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Construção dos itinerários terapêuticos de crianças com deficiência no subsistema profissional de cuidados em saúde

RESUMO

Objetivos:

identificar a construção dos itinerários terapêuticos das famílias de crianças com deficiência no subsistema profissional de cuidados com a saúde.

Métodos:

pesquisa qualitativa realizada em dois serviços especializados no estado do Ceará, com 41 familiares entrevistados pela técnica de trajetória de vida, com relatos submetidos à classificação hierárquica descendente e análise de similitude, com auxílio do software IRaMuTeQ e do referencial teórico dos sistemas de cuidados com a saúde.

Resultados:

as classes descreveram o itinerário das famílias em cinco percursos, relacionados a fé, estruturas de suporte, condutas médicas, profissionais e serviços de saúde. O subsistema profissional destacou-se como deficitário no itinerário terapêutico para acesso ao cuidado com a saúde de crianças com deficiência, sem promover integração entre serviços da Rede de Atenção.

Considerações finais:

o itinerário terapêutico das famílias apresentou discurso homogêneo com temas relativos ao cuidado dos profissionais e aspectos espirituais.

Descritores:
Crianças com Deficiência; Necessidades e Demandas de Serviços de Saúde; Acesso aos Serviços de Saúde; Cuidado da Criança; Enfermagem Pediátrica

ABSTRACT

Objectives:

to identify the outlining of therapeutic itineraries of families of children with disabilities in the professional health care subsystem.

Methods:

qualitative research carried out in two specialized services in the state of Ceará, with 41 family members interviewed using the life path technique and reports submitted to descending hierarchical classification and similitude analysis, with the help of the IRaMuTeQ software and the theoretical framework of health care systems.

Results:

the classes described the families’ itineraries in five paths, related to faith, support structures, medical behaviors, professionals, and health services. The professional subsystem stood out as deficient in outlining the therapeutic itinerary for access to health care for children with disabilities, without promoting integration between services in the Care Network.

Final considerations:

the families’ therapeutic itineraries showed homogeneous discourse with themes related to the care of professionals and spiritual aspects.

Descriptors:
Children With Disabilities; Health Services Needs and Demands; Access to Health Services; Child Care; Pediatric Nursing

RESUMEN

Objetivos:

identificar la construcción de itinerarios terapéuticos de familias de niños con discapacidad, en el subsistema profesional de cuidados con la salud.

Métodos:

investigación cualitativa realizada en dos servicios especializados en Ceará, con 41 familiares entrevistados por la técnica de trayectoria de vida, con relatos sometidos a clasificación jerárquica descendente y análisis de similitud, con auxilio del software IRaMuTeQ y del referencial teórico de los sistemas de cuidados con la salud.

Resultados:

las clases describieron el itinerario de las familias en cinco trayectos, relacionados a fe, estructuras de soporte, conductas médicas, profesionales y servicios de salud. El subsistema profesional se destacó como deficitario en el itinerario terapéutico para acceso al cuidado con la salud de niños con discapacidad, sin promover integración entre servicios de la Red de Atención.

Consideraciones finales:

el itinerario terapéutico de las familias presentó discurso homogéneo con temas relativos al cuidado de los profesionales y aspectos espirituales.

Descriptores:
Niños con Discapacidad; Necesidades y Demandas de Servicios de Salud; Accesibilidad a los Servicios de Salud; Cuidado del Niño; Enfermería Pediátrica

INTRODUÇÃO

As famílias de crianças com deficiência podem se apresentar isoladas e enfrentar discriminação, o que pode resultar em exclusão social e limitação na utilização dos recursos disponíveis(1)1 Missel A, Costa CC, Sanfelice GR. Humanization of health and social inclusion in caring for people with physical disabilities. Trab Educ Saúde. 2017;15(2):575-97. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00055
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. Tais problemas ocorrem pelo fato de a criança com deficiência se encontrar em situação de maior fragilidade e vulnerabilidade pela condição crônica de saúde. A complexidade terapêutica dessas crianças exige uma maior demanda por cuidados e serviços, quando comparadas àquelas que vivem sem deficiência(2)2 Figueiredo SV, Sousa AC, Gomes IL. Children with special health needs and family: implications for Nursing. Rev Bras Enferm. 2016;69(1):88-95. https://doi.org/10.1590/0034-7167.2016690112i
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.

No sistema familiar, a ressignificação das funções e da estrutura ocorre para se adaptar às necessidades da criança. As dificuldades iniciam-se com o diagnóstico da criança e com os sentimentos que a nova realidade traz, ocasionando sofrimento, negação, medo e angústia. Essa situação impede ou limita a busca por orientações e atendimentos nos serviços de saúde(3)3 Santos KH, Marques D, Souza AC. Children and adolescents with cerebral palsy: analysis of care longetudinality. Texto Contexto Enferm. 2017;26(2):e00530016. https://doi.org/10.1590/0104-07072017000530016
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, sendo objeto de estudo da presente pesquisa.

Nesse percurso, as famílias das crianças com deficiência buscam pessoas, lugares, serviços e instituições para apoio e atendimento de suas demandas. O itinerário terapêutico se estabelece na configuração da Rede de Atenção e da qualidade do cuidado pela oferta disponível durante a trajetória clínico-assistencial(4)4 Cerqueira MM, Alves RO, Aguiar MG. Experiences in the therapeutic itineraries of mothers of children with intellectual disabilities. Ciênc Saúde Coletiva. 2016;21(10):3223-32. https://doi.org/10.1590/1413-812320152110.17242016
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. Os profissionais atuantes no cuidado devem apoiar as famílias para o enfrentamento de suas próprias demandas de saúde e as da criança com deficiência.

O conceito de “itinerário terapêutico” perpassa por momentos históricos distintos. Está na compreensão de “comportamento do enfermo” (illness behavior), por Mechanic & Volkart(5)5 Sirri L, Fava GA, Sonino N. The unifying concept of illness behavior. Psychother Psychosom. 2013;82(2):74-81. https://doi.org/10.1159/000343508
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, em 1960, em que as escolhas por tratamento se davam sob a lógica de consumo, com ênfase no modelo biomédico e nas demandas por serviços; e ganha importante contribuição na década de 1970, com Arthur Kleinman, médico psiquiatra e antropólogo, que deu ênfase à influência cultural nas escolhas do doente relativas ao percurso de cuidado(66 Kleinman A. Concepts and a model for the comparison of medical systems as cultural systems. Soc Sci Med. 1978;12(2B):85-95. https://doi.org/10.1016/0160-7987(78)90014-5
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77 Siqueira SM, Jesus VS, Camargo CL. The therapeutic itinerary in urgent/emergency pediatric situations in a maroon community. Ciênc Saúde Coletiva. 2016;21(1):179-89. https://doi.org/10.1590/1413-81232015211.20472014
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).

O modelo teórico dos sistemas de cuidados com a saúde proposto por Kleinman apresenta dois conceitos importantes: o de “modelos explicativos”, que se refere às concepções da doença e às formas de tratamento utilizadas por todos aqueles engajados em um processo clínico; e o de “sistema de Atenção à Saúde”, que inclui os locais onde os indivíduos buscam soluções para seus problemas de saúde, sendo classificados em três setores (profissional, constituído pelas práticas formais de exercício da medicina, como biomedicina e homeopatia; popular, que são os cuidados caseiros e o autocuidado; ou folk, que corresponde às práticas místicas e religiosas de cuidados)(8)8 Cabral AL, Martinez-Hemáez A, Andrade EI, Cherchiglia ML. [Therapeutic itineraries: state of the art of scientific production in Brazil]. Ciênc Saúde Coletiva. 2011;16(11):4433-42. https://doi.org/10.1590/S1413-81232011001200016. Portuguese.
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.

A Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência deve ampliar o acesso a serviços, qualificar o atendimento e vincular pessoas com deficiência e famílias aos pontos de atenção de modo articulado, com acolhimento e classificação de risco. Priorizam-se o acompanhamento do recémnascido de alto risco até 2 anos de vida, o tratamento das crianças com deficiência e o suporte adequado às famílias nas Linhas de Cuidado, definidas como fluxos assistenciais seguros e garantidores de atendimento de saúde por meio de ações integrais(99 Ministério da Saúde (BR). Portaria n. 793/2012. Institui a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência no âmbito do Sistema Único de Saúde [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2012 [cited 2020 Dec 20]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt0793_24_04_2012.html
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1010 Pessôa LR. Manual do gerente: desafios da média gerência na saúde [Internet]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2011 [cited 2020 Dec 20]. Available from: http://www5.ensp.fiocruz.br/biblioteca/dados/txt_51893713.pdf
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).

A dissonância é que há fragilidades nas Linhas de Cuidado à criança com deficiência. Evidencia-se dificuldade de acesso e acompanhamento em serviços de reabilitação não regulados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), falta de coordenação do cuidado e/ ou de vinculação com a Atenção Primária em Saúde (APS), falhas no acolhimento e desarticulações nos serviços, que constituem fatores agravantes e impeditivos para o cuidado efetivo e integral(11)11 Farias AC, Moreira MR, Costa MS, Oliveira JD, Pinto AG, Maia ER. Itinerário terapêutico de famílias de crianças com deficiência à luz do modelo teórico dos sistemas de cuidados à saúde. New Trends Qual Res. 2020;3:359-71. https://doi.org/10.36367/ntqr.3.2020.359-371
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. Dessa forma, fazem-se necessárias investigações científicas que busquem conhecer o que as famílias vivenciam no cuidado da criança com deficiência, para (re)conhecer as lacunas encontradas durante a trajetória do itinerário terapêutico. Assim, o presente estudo traz a seguinte pergunta de pesquisa: Qual o itinerário terapêutico de famílias de crianças com deficiência à luz do modelo teórico dos sistemas de cuidados com a saúde?

OBJETIVOS

Identificar a construção dos itinerários terapêuticos das famílias de crianças com deficiência no subsistema profissional à luz do modelo teórico dos sistemas de cuidados com a saúde.

MÉTODOS

Aspectos éticos

A pesquisa obedeceu ao disposto nas Resoluções 466/2012 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde(12)12 Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde. Resolução 466, de 12 de dezembro de 2012. [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2013 [cited 2020 Dec 20]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html
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, sendo aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa.

Desenho, local e período do estudo

Pesquisa qualitativa, realizada nos meses de maio a novembro de 2019, em dois serviços especializados de reabilitação: o Núcleo de Estimulação Precoce (NEP), serviço público que funciona sob gestão de um Consórcio Público de Saúde em uma policlínica regional; e a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae). O NEP e a Apae são prestadores de serviços reconhecidamente voltados ao cuidado da criança com deficiência, procedentes do território de estudo e situados em municípios ao sul do estado do Ceará, Brasil.

Na elaboração e na execução do estudo, utilizaram-se as recomendações do Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ), por meio de um checklist disponibilizado pela rede EQUATOR (https://www.equator-network.org/).

Amostra, critérios de inclusão e exclusão

Fizeram parte do estudo os familiares das crianças assistidas nos serviços de reabilitação onde os dados da pesquisa foram coletados. À época da coleta, estavam cadastradas nesses serviços 134 crianças com deficiência, com idades que variavam entre 0 e 9 anos incompletos. Como critérios de inclusão, foram considerados o envolvimento direto no cuidado diário com a criança e o fato de estar domiciliado em um município localizado na região sul do estado do Ceará. Familiares que apresentaram deficiência verbal e/ou intelectual que impossibilitasse o relato e participação na pesquisa foram excluídos.

Protocolo do estudo

Para coleta de dados, utilizaram-se um roteiro de entrevista semiestruturado composto de informações sociodemográficas; e a entrevista em profundidade, com foco nas experiências vividas no itinerário terapêutico da criança com deficiência, baseando-se na pergunta norteadora: “Peço-lhe que me fale sobre a trajetória percorrida na busca por cuidados para a criança com deficiência”.

As entrevistas foram realizadas após aproximação aos locais de pesquisa e explicação das etapas aos participantes. As coletas ocorreram pela manhã, em sala privativa, com aplicação individual e duração média de 40 minutos. Utilizou-se gravador de voz digital no celular de uso exclusivo na pesquisa, para evitar risco de compartilhamento das informações.

Neste estudo, adotou-se a saturação do tipo code saturation, que é definida como o ponto no qual problemas adicionais não são identificados e o sistema de codificação dos dados é estabilizado. As entrevistas foram encerradas após os códigos/temas das falas mostrarem-se repetidos e sem nenhum dado novo(13)13 Hennink MM, Kaiser BN, Marconi VC. Code saturation versus meaning saturation: how many interviews are enough? Qual Health Res. 2017;27(4):591-608. https://doi.org/10.1177/1049732316665344
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.

Análise dos resultados

Os relatos de história de vida foram transcritos para um arquivo no programa Libre Office Writer, versão 5.4, sendo codificados conforme a sequência numérica das entrevistas e o respectivo serviço especializado ao qual cada familiar se encontrava vinculado, formando um banco de dados com dois corpora textuais: itinerário NEP e itinerário Apae.

Cada corpus foi submetido à classificação hierárquica descendente (CHD), com o auxílio do software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRaMuTeQ), versão 0.7, alpha 2. Essa ferramenta gratuita, com código aberto, ancora-se no software R e na linguagem de programação Python para viabilizar diferentes modos de análise simples, como a lexicografia básica, ou análises multivariadas(14)14 Camargo BV, Justo AM. IRAMUTEQ: um software gratuito para análise de dados textuais. Temas Psicol. 2013;21(2):513-8. https://doi.org/10.9788/TP2013.2-16
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, como as adotadas neste estudo.

Na CHD, o IRaMuTeQ realiza o fracionamento do corpus por meio de cálculos estatísticos, originando segmentos de texto (ST), que são classificados em função de seus vocabulários, resultando em classes que apresentam vocabulário semelhante entre si na mesma classe e diferente nos STs das outras classes. Assim, as palavras contidas na mesma classe assumem essa representação, por se considerar que, quando usadas em contexto similar, estão associadas ao mesmo mundo léxico, compondo mundos mentais específicos ou contextos semânticos de uma mesma representação. Ressalta-se que se julga um bom aproveitamento do corpus quando o percentual de retenção dos STs é igual ou superior a 75%(1414 Camargo BV, Justo AM. IRAMUTEQ: um software gratuito para análise de dados textuais. Temas Psicol. 2013;21(2):513-8. https://doi.org/10.9788/TP2013.2-16
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,1515 Souza JM, Machado FR, Antunes PP, Santos AC, Levandoswki DC, Oliveira AA. Qualidade de vida e sobrecarga de cuidadores de crianças com paralisia cerebral. Rev Bras Promoç Saúde. 2018;31(3):1-10. https://doi.org/https://doi.org/10.5020/18061230.2018.7748
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).

Visando obter um panorama que expressasse o itinerário global das famílias, os corpora textuais foram unificados e submetidos à análise de similitude, que toma por base a teoria dos grafos, possibilitando identificar as coocorrências entre palavras, as quais indicam a conexidade entre elas, auxiliando na identificação da estrutura do fenômeno investigado. Delineada sob o formato de árvore de coocorrências, tal estrutura apresenta-se por uma imagem contendo agrupamentos coloridos denominados de “comunidades”, interligadas por vértices que variam em tamanho e posição e anunciam diferentes graus de interconexão(16)16 Camargo BV, Justo AM. Tutorial para uso do software de análise textual IRAMUTEQ [Internet] Florianópolis: Laboratório de Psicologia Social da Comunicação e Cognição; 2018 [cited 2020 Dec 20]. Available from: http://www.iramuteq.org/documentation/fichiers/tutoriel-en-portugais
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.

O modelo teórico dos sistemas de cuidados com a saúde subsidiou a análise interpretativa do material originado no IraMuTeQ e constituiu o arcabouço teórico-metodológico que balizou o estudo. Esse referencial é constituído por três subsistemas sociais, que consistem em subsistema popular, folclórico (folk) e profissional. Para este estudo, contemplou-se o subsistema profissional, do qual fazem parte os profissionais da medicina científica ocidental e de sistemas de cura tradicionais(6)6 Kleinman A. Concepts and a model for the comparison of medical systems as cultural systems. Soc Sci Med. 1978;12(2B):85-95. https://doi.org/10.1016/0160-7987(78)90014-5
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. Tal escolha deve-se ao fato de esta análise favorecer a identificação das ações em saúde das crianças com deficiência nos serviços, por meio do itinerário terapêutico.

RESULTADOS

Participaram do estudo 41 familiares, sendo todos eles mulheres: 37 mães genitoras, 2 mães adotivas, 1 tia e 1 avó. Predominaram a ocupação “do lar”, a idade entre 30 e 39 anos, o ensino médio completo, a religião católica, o estado civil de casada/em união estável e a renda familiar de um salário mínimo (R$ 998,00 no Brasil, em 2019), auferida por meio do Benefício de Prestação Continuada (BPC), que, por vezes, era complementada por trabalho informal e esporádico. Das participantes, 20 foram entrevistadas no NEP; e 21, na Apae.

Itinerário NEP

O corpus oriundo das famílias cujas crianças eram assistidas no NEP foi dividido em 473 STs, e a CHD reteve 376 deles (79,5% do total), originando quatro classes. Inicialmente, o corpus foi dividido originando a classe 4, “percurso de suporte”; na segunda partição, a classe 3, “percurso pelas condutas médicas”, foi separada das demais; e, na terceira partição, houve a separação das classes 1, “percurso pelos serviços de saúde”, e 2, “percurso para os profissionais de saúde”, finalizando o processo (Figura 1).

Os termos léxicos agrupados nas respectivas classes da CHD, quando examinados à luz do referencial teórico de sistemas de cuidados com a saúde, possibilitaram a elucidação dos significados nelas contidos e delinearam a nomeação dos quatro percursos realizados pelas famílias cadastradas no NEP quanto à busca pelo cuidado de saúde com a criança com deficiência.

A classe 4 reteve 27,4% dos STs e concentrou os aspectos sobre o subsistema profissional, recebendo a denominação de “percurso de suporte”. Suporte espiritual, familiar e da rede de apoio social foram os componentes do itinerário percorrido pelas famílias que se destacaram nessa classe.

Eu só agradeço as coisas que Deus dá de bom na vida da minha filha. (E15, NEP)

Com a ajuda da família foi que consegui comprar a órtese dele porque sempre teve essa dificuldade para conseguir as coisas para ele. (E06, NEP)

A classe 3, com o maior percentual de representatividade no corpus (27,9%), evidenciou componentes relacionados às manifestações clínicas, ao diagnóstico e às intervenções médicas relativas à deficiência, sendo denominada de “percurso pelas condutas médicas”. Medicação, cesariana e vírus zika foram os termos mais frequentes nessa classe.

Já foi no parto o problema, foi negligência, porque o caso dele era para ser logo cesariana e ele foi tentar nascer normal, foi onde ele passou mal. (E13, NEP)

[…] eu disse a ele que a cabeça dele não estava crescendo, a enfermeira todo mês via a cabeça dele, mas não dizia, não crescia de jeito nenhum. (E10, NEP)

Figura 1
Dendrograma da classificação hierárquica descendente do corpus itinerário de crianças assistidas no Núcleo de Estimulação Precoce

A classe 1, com 23,4% de aproveitamento no corpus, listou os serviços de saúde de referência que foram acessados pelas famílias em seus itinerários. Essa classe recebeu a denominação de"percurso pelos serviços de saúde"e apresentou o Centro de Neurorreabilitação, o Sistema Único de Saúde (SUS) e dois hospitais infantis como serviços de destaque.

Ela vai para o Centro de Neurorreabilitação Sarah e já foi para o Hospital Albert Sabin. Neste, ela foi para o neurologista e o ortopedista, que fez a cirurgia. De lá, vai para o Centro de Neurorreabilitação Sarah fazer a reabilitação infantil. (E12, NEP)

A classe 2, denominada de "percurso para os profissionais de saúde", obteve 21 % de representação no corpus e listou as principais especialidades relacionadas ao atendimento e ao acompanhamento das crianças com deficiência quefizeram parte do itinerário dasfamílias, com destaque para a fonoaudiologia, neurologia efisioterapia.

Depois que ele entrou no NEP, foi que teve a avaliação com os profissionais, mas o neurologista não, só a fonoaudióloga, terapeuta ocupacional e a enfermeira. (E04, NEP)

Itinerário Apae

O corpus oriundo das famílias cujas crianças são assistidas na Apae foi dividido em 593 STs, e a CHD reteve 535 destes (90,2% do total), originando cinco classes. Inicialmente, o corpus foi dividido em dois subcorpora, originando, de um lado, as classes 2"percurso para serviços de saúde", e 3,"percurso para profissionais de saúde envolvidos", em oposição às demais; na segunda partição, a classe 5,"percurso para as condutas médicas", foi separada das classes 1, "percurso de suporte", e 4,"percurso de fé"; na terceira partição, houve a separação das classes 1 e 4; e, na quarta partição, separaram-se as classes 2 e 3 (Figura 2).

Figura 2
Dendrograma da classificação hierárquica descendente do corpus itinerário de crianças assistidas na Associação de Pais e Amigos de Excepcionais

De modo semelhante à CHD do corpus itinerário NEP, as palavras agrupadas nas classes da CHD do corpus itinerário Apae, após aproximação ao modelo de sistemas de cuidados com a saúde, possibilitaram o delineamento de cinco percursos realizados pelas famílias cadastradas na instituição, ao procurarem cuidados de saúde para criança com deficiência.

A classe 5, representando 21,1% do corpus, englobou os aspectos relacionados à clínica envolvida na deficiência, sendo denominada de “percurso para as condutas médicas”. Convulsão, medo e dor foram os sintomas mais referidos nessa classe.

Não teve nada de anormal nesse dia; e, à noite, teve uma convulsão que deu uma parada respiratória. Nessa convulsão que, se eu não morasse muito próximo ao hospital, nós teríamos perdido ele. O próprio médico chegou a dizer isso. (E38, Apae)

A classe 1, com o maior percentual de representação no corpus (27,3%), trouxe os elementos do “percurso de suporte” no itinerário das famílias, com destaque para o suporte escolar e enfrentamento das dificuldades vivenciadas nesse contexto.

Hoje já tem uma psicóloga, pois as escolas já são obrigadas a ter, mas eu fui a primeira mãezinha que levou um laudo, pois tem mães que omitem o laudo do filho porque a família também sofre. (E37, Apae)

A classe 4 obteve 14,2% de retenção dos STs, destacando o papel da espiritualidade como reforço positivo na luta cotidiana pela saúde da criança com deficiência; e recebeu a denominação de “percurso de fé”.

Só tenho a agradecer por esse espaço para nós, mães, poder desabafar um minutinho, porque a vida não é fácil, mas Deus sabe de todas as coisas. O suporte que Ele nos dá é a esperança através de nossos filhos. (E29, Apae)

A classe 2, com 15,9% de representação no corpus, abrangeu o “percurso para serviços de saúde”, mediante a realização do exame, da consulta e do diagnóstico da deficiência. A síndrome de Down foi a patologia mencionada nessa classe.

Então a única coisa que o hospital fez foi o cariótipo, para saber qual das três síndromes ele tinha; e, quando eu saí de lá, fui encaminhada para a pediatra. E, na primeira consulta, ela falou mesmo que ele tinha síndrome de Down. (E22, Apae)

A classe 3, que obteve 21,5% de retenção, evidenciou que neurologista, fonoaudiólogo e terapeuta ocupacional estiveram entre os profissionais mais frequentes no itinerário das crianças assistidas na Apae.

Nós fomos buscar tratamento com fisioterapia, foi onde eu conheci a Apae. Foi aqui que ele começou o tratamento; aqui eu também conheci a clínica-escola onde ele faz tratamento; além da fisioterapia motora, ele faz hidroterapia e fisioterapia respiratória, e aqui também ele tem acompanhamento com fonoaudióloga. (E36, Apae)

O subsistema profissional percorrido pelas famílias foi representado na árvore de similitude, na qual se estruturaram quatro comunidades periféricas a uma grande comunidade central. A primeira trouxe os termos “Apae” em aproximação com “faculdade de medicina”, por meio da qual estabeleceu comunicação com “geneticista”, “clínica-escola” e “terapia ocupacional”, evidenciando as instituições envolvidas e as atividades terapêuticas oferecidas às crianças. A segunda comunidade se referiu aos profissionais de saúde da reabilitação, com destaque para “fonoaudiólogo” e “terapeuta ocupacional”. A terceira comunidade trouxe as terapias de reabilitação. A quarta comunidade apresentou instituições da Atenção Primária (“posto de saúde”), Atenção Secundária e Atenção Terciária de referência, representadas pelos termos “hospital pediátrico estadual”, “centro de neurorreabilitação” e “UTI neonatal”, evidenciando o distanciamento entre a unidade de terapia intensiva (UTI) neonatal e a Atenção Primária (Figura 3).

Figura 3
Árvore de similitude do itinerário terapêutico de familiares de crianças com deficiência, 2019

DISCUSSÃO

A criança com deficiência constitui um fenômeno desafiador para a família, já que leva à busca por ações de cuidado em diferentes espaços, por meio de diversos atores sociais, que representam os percursos de seu itinerário terapêutico.

Uma revisão da literatura nacional aponta que o suporte espiritual/religioso é recorrente nos discursos dos entrevistados sobre os itinerários terapêuticos relativos às suas doenças ou problemas de saúde. Aspectos ligados à espiritualidade apareceram nos discursos das famílias das crianças com deficiência e se desvelaram nas falas de agradecimento pelo suporte individual e da relação individual com o sobrenatural(17)17 Demétrio F, Santana ER, Pereira-Santos M. The Therapeutic Itinerary in Brazil: systematic review and meta-synthesis from the health negative and positive conceptions of health. Saúde Debate. 2019;43(esp-7):204-21. https://doi.org/10.1590/0103-11042019s716
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. De fato, na contemporaneidade, as instituições espirituais e/ou religiosas fornecem suporte ou ações terapêuticas às pessoas e/ou famílias.

No caso de crianças com problemas crônicos de saúde, observa-se a busca por suporte espiritual para o enfrentamento dos problemas de saúde(18)18 Lima BC, Silva LF, Góes FG, Ribeiro MT, Alves LL. The therapeutic pathway of families of children with cancer: difficulties faced in this journey. Rev Gaúcha Enferm. 2018;39:e20180004. https://doi.org/10.1590/1983-1447.2018.20180004
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. Entre familiares de crianças com problemas de saúde mental e necessidades especiais de saúde, os estudos evidenciam as dificuldades para integralidade do cuidado em rede pela reduzida oferta de serviços e pela fragilidade do vínculo entre equipes e familiares na busca por cuidado(1919 Delfini PS, Bastos IT, Reis AO. Family odysseys: the search for infant mental health care. Cad Saúde Pública. 2017;33(12):e00145816. https://doi.org/10.1590/0102-311x00145816
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,2020 Luz RO, Pieszak GM, Arrué AM, Gomes GC, Neves ET, Rodrigues A P. Therapeutic itinerary of families of children with special health needs. Rev Rene. 2019;20:e33937. https://doi.org/10.15253/2175-6783.20192033937
https://doi.org/10.15253/2175-6783.20192...
).

Por meio da dimensão espiritual, são vivenciadas experiências de fé e gratidão a Deus, injetando, na família, a vitalidade necessária para o enfrentamento da condição de saúde/agravo do filho, mediante orações e rituais comuns no subsistema popular. A mãe confia, primeiramente, a Deus os ganhos no desenvolvimento neuropsicomotor e se designa especial ao ser escolhida por Ele para ser mãe de um filho com deficiência, atribuindo essa ocorrência à vontade divina(2121 Tomaz RV, Santos VA, Silva LR, Germano CM, Melo DG. Impact of moderate intellectual disability on the dynamics and quality of family life: a qualitative clinical study. Cad Saúde Pública. 2017;33(11):e00096016. https://doi.org/10.1590/0102-311x00096016
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,2222 Carvalho A, Coelho V, Tolocka R. Professores de educação infantil e temas sobre inclusão de crianças com deficiência no ensino regular. Educ Pesqui. 2016;42(3):713-26. https://doi.org/10.1590/S1517-9702201609151344
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).

Observam-se, como tema presente nas falas dos familiares, aspectos relacionados à clínica da criança com deficiência (manifestações clínicas, diagnóstico e intervenções médicas) referentes a eventos como a gravidez, a cesariana, a presença de convulsão, as consultas com especialistas e os exames como a ultrassonografia. Estudos com familiares trazem dados semelhantes, mostrando que o itinerário terapêutico de famílias de criança com câncer, microcefalia e/ou surdez se constrói mais com os profissionais de saúde que atuam como porta de entrada no sistema de saúde(2323 Souza MJ, Morais AC, Lima IS, Mascarenhas JS, Lima MM, Amorim RC. Therapeutic itinerary of families of children with microcephaly. Rev Baiana Enferm. 2019;33:e32966. https://doi.org/10.18471/rbe.v33.32966
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,2424 Vianna NG, Lima MC, Andrade MG. Therapeutic itinerary of a deaf child in the Network of Health Care. Distúrb Comun. 2020;32(1):73-86. https://doi.org/10.23925/2176-2724.2020v32i1p73-86
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).

O itinerário terapêutico desvelado pelos familiares das crianças com deficiência destaca o subsistema profissional no acesso ao cuidado das crianças, caracterizado por serviços de saúde públicos, privados (clínicas-escola) e filantrópicos, com presença de profissionais de saúde, médicos e não médicos. A entrada no subsistema acontece por meio da Atenção Secundária, com o envolvimento dos profissionais médicos especialistas (pediatras e neurologistas), que realizam as investigações diagnósticas e/ ou encaminhamentos aos serviços de reabilitação.

Apesar de os profissionais e serviços de saúde consistirem no principal meio de acesso das famílias às instituições, há lacunas na condução dos casos, o que gera atraso no diagnóstico, no acompanhamento das doenças crônicas e no início da reabilitação da criança. Na ótica do modelo de cuidados com a saúde, o subsistema profissional engloba as profissões legalmente reconhecidas; e, no caso deste estudo, este é o subsistema que predomina nas falas dos familiares(6)6 Kleinman A. Concepts and a model for the comparison of medical systems as cultural systems. Soc Sci Med. 1978;12(2B):85-95. https://doi.org/10.1016/0160-7987(78)90014-5
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. Resultado semelhante foi demonstrado em estudo sobre o perfil dos usuários da rede local de reabilitação(23)23 Souza MJ, Morais AC, Lima IS, Mascarenhas JS, Lima MM, Amorim RC. Therapeutic itinerary of families of children with microcephaly. Rev Baiana Enferm. 2019;33:e32966. https://doi.org/10.18471/rbe.v33.32966
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.

Nas sociedades ocidentais ou ocidentalizadas, o subsistema profissional tende a predominar em relação aos subsistemas popular e folk, como foi o caso deste estudo. No entanto, os dados evidenciam que os termos mais significativos foram aqueles relativos ao hospital, seguidos dos relacionados a exames e, por último, à APS. Isso denota um modelo de cuidado profissional centrado no hospital, no uso da tecnologia voltada ao parto (cesariana), no diagnóstico tardio de doenças, em situações críticas e de crise (convulsão) e na descoberta, às vezes abrupta, da deficiência. Essa realidade, na concepção teórica do modelo de cuidados com a saúde, aponta para a forma como determinado sistema de saúde articula os conceitos de “saúde”, “doença” e “cuidado” com a linguagem cultural, sendo que a relação entre os três elementos dá sentido ao todo(6)6 Kleinman A. Concepts and a model for the comparison of medical systems as cultural systems. Soc Sci Med. 1978;12(2B):85-95. https://doi.org/10.1016/0160-7987(78)90014-5
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Embora a deficiência não se resuma a uma perspectiva biomédica, a definição de sua etiologia contribui para atenção às necessidades biológicas da criança que a apresenta e do percurso terapêutico a ser seguido, possibilitando um plano de atenção efetivo no subsistema profissional de cuidados. Ademais, fornece informações que ajudam a família a aceitar a condição da criança(25)25 Melo DG, Pilotto RF, Rodrigues SA, Avó LR, Germano CM. Etiological investigation in situations of intellectual disability or global developmental delay. Saúde Desenvolv Hum. 2018;6(3):73-85. https://doi.org/10.18316/sdh.v6i3.4217
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.

Mães, pais e familiares são os primeiros a perceberem os sinais de atraso no desenvolvimento da criança. A intervenção precoce no desenvolvimento infantil exige um olhar interdisciplinar para as formas de atuação e trabalho centrado na família(26)26 Franco V. Becoming father/mother of a child with serious problems of development. Educ Rev. 2016;59(1):35-48. https://doi.org/10.1590/0104-4060.44689
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. O sofrimento dos pais, relatado pelos cuidadores, diante do diagnóstico de deficiência do filho, é real e perpassa por um sentimento semelhante ao luto. Esse processo é permeado por choque, medo, tristeza, raiva e culpa, que se apresentam em perspectiva de enfrentamento da realidade(27)27 Oliveira IG, Poletto M. Emotional experiences of mothers and fathers of children with disabilities. Rev SPAGESP [Internet]. 2015 [cited 2020 Dec 20];16(2):102-19. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rspagesp/v16n2/v16n2a09.pdf
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.

Em sua teoria, Kleinman(6)6 Kleinman A. Concepts and a model for the comparison of medical systems as cultural systems. Soc Sci Med. 1978;12(2B):85-95. https://doi.org/10.1016/0160-7987(78)90014-5
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elucida que, apesar de a cura constituir uma das funções do sistema de saúde, nem sempre ela é possível. Assim, devem-se “ajustar as expectativas, crenças, comportamento e avaliações do resultado”, principalmente do ponto de vista da eficácia terapêutica em determinadas doenças, como a deficiência. Desse modo, a competência e a sensibilidade do profissional de saúde responsável pela comunicação do diagnóstico são imprescindíveis para o adequado apoio familiar e repercutem na elaboração dos sentimentos vivenciados pelos pais e nos papéis a serem desempenhados por eles, na direção do cuidado e da inclusão(27)27 Oliveira IG, Poletto M. Emotional experiences of mothers and fathers of children with disabilities. Rev SPAGESP [Internet]. 2015 [cited 2020 Dec 20];16(2):102-19. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rspagesp/v16n2/v16n2a09.pdf
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.

O acesso ao subsistema profissional foi buscado aos primeiros sinais de atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, por parte das famílias e não dos profissionais. Porém, foi marcado por “perambulação pelos serviços de saúde”(28)28 Mendes EV. O acesso à atenção primária à saúde. Brasília, DF: Conselho Nacional dos Secretários de Saúde; 2016. em decorrência da não implementação de fluxos seguros e efetivos para orientação do cuidado, a qual, associada à escassez de serviços, resultou na dificuldade de acesso. Achado semelhante foi elucidado por cuidadoras em estudo que avaliou quão difícil é o acesso da criança com deficiência à Rede de Atenção e mostrou que o tempo para inclusão das crianças nesses serviços foi longo, fossem eles regulados ou não(29)29 Buspo Jr J P, Bonfatti RJ. A Estratégia de Saúde da Família na garantia do acesso da criança com deficiência à rede de atenção [Dissertação] [Internet]. Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro; 2016 [cited 2020 Dec 20]. Available from: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/20550
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No presente estudo, a implantação do NEP ampliou a oferta de serviços de reabilitação mais próximos do domicílio e de forma regulada. No entanto, foi identificada uma linha tênue na interação entre esse serviço e a APS, demonstrada no acesso por demanda espontânea e/ou por encaminhamentos de outros serviços de Atenção Secundária, sem a devida coordenação do cuidado, o que se traduz em prejuízos para o estabelecimento adequado de fluxos de atenção(28)28 Mendes EV. O acesso à atenção primária à saúde. Brasília, DF: Conselho Nacional dos Secretários de Saúde; 2016..

Kleinman(6)6 Kleinman A. Concepts and a model for the comparison of medical systems as cultural systems. Soc Sci Med. 1978;12(2B):85-95. https://doi.org/10.1016/0160-7987(78)90014-5
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reforça que a comunicação é determinante para o desfecho satisfatório dos problemas de saúde e influi sobremaneira na adesão, adequação e satisfação dos usuários com os serviços de saúde. No cenário estudado, as falhas de comunicação da rede de cuidados influenciaram negativamente os resultados clínicos e a atenção prestada a tais crianças.

O perfil apresentado coaduna-se com a construção dos itinerários terapêuticos das famílias no subsistema profissional no cuidado com a saúde das crianças com deficiência. Tais itinerários terapêuticos são marcados por inexistência ou falhas nos fluxos assistenciais, na acessibilidade, na articulação, na ordenação e na integralidade da rede de cuidados. As falas são representativas da situação evidenciada e descrita na história oral das cuidadoras.

A entrada no subsistema formal ocorreu por meio da atenção especializada, com consultas a pediatras e/ou neurologistas, demonstrando fragilidade da APS na avaliação da criança, identificação do agravo, coordenação do cuidado e ordenamento da rede. O itinerário terapêutico foi construído essencialmente pela mãe e pelo filho e marcado por dificuldades relativas à oferta de serviços devido a sua escassez, ausência de linha de cuidado específica, além do difícil acesso às tecnologias assistivas e da existência de barreiras para inclusão escolar.

A análise do itinerário terapêutico desvelou a densa participação de instituições educacionais, clínicas-escola e faculdades de medicina na oferta de reabilitação e consulta especializada. Reforçou a participação da Apae e o incipiente envolvimento dos Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi) na reabilitação de crianças com deficiência intelectual e/ou transtorno do espectro autista. Salienta-se que o acesso aos serviços educacionais, assim como à Apae, não é regulado e ocorre à margem do SUS, por meio de encaminhamentos informais e/ ou mediados pela aproximação entre os profissionais e destes com os serviços.

Com esse entendimento, compreende-se que a falta de integração entre os serviços da Rede de Atenção e a não visualização de seu desenho pelos profissionais responsáveis pela assistência a essas crianças implicam prejuízos para o acesso, equidade, integralidade e efetividade do cuidado, bem como apontam para a fragilidade da estrutura e da organização da rede existente.

Limitações do estudo

No desenvolvimento de escopos investigativos para cotidianos assistenciais, o olhar qualitativo pode se limitar pela interpretação focal de um contexto específico, mas se amplia pela profundidade intencional das relações. O estudo foi desenvolvido em dois serviços de reabilitação, um público e outro filantrópico, porém, durante seu desenvolvimento, foram identificados outros serviços de reabilitação, como clínicas-escola, de modo que a não inclusão desses outros constituiuse uma limitação do estudo. Recomendam-se pesquisas em novos cenários e com públicos envolvidos com a temática, como profissionais de saúde, de educação, demais familiares (que não as mães) e as próprias crianças (maiores) com deficiência.

Contribuições para área da enfermagem, saúde ou política pública

A pesquisa mostra a construção de um itinerário terapêutico fortemente vinculado ao subsistema profissional, centrado inicialmente no médico e no hospital e, em seguida, nos serviços de reabilitação em saúde, tendo a espiritualidade como fonte de suporte. Nesse sentido, este trabalho contribui ao desvelar tal cenário e expor a fragmentação da rede de cuidados da criança com deficiência, portanto pode ajudar na elaboração de políticas que assegurem a integralidade do cuidado a essa população. Ademais, o presente estudo inova com a instrumentalização eletrônica e sistemática das informações, que, aliada às vivências entre participantes e pesquisadores, exalta as necessidades de saúde e cuidado como alvo da Atenção à Saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A construção do itinerário terapêutico das famílias de crianças com deficiência, à luz do modelo teórico dos sistemas de cuidados com a saúde, ocorre mais evidentemente por meio do subsistema profissional, com alguns aspectos do subsistema popular, ao passo que não se identificou o subsistema folk.

Apesar de o subsistema profissional ter sido predominante, ele foi caracterizado como deficitário, por não promover a integração entre os serviços da rede. A entrada no subsistema formal ocorreu por meio da atenção especializada construída essencialmente pela mãe e pelo filho e foi marcado por dificuldades relativas à oferta de serviços.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Fátima Helena Espírito Santo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2021
  • Aceito
    22 Jun 2021
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