em diversas situações e apoiando-se no uso de jargões, a população identifica a enfermagem por meio de uma única categoria: enfermeiras(22 Moreira MCN. The Rockefeller Foundation and the construction of a professional identity in nursing during Brazil’s First Republic. Hist Cienc Saude-Manguinhos. 1999;5(3):621-45. https://doi.org/10.1590/S0104-59701999000100005
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3 Passos E. De anjos a mulheres: ideologias e valores na formação de enfermeiras. 2 ed. Salvador: EDUFBA, 2012.
-44 Ferreira LO, Salles RBB. A origem social da enfermeira padrão: o recrutamento e a imagem pública da enfermeira no Brasil, 1920-1960. Nuevo Mundo Mundos Nuevos. 2019. https://doi.org/10.4000/nuevomundo.77966
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).

Apesar da expressiva representatividade dos profissionais de enfermagem no Brasil, são escassas as análises sobre dinâmicas demográficas e socioeconômicas realizadas com base em dados nacionalmente representativos(55 Marinho GL, Paz EPA, Jomar RT, Abreu AMM. Brazilian nurses’ sociodemographic changes in the first decade of the 21st century. Esc Anna Nery. 2019;23(1):e20180198. https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0198
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-66 Machado MH, Oliveira E, Lemos W et al. Mercado de trabalho da enfermagem: aspectos gerais. Enferm Foco. 2016;7 (ESP):35-62. https://doi.org/10.21675/2357-707X.2016.v7.nESP.691.
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). Considerando o conjunto dos trabalhadores da enfermagem, verificase que somente um terço desse total é composto por egressos de cursos de nível superior — graduação em enfermagem (doravante denominados “enfermeiros”)(55 Marinho GL, Paz EPA, Jomar RT, Abreu AMM. Brazilian nurses’ sociodemographic changes in the first decade of the 21st century. Esc Anna Nery. 2019;23(1):e20180198. https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0198
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). Menos ainda se conhece sobre dinâmicas e composição sociodemográficas dos profissionais de nível médio (técnicos de enfermagem), exceto pelas evidências que indicam condições de trabalho precarizadas, baixas remunerações e inúmeras dificuldades de exercerem atividades laborais(66 Machado MH, Oliveira E, Lemos W et al. Mercado de trabalho da enfermagem: aspectos gerais. Enferm Foco. 2016;7 (ESP):35-62. https://doi.org/10.21675/2357-707X.2016.v7.nESP.691.
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-77 Machado MH, Koster I, Aguiar-Filho W et al. Labor market and regulatory processes - Nursing in Brazil. Ciênc Saúde Colet. 2020;25(1):101-112. https://doi.org/10.1590/1413-81232020251.27552019
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). Outros estudos examinaram a formação da identidade profissional de enfermeiras à luz de contextos históricos brasileiros, apresentando elementos sobre origem social, oportunidades educacionais, gênero e composição étnico-racial(22 Moreira MCN. The Rockefeller Foundation and the construction of a professional identity in nursing during Brazil’s First Republic. Hist Cienc Saude-Manguinhos. 1999;5(3):621-45. https://doi.org/10.1590/S0104-59701999000100005
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,44 Ferreira LO, Salles RBB. A origem social da enfermeira padrão: o recrutamento e a imagem pública da enfermeira no Brasil, 1920-1960. Nuevo Mundo Mundos Nuevos. 2019. https://doi.org/10.4000/nuevomundo.77966
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), no entanto as análises priorizaram delineamentos qualitativos.

De acordo com os censos realizados em 2000 e 2010, os profissionais de enfermagem residentes no Brasil cresceram a uma velocidade de 3,1% ao ano, taxa quase três vezes maior que o crescimento populacional de todo o país (1,2% a.a.)(88 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Demográfico 2010. Resultados do Universo. Sistema de Recuperação Automática - SIDRA[Internet]. 2020 [cited 2020 Sep 07]. Available from: www.sidra.ibge.gov.br
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). De modo mais expressivo, o aumento dos contingentes de técnicos de enfermagem (4,5% a.a.) e enfermeiros (13,4% a.a.) se refletiram em mudanças dos perfis sociodemográficos, com aumento de profissionais identificados como pardos e pretos no quesito sobre classificação étnico-racial(55 Marinho GL, Paz EPA, Jomar RT, Abreu AMM. Brazilian nurses’ sociodemographic changes in the first decade of the 21st century. Esc Anna Nery. 2019;23(1):e20180198. https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0198
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,88 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Demográfico 2010. Resultados do Universo. Sistema de Recuperação Automática - SIDRA[Internet]. 2020 [cited 2020 Sep 07]. Available from: www.sidra.ibge.gov.br
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). É possível que o aumento expressivo de enfermeiros tenha sido resultado da expansão de cursos de nível superior em todo país(55 Marinho GL, Paz EPA, Jomar RT, Abreu AMM. Brazilian nurses’ sociodemographic changes in the first decade of the 21st century. Esc Anna Nery. 2019;23(1):e20180198. https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0198
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,99 Fernandes JD, Teixeira GAS, Silva MG, Florêncio RMS, Silva RMO, Rosa DO. Expansion of higher education in Brazil: increase in the number of undergraduate nursing courses. Rev Latino-Am Enfermagem, 2013;21(3):670-8. https://doi.org/10.1590/S0104-11692013000300004
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). Porém,ocrescimento vertiginoso de cursos universitários, majoritariamente privados, não se refletiu em melhora nos níveis de renda; ao contrário, ampliaram-se as desigualdades socioeconômicas entre técnicos de enfermagem e enfermeiros(77 Machado MH, Koster I, Aguiar-Filho W et al. Labor market and regulatory processes - Nursing in Brazil. Ciênc Saúde Colet. 2020;25(1):101-112. https://doi.org/10.1590/1413-81232020251.27552019
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). A hipótese é de que a busca por oportunidades de atuação como enfermeiro se sobrepõe à oferta de vagas no mercado de trabalho, o que impacta diretamente as condições socioeconômicas(55 Marinho GL, Paz EPA, Jomar RT, Abreu AMM. Brazilian nurses’ sociodemographic changes in the first decade of the 21st century. Esc Anna Nery. 2019;23(1):e20180198. https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0198
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,77 Machado MH, Koster I, Aguiar-Filho W et al. Labor market and regulatory processes - Nursing in Brazil. Ciênc Saúde Colet. 2020;25(1):101-112. https://doi.org/10.1590/1413-81232020251.27552019
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).

É importante mencionar que análises das condições de vida e de trabalho realizadas para categorias profissionais específicas refletem conjunturas históricas e políticas que caracterizam os países em determinado tempo. No caso brasileiro, as características socioeconômicas dos trabalhadores são determinadas por diversos aspectos, dentre os quais se destacam: diversidade regional (dadas as dimensões continentais do Brasil, as condições de vida são influenciadas pelas particularidades das regiões geográficas), distribuição de renda (remuneração e vínculos empregatícios) e composição populacional segundo sexo, idade e pertencimento racial(1010 Campante FR, Crespo ARV, Leite PG. Desigualdade salarial entre raças no mercado de trabalho urbano brasileiro: aspectos regionais. Rev Bras Econ. 2004;58(2):185-210. https://doi.org/10.1590/S0034-71402004000200003
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-1111 Telles EE. O significado da raça na sociedade brasileira. Princeton e Oxford: Princeton University Press; 2004.). Dessemodo, o cenário brasileiro é marcado por desigualdades que apontam, sistematicamente, condições de trabalho menos favoráveis para mulheres, negros (pretos e pardos) e para os residentes nas regiões Norte e Nordeste(1010 Campante FR, Crespo ARV, Leite PG. Desigualdade salarial entre raças no mercado de trabalho urbano brasileiro: aspectos regionais. Rev Bras Econ. 2004;58(2):185-210. https://doi.org/10.1590/S0034-71402004000200003
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11 Telles EE. O significado da raça na sociedade brasileira. Princeton e Oxford: Princeton University Press; 2004.

12 Silva GM, Paixão M. Mix and Unequal: new perspectives on Brazilian Ethnoracial Relations. In: Telles E, ed. Pigmentocracies - Ethnicity, race, and color in Latin America. USA: The University of North Carolina Press; 2014.
-1313 Telles EE. Race in another America: the significance of skin color in Brazil. New Jersey: Princeton University Press; 2002.).

O trabalho de enfermeiros e técnicos de enfermagem é regulamentado por normas que impõem relações hierárquicas, definidas pela qualificação obtida de acordo com os anos de estudo, sendo que, para os enfermeiros, é exigida conclusão do ensino superior, enquanto auxiliares e técnicos de enfermagem podem atuar após conclusão do ensino médio(77 Machado MH, Koster I, Aguiar-Filho W et al. Labor market and regulatory processes - Nursing in Brazil. Ciênc Saúde Colet. 2020;25(1):101-112. https://doi.org/10.1590/1413-81232020251.27552019
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,1414 Lombardi MR, Campos VP. A Enfermagem e os contornos de gênero, raça/cor e a classe social na formação do campo profissional. Rev ABET. 2018 (17):28-46. https://doi.org/10.22478/ufpb.1676-4439.2018v17n1.41162
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). Não obstante, aventa-se a hipótese de que os fenômenos demográficos, socioeconômicos e a dinâmica do mercado de trabalho vivenciada pelos profissionais de enfermagem não se restringem apenas às atribuições técnicas e habilidades, intrínsecas às competências profissionais(55 Marinho GL, Paz EPA, Jomar RT, Abreu AMM. Brazilian nurses’ sociodemographic changes in the first decade of the 21st century. Esc Anna Nery. 2019;23(1):e20180198. https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0198
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,1414 Lombardi MR, Campos VP. A Enfermagem e os contornos de gênero, raça/cor e a classe social na formação do campo profissional. Rev ABET. 2018 (17):28-46. https://doi.org/10.22478/ufpb.1676-4439.2018v17n1.41162
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).

As desigualdades socioeconômicas e de condições de trabalho observadas em grupos populacionais definidos com base em categorias de cor ou raça são profundamente discutidas em estudos sociológicos(1111 Telles EE. O significado da raça na sociedade brasileira. Princeton e Oxford: Princeton University Press; 2004.

12 Silva GM, Paixão M. Mix and Unequal: new perspectives on Brazilian Ethnoracial Relations. In: Telles E, ed. Pigmentocracies - Ethnicity, race, and color in Latin America. USA: The University of North Carolina Press; 2014.
-1313 Telles EE. Race in another America: the significance of skin color in Brazil. New Jersey: Princeton University Press; 2002.). De modo geral, os argumentos se amparam em eventos históricos apresentados em perspectiva com diferentes cenários políticos que influenciaram dinâmicas do mercado de trabalho no passado(44 Ferreira LO, Salles RBB. A origem social da enfermeira padrão: o recrutamento e a imagem pública da enfermeira no Brasil, 1920-1960. Nuevo Mundo Mundos Nuevos. 2019. https://doi.org/10.4000/nuevomundo.77966
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,1212 Silva GM, Paixão M. Mix and Unequal: new perspectives on Brazilian Ethnoracial Relations. In: Telles E, ed. Pigmentocracies - Ethnicity, race, and color in Latin America. USA: The University of North Carolina Press; 2014.). No campo das desigualdades raciais, as condições socioeconômicas e laborais são analisadas considerando-se aspectos relativos aos níveis de escolaridade e qualificações educacionais, com destaque para oportunidades de acesso ao ensinosuperior(1313 Telles EE. Race in another America: the significance of skin color in Brazil. New Jersey: Princeton University Press; 2002.).

Análises sociodemográficas de profissões específicas, com foco em grupos de cor/raça, são realizadas com pouca frequência e limitadas em suas conclusões(55 Marinho GL, Paz EPA, Jomar RT, Abreu AMM. Brazilian nurses’ sociodemographic changes in the first decade of the 21st century. Esc Anna Nery. 2019;23(1):e20180198. https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0198
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-66 Machado MH, Oliveira E, Lemos W et al. Mercado de trabalho da enfermagem: aspectos gerais. Enferm Foco. 2016;7 (ESP):35-62. https://doi.org/10.21675/2357-707X.2016.v7.nESP.691.
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). Por um lado, parte das limitações decorre da escassez de fontes de dados representativos, bem como de uma diversidade terminológica das categorias ocupacionais, o que dificulta a realização de comparações ao longo do tempo(55 Marinho GL, Paz EPA, Jomar RT, Abreu AMM. Brazilian nurses’ sociodemographic changes in the first decade of the 21st century. Esc Anna Nery. 2019;23(1):e20180198. https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0198
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-66 Machado MH, Oliveira E, Lemos W et al. Mercado de trabalho da enfermagem: aspectos gerais. Enferm Foco. 2016;7 (ESP):35-62. https://doi.org/10.21675/2357-707X.2016.v7.nESP.691.
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). Poroutro lado, dados coletados pelos censos demográficos são representativos de todo o país e consistem em uma importante ferramenta para o estudo de dinâmicas demográficas específicas de diversos grupos populacionais(1515 Kertzel DI, Arel D. Census and identity: the politics of race, ethnicity, and language in national censuses. Cambridge: Cambridge University Press; 2002.).

Os recenseamentos demográficos fornecem subsídios para implementação e avaliação de políticas públicas e avaliação dos perfis socioeconômicos e demográficos de grupos específicos, nosquais se incluem categorias profissionais, como os profissionais de enfermagem(1515 Kertzel DI, Arel D. Census and identity: the politics of race, ethnicity, and language in national censuses. Cambridge: Cambridge University Press; 2002.-1616 D'Antonio P, Whelan JC. Counting nurses: the power of historical census data. J Clin Nurs, 2009;18(19):2717-24. https://doi.org/10.1111/j.1365-2702.2009.02892.x
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). De acordo com o Censo Demográfico 2010 realizado no Brasil, a renda mensal per capita da população branca era 85% maior que a de pessoas pretas e 82% maior que a de pardos (R$ 1.535,47, R$ 832,25 e R$ 843,87, respectivamente)(88 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Demográfico 2010. Resultados do Universo. Sistema de Recuperação Automática - SIDRA[Internet]. 2020 [cited 2020 Sep 07]. Available from: www.sidra.ibge.gov.br
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). Além disso, pessoas de cor ou raça branca tinham também maior taxa de alfabetização (92,8%) em relação a pretos (81,6%) e pardos (82,8%)(88 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Demográfico 2010. Resultados do Universo. Sistema de Recuperação Automática - SIDRA[Internet]. 2020 [cited 2020 Sep 07]. Available from: www.sidra.ibge.gov.br
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).

OBJETIVOS

Analisar as características de composição racial e as condições de renda de profissionais de enfermagem no Brasil com base nos dados do último censo demográfico, realizado em 2010.

MÉTODOS

Aspectos éticos

A fonte dos dados foi a Amostra do Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com periodicidade decenal. Os dados são de domínio público e acesso gratuito, disponibilizados para download pela agência governamental. Não há identificação das pessoas entrevistadas, e os resultados devem ser gerados de modo agregado.

Em consonância com as normas vigentes no Brasil sobre ética em pesquisas com seres humanos, pesquisas realizadas com dados secundários e que mantenham o anonimato dos investigados não precisam ser submetidas à apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa (Resolução 466/2012 CONEP). Adicionalmente, o acesso a dados públicos coletados por órgãos governamentais se ampara na Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011).

Desenho, local do estudo e período

O estudo transversal (tipo survey) foi realizado com base nos dados da Amostra do Censo Demográfico 2010, operacionalizado em todo Brasil pelo IBGE. Os dados são de acesso público e gratuito e estão disponíveis para download (http://www.ibge.gov.br)

Nos recenseamentos brasileiros, as profissões são investigadas de acordo com critérios definidos pela Classificação Brasileira de Ocupações, que é estruturada segundo recomendações da Organização Internacional do Trabalho, cujas definições se amparam na International Standard Classification of Occupations(1717 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Metodologia do Censo Demográfico 2010. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [Internet]. 2013 [cited 2020 Sep 07]. Available from: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv95987.pdf
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). Em 2010, as pessoas de 10 ou mais anos de idade selecionadas pela amostra do Censo e que tinham alguma ocupação foram inquiridas quanto à variável “Ocupação no trabalho principal” (código V6461), tendo sido identificadas mais de 500 categorias ocupacionais, reunidas em 10 grupos principais, dentre os quais se encontra o grupo “Profissões da área da saúde”(1717 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Metodologia do Censo Demográfico 2010. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [Internet]. 2013 [cited 2020 Sep 07]. Available from: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv95987.pdf
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).

População, critérios de inclusão e exclusão

Este estudo foi realizado levando em consideração duas categorias da variável “ocupação”, quais sejam, “Profissionais de enfermagem” [código 2221] e “Profissionais de nível médio de enfermagem” [código 3221]. Os critérios para a definição da população de enfermeiros foram: todasas pessoas identificadas como “Profissionais de enfermagem” com idade maior ou igual a 21anos e que haviam concluído o ensino superior. A população de técnicos de enfermagem foi definida como sendo todas as pessoas da categoria “Profissionais de nível médio de enfermagem”, com idade maior ou igual a 21 anos e que tinham, pelo menos, ensino médio completo como maior nível deescolaridade.

No Censo 2010, a pergunta “A sua cor ou raça é?” (V0604) identificou todos os moradores dos domicílios com uso da autoidentificação nas categorias “branca”, “preta”, “amarela”, “parda” e “indígena”(1717 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Metodologia do Censo Demográfico 2010. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [Internet]. 2013 [cited 2020 Sep 07]. Available from: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv95987.pdf
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). Neste estudo, não foram incluídos profissionais de enfermagem identificados como amarelos e indígenas, por representarem menos de 1% do total.

Desse modo, as estimativas foram geradas para o total de 62.451 profissionais de enfermagem residentes no Brasil, sendo 22.556 enfermeiros (36,1%) e 39.895 técnicos de enfermagem (63,9%). Os profissionais foram caracterizados segundo sexo, idade, estado civil, natureza do trabalho (setor público ou privado), número de trabalhos e rendimento total mensal per capita (analisado de forma contínua e em faixas de salários mínimos). Convém indicar que, na data de referência da coleta de dados do Censo 2010 (31 de julho de 2010), um salário mínimo no Brasil equivalia a R$ 510,00(1717 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Metodologia do Censo Demográfico 2010. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [Internet]. 2013 [cited 2020 Sep 07]. Available from: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv95987.pdf
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). Passada uma década, no meio do ano de 2020, o valor do salário mínimo era de R$ 1.039,00. Aolongo desse período, o poder de compra de produtos e serviços foi reduzido em 12,6%(1818 Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE). Análise cesta básica [Internet]. 2021[cited 2020 Sep 07]. Available from: https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html
https://www.dieese.org.br/analisecestaba...
). Asanálises foram estratificadas segundo categorias de cor ou raça branca, parda e preta.

Protocolo do estudo

A distribuição regional dos profissionais de enfermagem foi apresentada segundo categorias de cor ou raça, de acordo com a mediana do rendimento mensal registrada para o total de enfermeiros (R$ 1.700,00) e técnicos de enfermagem (R$ 1.000,00) em todo o país. Os resultados identificam proporções de enfermeiros e técnicos de enfermagem com rendimentos mensais abaixo do valor mediano do rendimento (para o total de profissionais) segundo categorias de cor ou raça, de acordo com as regiões geográficas (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste).

Variações entre os rendimentos mensais de enfermeiros e técnicos de enfermagem segundo grupos de cor ou raça foram verificadas por meio de box-plots; e comparações dos rendimentos mensais entre brancos, pardos e pretos foram verificadas com uso de testes estatísticos não paramétricos (Kruskal-Wallis), considerando enfermeiros e técnicos de maneira independente.

Com foco na renda mensal total per capita referida pelos profissionais, modelos estatísticos multivariados foram gerados para analisar fatores associados às diferenças de rendimento declarado por enfermeiros e técnicos de enfermagem segundo categorias de cor ou raça. Pressuposto de distribuição normal da variável “renda mensal total per capita” foi verificado por meio do teste de Shapiro-Wilk, cuja hipótese de normalidade foi rejeitada, então procedeu-se à sua log transformação. “Log transformação” é uma estratégia frequentemente recomendada para dados assimétricos, tais como medidas monetárias e certas medidas biológicas e demográficas(1919 Chein F. Introdução aos modelos de regressão linear: um passo inicial para compreensão da econometria como uma ferramenta de avaliação de políticas públicas. Brasília: Enap; 2019.).

A redação do manuscrito seguiu as recomendações da estratégia STROBE (Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology) para o desenvolvimento da divulgação de resultados de estudos observacionais(2020 Malta M, Cardoso LO, Bastos FI, Magnanini MMF, Silva CMFP. STROBE initiative: guidelines on reporting observational studies. Rev Saude Publica. 2010;44(3):559-65. https://doi.org/10.1590/S0034-89102010000300021
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).

Análise dos resultados e estatística

As desigualdades de renda mensal per capita (variável dependente) dos enfermeiros e técnicos de enfermagem segundo categorias de pertencimento racial foram analisadas com uso do cálculo de coeficientes gerados por meio de regressão linear bruta e ajustados para as características selecionadas (variáveis independentes). A leitura e interpretação dos efeitos da classificação racial no rendimento mensal se deu mediante a estimação dos coeficientes exponenciados (log da renda), dos quais se subtraiu uma unidade, multiplicada por 100(1919 Chein F. Introdução aos modelos de regressão linear: um passo inicial para compreensão da econometria como uma ferramenta de avaliação de políticas públicas. Brasília: Enap; 2019.). Com isso, obteve-se o percentual de diminuição do nível de renda para cada aumento na unidade da variável independente em relação à categoria de cor ou raça de referência (branca). Por exemplo: se o coeficiente indica o valor-0,198, deriva-se que exp(-0,198)-1))*100 =-18,0%.

Em todas as etapas, foram incorporados efeitos do plano amostral censitário (amostragem complexa realizada em múltiplos estágios e uso de pesos individuais)(1717 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Metodologia do Censo Demográfico 2010. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [Internet]. 2013 [cited 2020 Sep 07]. Available from: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv95987.pdf
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), e as diferenças foram consideradas estatisticamente significantes até o nível de 5%, incluindo ausência de sobreposição dos ICs95%. As análises foram realizadas com apoio do pacote survey do software Stata® (versão 14, Stata Corp., College Station, Estados Unidos).

RESULTADOS

Em 2010, a população de profissionais de enfermagem residentes no Brasil foi estimada em aproximadamente 722 mil pessoas, representadas majoritariamente por técnicos de enfermagem (61,9%; IC95% 61,4-62,4). No total, a maioria dos profissionais de enfermagem foram classificados como brancos na pergunta sobre cor ou raça (54,3%; IC95% 53,8-54,8), seguidos por pardos (35,2%; IC95% 34,7-35,7) e pretos (10,5%; IC95% 10,2-10,9).

Em todo país, a população de enfermeiros foi estimada em 274,8 mil pessoas, sendo a maioria classificada como branca na pergunta sobre cor ou raça (62,7%; IC95% 61,9-63,5), seguida por parda (29,4%; IC95% 28,6-30,2) e preta (7,9%; IC95% 7,4-8,4). Na Tabela 1, estão as características demográficas e socioeconômicas dos enfermeiros, com ampla maioria pertencente ao sexo feminino (> 80%), idades inferiores a 40 anos (> 60%) e estado civil solteiro(a) (> 40%) (Tabela 1). Nota-se que não houve diferenças na comparação entre as três categorias de cor ou raça.

Quanto às condições de trabalho e renda, a maioria dos enfermeiros (> 60%) estavam vinculados ao setor privado, amparados por leis trabalhistas garantidas na Consolidação de Leis Trabalhistas (CLT). Chama atenção que as maiores proporções de enfermeiros vinculados ao setor público foram observadas para aqueles de cor ou raça parda e preta (23,4% e 22,7%, respectivamente). Do mesmo modo, entre os enfermeiros pardos e pretos, se observam as maiores proporções daqueles que tinham mais de um trabalho (18,5% e 20,7%, respectivamente). Quanto às faixas de renda (em salários mínimos), há distribuições semelhantes entre enfermeiros pardos e pretos, sendo que aproximadamente 1/3 possuía renda total (todos os trabalhos) inferior a dois salários mínimos (menos de R$ 1.100,00) à época do censo. Por outro lado, se observa que um em cada três enfermeiros de cor ou raça branca tinha renda igual ou superior a cinco salários mínimos (33,9%; IC95% 32,8-35,0) (Tabela 1).

A Tabela 2 apresenta características sociodemográficas dos técnicos de enfermagem. Compopulação total estimada em 447,3 mil pessoas, a maior parte foi classificada como de cor ou raça branca (49,1%; IC95% 48,5-49,7), seguida por parda (38,8%; IC95% 38,2-39,4) e preta (12,1%; IC95% 11,7-12,6). Os perfis demográficos se assemelham àqueles observados nos enfermeiros, caracterizados por semelhanças nas comparações entre as categorias de cor ou raça. Conformedemonstra a Tabela 2, a ampla maioria dos técnicos de enfermagem eram do sexo feminino (> 80%), com idades inferiores a 40 anos (> 55%). Em relação ao estado civil, a maior parte dos técnicos de cor ou raça branca eram casados(as) (43,4%; IC95% 42,5-44,3), enquanto, entre pardos e pretos, os maiores contingentes foram observados em solteiros(as) (45,8% e 51,1%, respectivamente) (Tabela 2).

No tocante às características que descrevem as condições de trabalho e renda, a maioria dos técnicos de enfermagem estavam vinculados ao setor privado, amparados pela Consolidação de Leis Trabalhistas (CLT) (> 60%). Técnicos de cor/raça preta apresentaram menor proporção de vínculos com o setor público (17,8%; IC95% 16,3-19,4) e o mais elevado contingente de profissionais com dois ou mais trabalhos (16,3%; IC95% 14,8-18,0). Nas estratificações segundo faixas de renda, amaioria dos técnicos de enfermagem de cor/raça parda e preta possuía rendimento mensal total inferior a dois salários mínimos (54,7% [IC95% 53,7-55,7]; e 52,1% [IC95% 49,9-54,2], respectivamente) (Tabela 2).

Tabela 1
Características socioeconômicas e demográficas de enfermeiros segundo os grupos de cor/raça entrevistados no Censo Demográfico do Brasil em 2010
Tabela 2
Características socioeconômicas e demográficas de técnicos de enfermagem segundo os grupos de cor/raça entrevistados no Censo Demográfico do Brasil em 2010

As Figuras 1.a) e 1.b) representam a distribuição regional dos profissionais de enfermagem no Brasil, identificando os contingentes populacionais que possuíam menores rendimentos mensais (população cujo rendimento mensal foi inferior ao valor mediano).

No caso dos enfermeiros (Figura 1.a), é possível observar padrão no qual aqueles de cor ou raça branca apresentaram as mais baixas proporções de profissionais com os menores rendimentos, variando de 29,1% (IC95% 24,5-34,2) na região Norte a 44,9% (IC95% 42,6-47,1) na região Sul. Nas regiões Sudeste e Sul, a maioria dos enfermeiros de cor ou raça parda tinham renda mensal abaixo de R$ 1.700,00, alcançando 62,3% do total de enfermeiros pardos, ou seja, somente um em cada três enfermeiros de cor ou raça parda possuíam renda acima de R$ 1.700,00, que à época representava pouco mais de três salários mínimos. Com exceção da região Sul, em todas as regiões foram registradas as mais elevadas proporções de enfermeiros de cor ou raça preta com rendas abaixo da mediana, variando de 37,6% (IC95% 25,6-51,4) no Norte a 55,7% (IC95% 51,4-59,9) no Sudeste (Figura 1.a).

Quanto aos técnicos de enfermagem, os contingentes residentes nas regiões brasileiras foram analisados por meio da alocação daqueles que declararam rendimento mensal inferior a R$ 1.000,00 (valor do rendimento mensal mediano), sendo que esse segmento foi caracterizado como o que possuía os menores rendimentos (Figura 1.b). Chama atenção que somente na Região Nordeste técnicos de enfermagem das três categorias de cor ou raça (branca, parda e preta) foram majoritariamente alocados no segmento de menores rendimentos (> 50%). Nas demais regiões, todas as categorias de cor ou raça registraram contingentes inferiores a 50%, demostrando relativa homogeneidade nas condições de renda entre os técnicos de enfermagem, independentemente dos pertencimentos raciais (Figura 1.b).

Os padrões dos rendimentos mensais de enfermeiros e técnicos de enfermagem segundo categorias de cor ou raça podem ser observados na Figura 2. As maiores diferenças de rendimentos mensais segundo cor ou raça são verificadas entre enfermeiros, sendo que, para aqueles de cor/raça branca, se registrou rendimento mensal mediano igual a R$ 1.800,00 (máximo de R$ 15.000,00), enquanto pardos e pretos registraram rendimento mediano de 1.500,00, com valores máximos iguais a R$ 15.000,00 e R$ 11.800,00, respectivamente. Entre os técnicos de enfermagem, os rendimentos aparentam maior homogeneidade entre as categorias de cor ou raça, sendo a mediana do rendimento de brancos e pretos igual a R$ 1.000,00; e de pardos, igual a R$ 900,00 (Figura 2).

Mediante técnicas de regressão linear multivariada, foram criados modelos que estimaram magnitudes das variações relativas de rendimento mensal entre os profissionais de enfermagem segundo categorias de cor ou raça. Tendo os profissionais de cor ou raça branca como referência, analisaram-se diferenças de rendimentos por meio da transformação dos coeficientes em percentuais. Os sinais negativos expressam que os rendimentos mensais de profissionais de cor ou raça parda e preta foram sempre menos vantajosos em relação aos rendimentos dos de cor ou raça branca (Tabela 3).

Figura 1
Proporção de Enfermeiros (a) e técnicos de enfermagem (b) com rendimentos abaixo do valor mediano segundo categorias de cor ou raça de acordo com grandes regiões, Brasil, 2010
Figura 2
-

Box-plot da renda mensal per capita em reais de enfermeiros e técnicos de enfermagem segundo os grupos de cor/raça, Brasil, 2010


Nas análises brutas e ajustadas se mantiveram as diferenças na variação das rendas dos enfermeiros pardos e pretos em relação a dos brancos. Para pardos, o rendimento mensal referido foi aproximadamente 23% menor do que o dos brancos. Porém, o rendimento de enfermeiros de cor/raça preta foi 28% menor do que aquele captado para brancos, denotando desigualdade mais expressiva. Para os técnicos de enfermagem, se observam situações menos favoráveis entre profissionais pardos e pretos, ainda que as magnitudes sejam menores em comparação aos enfermeiros. Também em relação aos técnicos, embora as análises ajustadas tenham reduzido as magnitudes das desigualdades, aqueles de cor ou raça branca permaneceram com rendimentos mais vantajosos em relação aos pardos e pretos (Tabela 3).

DISCUSSÃO

Em todo mundo, os perfis sociodemográficos dos profissionais de enfermagem revelam que se trata de uma profissão predominantemente feminina(2121 Dias MJS. Feminização do trabalho no contexto da reestruturação produtiva: rebatimentos na saúde pública. São Luís: Edufma, 2009.) e que, ao longo das últimas décadas, vem aumentando a participação de diferentes grupos étnicos-raciais(11 World Health Organization-WHO. State of the world's nursing 2020: investing in education, jobs and leadership. Geneva: World Health Organization [Internet]. 2020 [cited 2020 Sep 25]. Available from: https://www.who.int/publications-detail/nursing-report-2020
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,2222 Melo CMM. Divisão social do trabalho e enfermagem. São Paulo: Cortez; 1986.). No caso do Brasil, entre os anos de 2000 e 2010, houve um aumento de aproximadamente 8% na parcela dos trabalhadores da enfermagem que se reconheceram como negros (pretos + pardos), o que representa um fenômeno social carregado de simbolismo, pois reflete movimentos de mobilidade social e inclusão em espaços até então ocupados por pessoas brancas(22 Moreira MCN. The Rockefeller Foundation and the construction of a professional identity in nursing during Brazil’s First Republic. Hist Cienc Saude-Manguinhos. 1999;5(3):621-45. https://doi.org/10.1590/S0104-59701999000100005
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,44 Ferreira LO, Salles RBB. A origem social da enfermeira padrão: o recrutamento e a imagem pública da enfermeira no Brasil, 1920-1960. Nuevo Mundo Mundos Nuevos. 2019. https://doi.org/10.4000/nuevomundo.77966
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-55 Marinho GL, Paz EPA, Jomar RT, Abreu AMM. Brazilian nurses’ sociodemographic changes in the first decade of the 21st century. Esc Anna Nery. 2019;23(1):e20180198. https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0198
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). Por outro lado, conforme demonstrado, tal fenômeno esteve relacionado a situações que expressam desigualdades socioeconômicas — desigualdades que variaram de acordo com o pertencimento racial dos profissionais de enfermagem.

A depender das categorias de cor ou raça nas quais estão alocados, enfermeiros e técnicos de enfermagem apresentaram diferentes composições etárias, vínculos de trabalho e nível de renda, com cenários particulares conforme as diferentes regiões do país. Em geral, enfermeiros eram majoritariamente brancos, jovens, solteiros e estavam nos estratos de renda mais elevada, enquanto a maior parte dos técnicos de enfermagem eram pardos, pertencentes às faixas etárias mais avançadas e às menores faixas de rendimento, sendo que tais características foram mais expressivas naquelas regiões do Brasil com menores índices de desenvolvimento socioeconômico.

Tabela 3
Desigualdades do rendimento mensal per capita de enfermeiros e técnicos de enfermagem segundo cor ou raça (referência - cor ou raça branca), Brasil, 2010

Enquanto profissão do campo da saúde, a história da enfermagem no Brasil é marcada pela divisão técnica/social e de gênero. Suas atividades laborais desde a sua origem estão associadas ao trabalho feminino, pouco valorizado socialmente, de acordo com o papel designado à mulher por uma sociedade marcada pelas desigualdades estruturais de gênero e de classe(2121 Dias MJS. Feminização do trabalho no contexto da reestruturação produtiva: rebatimentos na saúde pública. São Luís: Edufma, 2009.-2222 Melo CMM. Divisão social do trabalho e enfermagem. São Paulo: Cortez; 1986.). A divisão do trabalho acompanha a divisão de classes, com atribuições ao nível médio da maior parte do trabalho e de menores salários. Essa clivagem foi legitimada desde quando Florence Nightingale, precursora da profissão de enfermeiras, segregou o trabalho entre nurses e lady-nurses(2121 Dias MJS. Feminização do trabalho no contexto da reestruturação produtiva: rebatimentos na saúde pública. São Luís: Edufma, 2009.).

Conforme mencionado, as dinâmicas que caracterizam os mercados de trabalho, inclusive enfermagem, são influenciadas pelos quadros políticos, econômicos e sociais de cada país, modelos de atenção em saúde, bem como pela participação dos trabalhadores na formulação de políticas tanto no âmbito assistencial quanto educacional(2323 Oliveira JS, Pires DEP. Tendências do mercado de trabalho para enfermeiros(as): cenário internacional e do Nordeste brasileiro. Belo Horizonte: Ramalhete; 2018.-2424 Mendonça MHM, Matta GC, Gondim R, Giovanella L (Orgs.). Atenção Primária à Saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018.).

No caso brasileiro, a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) no início dos anos 1990 acarretou importante expansão do acesso aos cuidados de saúde para grande parte da população, gerando aumento da demanda por postos de trabalho e a necessidade de formar profissionais para o sistema público(2424 Mendonça MHM, Matta GC, Gondim R, Giovanella L (Orgs.). Atenção Primária à Saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018.). No entanto, esse processo ocorreu de forma acelerada e foi caracterizado pela forte participação de instituições de ensino privadas fomentadas pelas políticas governamentais de apoio à formação universitária, atendendo à demanda do mercado (estoque de profissionais), entretanto sem a devida regulação do Estado(2424 Mendonça MHM, Matta GC, Gondim R, Giovanella L (Orgs.). Atenção Primária à Saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018.

25 Silva KL, Cabral IE. National Licensure Exam for Brazilian Nurses: why and for whom? Rev Bras Enferm, 2018;71(4):1692-9. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0929
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26 Machado MH. Perfil da enfermagem no Brasil: relatório final. Rio de Janeiro: Nerhus/Fiocruz; 2017.

27 Pierantoni CR, França T, Magnago C. Graduações em saúde no Brasil: 2000- 2010. Rio de Janeiro: Cepesc, 2012.
-2828 Ministério da Educação (BR). Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo da Educação Superior 2010. Divulgação dos principais resultados do Censo da Educação Superior 2010. Brasília [Internet]. 2011 [cited 2020 Sep 07]. Available from: http://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/documentos/2010/divulgacao_censo_2010.pdf
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).

De acordo com o Ministério da Educação, o número de cursos de graduação em Enfermagem saltou de 106 para 799 entre 1991 e 2011, representando um crescimento de 754% em todo o Brasil(2929 Pierantoni CR, Magnago C. Tendências das graduações em Saúde no Brasil: análise da oferta no contexto do Mercosul. Divulg Saúde Debate. 2017;(57):30-43.). O incremento de instituições privadas foi da ordem de 65%, concentradas nas regiões Sudeste e Sul do país(55 Marinho GL, Paz EPA, Jomar RT, Abreu AMM. Brazilian nurses’ sociodemographic changes in the first decade of the 21st century. Esc Anna Nery. 2019;23(1):e20180198. https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0198
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,2828 Ministério da Educação (BR). Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo da Educação Superior 2010. Divulgação dos principais resultados do Censo da Educação Superior 2010. Brasília [Internet]. 2011 [cited 2020 Sep 07]. Available from: http://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/documentos/2010/divulgacao_censo_2010.pdf
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-2929 Pierantoni CR, Magnago C. Tendências das graduações em Saúde no Brasil: análise da oferta no contexto do Mercosul. Divulg Saúde Debate. 2017;(57):30-43.). O que vem se observando ao longo dos anos é uma grande expansão de cursos e vagas de ensino técnico e superior em enfermagem, predominantemente privados, inclusive noturnos, nos grandes centros urbanos, o que se associa à não expansão de postos de trabalho e resulta em desemprego, desvalorização profissional e salarial(2828 Ministério da Educação (BR). Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo da Educação Superior 2010. Divulgação dos principais resultados do Censo da Educação Superior 2010. Brasília [Internet]. 2011 [cited 2020 Sep 07]. Available from: http://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/documentos/2010/divulgacao_censo_2010.pdf
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-2929 Pierantoni CR, Magnago C. Tendências das graduações em Saúde no Brasil: análise da oferta no contexto do Mercosul. Divulg Saúde Debate. 2017;(57):30-43.).

No presente estudo, desigualdades de renda ficaram evidentes entre técnicos e enfermeiros, sendo que, para ambos, aqueles de cor ou raça branca apresentaram maiores níveis de renda em relação àqueles de cor ou raça preta e parda. Chama atenção que níveis de desigualdade segundo categorias raciais foram mais expressivos entre enfermeiros. Ou seja, ainda que presentes, as desigualdades de renda entre técnicos de enfermagem brancos, pardos e pretos ocorreram com menor magnitude. Há, portanto, evidências de que a enfermagem é composta por dois grupos com condições de renda bem distintas; por isso, ao se buscar investigar condições de vida e trabalho dos trabalhadores de enfermagem, a estratificação de enfermeiros e técnicos pode ser estratégia fundamental para controle de vieses.

Um aspecto a ser considerado nas análises sobre desigualdades de renda diz respeito às mudanças nos valores de salários e no poder de compra ao longo do tempo. Segundo os indicadores econômicos, o Brasil caracteriza-se por ser um país com elevados índices de inflação, desvalorização da moeda e consequente queda do poder de compra (acima de 80% nos últimos 26 anos)(1818 Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE). Análise cesta básica [Internet]. 2021[cited 2020 Sep 07]. Available from: https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html
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). Entre os trabalhadores da área da saúde, o impacto econômico pode ter sido mais expressivo, uma vez que, para a maioria, os reajustes salariais ocorrem por meio de acordos coletivos, em vez de serem feitos mediante vinculação com o aumento direto do salário mínimo, e isso ocasiona perdas com o passar do tempo(1818 Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE). Análise cesta básica [Internet]. 2021[cited 2020 Sep 07]. Available from: https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html
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,2222 Melo CMM. Divisão social do trabalho e enfermagem. São Paulo: Cortez; 1986.). Dessa forma, se em 2010, profissionais de enfermagem pardos e pretos já apresentavam menores níveis de renda, comparativamente aos brancos, é válido supor que a manutenção dessas desigualdades raciais no status socioeconômico ao longo da década pode ter gerado e perpetuado impactos negativos nas condições de vida e saúde, dando continuidade à trajetória de vulnerabilidades através das gerações(2222 Melo CMM. Divisão social do trabalho e enfermagem. São Paulo: Cortez; 1986.).

A composição racial dos profissionais de enfermagem é influenciada pela composição da população, que, no caso do Brasil, se diferencia entre as regiões, com maior concentração de brancos nas regiões Sul e Sudeste, e de pretos e pardos nas regiões Nordeste e Norte(1111 Telles EE. O significado da raça na sociedade brasileira. Princeton e Oxford: Princeton University Press; 2004.). Para análises sociodemográficas, é importante considerar as desigualdades regionais presentes no país e que foram moldadas no decurso da história(1212 Silva GM, Paixão M. Mix and Unequal: new perspectives on Brazilian Ethnoracial Relations. In: Telles E, ed. Pigmentocracies - Ethnicity, race, and color in Latin America. USA: The University of North Carolina Press; 2014.-1313 Telles EE. Race in another America: the significance of skin color in Brazil. New Jersey: Princeton University Press; 2002.,1515 Kertzel DI, Arel D. Census and identity: the politics of race, ethnicity, and language in national censuses. Cambridge: Cambridge University Press; 2002.). Apesar da exiguidade de referências que possam embasar tais resultados, desigualdades regionais entre profissionais segundo cor ou raça descrevem um padrão que expõe enfermeiros e técnicos pretos e pardos a situações menos favoráveis de renda, o que pôde ser observado em todas as regiões do Brasil.

Historicamente, mulheres pardas e pretas (negras) tendem a ocupar espaços de menor status social, com base na hierarquia do mercado de trabalho (o que se notou com as técnicas e auxiliares de enfermagem); enquanto a imagem da “enfermeira-padrão”, no topo da pirâmide, foi cristalizada pela elitização e branqueamento da profissão(44 Ferreira LO, Salles RBB. A origem social da enfermeira padrão: o recrutamento e a imagem pública da enfermeira no Brasil, 1920-1960. Nuevo Mundo Mundos Nuevos. 2019. https://doi.org/10.4000/nuevomundo.77966
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,2222 Melo CMM. Divisão social do trabalho e enfermagem. São Paulo: Cortez; 1986.,3030 Campos P. As enfermeiras da Legião Negra: representações da enfermagem na revolução constitucionalista de 1932. Faces de Eva: Estudos sobre a Mulher [Internet]. 2015[cited 2020 Sep 20];33:53-65. Available from: https://scielo.pt/pdf/eva/n33/n33a07.pdf
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). Com o transcorrer dos anos, as relações profissionais no campo da enfermagem têm sido representadas por uma dicotomia laboral, na qual as enfermeiras responsáveis pelo ensino, coordenação e supervisão do trabalho são aquelas com maior status socioeconômico, enquanto aquelas que executam os cuidados são oriundas de classes menos favorecidas, aludindo à separação entre trabalho manual e intelectual(3131 Soares CB, Souza HS, Campos CMS. Processos de trabalho em enfermagem: uma contribuição a partir da saúde coletiva. In: Souza HS, Mendes A. (Orgs.). Trabalho e saúde no capitalismo contemporâneo: enfermagem em foco. Rio de Janeiro: 2016. p. 43-61.-3232 Maas LWD. Análise comparativa da base social da Medicina e Enfermagem no Brasil entre os anos de 2000 e 2010. Cad Saúde Pública. 2018;34(3):e00199116. https://doi.org/10.1590/0102-311x00199116
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).

Conforme mencionado, os processos que caracterizam o trabalho de enfermeiras são descritos como hierárquicos e segmentados, em constante competição entre os demais membros da equipe de enfermagem e outros profissionais da saúde(3131 Soares CB, Souza HS, Campos CMS. Processos de trabalho em enfermagem: uma contribuição a partir da saúde coletiva. In: Souza HS, Mendes A. (Orgs.). Trabalho e saúde no capitalismo contemporâneo: enfermagem em foco. Rio de Janeiro: 2016. p. 43-61.). Tais aspectos são ainda mais evidentes sob a ótica das relações sociais estabelecidas pelas desigualdades raciais e estão presentes nos mais diversospaíses(3333 Xue Y, Brewer C. Racial and Ethnic Diversity of the U.S. National Nurse Workforce 1988-2013. Policy Polit Nurs Pract. 2014;15(3-4):102-10. https://doi.org/10.1177/1527154414560291
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-3434 Leal JAL, Melo CMM. The nurses’ work process in different countries: an integrative review. Rev Bras Enferm, 2018;71(2):413-23. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0468
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).

Decerto, reconhecem-se as complexidades envolvidas nas investigações de desigualdades socioeconômicas em categorias profissionais específicas, tais como as abordadas neste estudo. Sãoiniciativas que buscam convergir “análises quantitativas empíricas realizadas com uso de bases de dados representativos” com “fenômenos sociais particulares”. Dessa forma, os censos demográficos representam uma das ferramentas que pode auxiliar no entendimento das desigualdades socioeconômicas patentes nos mais diversos níveis da sociedade, inclusive no mercado de trabalho(1515 Kertzel DI, Arel D. Census and identity: the politics of race, ethnicity, and language in national censuses. Cambridge: Cambridge University Press; 2002.).

Limitações do estudo

Algumas limitações presentes neste estudo se refletem na natureza do recenseamento populacional, sobretudo quanto às categorias investigadas. O delineamento transversal impede a análise dos efeitos de temporalidade e a direção das associações observadas com algumas das variáveis incluídas nos modelos. Dados sobre trabalho e renda foram referidos pelos entrevistados; embora geralmente a renda seja subestimada, essa condição não altera a direção das associações observadas, pois as diferenças de renda poderiam ser ainda maiores.

Em debate mais amplo, que extrapola o escopo teórico deste estudo, estão as categorias investigadas nas profissões. Em 2010, não havia profissionais reconhecidos como auxiliares de enfermagem no Censo Demográfico realizado no Brasil, por exemplo.

Contribuições para a área da enfermagem, saúde ou política pública

As análises apresentadas neste estudo são inéditas e têm importância por uma série de aspectos, dentre os quais se destacam o ineditismo de resultados, os quais apresentam diferenças de rendimentos de trabalhadores de enfermagem, estratificados de acordo com categorias raciais (cor ou raça) utilizadas pelos instrumentos adotados nas rotinas burocráticas do Brasil; a representatividade dos dados, coletados em todos os municípios do país; e o foco nas desigualdades socioeconômicas, com destaque para as estratificações por cor ou raça. A presente iniciativa inaugura um debate ainda pouco explorado no âmbito das dinâmicas demográficas e na sociologia das profissões, especificamente para a enfermagem brasileira.

CONCLUSÕES

Análises sobre desigualdades socioeconômicas moduladas segundo pertencimento racial são importantes e, neste estudo, destacaram a diversidade de situações para uma mesma categoria profissional. Também, são ainda mais relevantes no contexto atual, pois 2020 foi marcado como o ano do bicentenário da Enfermagem Moderna, em alusão ao nascimento de Florence Nightingale (1820-1910), precursora dos axiomas da profissão no Ocidente. Trata-se do reconhecimento, por parte da Organização Mundial da Saúde (OMS)(11 World Health Organization-WHO. State of the world's nursing 2020: investing in education, jobs and leadership. Geneva: World Health Organization [Internet]. 2020 [cited 2020 Sep 25]. Available from: https://www.who.int/publications-detail/nursing-report-2020
https://www.who.int/publications-detail/...
), desses dois séculos da profissionalização da enfermagem. Vale destacar que, no Brasil, o número de enfermeiros e técnicos de enfermagem aponta para essa direção, já que alcança cerca de 60% de todos os trabalhadores da área da saúde.

Os resultados deste estudo sugerem que, no Brasil do início do século XXI, persistem desigualdades raciais no tocante à condição socioeconômica mesmo entre trabalhadores de uma mesma categoria profissional. A divisão social do trabalho que emprega técnicos de enfermagem nas funções menos apreciadas nos sistemas de saúde também os coloca na pior condição de renda. Osachados mostraram que técnicos de enfermagem pardos e pretos foram os grupos com menores níveis de renda e que essas desigualdades podem ser agravadas, por serem ainda maiores nas regiões mais pobres dopaís.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Hugo Fernandes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    23 Dez 2020
  • Aceito
    09 Maio 2021
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