Ser ético e bioético no quotidiano da atenção primária à saúde: noções do enfermeiro

RESUMO

Objetivos:

compreender as noções de ética e bioética e como ser ético e bioético no quotidiano da Atenção Primária à Saúde, a partir do olhar do profissional enfermeiro.

Métodos:

Estudo de Casos Múltiplos Holístico-qualitativo, fundamentado na Sociologia Compreensiva do Quotidiano, com 54 participantes.

Resultados:

apresenta a categoria Ser ético e bioético no quotidiano da APS: noções do enfermeiro e duas subcategorias. O ser ético e bioético perpassa por um eu subjetivo e abstrato, cujos medos, anseios e preocupações entrelaçam-se às dimensões humanas e profissionais no quotidiano do trabalho e da relação pessoal-profissional. As noções de ética e bioética emergem da subjetividade, das relações estabelecidas, experiências vividas e ações cotidianas dos enfermeiros essenciais à profissão, ao profissional e ao indivíduo a ser cuidado.

Considerações Finais:

as noções e atitudes éticas e bioéticas são essenciais às ações assistenciais, gerenciais e organizativas, ao cuidado à saúde, e à segurança de usuários e profissionais.

Descritores:
Ética; Bioética; Ética em Enfermagem; Atenção Primária à; Saúde; Atividades Cotidianas

ABSTRACT

Objectives:

to understand the perceptions of ethics and bioethics and how to be ethical and bioethical in daily life of Primary Health Care, from the perspective of nurses.

Methods:

this is a Holistic-qualitative Multiple Case Study, based on Comprehensive Everyday Sociology, with 54 participants.

Results:

two subcategories and the category Being ethical and bioethical in daily life of PHC: nurses’ perceptions emerged. The ethical and bioethical being permeates a subjective and abstract self, whose fears, anxieties and concerns are intertwined with the human and professional dimensions in daily work and in personal-professional relationship. Ethics and bioethics perceptions emerge from subjectivity, established relationships, lived experiences and daily actions of nurses essential to the profession, professionals and individuals to be cared for.

Final Considerations:

ethical and bioethical perceptions and attitudes are essential to care, management and organizational actions, health care, and the safety of users and professionals.

Descriptors:
Ethics; Bioethics; Ethics, Nursing; Primary Health Care; Activities of Daily Living

RESUMEN

Objetivo:

comprender las nociones de ética y bioética y cómo ser ético y bioético en la vida diaria de la Atención Primaria de Salud, desde la perspectiva del profesional de enfermería. Método: Estudio de caso múltiple holístico-cualitativo, basado en la sociología integral del día a día, con 54 participantes.

Resultados:

presenta la categoría Ser ético y bioético en la vida diaria de la APS: nociones del enfermero y dos subcategorías. El ser ético y bioético impregna un yo subjetivo y abstracto, cuyos miedos, ansiedades y preocupaciones se entrelazan con las dimensiones humana y profesional en el trabajo diario y en la relación personal-profesional. Las nociones de ética y bioética surgen de la subjetividad, de las relaciones establecidas, de las vivencias y acciones cotidianas de los enfermeros esenciales para la profesión, el profesional y el individuo a cuidar.

Consideraciones finales:

las nociones y actitudes éticas y bioéticas son fundamentales para el cuidado, la gestión y las acciones organizativas, la atención de la salud y la seguridad de los usuarios y profesionales.

Descriptores:
Ética; Bioética; Ética en Enfermería; Atención Primaria de Salud; Actividades Cotidianas

INTRODUÇÃO

A atenção à saúde fundada nos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) da universalidade do acesso aos serviços, da integralidade e equidade, se constitui como direito dos cidadãos brasileiros há mais de três décadas. Ao longo desse período, a Atenção Primária à Saúde (APS) ganhou protagonismo guiando reestruturações, transformações e reflexões em torno da formulação das políticas de saúde, na formação profissional e nas práticas cotidianas, onde a dimensão ética e bioética do trabalho em saúde torna-se imperativa(¹). Neste pensar, merece distinção no quotidiano de trabalho na APS as competências, ações e eficácia do exercício profissional do enfermeiro.

A Enfermagem é conhecida pela interdisciplinaridade de seus conhecimentos, ações, legislações e preceitos éticos, que se voltam para a vida, a saúde, a assistência e o cuidado de usuários-famílias-comunidade. O exercício profissional não engloba somente a heteronomia prática do fazer quotidiano, mas, também a razão, a consciência, os valores e responsabilidades subjetivas, individuais, intrínsecas ao ser enquanto indivíduo, pessoa e profissional(²).

Precisa-se, ainda, considerar as dimensões éticas e bioéticas que envolvem o ser profissional como aquelas que se ligam aos conhecimentos, noções, emoções e interações do profissional para com o mundo e as dimensões inerentes ao agir profissional, que integram os processos de consciência, empatia, responsabilidades, tomada de decisão com autonomia, coragem e discernimento(³), articuladas aos valores, obrigações e comportamentos do Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem (CEPE)(⁴). Entendendo que as obrigações e deveres prescritos nos denominados Códigos de Ética são da ordem da moral e instrumentalizados pela deontologia, portanto elencam o rol de deveres profissionais.

Sobre esta perspectiva, o ser ético e bioético perpassa pela vida pessoal e profissional dos enfermeiros, por suas noções subjetivas, sociais, humanas e coletivas indissociáveis ao caráter humano e pelas experiências, escolhas e representações que o indivíduo e profissional detém a priori. Assim, além dos conhecimentos tecnocientíficos, o profissional de enfermagem possui uma identidade e um compromisso ético, bioético, civil e penal, no que se refere à prática, trabalho, empoderamento e ciência profissional(³,⁵).

Um estudo realizado no Canadá descreveu a prática cotidiana dos enfermeiros como bioeticamente desafiadora, uma constante luta pessoal que envolve a “consciência do senso pessoal e moral de si mesmo, de acordo com o senso profissional”(⁶). Nessa premissa, ser ético e bioético envolve a autopercepção de si e de suas capacidades subjetivas e um autoconhecimento profissional em suas responsabilidades objetivas, em uma abordagem que vai além daquilo que é bom, para aquilo que também é certo(⁶).

Torna-se fundamental o desenvolvimento de competências, ações e reflexões profissionais favoráveis ao esclarecimento e amenização das dificuldades e desafios quotidianos na APS(⁷). Destarte, o quotidiano pode ser compreendido como formas do viver e conviver no dia a dia manifestas em desejos, valores, crenças e no imaginário, determinando o ser saudável e o adoecer(⁸).

Destarte, questiona-se: quais as noções de ética e bioética que fundamentam a atuação do enfermeiro no quotidiano da APS? Como é ser ético e bioético no quotidiano da APS na percepção do enfermeiro?

OBJETIVOS

Compreender as noções de ética e bioética e como ser ético e bioético no quotidiano da APS, a partir do olhar do profissional enfermeiro.

MÉTODOS

Referencial teórico-metodológico e tipo de estudo

Refere-se a um Estudo de Casos Múltiplos Holístico-qualitativo(⁹), fundamentado no referencial teórico da Sociologia Compreensiva do Quotidiano(¹⁰), originário de uma Dissertação de Mestrado. A Sociologia Compreensiva do Quotidiano objetiva interpretar e compreender o viver individual e coletivo das pessoas em sua razão sensível e imaginária. “A compreensão não busca, em primeiro lugar, a causa e o efeito, não possui a quimera do porquê. Através do como, limitando-se à apresentação das coisas, ela se empenha em depreender a significação interna dos fenômenos observados”(¹¹).

Este estudo foi conduzido de acordo com as diretrizes do Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ).

Cenário do estudo

O universo de estudo integrou unidades da APS de duas capitais brasileiras: Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais (MG), com 2.375.151 habitantes e 78,67% de cobertura populacional pela ESF; e a capital do estado de Santa Catarina (SC), Florianópolis, com 421.240 habitantes e 89,53% de cobertura populacional pela ESF.

Procedimentos metodológicos

A pesquisa teve como proposta realizar um estudo de caso individual em cada capital. Os dois casos foram definidos pelos cenários do estudo, configurando um estudo de casos múltiplos holístico(⁹), com uma única unidade de análise: “problemas éticos e bioéticos vivenciados por enfermeiros no quotidiano da APS”. Cada caso constitui um estudo completo, posterior à análise do primeiro caso foi replicado o segundo caso com a mesma unidade de análise, em busca de evidências convergentes ou divergentes(⁹).

Participaram, voluntariamente, da pesquisa 54 enfermeiros em atuação na APS das duas capitais brasileiras. Foi elaborada uma lista das unidades de APS/ESF por meio de sorteio aleatório que serviu de guia para a coleta de dados. Em cada um dos dois casos foram visitadas 15 unidades de APS/ESF para realização das entrevistas, até a saturação que ocorreu no 54º enfermeiro entrevistado, interrompendo assim a coleta de dados. Foram critérios de inclusão: enfermeiros que atuam nas unidades de APS de Belo Horizonte e Florianópolis, por um período mínimo de seis meses. Foram critérios de exclusão: enfermeiros afastados do trabalho ou em férias no período da coleta de dados.

Segundo os critérios da pesquisa qualitativa, não foi determinado um número exato de respondentes. O universo dos enfermeiros(as) das 30 unidades de saúde, que foram campo de pesquisa nos dois cenários deste estudo, totalizava 94. Em Florianópolis, dos enfermeiros que foram abordados (28), participaram 23 e cinco enfermeiras recusaram-se a participar do estudo; uma enfermeira se encontrava de férias. No município de Belo Horizonte, considerando os enfermeiros que foram convidados a participar (43), totalizaram 31 participantes deste estudo, sendo que uma enfermeira recusou-se e onze enfermeiros não puderam participar da pesquisa devido à elevada demanda de trabalho nos dias previamente agendados para a coleta de dados; duas enfermeiras se encontravam de férias e duas de atestado médico. Os demais enfermeiros, de ambos os casos, não foram abordados devido à saturação dos dados ser confirmada no 54º entrevistado e ser encerrada a coleta de dados.

Fonte de dados

Como fonte de evidências dos dados, utilizou-se a entrevista individual aberta e as notas de campo (NC).

A entrevista individual aberta com roteiro semiestruturado abordou as características dos participantes da pesquisa, a segurança do profissional enfermeiro e os problemas éticos e bioéticos na APS e se baseou nas questões: Como você percebe a sua atuação frente às práticas cotidianas na APS? Como você se sente para atuar no contexto da APS considerando as suas práticas e a sua segurança profissional para desempenhar as atribuições de enfermeiro? O que você compreende por Ética e Bioética? Você já participou de alguma capacitação sobre ética e bioética no contexto da APS? Se sim, me descreva como foi. O que você entende por problemas éticos e bioéticos que possam permear o ambiente de trabalho na APS? Em sua opinião, quais são os maiores problemas éticos e bioéticos que podem ser enfrentados no contexto da APS? Você deseja acrescentar algo sobre a segurança do profissional enfermeiro para atuação na APS e sobre os problemas éticos e bioéticos na APS? (Espaço aberto para o informante). A priori, foi realizado um pré-teste do roteiro de entrevista, sob a orientação da pesquisadora responsável.

As NC foram utilizadas para fins operacionais de desenvolvimento da pesquisa, descrevendo características peculiares dos cenários do estudo, das equipes, das unidades de APS/ESF e da coleta de dados, sendo analisadas e incorporadas ao texto deste artigo.

Estabeleceu-se para discussão a Portaria n^o. 2436, de 21 de setembro de 2017 (PNAB/2017), com fins de análise das experiências cotidianas segundo as atribuições do enfermeiro e as atribuições comuns aos membros da equipe e o Código de Ética dos Profissionais da Enfermagem (CEPE).

Coleta e organização dos dados

A coleta de dados em Florianópolis ocorreu em agosto de 2018, em Belo Horizonte foi nos meses de maio e junho de 2019. A entrevista foi conduzida pela pesquisadora, realizada segundo a disponibilidade do participante e em sala reservada na unidade de saúde. A duração média da entrevista foi de 17 minutos com os participantes de Belo Horizonte e de 12 minutos com os de Florianópolis.

A entrevista foi gravada, validada depois de realizada pela audição do arquivo digital pelo participante, para ciência e liberdade de autorização de uso dos dados na íntegra ou ter a opção de correção. Vale ressaltar que os 54 participantes consentiram a utilização dos dados da sua entrevista em sua totalidade. A transcrição das entrevistas na íntegra preservou a fidedignidade das informações.

A coleta foi encerrada quando se constatou a saturação dos dados em cada um dos casos deste estudo, isto é, quando se obteve um número suficiente de informações replicadas, configurando “a replicação literal dos dados”(⁹).

Análise dos dados

A análise dos dados da pesquisa foi fundamentada no referencial de Bardin(¹²) segundo a técnica da Análise de Conteúdo Temática, em consonância ao referencial metodológico de estudo de Casos Múltiplos Holístico-Qualitativo(⁹). Originaram-se três categorias temáticas: Ser ético e bioético no quotidiano da APS: noções do enfermeiro, abordada neste artigo; Segurança do profissional enfermeiro e problemas éticos e bioéticos vivenciados na APS; Ser enfermeiro no quotidiano da APS: o fazer, aprender e o conviver.

Tornou-se pertinente apreender-se da visão ética aplicada como Hermenêutica Crítica fundamentada na filosofia kantiana(¹³) e na visão da Bioética Cotidiana de Giovanni Berlinguer(¹⁴) para a interpretação e discussão dos resultados deste estudo.

Aspectos éticos

A pesquisa foi desenvolvida considerando as orientações da Resolução n^o 510, de 07 de abril de 2016 e da Resolução do Conselho Nacional de Saúde n^o 466, de 12 de dezembro de 2012, que consideram o respeito pela dignidade humana e a proteção devida aos participantes das pesquisas científicas. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi assinado em duas vias pelo participante e pela pesquisadora responsável. Após as aprovações do projeto sob o Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São João del-Rei, Campus Centro-Oeste e do Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte iniciou-se a coleta de dados. A entrada em campo de pesquisa ocorreu após autorização das secretarias municipais de saúde. Utilizou-se de identificação alfanumérica E1, E2, E3... (“E” de entrevistado e a numeração sequencial conforme ordem de realização das entrevistas) para garantia do anonimato do participante da pesquisa.

RESULTADOS

A apresentação dos resultados se configura em uma categoria Ser ético e bioético no quotidiano da APS: noções do enfermeiro, que intitula este artigo, e em duas subcategorias: Ser ético e bioético e Noções de Ética e Bioética.

A subcategoria Ser ético e bioético desvela os princípios intrínsecos da Ética e da Bioética, que permeiam o quotidiano do enfermeiro enquanto pessoa, indivíduo, sujeito e profissional.

O ser ético e bioético é dotado de um eu sujeito, profissional e humano. Na dimensão sujeito, perpassamos por um eu subjetivo e abstrato, cujos medos, anseios e preocupações influenciam seu quotidiano, o ambiente e ambiência, a relação pessoal-profissional e o trabalho. Articula a dimensão do humano dotado de consciência, valores, vontades, deveres e responsabilidades que entrelaçam a dimensão profissional nas ações cotidianas, a tomada de decisão Ética e Bioética perante as necessidades de cada usuário/família/comunidade, considerando o trabalho em equipe:

Eu acho que a gente faz além do que deveria. Faz coisas que não competem à Enfermagem, até me arriscando, mas é um meio da gente poder sobreviver. A prescrição, assim, eu já deixo tudo mastigado, o médico só tem que carimbar a receita. Tipo amoxilina para um ouvido infeccionado e ele nem vai lá ver o ouvido infeccionado? Ele confia? Como? Mas é uma coisa que não é nossa e que acaba aumentando a nossa demanda. (E12)

Às vezes a gente tem que priorizar serviço e deixar de fazer alguma coisa que é da nossa competência, porque a responsabilidade técnica é nossa e, às vezes, você vê acontecer erros no trabalho do técnico porque você não teve tempo de estar acompanhando. (E44)

A subcategoria Noções de Ética e Bioética traz as experiências do fazer e conhecer na voz dos enfermeiros.

Em âmbito coletivo, os 54 enfermeiros desta pesquisa trouxeram a Ética como algo abstrato e intrínseco a cada ser humano, relacionando-a às noções de moral, consciência, experiência e valores perante a esfera biopsicossocial que envolve a profissão e o profissional, as ações e o indivíduo a ser cuidado. Mas também há referência à moral deontológica ao apresentar uma noção voltada para o código profissional, que é do âmbito deontológico e não da ética:

Eu entendo que é você atuar de uma forma próxima ao que você considera correto. Então, assim, o que você considera correto e o que a instituição ou que aquele contexto traz de cuidado. Então, assim, a questão de preservar mesmo o sigilo, de preservar a integridade da pessoa, da questão mesmo de caráter, mais nesse sentido, em relação ao cuidado do ser humano. (E25)

Ética é você exercer a sua profissão de acordo com o seu código profissional, respeitando o indivíduo com todas as suas características. (E28)

Ética, eu entendo que é aquilo que eu trago do trabalho, do que eu aprendi, diferente da moral, que é aquilo que a gente aprende no conjunto, que é o todo, que é o da vida, que são os valores. A Ética é aquilo que a universidade me ajudou a formar, que eu vou vendo no dia a dia o quanto impacta na vida do outro: uma fala mal dita, uma coisa mal escrita ou mal registrada. Então eu entendo a Ética como esse momento, que é inerente ao ser humano, para a gente viver em comunidade, principalmente no meio profissional, então, assim, é super necessário, não é? Porque a moral vai dizer aquilo que eu devo ou não devo, assim, mas é mais ligado aos valores. Ética é o que deve ser feito, o que está no meu regimento, no meu código de ética. (E38)

Referindo-se à Bioética, os enfermeiros trouxeram-na como a ética aplicada à vida, que envolve os aspectos básicos, decisórios, limítrofes, seguros à vida e saúde dos indivíduos e famílias:

A Bioética seria aplicada à vida, não é? Bioética é tudo que nós fazemos na saúde que envolve aspectos decisórios, que podem fazer mal para alguma outra pessoa, especialmente que a pessoa possa escolher, não é? Então tu tens a ética de expor todas as possibilidades de um tratamento para um paciente. (E1)

E a Bioética está dentro do que a gente pode ou não fazer, dentro da sua capacidade, igual no caso do enfermeiro, eu tenho um limite, não é? Para ser feito dentro do que eu posso, do que eu tenho competência para fazer. (E24)

A Bioética é a relação do conhecimento científico com a ética, dos problemas relacionados à saúde dele, juntamente com a ética profissional. (E31)

A Bioética, eu acho que é mais ligado a vida, não é? Ao que é do ser humano, que tanto nos traz questões hoje. Hoje, a gente não consegue talvez uma escuta qualificada do paciente, eu não tenho lugar para atender esse paciente na hora certa, no lugar correto, é tudo com o tempo contado. Hoje, a gente lida muito com dados, mas ao mesmo tempo é um ser humano, então eu preciso ter um número alto, ‘mais’ é uma coisa mais palpável, algo mais real, então eu acho que a Bioética passa por aí. (E38)

Salienta-se que as noções de ética e bioética assumidas pelos enfermeiros assemelham-se em ambos os cenários. Dos 54 enfermeiros entrevistados, cinco tiveram dificuldades em explanar sobre Ética e 14 enfermeiros sobre Bioética.

A pesquisa também revelou que os enfermeiros deste estudo tiveram contato com os conteúdos éticos e bioéticos nos anos iniciais da graduação, mesmo assim, com enfoque temático na área hospitalar:

Durante a graduação, teve um ou outro curso onde havia palestras nesse sentido. Depois da graduação, não. Quando eu participei, teve dois cursos, eu lembro que eu fiz com esse tema, principalmente relacionado à eutanásia/distanásia, porque na graduação, acaba tendo um foco hospitalar maior, por exemplo, uma aula de quatro horas, dentro de um curso maior que levava a semana toda [...] porque é uma coisa que realmente não é muito trabalhada, a gente vê a legislação na universidade como algo muito enfadonho e fora da realidade, algo muito teórico. E, agora, depois de formados, a gente vivencia essa realidade, então trazer de volta, reler, rediscutir seria um momento mais propício agora. (E1)

Quando eu comecei a fazer a faculdade, por isso que eu acho que eu não sei falar disso. Eu lembro que eu tinha ido num curso sobre Ética e Bioética, mas foi na universidade, bem lá no comecinho e depois nunca mais. É um tema que eu sinceramente desconheço. (E13)

Dos 54 enfermeiros, apenas 10 tiveram algum contato com os temas Ética e Bioética após a graduação:

Ah! Eu já participei [...] assim, não era uma capacitação, a palestra era sobre outra coisa, mas teve uma introdução muito interessante sobre Ética e Bioética mostrando assim: hoje em dia, no celular é comum você tirar foto. Se você tira foto do paciente e você está na Unidade de Saúde, isso é muito perigoso. Então isso foi abordado naquela capacitação, mas não foi uma capacitação específica sobre isso. (E4)

Faz muito tempo, eu me lembro que foi algo que falava em como lidar com a vida. É o processo que o profissional tem de lidar com a vida respeitando os princípios de todo o ser. Foi oferecido pelo estado ou pela prefeitura, não me lembro bem. (E44)

Os enfermeiros entrevistados salientam, ainda, a importância e a necessidade de discussão, treinamentos, palestras e capacitações que abordem a Ética e a Bioética na APS:

As discussões sobre a ética na Atenção Primária estão bem defasadas e seria um tema bem importante para trabalharmos, porque sempre surgem dúvidas [...]. (E1)

Nunca teve uma capacitação que falasse sobre Ética e Bioética. Deveria ter, porque a gente percebe que realmente têm alguns problemas assim de sigilo profissional, principalmente com a equipe. (E9)

No quotidiano de trabalho da APS, o eu enfermeiro, sujeito e humano, une-se ao ethos profissional por razões individuais e coletivas capazes de exteriorizar uma ação e um agir. Dessa maneira, é a partir das singularidades, significados, noções, experiências e vivências que os enfermeiros configuram noções do ser ético, da Ética e da Bioética (NC).

Figura 1
Ser ético e bioético no quotidiano da Atenção Primária à Saúde

A figura 1 apresenta a síntese dos resultados do ser ético e bioético no quotidiano da APS.

Em relação aos participantes do estudo, a média de idade entre eles foi de 41 anos; 93% eram do sexo feminino; o tempo médio de exercício da profissão de enfermeiro foi de 16 anos; 33% dos participantes trabalham na APS Tradicional, com média de atuação de 6 anos; 67% trabalham na ESF, com média de atuação de 7 anos; 63% dos participantes formaram-se em instituições públicas; 89% dos enfermeiros possuíam algum tipo de especialização, sendo 56% em Saúde da Família, 31% em Saúde Pública, 10% em Gestão em Saúde, 8% em Enfermagem em Obstetrícia; 8% têm Mestrado, dentre outras.

DISCUSSÃO

Ao atuar, gerenciar, educar e cuidar, o enfermeiro, no quotidiano da APS, torna-se protagonista de todo esse processo. Por lidar com diversas situações, o enfermeiro precisa assumir e adotar condutas e postura responsável, íntegra e legal, além de estar atento aos aspectos sensíveis, subjetivos, valorosos e culturais que envolvem a produção e as relações de cuidado considerando usuário-profissional-gestão-comunidade(¹⁵). Assim, ser ético e bioético no dia a dia da APS envolve as questões subjetivas e intrínsecas de cada ser humano, e o respeito-cumprimento das questões práticas voltadas para o cuidado e para o agir profissional dos enfermeiros, delineadas pela Política Nacional de Atenção Básica(¹⁶) e pelo Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem(⁴).

A PNAB/2017 e o CEPE configuram-se como instrumentos deontológicos da Enfermagem(²), contudo este estudo evidenciou que mesmo com esses instrumentos, que orientam e protegem, não são raras as vezes que os enfermeiros fazem além do determinado como suas atribuições(¹⁷). Isso nos leva a uma situação bioeticamente preocupante, onde de um lado temos um código repleto de direitos, deveres, proibições e punições(⁴), e do outro, um profissional cercado pela necessidade de agir em um quotidiano marcado por alta demanda espontânea e reprimida, além da sobrecarga de trabalho, esgotamento profissional, problemas, tensões e conflitos éticos e bioéticos(¹⁸). A excelência ética e bioética do cuidado e da assistência só poderá ser garantida se as necessidades éticas e bioéticas dos enfermeiros forem atendidas primeiro(¹⁹).

A responsabilização é fundamental para a efetivação da APS como contato e porta de entrada preferencial da rede de atenção de acordo com demandas e necessidades da população(¹⁶). Há relato neste estudo de que o enfermeiro faz além do que deveria se arriscando, referindo à prescrição de medicamentos. Dentre as atribuições específicas do enfermeiro, a PNAB/2017 traz “prescrever medicações conforme protocolos, diretrizes clínicas e terapêuticas, ou outras normativas técnicas estabelecidas pelo gestor federal, estadual, municipal ou do Distrito Federal, observadas as disposições legais da profissão”(¹⁶). Consonante, o CEPE aborda como uma das proibições a de “prescrever medicamentos que não estejam estabelecidos em programas de saúde pública e/ou de rotina aprovada em instituição de saúde, exceto em situações de emergência”(⁴).

Este estudo mostrou que os enfermeiros se encontram expostos a um dia a dia de trabalho característico e exigente, fortemente influenciado pelo modelo biologicista onde, muitas vezes, as concepções imensuráveis e impalpáveis do seu próprio caráter vão de encontro às dificuldades profissionais, distanciando-os do seu ser ético e bioético(²⁰). Logo, percebe-se que esse ser ético e bioético é construído a partir dos fundamentos, concepções e atributos essenciais à Enfermagem, como a dignidade humana, integralidade, altruísmo e justiça, que se movimentam em equilíbrio com o sujeito, com o dever e com o agir profissional, orientando-se por princípios e valores centrados no respeito à vida, dignidade e individualidade das pessoas(¹⁹-²¹).

Dessa maneira, em linhas gerais, podemos dizer ainda que existe o ser enquanto pessoa, indivíduo ou sujeito que é polissêmico e humano, alicerçado por uma consciência e identidade biológica, subjetiva, objetiva e social conquistadas por intermédio de suas experiências ou vivências em sociedade, capazes ainda de definir sua postura e posição perante aos diferentes contextos, saberes e deveres(⁵).

O exercício da profissão deve ser feito com “justiça, compromisso, equidade, resolutividade, dignidade, competência, responsabilidade, honestidade e lealdade”(⁴). As relações profissional/usuário/família devem ser baseadas no direito, na solidariedade e no respeito à dignidade humana e às diversidades.

Conforme apontado neste estudo, o exercer a profissão de acordo com o código profissional refere-se à moral deontológica, do dever e da obrigação. Segundo Kant(²²), “uma acção praticada por dever tem o seu valor moral, não no propósito que com ela se quer atingir, mas na máxima que a determina; não depende portanto da realidade do objeto da ação, mas somente do princípio do querer segundo o qual a ação, abstraindo de todos os objetos da faculdade de desejar, foi praticada”.

É dessa forma que

a moral, em seu princípio, repousa sobre uma lógica do dever-ser ao privilegiar os valores abstratos, eternos, aplicáveis em todos os lugares e em todos os tempos. Supõe-se considerar, de uma maneira universal, o que é justo. E, justamente, foi em nome da justiça intemporal e um pouco desencarnada que ela foi estabelecida no âmbito das legislações nacionais [...] A ética, por sua vez, contenta-se com o juste-milieu, a justeza, o equilíbrio. A partir de um enraizamento de um dado lugar, ela termina contribuindo com o poder-ser(²³).

Na filosofia kantiana, o ser ético é livre, mas consciente, capaz de assumir responsabilidades por ações pessoais, individuais ou coletivas e profissionais diante das pluralidades da vida e da sociedade. Envolto por suas próprias experiências, convivências e conhecimentos, é texto e textura em consonância à sua natureza social(¹³,²²).

O ser bioético é racional, emocional e humano em todas as formas de se lidar e de se relacionar com os mundos internos e externos. Sujeito de novas descobertas, valoriza os diálogos, as reflexões e os aprendizados envoltos pelos valores da biologia, biografia e das complexidades da identidade humana(¹⁴).

Para a sociologia maffesoliana(¹⁰), no entanto, inexiste um sujeito como um ser consciente e livre, mas sim um indivíduo em épocas racionais, ou a pessoa em épocas emocionais formadas a partir de um contexto singular, expressivo e sensório, que se modifica por meio da própria história e cultura, determinadas pelos arquétipos do inconsciente coletivo(¹¹).

Não obstante a essas interpretações, os conteúdos da Ética e da Bioética foram incluídos no campo de formação, pesquisa e prática dos enfermeiros, de forma a fazer parte não apenas do currículo, mas também da identidade desses profissionais, no intuito de aperfeiçoar e educar o sujeito, guiar o profissional com sabedoria e responsabilidade ao trabalho realizado com preceitos de boas práticas e seguras, respeitando a dignidade humana(²⁴-²⁵).

Apesar da amplitude multidisciplinar da temática em pauta, os participantes deste estudo revelaram que o contato com os conteúdos sobre a Ética e a Bioética estão restritos aos anos iniciais da graduação, com enfoque mais hospitalar e incipiente para a APS. Essa incipiente abordagem prejudica o enfermeiro na identificação, delimitação e resolução dos problemas e conflitos éticos e bioéticos existentes na APS, evidenciando a necessidade crescente de ferramentas, como a Educação Permanente e Continuada, capacitações, espaços de discussão, entre outros(²⁶).

Para assegurar ao usuário o acesso universal, equânime e ordenado às ações e serviços de saúde do SUS está descrito na PNAB/2017 a necessidade de desenvolver mecanismos técnicos e estratégias organizacionais de qualificação da força de trabalho para gestão e atenção à saúde, estimular e viabilizar a formação, educação permanente e continuada dos profissionais(¹⁶). O CEPE descreve como direito do profissional o de “aprimorar seus conhecimentos técnicos-científicos, éticos-políticos, socioeducativos, históricos e culturais que dão sustentação à prática profissional”(⁴).

Outrossim, estudos nacionais(²⁷-²⁸) e internacionais(¹⁹,²⁹-³⁰) revelam o ensino contínuo e epistemológico da Ética e da Bioética como a melhor forma de responder, deliberar e analisar profundamente, criticamente e argumentativamente os problemas éticos e bioéticos, considerando, sobretudo a postura moral e as obrigações ético-profissionais.

Percebe-se, ainda, que existe um lugar de formação ética e bioética influenciados pela abstração, conotação, trajetória e ensino durante os anos de graduação, ao mesmo tempo em que existe um lugar ético e bioético que perpassa pelo inconsciente da psique humana de cada um, uma ética e bioética inteligível, intransferível e indissociável a cada sujeito, que, por meio de seus próprios sentidos, valores e sapiências, exploram e vivenciam suas próprias noções(³¹).

O ser ético e bioético perpassa por estágios que vão além de princípios e regras flutuantes à filosofia e moralidade. O ser ético e bioético dedica-se às questões quotidianas da vida e das experiências das pessoas, questões de caráter e de cultura que conjuram críticas, conselhos e possibilidades sobre aquilo que se deseja, para aquilo que se deve e que se pode ou não fazer(¹⁴).

Há várias noções éticas e bioéticas que vão ao encontro com o contexto social e cultural onde os participantes deste estudo estão inseridos. Essas noções mostraram-se semelhantes em ambos os cenários ao perpassar pelo campo individual do certo e errado, bem ou mal, justiça e moral e pelo campo coletivo das interações, dos comportamentos e das condutas profissionais do agir, do viver, do pensar e do se relacionar consigo, com o colega-equipe e com o usuário-família-comunidade.

Dessa maneira, somos todos intérpretes e, por isso, não devemos fechar as análises das experiências vividas em conceitos e formas máximas, afinal o conhecimento é substancial, dinâmico, variável, interdependente, múltiplo, inovador e modificável ao longo dos tempos e do momento em que se situa(¹¹,³²-³³).

Portanto, mediante as subjetividades, experiências e vivências dos enfermeiros na APS, que significam e ressignificam no quotidiano, é que se materializam as noções de ética e bioética. Assim, o enfermeiro constrói suas noções e do coletivo, para o fazer, pensar e agir ético e bioético, mediante aos problemas demandados e às necessidades de cada um dos usuários/família, do trabalho em equipe, das condutas, dos sentimentos.

Eis, precisamente, a sabedoria, que conduz a uma concepção alargada da realidade. Realidade plural, polissêmica. Realidade absoluta. A da experiência e do vivido coletivo. Experiência e vivido que não se limitam a um ideal longínquo, mas que tecem, em um entrecruzamento infindável, todos os afetos, emoções, paixões, constitutivos da vida quotidiana, a fim de construir o tecido social e natural partilhado em comum(³⁴).

Em vivências que precisam ser éticas e bioéticas ao cuidar de usuários e inter-relacionar no quotidiano da APS.

Limitações do estudo

A amostragem intencional de 54 enfermeiros participantes da pesquisa foi uma limitação, contudo, em estudos de casos múltiplos com saturação dos dados por replicação literal(⁹) pode ser representativa em populações e cenários com condições similares. A coleta de dados foi dificultada pela sobrecarga de trabalho do enfermeiro, o que o impediu ou fez adiar a realização da entrevista, mesmo com agendamento prévio da entrevista obedecendo-se a disponibilidade dele.

Contribuições para a área da Enfermagem

Ressalta-se que a compreensão das noções de ética e bioética e de como ser ético e bioético na APS é uma necessidade absoluta, considerando que para a maioria dos enfermeiros, o contato com os conteúdos éticos e bioéticos acontecem nos anos iniciais da graduação, com enfoque temático na área hospitalar. Além disso, permite aos gestores e aos órgãos competentes atentarem para as necessidades emergentes de apoio, infraestrutura e Educação Permanente para a segurança do profissional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ética condiz possibilidades de reflexão sobre os valores morais e os valores da vida. As noções de ética e bioética dos enfermeiros emergem da subjetividade, das experiências vividas, das interações e ações cotidianas considerando esses valores. O quotidiano é diverso e dinâmico e o enfermeiro (re)significa suas noções que advêm da consciência, da razão, da natureza e da moral formadas a partir do eu subjetivo enquanto pessoa, indivíduo e sujeito humano, e da identidade profissional a partir dos fundamentos e atributos essenciais à Enfermagem, como também dos processos reflexivos, dialógicos, decisórios que circundam a prática em saúde.

Pode-se ainda depreender que essas noções nutridas de significados expressam reflexão ética essencial para as ações assistenciais, gerenciais e organizacionais das instituições e do cuidado em saúde, como também para segurança de usuários e profissionais.

• FOMENTO
  Esta pesquisa foi financiada por bolsa do Programa de Incentivo à Pós-Graduação Stricto Sensu (PIPG) da UFSJ. Ela também foi financiada por bolsa de iniciação científica pelo Edital 009/2017 PIBIC/FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais).

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EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa

EDITOR ASSOCIADO: Ana Fátima Fernandes

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  18 Out 2021
• Data do Fascículo
  2022

Histórico

• Recebido
  05 Fev 2021
• Aceito
  27 Jun 2021