Interrupção no trabalho de profissionais de enfermagem: análise conceitual

RESUMO

Objetivos:

analisar o conceito “interrupção no trabalho de profissionais de enfermagem”.

Métodos:

estudo conceitual conforme método proposto por Walker e Avant conduzido mediante revisão integrativa da literatura. A busca nas bases de dados foi realizada mediante os descritores: “Attention”, “Attention Bias”, “Health Personnel”, “Nurses”, “Patient Safety” e “Medical Errors”. A amostra foi composta por 36 estudos.

Resultados:

os antecedentes do conceito identificados foram: alarmes, atender chamadas telefônicas, prestar assistência ao paciente e falta de material/medicamento. Os atributos definidores foram: pausa, suspensão, quebra e intrusão. Consequentes destacados: aumento na frequência e gravidade dos erros de medicação; e mudança de foco.

Considerações Finais:

a análise conceitual identificou os atributos, antecedentes e consequentes e permitiu construir uma definição operacional para “interrupção no trabalho de profissionais de enfermagem”. Isso contribuirá na melhoria do processo de trabalho e na criação de estratégias que garantam uma assistência mais segura ao paciente.

Descritores:
Enfermagem; Segurança do Paciente; Cuidados de Enfermagem; Formação de Conceito; Trabalho

ABSTRACT

Objectives:

to analyze the concept of “interruption in the work of nursing professionals”.

Methods:

conceptual study according to the method proposed by Walker and Avant through integrative literature review. The study searched the databases using the descriptors: “Attention”, “Attention Bias”, “Health Personnel”, “Nurses”, “Patient Safety” and “Medical Malpractices”. The sample consisted of 36 studies.

Results:

the antecedents were alarms, answering phone calls, providing patient care, and lack of material/medicine. The defining attributes were pause, suspension, breakage, and intrusion. In relation to the consequences, the study highlighted the increase in frequency and severity of medication errors and change of focus.

Final Considerations:

theconceptual analysis identified the attributes, antecedents, and consequences and allowed to build an operational definition for “interruption in the work of nursing professionals”. It will contribute to the improvement of the work process and the creation of strategies that ensure safer care for the patient.

Descriptors:
Nursing; Patient Safety; Nursing Care; Concept Formation; Work

RESUMEN

Objetivos:

analizar el concepto “interrupción en el trabajo de profesionales de enfermería”.

Métodos:

estudio conceptual conforme método propuesto por Walker y Avant conducido mediante revisión integrativa de la literatura. Búsqueda en las bases de datos realizada mediante los descriptores: “Attention”, “Attention Bias”, “Health Personnel”, “Nurses”, “Patient Safety” y “Medical Errors”. Muestra composta por 36 estudios.

Resultados:

los antecedentes del concepto identificados fueron: alarmes, atender llamadas telefónicas, prestar asistencia al paciente y falta de material/medicamento. Los atributos definidores fueron: pausa, suspensión, quiebra e intrusión. Consecuentes destacados: aumento en la frecuencia y gravedad de los errores de medicación; y cambio de enfoque.

Consideraciones Finales:

el análisis conceptual identificó los atributos, antecedentes y consecuentes y permitió construir una definición operacional para “interrupción en el trabajo de profesionales de enfermería”. Eso contribuirá en la mejoría del proceso de trabajo y en la creación de estrategias que garantizan una asistencia más segura al paciente.

Descriptores:
Enfermería; Seguridad del Paciente; Atención de Enfermería; Formación de Concepto; Trabajo

INTRODUÇÃO

As interrupções durante as atividades de assistência à saúde podem levar a riscos tanto para os pacientes quanto para os profissionais envolvidos. As interrupções no fluxo de trabalho por motivos não relacionados à tarefa em execução estão associadas de forma significativa ao aumento de estresse dos profissionais(¹). Os eventos de interrupção afetam a memória no trabalho, desviam o foco da tarefa principal e, consequentemente, sobrecarregam as funções cognitivas(²-³), intensificando o risco para a ocorrência de erros. Interrupções desnecessárias ocorrem com alta frequência durante a assistência à saúde(⁴) e têm sido exploradas principalmente no âmbito da atuação da enfermagem.

Profissionais da enfermagem são interrompidos entre 0,4 e 13,9 vezes por hora(⁵). Nos Estados Unidos, foi identificada uma média de 85 interrupções por turno de trabalho entre enfermeiros do setor de emergência, sendo em média 8,7 interrupções por hora. As principais fontes geradoras de interrupções foram outros profissionais de enfermagem (40%), outros profissionais da equipe multidisciplinar (15,6%), chamadas telefônicas (12%), profissionais médicos (9%) e cuidados imprevistos ao paciente (5,2%)(³). Na China, um estudo observou que houve interrupções em 94,5% das atividades de preparação de 180 doses de medicamentos administrados. Nesse caso, as fontes estavam relacionadas ao ambiente de trabalho (32,4%), cuidadores (24,5%), profissionais médicos (10,8%), outros profissionais de enfermagem (9,5%) e problemas de comunicação (8,7%)(⁶).

No Brasil, um estudo observacional, evidenciou que as interrupções durante as atividades de preparo e administração de medicamentos ocorreram em 44% das observações. Os principais motivos de interrupção foram a conversa paralela (46,8%), a sobreposição de tarefas (8,2%), a instrução de outros profissionais (7,2%), a falta de material (7,2%), os ruídos no ambiente (4,5%)(⁷). Asinterrupções nem sempre estão associadas a eventos adversos, pois, em alguns casos, podem ser necessárias. Por exemplo, a pausa para troca ou ajuste de um monitor multiparamétrico com defeito durante um procedimento cirúrgico é essencial para a segurança do paciente(⁸). Todavia, estudos apontam que os profissionais de enfermagem têm mais chances de cometer erros quando são interrompidos(⁶,⁹) — por exemplo, erros de medicação (EM), como dose errada, paciente errado e omissão de dose(²), horário errado, ausência de registros de medicamentos administrados, não realização da dupla checagem e não cumprimento de medidas de controle de infecção(¹⁰).

Por outro lado, a literatura evidencia diferentes definições para interrupção no trabalho de profissionais de enfermagem. Algumas apresentam-se conflitantes, outras se mostram com termos de difícil compreensão e de observação do evento(⁴,¹¹-¹²). Um estudo afirma que, para ser considerada “interrupção da atividade principal”, é necessário um tempo mínimo de dez segundos(¹³). Outro afirma que a ocorrência de interrupção não depende da duração. Nesse caso, basta qualquer intrusão de uma atividade secundária, não planejada e inesperada que leve à descontinuidade da atividade primária(¹⁴). Algumas definições utilizadas dificultam a compreensão do conceito. Por exemplo: interrupção é “qualquer evento que perturbe o enfermeiro no processo de administração do medicamento”(¹⁵). Háainda definições que apresentam a interrupção como sinônimo de distração, aqual se refere a um conceito distinto(¹⁶).

As inconsistências das definições na literatura e a inexistência de uma terminologia padronizada do conceito de interrupção no trabalho de profissionais de enfermagem dificultam o entendimento, a operacionalização de pesquisas e a comparação dos estudos. Consequentemente, tornam mais trabalhosa a elaboração de estratégias de prevenção e mitigação das interrupções para a promoção da segurança do paciente nos serviços de saúde.

A construção de uma definição operacional poderá contribuir com a produção científica e com o fortalecimento da enfermagem, além de subsidiar melhorias no processo de trabalho da enfermagem por meio da elaboração de estratégias de prevenção e mitigação de interrupções.

Nesse sentido, este estudo busca analisar as evidências que ajudem no entendimento do conceito “interrupção no trabalho de profissionais de enfermagem”, com a identificação das variáveis envolvidas nesse conceito, a saber: atributos, antecedentes e consequentes(¹⁷).

OBJETIVOS

Analisar o conceito “interrupção no trabalho de profissionais de enfermagem”.

MÉTODOS

Aspectos éticos

Os dados foram extraídos por meio de pesquisa da literatura, isto é, o estudo não envolveu a participação de seres humanos, por isso foi dispensado da apreciação por um Comitê de Ética e Pesquisa.

Referencial teórico-metodológico e tipo de estudo

Trata-se de um estudo metodológico pautado no modelo de análise conceitual proposto por Walker e Avant(¹⁸).

A análise de conceito tem por objetivo examinar a estrutura e a função de um conceito, possibilitando a compreensão de fenômenos de determinada área do conhecimento(¹⁸). O modelo adotado consiste em oito etapas(¹⁸). Este estudo desenvolveu sete, sendo elas: 1) seleção do conceito; 2) determinação dos objetivos ou propósitos da análise; 3) identificação dos usos para o conceito; 4)determinação dos atributos definidores; 5) identificação dos antecedentes e consequentes; 6)identificação de caso-modelo; e 7) identificação do caso adicional (caso contrário). Não foram encontradas referências empíricas (Etapa 8) para interrupção no trabalho de profissionais de enfermagem, pois trata-se de um comportamento que está sendo avaliado há pouco tempo no âmbito da segurança do paciente. Salienta-se que, para condução deste estudo, foram executadas fases semelhantes ao processo de revisão integrativa de literatura. Assim, a seleção do conceito foi realizada com intensa reflexão. O conceito escolhido é relevante para o pesquisador e poderá contribuir no desenvolvimento de outras pesquisas na área de interesse(¹⁸). O conceito de interesse definido foi “interrupção no trabalho de profissionais de enfermagem”, comportamento que ocorre frequentemente nos serviços de saúde e tem sido tema de estudos do grupo de pesquisa(⁷-⁸).

Procedimentos metodológicos

Fonte de dados

Com a finalidade de conhecer as características correlacionadas ao conceito e desenvolver uma definição operacional(¹⁸), foi realizada uma revisão integrativa de literatura que seguiu estes passos: a) identificação do problema de pesquisa; b) pesquisa de literatura, embasada em estratégias de busca bem definidas; c) avaliação, estratificação dos estudos, métodos utilizados e viabilidade dos dados; d) análise de dados, extração e síntese dos resultados encontrados; e)apresentação e conclusão de todas as etapas da revisão(¹⁹).

Dessa forma, foi estabelecida a seguinte questão norteadora: “Quais os atributos, antecedentes e consequentes dos eventos de interrupção no trabalho vivenciados pelos profissionais de enfermagem nos serviços de saúde?”. Foi utilizado o acrônimo PICO (população, intervenção, comparação e outcomes/desfecho), em que: P - profissionais de enfermagem; I - não se aplica; C- não se aplica; e O - antecedentes, consequentes e atributos essenciais de interrupções no trabalho.

Os artigos foram elencados mediante busca efetuada nas seguintes bases de dados indexadas: Literatura Latino-Americana em Ciências da Saúde (LILACS), Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (MEDLINE, via PubMed) e Cumulative Index to Nursing and Allied Health Literature (CINAHL), acessados pelo Portal de Periódicos de Aperfeiçoamento de pessoal de Nível Superior (CAPES). Como critérios de inclusão, foram considerados os artigos completos disponíveis eletronicamente nos idiomas português, inglês e espanhol, e que responderam à questão de pesquisa. Não houve limitação quanto ao ano de publicação, a fim de aumentar a abrangência dos estudos. Foram excluídos os artigos de opinião, resumos, teses, dissertações e editoriais.

Coleta e organização dos dados

Os dados foram coletados entre setembro de 2019 e janeiro de 2020 por meio de um software denominado State of Art through Systematic Reviews (START)^® versão 3.0.3 Beta, para organização e análise dos dados. Essa ferramenta é livre e gratuita, desenvolvida pelo Laboratório de Pesquisa e Engenharia de Software (LAPES) da Universidade Federal de São Carlos.

Para a busca nos bancos de dados, foram utilizados os operadores booleanos AND e OR bem como os descritores controlados e indexados no Descritores em Ciências as Saúde (DeCS) e seus respectivos correspondentes no Medical Subject Headings (MeSH): Atenção (Attention), “Viés de Atenção” (“Attention Bias”), “Pessoal de Saúde” (“Health Personnel”), “Enfermeiras e Enfermeiros” (Nurses), “Segurança do Paciente” (Patient Safety) e “Erros Médicos” (“Medical Errors”).

Primeiramente, fez-se a leitura do título e do resumo de cada artigo, sendo pré-selecionados aqueles que atendiam aos critérios de inclusão. Posteriormente, os artigos foram analisados na íntegra e selecionados quando convergiam com a questão norteadora e objetivo de pesquisa. A extração dos dados referente aos antecedentes e consequentes foi realizada por meio da identificação nos estudos de fatores contribuintes e consequentes destes nas atividades em desempenho. Os atributos foram identificados por termos que caracterizavam uma interrupção.

O banco de dados foi elaborado para subsidiar a análise do conceito da interrupção no trabalho de profissionais de enfermagem com a extração das seguintes variáveis: tipo de estudo, objetivos, país de realização, população, amostra, cenário, atributos, antecedentes e consequentes. Os dados empíricos foram extraídos dos estudos mediante questionamentos dos pesquisadores acerca das situações descritas em cada artigo, tais como: O que causou a interrupção? Como a interrupção foi definida ou caracterizada? Quais foram as consequências relacionadas à interrupção?

Para manter o rigor metodológico, os processos de busca e de seleção dos artigos foram conduzidos conforme recomendações do guia Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta Analyses (PRISMA)(²⁰) e estão detalhados na Figura 1.

Figura 1
Fluxograma do método utilizado na busca e seleção de artigos nas bases de dados, Divinópolis, Minas Gerais, Brasil, 2020

*LILACS - Literatura Latino-Americana em Ciências da Saúde; ‡MEDLINE - Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (via PubMed); §CINAHL - Cumulative Index to Nursing and Allied Health Literature.

Análise dos dados

Os dados foram organizados em frequência relativa e absoluta e apresentados em tabela para melhor compreensão.

Para ratificar os dados analisados, foi estabelecido um caso-modelo que exemplificasse a ocorrência do conceito de “interrupção no trabalho de profissionais de enfermagem”; e um caso contrário, sendo este um exemplo da não ocorrência do conceito. Ambos os casos podem advir de uma situação real ocorrida no dia a dia; ou de uma situação fictícia, isto é, criada pelo pesquisador; ou ainda de uma situação descrita da literatura que represente o uso do conceito(¹⁸). Essas etapas contribuem com o entendimento sobre os atributos, antecedentes e consequentes que melhor se adequam (ou não) ao conceito.

RESULTADOS

Foram selecionados 36 artigos, de 14 países e com maior número de publicações provenientes dos Estados Unidos da América (n = 11; 30,5%) e do Canadá (n = 5; 13,9%). Os estudos foram publicados entre os anos de 2005 e 2019. Os anos com maior número de publicações foram 2017 (n=6; 16,7%); 2018 (n = 5; 13,9%); e 2019 (n = 6; 16,7%). Os resultados foram organizados da seguinte forma: identificação dos usos para o conceito “interrupção no trabalho de profissionais de enfermagem”; determinação dos atributos definidores; identificação dos antecedentes e consequentes; identificação do caso-modelo; e identificação do caso adicional (caso contrário).

As definições do conceito “interrupção no trabalho de profissionais de enfermagem” apresentaram-se variadas, ou seja, evidenciou-se ausência de consenso para definição desse fenômeno, conforme demostrado no Quadro 1.

Quadro 1
Expressões utilizadas pelos estudos selecionados para definição de interrupções, Divinópolis, Minas Gerais, Brasil, 2020

[…] pausa na execução da tarefa principal(8); […] intrusão de uma tarefa secundária […] que leva à descontinuidade no desempenho da tarefa, por mais breve que seja(14); Uma interrupção na execução de uma tarefa que durou mais de dez segundos(13); […] evento que perturbe o enfermeiro no processo de administração do medicamento(15); Suspensão de uma tarefa primária para atender e trabalhar em outra tarefa secundária(21); Interrupção na atividade que está sendo executada para realizar outra tarefa(2); […] interrupção no desempenho de uma atividade iniciada por uma fonte interna ou externa […](3); Qualquer interrupção na atenção ou descontinuidade de uma tarefa […](22); Uma quebra no desempenho de uma atividade humana iniciada por uma fonte […](23); Suspensão de uma tarefa inicial para executar uma tarefa secundária não planejada […](10); Evento durante o procedimento cirúrgico que potencialmente distrai a equipe […] de uma tarefa principal ou interrompe momentaneamente sua tarefa(24); Interrupções no trabalho dos enfermeiros por mais de cinco segundos(25); Qualquer evento iniciado externamente […] que fez com que a atenção do enfermeiro fosse desviada da tarefa principal(26); Uma distração foi definida como qualquer interrupção não diretamente relevante para a dispensação do medicamento […](16); […] pausa durante a administração de medicamento ou onde uma enfermeira estava distraída […](27).

Os resultados demonstraram que as interrupções no trabalho têm sido estudadas em diversos cenários, como: centros cirúrgicos(³,²⁸); durante a prescrição, preparo e administração de medicamentos(¹,¹³,¹⁵); e nas transferências do cuidado nos turnos de trabalho dos profissionais de saúde(¹⁷,²⁹). A maior parte (97,2%) dos estudos foram desenvolvidos em ambientes hospitalares, taiscomo: Clínica Médica/Cirúrgica (n = 13), Unidade de Terapia Intensiva Adulto (n = 7) e Pediátrica (n = 3), setor de Internação Pediátrica (n = 4), Urgência e Emergência (n = 5), CentroCirúrgico (CC) (n = 3); e, por fim, 2,8% na Atenção Primária à Saúde (APS) (n = 1). Comrelação aos participantes dos estudos, 77,4% dos artigos tiveram como foco os profissionais de enfermagem; 16,1%, equipe multidisciplinar; e 6,5%, profissionais médicos.

Os atributos encontrados na literatura no que se refere ao conceito “interrupção no trabalho dos profissionais de enfermagem” foram: quebra no desempenho de uma atividade(¹¹-¹²,²²,²⁸-³⁰), pausa(⁵,⁸,²⁷,²⁹,³¹) ou suspensão na execução da tarefa(⁵,¹⁰,²¹,³⁰) e intrusão inesperada em uma tarefa(⁵,¹¹-¹²,²⁷-²⁹).

A Tabela 1 apresenta as frequências absoluta e relativa dos antecedentes e consequentes do conceito em análise. Constatou-se que o ruído ambiental é o antecedente mais frequente, seguido de prestar assistência ao paciente. Já os erros de medicação e mudança do foco foram os consequentes mais frequentes nos estudos.

O caso-modelo auxilia no esclarecimento e na compreensão da estrutura do conceito, portanto deve ser esclarecido o seu significado e o contexto em que ocorre. Assim, descreve-se caso-modelo a seguir. Um enfermeiro discente de um programa de residência na APS, ao chegar à Unidade Básica de Saúde (UBS), inicia o atendimento de demanda programada, com consultas individuais direcionadas ao acompanhamento da população. Ele está atendendo consultas de acompanhamento do crescimento e desenvolvimento de crianças. O primeiro atendimento do dia é o de uma criança com 4 meses de idade, em aleitamento materno exclusivo. Após a anamnese, iniciase o exame físico. De repente, o enfermeiro é interrompido pelo técnico de enfermagem, que solicita sua presença na sala de curativos para avaliação de uma lesão cutânea. O enfermeiro pede licença à mãe da criança e interrompe o atendimento para realizar essa tarefa secundária. A avaliação de lesões cutâneas e prescrição de coberturas são atividades privativas do enfermeiro e necessárias para a realização do curativo pelo técnico de enfermagem. Após cinco minutos, o enfermeiro retorna ao consultório e percebe que não registrou as medidas antropométricas, sendo preciso realizar todo o procedimentonovamente.

O caso referido foi baseado na vivência de um dos pesquisadores durante sua residência em enfermagem no âmbito da APS. É possível identificar os atributos definidores do conceito, como quebra no desempenho da atividade, pausa ou suspensão do atendimento e intrusão inesperada de uma demanda secundária.

O caso adicional (contrário) exemplifica a não ocorrência do conceito, como a seguir. Umamãe comparece à UBS para vacinar seu filho de 4 meses de idade. O residente de enfermagem recebe a mãe e a criança na sala de vacinas. A mãe entrega-lhe a caderneta de vacinas, e o enfermeiro inicia o registro de doses no Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunização, assim como na caderneta de vacinas da criança. Após o registro, lava as mãos, prepara o imunobiológico, administrao e faz as devidas orientações quanto a possíveis reações adversas.

Dessa maneira, a análise conceitual suscitou a estruturação de uma definição operacional mais ampla: uma interrupção no trabalho da enfermagem é “uma pausa, independentemente do tempo, no desempenho de uma tarefa principal com transferência da concentração do profissional para uma tarefa secundária”.

Tabela 1
Frequência dos antecedentes e consequentes do conceito “interrupção no trabalho” (n=36), Divinópolis, Minas Gerais, Brasil, 2020

Fatores relacionados	F*	% †
Antecedentes
Ruído ambiental(1-2,4,6,8,10-11,13-14,21-29,32-35)	24	66,7
Atender solicitações do paciente (como fornecer objetos: copos, travesseiros)(1-2,5,10,14-16,21,25,27,29,32-34,36-38)	17	47,2
Atender chamadas telefônicas(3,6,8,13,16,21-22,27-29,32-36,38)	15	41,7
Falta de material(5,8-10,16,22,27-29,34,36,38-39)	13	36,1
Comunicação não relacionada à tarefa em execução(3,8-10,14,21-22,24-25,27,32-33,35)	13	36,1
Conversas relacionadas ao paciente(1,3,5-6,10,16,21-22,25,27-28,32,35)	13	36,1
Falta de informações sobre o paciente(5,8,10,15,21,32-33,35-36,38)	10	27,8
Falta de medicamento(10,16,21,23,32-33,36-37,39)	10	27,8
Falta de equipamento(5,10,16,21-22,28-29,39)	8	22,2
Paciente/familiar fornece ou solicita informações(2,10-11,28,34-35,37-38)	8	22,2
Funcionários fazendo perguntas(10,15,21,28,34,38,40)	7	19,4
Falha no equipamento(1,8,15,21,24,35)	6	16,7
Conversa com paciente/familiar(2,10,33-34)	4	11,1
Atender solicitações de profissionais médicos(5,10,36)	3	8,3
Aguardar retorno (comunicação) de outro profissional(10,22)	2	5,6
Recebimento/troca/controle de materiais(31-32)	2	5,6
Acionar serviço de manutenção(32,34)	2	5,6
Falhas no planejamento de procedimento(21,31)	2	5,6
Comunicação relacionada à unidade ou instituição(22)	1	2,8
Ausência do profissional anestesiologista(8)	1	2,8
Aguardar resultado de exame(8)	1	2,8
Contribuição para educação (orientar estudante)(32)	1	2,8
Equipe de limpeza(32)	1	2,8
Admissão de novos pacientes(32)	1	2,8
Entrega de material para o laboratório(41)	1	2,8
Troca de turno/horário de almoço(21)	1	2,8
Consequentes
Erros de medicação(2,5-6,10,12,16,21-22,25-28,31-34,36-37)	18	50,0
Mudança de foco(1,3,5-6,11-12,21,25,29-30,32-33)	13	36,1
Erros clínicos(5-6,10-11,30,33,36,39)	8	22,2
Atraso no atendimento/tratamento(5,10-12,27-29)	7	19,4
Aumento na frequência e gravidade dos erros de administração de medicamentos(6,9-10,25-26,33,36)	7	19,4
Tempo de conclusão de tarefas mais longos(1,9,15,25,27,32)	6	16,7
Sobrecarga cognitiva(3,5,25,33,35-36)	6	16,7
Abandono da tarefa principal(1,4,21,27,38)	5	13,9
Falhas processuais(3,10,33,36)	4	11,1
Evento adverso(10,12,36)	3	8,3
Erros no procedimento cirúrgico(8,24)	2	5,6
Atendimento de má qualidade(40)	1	2,8
Atraso no reconhecimento e na comunicação de alterações do paciente(30)	1	2,8
Aumento da carga de trabalho(6)	1	2,8
Aumento do estresse no trabalho(1)	1	2,8
Erros de dispensação(4)	1	2,8
Erro de prescrição/solicitação de exames(32)	1	2,8
Esmagamento de medicamento sem necessidade(34)	1	2,8
Falha em concluir ou iniciar tarefas(21)	1	2,8
Falha na documentação/registro de informações(10)	1	2,8
Falha na verificação dos sinais vitais, do nível de glicose no sangue e da observação neurológica antes da administração de medicamentos ou quando apropriado(10)	1	2,8
Fornecer informações críticas e sensíveis relacionadas ao paciente(35)	1	2,8
Perdas de informações críticas(21)	1	2,8
Queda do paciente(8)	1	2,8
Verificações de segurança incompletas(24)	1	2,8

• ^*
  F - frequência absoluta;%^† - frequência relativa.

DISCUSSÃO

As definições do conceito “interrupção no trabalho de profissionais de enfermagem” foram diversificadas; por vezes, imprecisas; e até mesmo incompreensíveis para operacionalização em pesquisas. É evidente a ausência de consenso para definição desse evento. A utilização de definições conflitantes pode prejudicar a comparação e os resultados entre estudos distintos(⁴¹), pois pode não capturar os eventos de interrupção na sua totalidade ou, até mesmo, suscitar erros na classificação dasinterrupções.

Alguns estudos utilizaram o termo “distração” como sinônimo ou característica de uma interrupção. Essas palavras, apesar de semelhantes, têm sentidos distintos(⁴¹). No evento de distração, não há interrupção da tarefa em desempenho, ocorre apenas um desvio da atenção do profissional. Jána interrupção, a tarefa primária em desempenho é totalmente suspensa para a execução de uma tarefa secundária(⁸,⁴¹).

Observou-se também divergência quanto à duração do evento para ser considerado uma interrupção(¹³-¹⁴). Não foram encontrados estudos que mensurassem o impacto da duração de uma interrupção sobre os procedimentos realizados pelos profissionais. Porém, há evidências de que toda interrupção afeta negativamente a memória e a cognição do profissional devido à quebra da atenção na tarefa em execução(²³).

As interrupções são exploradas em vários contextos da assistência à saúde, em maior proporção na atividade de preparo e administração de medicamentos(⁴²). Esta é uma das atividades mais complexas e críticas desempenhadas pelos profissionais de enfermagem. As interrupções ocorridas nesses procedimentos têm sido relatadas como o principal fator contribuinte para a ocorrência de erros de medicação (EM); nos Estados Unidos, a estimativa é de 1,3 milhão de pessoas atingidas por ano. Entretanto, conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), o EM é um problema global. Em 2017, a OMS lançou o terceiro desafio global para a segurança do paciente, com o objetivo de reduzir em 50%, ao fim de cinco anos, os danos graves e evitáveis relacionados ao uso de medicamentos(⁴³). Para tanto, dentre outras ações, são referidas as de prevenir e mitigar os eventos de interrupção como estratégia importante na diminuição de erros durante o preparo e administração de medicamentos(⁷).

A análise dos artigos permitiu evidenciar a escassa abordagem da temática “interrupção no trabalho de profissionais de enfermagem” na APS. Esse nível de atenção é a principal porta de acesso do usuário à Rede de Atenção à Saúde no Brasil e tem maior fluxo de pacientes recebendo atendimento do que as instituições de níveis secundários e terciários(³⁴).

Também é importante ressaltar que os artigos utilizados neste estudo, de modo geral, referemse apenas aos enfermeiros quando citam “profissionais de enfermagem”. Não foram mencionados profissionais de nível médio, o que não reflete a realidade brasileira. No país, há um contingente de 2.471.153 profissionais de enfermagem, sendo 24,7%, enfermeiros de nível superior; 17,5%, auxiliares de enfermagem; e 57,8%, técnicos de enfermagem(⁴⁴). Ou seja, os profissionais de nível médio correspondem a mais de 75% da enfermagem brasileira, sendo que atuam de forma direta na assistência aos pacientes, inclusive no preparo e na administração de medicamentos.

Os atributos “pausa”, “suspensão”, “quebra” e “intrusão” identificados pela análise conceitual definem as características do conceito “interrupção no trabalho de profissionais de enfermagem”. Apausa significa “interrupção de um ato por algum tempo”(⁴⁵), já a suspensão é “ação de suspender, de interromper temporariamente; estado de suspenso”(⁴⁶). Ambas as definições são semelhantes, definem um limiar de tempo supondo que a tarefa será retomada em algum momento. A quebra é definida como “ação de quebrar ou quebrar-se, fratura”(⁴⁷) e expressa a ideia de rompimento completo da atividade. A intrusão é um evento inesperado provocado por estímulos externos — p.ex., por outros profissionais ou por si mesmo — interrompendo o fluxo de trabalho(²⁷).

Manter a atenção e a concentração no desempenho de determinada tarefa garante a manutenção de recursos cognitivos durante a execução. A alternância entre tarefas demanda recursos complexos, afetando o desempenho e o resultado final(⁴⁸). Assim, minimizar os eventos de interrupções pode contribuir para uma assistência ao paciente mais segura. Algumas estratégias como o uso de coletes coloridos e exclusivos para determinada atividade, implantação de zonas seguras, avisos ambientais e educação de profissionais e pacientes têm sido utilizadas para reduzirinterrupções(⁹).

Os antecedentes, ou seja, situações ocorridas antes do evento de interrupção no trabalho de profissionais de enfermagem, relacionaram-se ao ambiente de trabalho: os ruídos de alarmes, monitores e telefones. Outras situações referiam-se às atividades do trabalho, como: fornecer, consultar ou solicitar informações sobre os pacientes; e comunicação entre os profissionais e com os pacientes. As interrupções podem ser desencadeadas por fatores internos como a autointerrupção; ou externos, como os fatores ambientais, humanos ou organizacionais(⁹). É importante reconhecê-los para a definição de estratégias de minimização e gerenciamento de interrupções desnecessárias.

Os consequentes levantados eram ligados ao sistema de medicação, comprometimento de desempenho dos profissionais e danos à segurança do paciente. Também foi observado abandono da tarefa principal e tempo de conclusão de tarefas mais longo gerando sobrecarga de trabalho(⁶,¹⁰-¹¹,²⁷,³⁰).

A maior parte dos estudos realizou apenas a identificação e a caracterização das fontes de interrupções. Apesar de ser conhecido o potencial das interrupções para causar erros, poucos foram os estudos que relacionaram a ocorrência de interrupções às consequências baseando-se em estudos primários, em campo. Assim, notam-se limitações na literatura para relacionar interrupções às suasconsequências(¹²,³⁶).

Não obstante, estudos conseguiram estabelecer relação entre interrupções e aumento do estresse no trabalho(¹), atraso no tratamento(²⁹), perda de concentração(²⁹) e erros na assistência(¹⁰). Asinterrupções afetam a capacidade cognitiva, desviando o foco de informações de uma atividade em desempenho em decorrência da intrusão de uma tarefa secundária; consequentemente, a atenção desviada predispõe a omissões e erros(⁴⁸). A sobrecarga cognitiva pode afetar a precisão e o desempenho de tarefas, resultando em maior tempo de conclusão, o que pode ocasionar danos no tratamento do paciente(⁴⁸).

Ressalta-se a existência de situações em que as interrupções são necessárias no contexto do trabalho da enfermagem. O trabalho não se limita apenas à execução da tarefa, mas também à assistência de enfermagem integralizada ao paciente. Assim, por exemplo, para administrar um medicamento, é necessário desenvolver um processo que abranja o preparo, a coleta de dados do paciente, a comunicação com outros profissionais de saúde para viabilização do raciocínio clínico na avaliação da real necessidade do medicamento prescrito(²). Outra situação é que interrupções podem ser inerentes à função desempenhada: por exemplo, o enfermeiro circulante em uma sala operatória tende a ser interrompido a qualquer momento, pois é sua atribuição dar suporte à intervenção anestésico-cirúrgica tanto no fornecimento de insumos quanto na operacionalização de equipamentos e monitores solicitados pela equipe(⁸).

Ao considerar a relevância da temática “interrupções no trabalho de profissionais de enfermagem nos serviços de saúde”, é importante estabelecer uma definição operacional para esse conceito com intuito de contribuir para a melhoria tanto da prática clínica dos profissionais quanto da produção científica. A compreensão do conceito favorece a organização do conhecimento produzido e potencializa a operacionalização de estratégias de mitigação de eventos adversos.

Limitações do estudo

Os artigos utilizados neste estudo, de modo geral, são internacionais e usam o termo “profissionais de enfermagem” restringindo-o apenas à classe dos “enfermeiros”. Entretanto, noBrasil, há um grande contingente de profissionais de nível médio na composição da equipe de enfermagem. Portanto, essa denominação pode transmitir uma ideia errada do quadro de profissionais de enfermagem no país.

Contribuições para a área da Enfermagem, Saúde ou Política Pública

Os resultados poderão viabilizar a identificação tanto das características associadas à interrupção no trabalho dos profissionais de enfermagem quanto dos antecedentes, atributos e consequentes, possibilitando o desenvolvimento de uma definição operacional. Além disso, auniformização do conceito contribuirá para a criação futura de ferramentas de identificação e de mitigação de falhas e erros provenientes da interrupção no trabalho dos profissionais de enfermagem e demais áreas da saúde, promovendo melhorias na assistência prestada ao paciente nos diversos cenários de atenção à saúde.

A maioria das publicações encontradas limitou-se à identificação das fontes de interrupção. Dessa forma, sugere-se a realização de novas pesquisas com delineamentos metodológicos longitudinais e/ou experimentais que permitam correlacionar variáveis e estabelecer (ou não) uma nova definição operacional de “interrupções no trabalho”. E no caso brasileiro, recomenda-se que também sejam incluídas as distintas categorias profissionais da enfermagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise conceitual de “interrupção no trabalho de profissionais de enfermagem” possibilitou a identificação e a clarificação dos atributos, antecedentes e consequentes mais frequentes naliteratura.

No cenário da segurança do paciente, o conceito tem sido abordado, entretanto, de forma fragmentada e, por vezes, incompreensível, não havendo consenso definido na literatura. A ausência de uma definição pode prejudicar a identificação adequada do fenômeno bem como o desenvolvimento de estratégias de prevenção de interrupções no trabalho e, assim, gerar danos aospacientes.

No cenário da Atenção Primária à Saúde, foi observado que os estudos sobre as interrupções no trabalho dos profissionais são ainda incipientes. Isso aponta para a necessidade de avanços na construção de conhecimento e de práticas de assistência mais seguras nesse nível de atenção à saúde. No mesmo sentido, são escassos os estudos sobre interrupções no trabalho dos profissionais de enfermagem de nível médio. Considerando que esses profissionais constituem a maioria da força de trabalho da enfermagem brasileira e atuam diretamente no cuidado com os pacientes, essa lacuna na literatura torna-se ainda mais importante.

A compreensão dos fatores contribuintes das interrupções pode auxiliar no reconhecimento de gatilhos que desencadeiam as interrupções desnecessárias, subsidiando intervenções para mitigálas.

A análise de dados empíricos permitiu estabelecer uma definição operacional do conceito, que, além de subsidiar o desenvolvimento de novas pesquisas, poderá ser incorporada às discussões sobre a segurança do paciente tanto na área acadêmica quanto nas instituições e/ou serviços de saúde.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa

EDITOR ASSOCIADO: Alexandre Balsanelli

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  25 Out 2021
• Data do Fascículo
  2022

Histórico

• Recebido
  31 Dez 2020
• Aceito
  18 Maio 2021