Acessibilidade / Reportar erro

Repercussões da reforma trabalhistas sobre o trabalho em enfermagem no contexto da pandemia de Covid-19

RESUMO

Objetivo:

Refletir sobre as repercussões da Reforma Trabalhista no trabalho em enfermagem durante a pandemia de COVID-19.

Métodos:

Trata-se de um estudo do tipo reflexivo com base nos aspectos legais da Reforma Trabalhista em diálogo com produções científicas acerca do trabalho em enfermagem.

Resultados:

Com a ascensão da pandemia de COVID-19, observa-se o acirramento da flexibilização do trabalho, amparado juridicamente pela Reforma Trabalhista. Para os/as trabalhadores/as da enfermagem, as repercussões dão-se no vínculo de trabalho, na jornada de trabalho, no salário, na atuação sindical e na proteção ao emprego.

Considerações finais:

Evidencia se que, para os/as trabalhadores/as da enfermagem, após as mudanças legislativas, não há segurança de que a flexibilização das leis trabalhistas e previdenciárias tragam resultados favoráveis para o crescimento econômico, redução das desigualdades e menores taxas de desemprego. Com isso, a organização política das categorias é a via para o enfrentamento desse cenário.

Descritores:
Enfermagem; COVID-19; Emprego; Vulnerabilidade Social; Legislação Trabalhista.

ABSTRACT

Objective:

To reflect on the repercussions of the Labor Reform on nursing work during the COVID-19 pandemic.

Methods:

This is a reflective study based on the legal aspects of the Labor Reform in dialog with scientific productions pertaining to nursing work.

Results:

With the rise of the COVID-19 pandemic, the flexibilization of labor is being intensified, legally backed up by the Labor Reform. For nursing workers, the repercussions are felt in the work relationship, during the workday, in the salary, in union action, and in job protection.

Final considerations:

It is evident that, after the legislative changes, there’s no certainty that the flexibilization of labor and social security laws will bring favorable results in terms of economic growth, reduction of inequalities, and lower unemployment rates for the nursing workers. Therefore, the political organization of the professional categories is the way to overcome this scenario.

Descriptors:
Nursing; COVID-19; Employment; Social Vulnerability; Legislation and Jurisprudence.

RESUMEN

Objetivo:

Reflexionar sobre las repercusiones de la Reforma Laboral en la enfermería durante la pandemia de COVID-19.

Métodos:

Estudio del tipo reflexivo basado en los aspectos legales de la Reforma Laboral en diálogo con producciones científicas acerca del trabajo en enfermería.

Resultados:

Con la ascensión de la pandemia de COVID-19, observado el provocamiento de flexibilidad laboral, amparado jurídicamente por la Reforma Laboral. Para los/las trabajadores/as de enfermería, las repercusiones se producen en el vínculo de trabajo, en la jornada laboral, en el salario, en la actuación sindical y en la protección al empleo.

Consideraciones finales:

Evidenciado que, para los/las trabajadores/as de enfermería, tras los cambios legislativos, no hay seguridad de que la flexibilidad de las leyes laborales y previsiones traigan resultados favorables para el crecimiento económico, reducción de desigualdades y menores tasas de desempleo. Así, la organización política de las categorías es la vía para el enfrentamiento de ese escenario.

Descriptores:
Enfermería; COVID-19; Empleo; Vulnerabilidad Social; Legislación Laboral.

INTRODUÇÃO

A Reforma Trabalhista se refere ao conjunto de novas regras criadas com a reformulação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que passou a vigorar em novembro de 2017, no Brasil. O primeiro projeto brasileiro de Reforma Trabalhista surgiu em 1991, sob a justificativa de regulamentar o Artigo 8° da Constituição Federal. Essa iniciativa, inicialmente frustrada, concretizou-se em julho de 2017, mediante aprovação da Lei 13.467/2017, que modificou 100 pontos da CLT, com destaque para os que se referem à jornada de trabalho, salário, tipos de contratação e atuação sindical (11 Guimarães Junior SD, Silva EB. A Reforma Brasileira em Questão: reflexão contemporâneas em contexto de precarização social do trabalho. Rev Estud Organ Soc. 2020;7(18):117-163. https://doi.org/10.25113/farol.v7i18.5503
https://doi.org/10.25113/farol.v7i18.550...
).

Cabe salientar que a Reforma Trabalhista no Brasil veio mimetizada pela expressão “modernização das relações de trabalho”, que, no nosso entendimento, visa atender a políticas macroeconômicas e de natureza neoliberal, as quais vêm sendo implementadas desde 1970 e afetam constantemente o mundo do trabalho (22 Krein JD, Oliveira RV, Filgueiras VA. As Reformas Trabalhistas: promessas e impactos na vida de quem trabalha. Caderno CRH. 2019;32(86):225-29. https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.33188
https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.3318...
), pois a formação clássica do trabalho como empregos se transformou radicalmente (33 Nardi H. Ética, trabalho e subjetividade. Rio Grande do Sul: UFGRS; 2006. 226p.). Nesse contexto, introduziram-se novas formas de relacionamento de trabalho, como os contratos temporários, a terceirização da mão de obra, as subcontratações, a sazonalidade das contratações, as remunerações por produtividade (33 Nardi H. Ética, trabalho e subjetividade. Rio Grande do Sul: UFGRS; 2006. 226p.).

A aprovação da Reforma Trabalhista tinha como justificativa principal a redução do desemprego e o combate à informalidade no mundo do trabalho. A redução do desemprego se daria pelo aumento de produtividade e competividade empresarial que a nova lei possibilitaria, dado que a contratação de pessoal seria mais ágil e com redução da carga tributária. Com isso, a economia do país voltaria a crescer. Todavia, um ano e meio após sua homologação, o que se observou foi aumento do desemprego e informalidade, estagnação da economia e ampliação da precarização do trabalho (11 Guimarães Junior SD, Silva EB. A Reforma Brasileira em Questão: reflexão contemporâneas em contexto de precarização social do trabalho. Rev Estud Organ Soc. 2020;7(18):117-163. https://doi.org/10.25113/farol.v7i18.5503
https://doi.org/10.25113/farol.v7i18.550...
-22 Krein JD, Oliveira RV, Filgueiras VA. As Reformas Trabalhistas: promessas e impactos na vida de quem trabalha. Caderno CRH. 2019;32(86):225-29. https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.33188
https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.3318...
).

No Brasil, os três primeiros anos de Reforma Trabalhista são atravessados pela pandemia de COVID-19, causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2). Nessa conjuntura pandêmica, os/as trabalhadores/as convivem: com a preocupação da instabilidade laboral, seja pela perda de emprego, seja pelos vínculos precários; e também com o temor da perda da vida pela contaminação com o vírus, sendo colocados/as diante do dilema entre morrer pelo vírus ou morrer de fome (44 Lucca, SR. Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado. Cadernos de Saúde Pública. 2020;36(9):e00237120. https://doi.org/10.1590/0102-311X00237120
https://doi.org/10.1590/0102-311X0023712...
).

O impacto sofrido na economia mundial pela pandemia também atingiu o Brasil. Em um país que adere a formas intensas de exploração do trabalho e precarização ilimitada, já era de se esperar consequências ainda mais catastróficas. Um dos resultados dessa adesão é o crescimento constante do número de desempregados e informais entre os brasileiros (44 Lucca, SR. Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado. Cadernos de Saúde Pública. 2020;36(9):e00237120. https://doi.org/10.1590/0102-311X00237120
https://doi.org/10.1590/0102-311X0023712...
). Na área da saúde, além dos riscos ocupacionais, os/as trabalhadores/as brasileiros/as ainda têm de lidar com a perda de direitos do trabalho promovida pela Reforma Trabalhista e pela recessão econômica, que favoreceu a extensão das várias formas de precarização e flexibilização do trabalho em enfermagem.

A necessidade de mão de obra para a assistência aos acometidos pela COVID-19 abriu muitos postos de trabalho em enfermagem, sendo que a inserção nesses empregos ocorreu por meio de contratos flexíveis e temporários para atender às flutuações dos leitos disponíveis. Nesse contexto, a Reforma Trabalhista foi o principal dispositivo legal que possibilitou a contratação de trabalhadores/as em enfermagem de modo intermitente, flexível, temporário e terceirizado para o suprimento da força de trabalho necessária ao funcionamento dos serviços de saúde no momento mais crítico da pandemia (55 Melo CMM, Mussi FC, Santos TA, Moraes MA. Pandemia da COVID-19: algo de novo no trabalho da enfermeira?. Rev Baiana Enferm [Internet]. 2020[citado 2022 Jan 24];35. Available from: https://periodicos.ufba.br/index.php/enfermagem/article/view/37479
https://periodicos.ufba.br/index.php/enf...
).

Diante dessa conjuntura, questiona-se: Quais são as repercussões da Reforma Trabalhista no trabalho em enfermagem no contexto da pandemia de COVID-19?

OBJETIVO

Refletir sobre as repercussões da Reforma Trabalhista no trabalho da enfermagem diante da pandemia de COVID-19 no Brasil.

MÉTODOS

O corpus teórico desta reflexão se dá no campo da sociologia do trabalho, especificamente nos estudos sobre precarização do trabalho, pautando-se nos constructos teóricos de Graça Druck e Ricardo Antunes. Também foram utilizados como aporte estudos do campo jurídico sobre a Reforma Trabalhista. Contribuiu também para esta reflexão a experiência dos autores no trabalho em serviços de saúde e na atuação sindical. Assim, o desenho deste artigo é o método reflexivo de pesquisa, que se baseia na prática profissional reflexiva apoiando-se na percepção de uma situação, com possibilidade de conduzir a novas ideias sobre o vivido (66 Fook, J. Developing Critical Reflection as a Research Method. In: Higgs J, Titchen A, Horsfall D, Bridges D. (eds). Creative spaces for qualitative researching: practice, education, work and society. vol 5. 2011. p. 55-64 https://doi.org/10.1007/978-94-6091-761-5_6
https://doi.org/10.1007/978-94-6091-761-...
).

O objeto da reflexão centrou-se nas repercussões da Reforma Trabalhista no trabalho em enfermagem durante a pandemia de COVID-19. A principal categoria de análise foi a flexibilização do trabalho e suas repercussões no vínculo de trabalho, na jornada de trabalho, no salário, na atuação sindical e na proteção ao emprego.

REFLEXÃO

Na conjuntura atual da economia, a desregulamentação dos mercados permanece como um dos principais problemas da crise econômica mundial. Entre esses mercados, encontra-se o do trabalho, que é utilizado pelo capitalismo como estratégia de superação de tal crise (11 Guimarães Junior SD, Silva EB. A Reforma Brasileira em Questão: reflexão contemporâneas em contexto de precarização social do trabalho. Rev Estud Organ Soc. 2020;7(18):117-163. https://doi.org/10.25113/farol.v7i18.5503
https://doi.org/10.25113/farol.v7i18.550...
-22 Krein JD, Oliveira RV, Filgueiras VA. As Reformas Trabalhistas: promessas e impactos na vida de quem trabalha. Caderno CRH. 2019;32(86):225-29. https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.33188
https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.3318...
).

Diante dessa realidade, o mundo do trabalho flexível também se modifica diariamente, e os trabalhadores/as precisam habituar-se a conviver com o receio da instabilidade laboral, que foi intensificada com o surgimento da pandemia de COVID-19.

A Reforma Trabalhista no Brasil foi oficializada por meio da Lei 13.467, de 13 de julho de 2017, que entrou em vigência em 11 de novembro de 2017, materializando um debate de pelo menos duas décadas travado por diferentes esferas da sociedade. De um lado, o governo e os empresários apresentaram a flexibilização das relações de trabalho como possibilidade de modernização. Do outro lado, as entidades sindicais apontaram a mesma flexibilização como impulsionadora da precarização nas relações de trabalho (11 Guimarães Junior SD, Silva EB. A Reforma Brasileira em Questão: reflexão contemporâneas em contexto de precarização social do trabalho. Rev Estud Organ Soc. 2020;7(18):117-163. https://doi.org/10.25113/farol.v7i18.5503
https://doi.org/10.25113/farol.v7i18.550...
).

Os movimentos para concretização da Reforma Trabalhista por parte do empresariado nacional, aliado a segmentos do Congresso, ocorreram sob a alegação de que a legislação trabalhista brasileira, em especial a CLT, estava ultrapassada e era uma das limitações ao desenvolvimento econômico do país (11 Guimarães Junior SD, Silva EB. A Reforma Brasileira em Questão: reflexão contemporâneas em contexto de precarização social do trabalho. Rev Estud Organ Soc. 2020;7(18):117-163. https://doi.org/10.25113/farol.v7i18.5503
https://doi.org/10.25113/farol.v7i18.550...
-22 Krein JD, Oliveira RV, Filgueiras VA. As Reformas Trabalhistas: promessas e impactos na vida de quem trabalha. Caderno CRH. 2019;32(86):225-29. https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.33188
https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.3318...
).

Ao analisar o documento “101 propostas de modernização trabalhista”, da Confederação Nacional da Indústria - CNI, publicado no Brasil em 2012, Druck(77 Druck G. A "legalização" da precarização, da flexibilização e da modernização do trabalho no Brasil. CONGRESSO ALAS, 29. As 101 propostas da Confederação Nacional da Indústria. Congresso Alas; 2013, Santiago, Chile.) considera que a argumentação da mais importante instituição patronal da indústria brasileira visa demolir o direito do trabalho no Brasil, pois defende o desmonte da CLT, julgada como não condizente com a modernidade das relações de trabalho - é um obstáculo à liberdade das empresas de aprofundar a flexibilização e a precarização do trabalho.

O Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho descreve que a Reforma Trabalhista, ao mesmo tempo que se fundamenta como “segurança jurídica” e condutora para a modernização das relações de trabalho, proporciona os meios para que as empresas regulem a demanda do trabalho à lógica empresarial, diminuindo os custos que garantem estabilidade e segurança ao trabalhador/a (22 Krein JD, Oliveira RV, Filgueiras VA. As Reformas Trabalhistas: promessas e impactos na vida de quem trabalha. Caderno CRH. 2019;32(86):225-29. https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.33188
https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.3318...
).

Além de possibilitar a legalidade para as empresas de não serem responsáveis pelos trabalhadores/as que contrata, a Reforma também estimula e legaliza a transformação do trabalhador em um empreendedor de si mesmo, responsável por assegurar e gerenciar sua sobrevivência em um mundo laboral que lhe retirará a já frágil rede de proteção social existente, criando, por consequência, uma nova figura de trabalho, fruto da flexibilização e da precarização, o trabalho just-in-time(11 Guimarães Junior SD, Silva EB. A Reforma Brasileira em Questão: reflexão contemporâneas em contexto de precarização social do trabalho. Rev Estud Organ Soc. 2020;7(18):117-163. https://doi.org/10.25113/farol.v7i18.5503
https://doi.org/10.25113/farol.v7i18.550...
-22 Krein JD, Oliveira RV, Filgueiras VA. As Reformas Trabalhistas: promessas e impactos na vida de quem trabalha. Caderno CRH. 2019;32(86):225-29. https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.33188
https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.3318...
).

Uma das repercussões da Reforma Trabalhista na qualidade de vida dos trabalhadores/as são as mudanças referentes às horas extraordinárias e banco de horas(11 Guimarães Junior SD, Silva EB. A Reforma Brasileira em Questão: reflexão contemporâneas em contexto de precarização social do trabalho. Rev Estud Organ Soc. 2020;7(18):117-163. https://doi.org/10.25113/farol.v7i18.5503
https://doi.org/10.25113/farol.v7i18.550...
-22 Krein JD, Oliveira RV, Filgueiras VA. As Reformas Trabalhistas: promessas e impactos na vida de quem trabalha. Caderno CRH. 2019;32(86):225-29. https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.33188
https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.3318...
). Após a reforma, foi retirado o caráter excepcional das horas extraordinárias e aberta a possibilidade de negociar a realização delas diretamente com os empregados. Dessa forma, a empresa detém a quantidade necessária de horas do/a trabalhador/a e as libera de acordo a disponibilidade dela e não conforme a necessidade daquele/a.

Assim, o/a trabalhador/a tem a sua jornada de trabalho prolongada, o que implica redução do seu tempo de descanso e de convívio social. Além disso, não há garantias do retorno monetário pelas horas excedentes trabalhadas, uma vez que a compensação pode ser realizada por banco de horas em até 18 meses.

Cabe ainda destacar outra perda imposta aos trabalhadores/as pela Reforma Trabalhista: a coibição da atuação sindical. Como exemplo, há o impacto provocado nas negociações coletivas de trabalho, já que, na Reforma Trabalhista, foram introduzidos 14 incisos no art. 611-A, fixando hipóteses em que a convenção coletiva e o acordo coletivo terão prevalência sobre a lei, entre elas, o enquadramento da insalubridade e a prorrogação da jornada em ambiente insalubre. Com isso, o predomínio do negociado sobre o legislado, na ausência de outras condições necessárias à plena realização do potencial das negociações coletivas, promove elevados riscos para os/as trabalhadores/as (11 Guimarães Junior SD, Silva EB. A Reforma Brasileira em Questão: reflexão contemporâneas em contexto de precarização social do trabalho. Rev Estud Organ Soc. 2020;7(18):117-163. https://doi.org/10.25113/farol.v7i18.5503
https://doi.org/10.25113/farol.v7i18.550...
-22 Krein JD, Oliveira RV, Filgueiras VA. As Reformas Trabalhistas: promessas e impactos na vida de quem trabalha. Caderno CRH. 2019;32(86):225-29. https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.33188
https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.3318...
).

No contexto de desmonte da legislação trabalhista brasileira, encontram-se os/as trabalhadores/as em enfermagem, o maior contingente de trabalhadores em saúde, que já conviviam com a situação de flexibilização e precarização do trabalho, potencializada com a Reforma Trabalhista. Estudos sobre o trabalho em Enfermagem no Brasil apontam que a precarização do trabalho em enfermagem se expressa pelos baixos salários, vínculos precários, alta rotatividade, ausência de perspectiva de ascensão, exposição a violência, discriminação e acidentes (88 Silva RM, Vieira LJES, Filho GC, Bezerra IC, Cavalcante NA, Borba FC, Aguiar, FAR. Precarização do mercado de trabalho de auxiliares e técnicos de Enfermagem no Ceará, Brasil. Rev Ciênc saúde coletiva. 2020;25(1):135-45. https://doi.org/10.1590/1413-81232020251.28902019
https://doi.org/10.1590/1413-81232020251...
).

Durante a pandemia, o processo de precarização do trabalho foi aprofundado e permaneceu evidenciado sob as configurações de vínculos frágeis (55 Melo CMM, Mussi FC, Santos TA, Moraes MA. Pandemia da COVID-19: algo de novo no trabalho da enfermeira?. Rev Baiana Enferm [Internet]. 2020[citado 2022 Jan 24];35. Available from: https://periodicos.ufba.br/index.php/enfermagem/article/view/37479
https://periodicos.ufba.br/index.php/enf...
). A crescente necessidade de trabalhadores/as para promover a assistência de enfermagem aos pacientes devido ao avanço da pandemia no país fizeram com que as instituições públicas e privadas realizassem processos de recrutamentos, seleção e contratação de profissionais em enfermagem de forma flexível, por meio de contratos temporários e pagamento dia/plantão como uma prática comum no cenário atual, assim como novos contratos trabalhistas que acordassem jornadas de horas extras não financeiramente remuneradas, sendo pagas pelo empregador em formato de banco de horas(55 Melo CMM, Mussi FC, Santos TA, Moraes MA. Pandemia da COVID-19: algo de novo no trabalho da enfermeira?. Rev Baiana Enferm [Internet]. 2020[citado 2022 Jan 24];35. Available from: https://periodicos.ufba.br/index.php/enfermagem/article/view/37479
https://periodicos.ufba.br/index.php/enf...
,99 Sobreira de Souza LC, Araujo TC. Relações de trabalho em tempos de pandemia: um estudo sobre os limites da atuação do Estado na flexibilização dos direitos trabalhistas. ICD. 2021;8(3):81-95. https://doi.org/10.17564/2316-381X.2021v8n3p81-95
https://doi.org/10.17564/2316-381X.2021v...
).

Os vínculos são frágeis, não há estabilidade no emprego, por isso os trabalhadores/as se submetem às condições laborais inadequadas, pois vivenciam a insegurança da manutenção do emprego. A insegurança por medo da perda do emprego impeliu os trabalhadores/as em enfermagem a permanecerem em atividade laboral mesmo sem ter o equipamento de proteção individual (EPI) apropriado e/ou acessível em quantidade satisfatória, o que culmina na exposição aumentada deles/as aos riscos ocupacionais durante a pandemia de COVID-19, cujo principal veículo de disseminação são aerossóis. Consequentemente, muitos profissionais de saúde são acometidos.

Nesse cenário, foi autorizada, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), a flexibilização no uso de EPIs descartáveis, permitindo que fossem reutilizados. Assim, trabalhadores/as perderam a garantia da efetividade de seus EPIs contra a contaminação pelo coronavírus, levando ao adoecimento por COVID-19(55 Melo CMM, Mussi FC, Santos TA, Moraes MA. Pandemia da COVID-19: algo de novo no trabalho da enfermeira?. Rev Baiana Enferm [Internet]. 2020[citado 2022 Jan 24];35. Available from: https://periodicos.ufba.br/index.php/enfermagem/article/view/37479
https://periodicos.ufba.br/index.php/enf...
,99 Sobreira de Souza LC, Araujo TC. Relações de trabalho em tempos de pandemia: um estudo sobre os limites da atuação do Estado na flexibilização dos direitos trabalhistas. ICD. 2021;8(3):81-95. https://doi.org/10.17564/2316-381X.2021v8n3p81-95
https://doi.org/10.17564/2316-381X.2021v...
).

Durante a pandemia, o governo federal lançou medidas emergenciais que aprofundaram a flexibilização do trabalho. Um exemplo foi a publicação da Medida Provisória (MP) nº 927/2020, que, no Artigo de nº 14, permite o prolongamento da jornada de trabalho dos profissionais de saúde contratados em regime celetista, com a adoção de escalas de horas suplementares que variam da 13ª até a 24ª hora do intervalo interjornada, prevendo a compensação da carga horária suplementar por meio de banco de horas ou hora extra, dentro de um prazo de até 18 meses (99 Sobreira de Souza LC, Araujo TC. Relações de trabalho em tempos de pandemia: um estudo sobre os limites da atuação do Estado na flexibilização dos direitos trabalhistas. ICD. 2021;8(3):81-95. https://doi.org/10.17564/2316-381X.2021v8n3p81-95
https://doi.org/10.17564/2316-381X.2021v...
). Essa MP, em seu artigo nº 29, considerava, a princípio, o adoecimento por COVID-19 como doença não ocupacional, mas, depois, o contrário foi reconhecido. Caso esse artigo não fosse revogado, isso significaria a invisibilidade do adoecimento e morte dos/as trabalhadores/as em enfermagem decorrentes das condições precárias de trabalho no contexto pandêmico.

Outra medida de flexibilização foi a edição da MP nº 936, convertida na Lei 14020/2020, que autoriza a suspensão temporária de contrato de trabalho. As enfermeiras/os que executam tarefas de cunho gerencial (auditoria, controle de leitos, educação permanente, entre outras) foram as mais afetadas, com redução de salário e jornada de trabalho, desvalorizando um trabalho indispensável para uma contenção pandêmica (99 Sobreira de Souza LC, Araujo TC. Relações de trabalho em tempos de pandemia: um estudo sobre os limites da atuação do Estado na flexibilização dos direitos trabalhistas. ICD. 2021;8(3):81-95. https://doi.org/10.17564/2316-381X.2021v8n3p81-95
https://doi.org/10.17564/2316-381X.2021v...
).

Com o avanço da pandemia, surgiram ainda mais formas de precarização e flexibilização dos/as trabalhadores/as em enfermagem. O governo federal lançou o programa de voluntariado “O Brasil conta comigo”, destinado a recrutar força de trabalho, inclusive de estudantes do último ano dos cursos de Enfermagem, Fisioterapia e Farmácia, para o enfrentamento da pandemia de COVID-19. Segundo a OMS, no Brasil, a densidade de enfermeiras é de 74/10 mil habitantes e está acima do limite de recursos humanos em enfermagem necessários para a assistência à população, sem perspectivas de escassez (55 Melo CMM, Mussi FC, Santos TA, Moraes MA. Pandemia da COVID-19: algo de novo no trabalho da enfermeira?. Rev Baiana Enferm [Internet]. 2020[citado 2022 Jan 24];35. Available from: https://periodicos.ufba.br/index.php/enfermagem/article/view/37479
https://periodicos.ufba.br/index.php/enf...
,1010 World Health Organization (WHO). Global Health Observatory Data Repository [Internet]. Geneva: WHO; 2020[cited 2022 Jan 28]. Available from: https://apps.who.int/gho/data/node.main.HWFGRP_0040?lang=en
https://apps.who.int/gho/data/node.main....
).

Isso significa que, ao contrário da realidade observada em países europeus e Estados Unidos da América, não há necessidade de força de trabalho voluntária para a assistência no cenário pandêmico. O apelo ao trabalho voluntário durante a pandemia de COVID-19 remonta aos ideais caritativos, o que é claramente oportunista, dado que existe força de trabalho suficiente para ser contratada. A desvalorização do trabalho em enfermagem também foi revelada pelos processos seletivos realizados no contexto pandêmico em que o salário oferecido para uma carga horária de 36 horas semanais era inferior a R$ 2.000 (dois mil reais)(55 Melo CMM, Mussi FC, Santos TA, Moraes MA. Pandemia da COVID-19: algo de novo no trabalho da enfermeira?. Rev Baiana Enferm [Internet]. 2020[citado 2022 Jan 24];35. Available from: https://periodicos.ufba.br/index.php/enfermagem/article/view/37479
https://periodicos.ufba.br/index.php/enf...
).

Para trabalhadores/as do campo da enfermagem, após o período das mudanças legislativas, não há evidências de que a flexibilização das leis trabalhistas trouxe resultados favoráveis para o crescimento econômico, redução das desigualdades e menores taxas de desemprego. Contudo, há muitas evidências de que a diminuição da proteção ao emprego agrava a proliferação dos empregos precários, aumenta a desigualdade e piora a segmentação do mercado de trabalho (11 Guimarães Junior SD, Silva EB. A Reforma Brasileira em Questão: reflexão contemporâneas em contexto de precarização social do trabalho. Rev Estud Organ Soc. 2020;7(18):117-163. https://doi.org/10.25113/farol.v7i18.5503
https://doi.org/10.25113/farol.v7i18.550...
-22 Krein JD, Oliveira RV, Filgueiras VA. As Reformas Trabalhistas: promessas e impactos na vida de quem trabalha. Caderno CRH. 2019;32(86):225-29. https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.33188
https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.3318...
).

Tais contradições narrativas entre reformas legislativas que atingem as relações de trabalho e a reprodução social brasileira nos remete ao conto “O Rei da Belíndia: uma fábula para tecnocratas”, de Edmar Bacha (1976), em que o autor cria um país fictício, resultado da junção entre Bélgica e Índia, e compara suas ambiguidades e contradições: emprega impostos altos desse primeiro, que é rico e pequeno, mas vive a realidade social do segundo, pobre e grande. Assim, estamos revivendo a realidade brasileira da década de 1970, quando o conto foi escrito, com reformas e políticas econômicas que aguçam a concentração de renda, a desigualdade, a pobreza, a iniquidade, a precarização, a informalidade e a miséria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As transformações resultantes das políticas macroeconômicas e de natureza neoliberal vêm acontecendo e afetando o mundo do trabalho. Entre as consequências dessas transformações, encontra-se a Reforma Trabalhista no Brasil, concluída no ano de 2017, que trouxe prejuízos à classe trabalhadora por meio da legalização da fragmentação das relações de trabalho, favorecendo as diversas formas de flexibilização e precarização do trabalho.

Em meio à crise sanitária mundial provocada pela pandemia de COVID-19, de proporção não prevista, houve uma intensificação das formas de flexibilização do trabalho. Dentro desse contexto, ocorre a potencialização da vulnerabilidade dos/as trabalhadores/as em enfermagem por meio de contratos flexíveis apoiados em regulamentações governamentais que aprofundaram a precarização do trabalho.

A fragilidade da situação laboral dos/as trabalhadores/as em enfermagem durante a pandemia de COVID-19 levou esses/as profissionais a se submeterem a situações de precarização do trabalho representadas por redução salarial, falta de EPI, prolongamento de jornadas de trabalhos por meios de contratos terceirizados, temporários, intermitentes e subcontratações. Isso aumenta a exposição deles/as aos riscos ocupacionais que, inevitavelmente, já se encontram agravados pelo contexto pandêmico.

Sabe-se que a organização política das categorias da enfermagem é a via para o enfrentamento desse cenário. Apesar de o contexto pandêmico ter demonstrado a importância do trabalho em enfermagem, dando novo ânimo às lutas da categoria (como Piso Salarial e Jornada de 30 horas), é preciso que o enfrentamento da precarização e flexibilização do trabalho se torne pauta orgânica da organização política dos/as trabalhadores/as por intermédio de suas entidades sindicais, com base em relações de união e solidariedade.

AGRADECIMENTO

Agradecimento à Secretaria da Saúde do Estado da Bahia.

REFERENCES

  • 1
    Guimarães Junior SD, Silva EB. A Reforma Brasileira em Questão: reflexão contemporâneas em contexto de precarização social do trabalho. Rev Estud Organ Soc. 2020;7(18):117-163. https://doi.org/10.25113/farol.v7i18.5503
    » https://doi.org/10.25113/farol.v7i18.5503
  • 2
    Krein JD, Oliveira RV, Filgueiras VA. As Reformas Trabalhistas: promessas e impactos na vida de quem trabalha. Caderno CRH. 2019;32(86):225-29. https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.33188
    » https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.33188
  • 3
    Nardi H. Ética, trabalho e subjetividade. Rio Grande do Sul: UFGRS; 2006. 226p.
  • 4
    Lucca, SR. Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado. Cadernos de Saúde Pública. 2020;36(9):e00237120. https://doi.org/10.1590/0102-311X00237120
    » https://doi.org/10.1590/0102-311X00237120
  • 5
    Melo CMM, Mussi FC, Santos TA, Moraes MA. Pandemia da COVID-19: algo de novo no trabalho da enfermeira?. Rev Baiana Enferm [Internet]. 2020[citado 2022 Jan 24];35. Available from: https://periodicos.ufba.br/index.php/enfermagem/article/view/37479
    » https://periodicos.ufba.br/index.php/enfermagem/article/view/37479
  • 6
    Fook, J. Developing Critical Reflection as a Research Method. In: Higgs J, Titchen A, Horsfall D, Bridges D. (eds). Creative spaces for qualitative researching: practice, education, work and society. vol 5. 2011. p. 55-64 https://doi.org/10.1007/978-94-6091-761-5_6
    » https://doi.org/10.1007/978-94-6091-761-5_6
  • 7
    Druck G. A "legalização" da precarização, da flexibilização e da modernização do trabalho no Brasil. CONGRESSO ALAS, 29. As 101 propostas da Confederação Nacional da Indústria. Congresso Alas; 2013, Santiago, Chile.
  • 8
    Silva RM, Vieira LJES, Filho GC, Bezerra IC, Cavalcante NA, Borba FC, Aguiar, FAR. Precarização do mercado de trabalho de auxiliares e técnicos de Enfermagem no Ceará, Brasil. Rev Ciênc saúde coletiva. 2020;25(1):135-45. https://doi.org/10.1590/1413-81232020251.28902019
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232020251.28902019
  • 9
    Sobreira de Souza LC, Araujo TC. Relações de trabalho em tempos de pandemia: um estudo sobre os limites da atuação do Estado na flexibilização dos direitos trabalhistas. ICD. 2021;8(3):81-95. https://doi.org/10.17564/2316-381X.2021v8n3p81-95
    » https://doi.org/10.17564/2316-381X.2021v8n3p81-95
  • 10
    World Health Organization (WHO). Global Health Observatory Data Repository [Internet]. Geneva: WHO; 2020[cited 2022 Jan 28]. Available from: https://apps.who.int/gho/data/node.main.HWFGRP_0040?lang=en
    » https://apps.who.int/gho/data/node.main.HWFGRP_0040?lang=en

Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Ana Fátima Fernandes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2022
  • Aceito
    02 Maio 2022
Associação Brasileira de Enfermagem SGA Norte Quadra 603 Conj. "B" - Av. L2 Norte 70830-102 Brasília, DF, Brasil, Tel.: (55 61) 3226-0653, Fax: (55 61) 3225-4473 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: reben@abennacional.org.br