Sistema de saúde universal baseado em Atenção Primária e a enfermagem de prática avançada

RESUMO

Objetivo:

Refletir sobre a enfermagem de prática avançada na Atenção Primária à Saúde considerando a complexidade do sistema de saúde brasileiro.

Métodos:

Estudo reflexivo, fundamentado no documento “Ampliação do papel dos enfermeiros na Atenção Primária à Saúde” e ancorado na literatura e análise crítica dos autores.

Resultados:

Pela complexidade do Sistema Único de Saúde — quanto a infraestrutura, recursos humanos, financiamento — é importante que o Brasil realize seu próprio processo sistemático de discussão sobre a implementação da enfermagem de prática avançada, considerando o contexto do modelo de atenção à saúde vigente, para definir o papel dessa prática conforme as características de um sistema universal de saúde e não de uma cobertura universal de saúde. Considerações finais: A ampliação da força de trabalho e inserção da enfermagem de prática avançada na Atenção Primária à Saúde brasileira precisam acontecer com um maior reconhecimento e incentivos para as ações executadas nesse nível de atenção. Por exemplo, devem ocorrer via integração entre os profissionais e a comunidade nas ações de promoção de saúde, com disponibilidade de tecnologias adequadas ao trabalho, de modo a garantir a qualidade e resolutividade da Atenção Primária à Saúde.

Descritores:
Sistemas de Saúde; Cobertura Universal em Saúde; Atenção Primária à Saúde; Sistema Único de Saúde; Prática Avançada de Enfermagem

ABSTRACT

Objective:

To reflect on advanced practice nursing in Primary Health Care considering the complexity of the Brazilian health system.

Methods:

Reflective study, based on the document “Expanding the role of nurses in Primary Health Care” and anchored in the literature and critical analysis of the authors.

Results:

Due to the complexity of the Unified Health System — in terms of infrastructure, human resources, funding — it is important for Brazil to carry out its own systematic process of discussion on the implementation of advanced practice nursing, considering the context of the current health care model, to define the role of this practice according to the characteristics of a universal health system and not a universal health coverage. Final considerations: The expansion of the workforce and the insertion of advanced practice nursing in Brazilian Primary Health Care needs to happen with greater recognition and incentives for the actions performed at this level of care. For example, they must occur through integration between professionals and the community in health promotion actions, with the availability of appropriate technologies for the work, in order to guarantee the quality and resolution of Primary Health Care.

Descriptors:
Health Systems; Universal Health Coverage; Primary Health Care; Unified Health System; Advanced Nursing Practice

RESUMEN

Objetivo:

Reflejar sobre la enfermería de práctica avanzada en la Atención Primaria de Salud considerando la complejidad del sistema de salud brasileño.

Métodos:

Estudio reflexivo, fundamentado en el documento “Ampliación del rol de enfermeros en la Atención Primaria de Salud” y basado en la literatura y análisis crítico de autores.

Resultados:

Por la complejidad del Sistema Único de Salud — cuanto a la infraestructura, recursos humanos, financiamiento — es importante que Brasil realice su propio proceso sistemático de discusión sobre la implementación de la enfermería de práctica avanzada, considerando el contexto del modelo de atención de salud vigente, para definir el papel de esa práctica conforme las características de un sistema universal de salud y no de una cobertura universal de salud. Consideraciones finales: La ampliación de recursos humanos e inserción de la enfermería de práctica avanzada en la Atención Primaria de Salud brasileña necesitan ocurrir con un mayor reconocimiento e incentivos para las acciones ejecutadas en ese nivel de atención. Por ejemplo, deben ocurrir vía integración entre los profesionales y la comunidad en las acciones de promoción de salud, con disponibilidad de tecnologías adecuadas al trabajo, de modo a garantizar la calidad y resolución de la Atención Primaria de Salud.

Descriptores:
SISTEMAS DE SALUD; COBERTURA UNIVERSAL DE SALUD; ATENCIóN PRIMARIA DE SALUD; SISTEMA ÚNICO DE SALUD; ENFERMERíA DE PRáCTICA AVANZADA

INTRODUÇÃO

A concepção de universalidade, entendida como garantia de acesso aos serviços de saúde por todo e qualquer indivíduo de determinado país, tem sido substituída pela noção de “cobertura universal”. Esse termo vem sendo utilizado largamente por organismos internacionais ao longo dos últimos 15 anos, como o Banco Mundial (BM), Fundo Monetário Internacional (FMI) e Fundação Rockefeller(¹), com discussão da noção de “cobertura” relacionada a questões que envolvem o financiamento da saúde, compreendida sob esse prisma como gasto(¹).

Dessa maneira, enquanto a perspectiva da construção dos sistemas universais historicamente esteve calcada no desenvolvimento de sistemas de proteção social robustos, atrelado à ideia da saúde como direito — como é o caso do Brasil —, o conceito de cobertura universal, ainda que no campo teórico não assuma radicalmente sua ruptura com a universalidade, na prática acena para os interesses do mercado(¹). Verifica-se que essa ofensiva às políticas universais possui relações estreitas com o processo de financeirização, fenômeno, este, característico da fase atual do capitalismo.

Alguns pressupostos bem delimitados da lógica neoliberal se aproximam dessa perspectiva de cobertura universal ou daquilo que se poderia chamar de “universalidade às avessas”. O primeiro pressuposto refere-se à diminuição da participação do Estado em favor da maior inserção da iniciativa privada na oferta de serviços de saúde. O segundo aponta para a seletividade dos indivíduos, ou seja, determinados grupos da população poderiam ou não usufruir da atenção à saúde conforme condições preestabelecidas, em detrimento de uma massa humana que buscaria recursos para suas necessidades por outras vias. Por último, o terceiro adota o discurso da focalização, ou seja, orienta a destinação dos aparatos e recursos públicos de saúde para os segmentos mais vulneráveis e/ou problemas específicos da população, afastando-se da perspectiva de integralidade das ações e dos sujeitos.

Em que pese o contexto particular da Atenção Primária à Saúde (APS), a discussão sobre os desdobramentos da cobertura universal torna-se mais evidente. Conforme consta desde o relatório final da Conferência de Alma Ata até a última Conferência Internacional de Cuidados Primários, realizada em 2018, em Astana, esse nível de atenção ocuparia o lugar central dos sistemas de saúde(²). Ademais uma APS robusta poderia ser responsável por solucionar mais de 80% das necessidades em saúde da população. Todavia, sua estruturação, sobretudo nos países em desenvolvimento, como na América Latina, se deu de forma seletiva. As questões de ajuste fiscal e reformas macroeconômicas estruturais de corte neoliberal foram determinantes para frear o desenvolvimento de uma APS forte e resolutiva(³-⁴).

A APS é o nível de atenção dos sistemas de saúde mais próximo da realidade dos indivíduos. A construção de uma “cesta mínima” e diversificada de serviços sempre foi tensionada pelas agências internacionais, sobretudo pelos relatórios “técnicos” produzidos pelo BM, sempre preocupado com o controle dos gastos públicos. Assim, a perspectiva da APS seletiva estaria atrelada à proposta de cobertura universal — uma estratégia pela qual os indivíduos estariam cobertos, não de modo integral, mas com uma cesta mínima de recursos para a satisfação das suas necessidades de saúde. O enfoque seletivo descarta os determinantes sociais do processo saúde-doença-cuidado ao resumir-se a problemas de saúde pré-determinados e de forma isolada do contexto no qual o indivíduo se insere(^{1 2}).

Pensar em uma cobertura que restringe a oferta de serviços em detrimento de um sistema de caráter universal é expor a questão social das desigualdades existentes em uma sociedade. Nesse jogo de poder e resistência, a APS e todo o aparato tecnológico que envolve esse nível de atenção tornam se alvo de interesses do setor privado. Em suma, os ataques a esse nível de atenção dirigem se sempre ao Estado, acusado de ser mal gestor e perdulário.

A enfermagem é reconhecida em todo o globo como “espinha dorsal” de qualquer sistema de saúde(⁵). No Brasil, verificou-se um aumento de aproximadamente 40% no número desses profissionais entre os anos de 2013 e 2018, totalizando 2.119.620 profissionais de enfermagem habilitados ao exercício profissional em 2018(⁶). Eles são cruciais na prestação de cuidados integrados e centrados nas pessoas bem como essenciais no alcance das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável(⁶).

Ademais, os enfermeiros têm uma formação educacional particularmente adequada para os crescentes desafios do século XXI, caracterizados por uma transição demográfica acelerada, acompanhada por um cenário de tripla carga de doenças: a agenda não superada das doenças infectocontagiosas; o aumento dos óbitos atribuíveis às causas externas; e a predominância das doenças crônicas não transmissíveis. De fundo, tem-se um sistema de saúde reativo e fragmentado em que o hospital ainda é lócus privilegiado da assistência(⁴).

Em diversos países do mundo, os enfermeiros de prática avançada já apresentam sua regulamentação bem estabelecida, como Estados Unidos da América, Canadá, Reino Unido, Austrália, entre outros(⁷). De maneira geral, as funções dos enfermeiros de prática avançada foram implementadas nesses países com o intuito de maximizar o acesso à APS e possibilitar um acompanhamento mais preciso dos pacientes e comunidades, especialmente nas localizações com expressivos vazios assistenciais(⁶).

De acordo com o Conselho Internacional de Enfermagem (CIE), os enfermeiros de prática avançada (nurse practitioners) são

profissionais com habilidades e competência clínica para tomar decisões complexas, expandir e aperfeiçoar a prática de enfermagem, promover maior inclusão e melhor cuidado na assistência à saúde, dentro do contexto da prática baseada em evidência e da inovação tecnológica; sendo o grau de mestre a exigência mínima de formação(⁸).

Dentre os enfermeiros de prática avançada, destacam-se o nurse practitioner (NP) e o clinical nurse specialist. Os nurse practitioners apresentam um maior engajamento com o cuidado e prática clínica, ao passo que os clinical nurse specialists estão mais envolvidos com as atividades de educação e gestão(⁸). O CIE incluiu sete atividades clínicas dos enfermeiros de prática avançada: I. Autonomia para prescrever; II. Autonomia para solicitar exames médicos e dispositivos; III. Realização de diagnóstico ou avaliação avançada de saúde; IV. Autonomia para indicar tratamentos médicos; V. Responsabilidade sobre os usuários; VI. Autonomia para referenciar/contrarreferenciar usuários; VII. Primeiro contato(⁸).

OBJETIVO

Refletir sobre a enfermagem de prática avançada na APS considerando a complexidade do sistema de saúde brasileiro.

MÉTODOS

Estudo reflexivo, fundamentado no documento intitulado “Ampliação do papel dos enfermeiros na Atenção Primária à Saúde”, na formulação discursiva acerca da temática. Foi sustentado por um levantamento bibliográfico em duas bases de dados: LILACS e na MEDLINE via PubMed; e em uma Biblioteca Virtual - SciELO, com os seguintes descritores: “Universal Health System”, “Universal Health Coverage”, “Primary Heath Care”, “Unified Health System”; e “Advanced Nursing Practice”. Com base na construção teórica sobre o pensar reflexivo, foram abordados dois eixos condutores: I) Sistemas de saúde universais baseados na Atenção Primária à Saúde: o caso brasileiro; e II) Enfermagem de prática avançada e a ampliação do papel dos enfermeiros na Atenção Primária à Saúde: um debate sobre as duas faces da implementação. Salienta-se que as explanações e reflexões foram sobre esses dois eixos condutores; e as interpretações foram dirigidas com base nos conceitos de “sistema universal de saúde” versus “cobertura universal em saúde” (CUS).

RESULTADOS

Sistemas de saúde universais baseados na Atenção Primária à Saúde: o caso brasileiro

A APS é considerada um nível de atenção essencial para os sistemas de saúde, sendo a sua importância fundamentada na qualidade de vida e no desenvolvimento das populações de países que fazem sua adesão como suporte para os serviços de saúde. Isso é demonstrado também pela maior evidência no fluxo dos usuários dentro da Rede de Atenção à Saúde (RAS), tratamento mais oportuno e preciso diante das condições crônicas, maior eficiência do cuidado, aumento na utilização de práticas preventivas, melhores indicadores de saúde, maior satisfação dos usuários e diminuição das iniquidades em saúde e de acesso aos serviços e garantia da integralidade da atenção(²). Duas características distintas e interdependentes são inerentes a uma concepção de APS forte, sendo representadas como estratégia para organização dos sistemas de saúde, num primeiro nível de atenção; e como reorientadora do modelo de atenção à saúde. Norteia-se por atributos essenciais e atributos derivados, os quais são consolidados internacionalmente(²,⁹).

No Brasil, a escolha pelo enfrentamento das iniquidades em saúde elevou a APS à condição de ordenadora da RAS e coordenadora do cuidado, contrapondo-se à perspectiva limitada de vários países e instituições internacionais, que a compreendem como um conjunto de ações de saúde de baixa complexidade, prestadas à população de baixa renda, com finalidade de diminuir a exclusão social e econômica(⁹). Contudo, a APS brasileira vem sofrendo constantes ameaças nos últimos anos (p.ex., o Previne Brasil) e passando por problemas tais como o subfinanciamento crônico, excesso de usuários vinculados às equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF), número reduzido de profissionais médicos especializados em Saúde da Família, pouca descentralização e interiorização, além de burocratização e problemas funcionais dos serviços(⁹).

No Brasil, uma das estratégias assumidas pelo governo brasileiro foi a criação do Programa Mais Médicos (PMM), instituído pela Lei nº 12.871, de 22/10/2013, com três eixos: 1) ofertas de vagas e novos cursos de Medicina com componentes curriculares reformadas; 2) investimento para construção de Unidades Básicas de Saúde; e 3) provimento de profissionais médicos brasileiros e estrangeiros em regiões vulneráveis(⁹). Em agosto de 2019, foi instituído o Programa Médicos pelo Brasil (PMB) pela Medida Provisória (MP) nº 890, que culminou na criação da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (ADAPS) visando: i) ampliar a prestação de serviços médicos nos vazios assistenciais ou em áreas de alta vulnerabilidade; ii) fomentar a formação de médicos especialistas em Medicina de Família/Comunidade(⁹).

A MP 890 foi instituída em um momento de instalação de uma crise no provimento de médicos na APS, resultante da retirada dos médicos cubanos do PMM, somada a um expressivo desfinanciamento agudizante do SUS. No macroâmbito, têm-se as políticas neoliberais em um governo de extrema-direita, caracterizado por perda de direitos trabalhistas e sociais, crescentes iniciativas de privatização pulverizadas nos diversos setores da sociedade brasileira, incluindo a saúde. Destarte, a criação da ADAPS sinaliza para uma perspectiva privatista da APS no SUS(⁹). Em adição, não há evidências suficientes para ratificar que a privatização ou terceirização sejam mais custo-efetivas do que a provisão pelo público(⁹). Salienta-se que a fixação de médicos na APS, principalmente em áreas remotas e de alta vulnerabilidade social e programática, apresenta-se como um grande desafio para os todos os sistemas de saúde.

Enfermagem de prática avançada e a ampliação do papel dos enfermeiros na Atenção Primária à Saúde: um debate sobre as duas faces da implementação

Os avanços que a EPA pode trazer, especialmente na APS, precisam ultrapassar o mero entendimento e discurso da simples substituição do profissional médico(⁸). Em âmbito nacional, por exemplo, devem ser incentivadas iniciativas voltadas ao desenvolvimento de evidências para a implantação e avaliação do papel da EPA. Da mesma forma, é crucial a construção de uma rede de profissionais e partes interessadas no desenvolvimento da EPA, fomentando reflexões sobre a conjuntura política e barreiras para sua efetivação no contexto do SUS(⁸).

O bicentenário do nascimento de Florence Nightingale no ano de 2020 lapida a enfermagem moderna reconhecendo sua importância global nos sistemas de saúde(⁵). Contudo, apesar de sua representatividade e da reconhecida relevância de seu trabalho, a profissão permanece em muitos aspectos ainda invisível e subvalorizada, especialmente nos processos de tomada de decisão em saúde(⁵-⁶,¹⁰). A enfermagem brasileira, por exemplo, tem sido historicamente afetada pela opressão relacionada ao gênero, à falta de reconhecimento e à falta de investimento em recursos para prover melhores condições de formação, melhores condições no local de trabalho e melhores salários(⁶).

No Brasil, essas repercussões podem ser ainda maiores, pois, em muitos serviços de saúde, especialmente na APS, os enfermeiros, além de executarem suas ações assistenciais, coordenam esses espaços, cuidando dos bens materiais, dimensionamento de pessoal, entre outras ações. Além disso, não há, em muitos municípios, plano de carreira específico para profissionais inseridos na ESF; falta um piso nacional salarial para os profissionais de enfermagem, o que resulta em baixos salários; e esses profissionais ainda trabalham com uma carga horária muito elevada(⁶,¹⁰). Ademais, as reivindicações e lutas perante as autoridades públicas em prol da valorização dos profissionais de enfermagem no Brasil são históricas. Dessa forma, além do reconhecimento e da valorização da sua expressão numérica, é fundamental que se valorize uma enfermagem de alta qualidade para a liderança, elaboração e implementação de políticas de saúde, participação em processos decisórios e atuação desde o planejamento ao cuidado prestado a grupos específicos da população(⁵-⁶,¹⁰).

Nessa perspectiva, é imperativo o investimento na qualificação de enfermeiros, por meio de programas de especialização, residência, mestrados profissionais e mestrado e doutorado acadêmicos, com o intuito de prepará-los para lidar com os problemas de saúde em nível mundial, para que suas contribuições sejam apropriadamente compreendidas, assim como suas potencialidades. Dentre as manifestações do reconhecimento da enfermagem como profissão-chave para a saúde e para o alcance da cobertura e do acesso universal de saúde, foi lançada, em fevereiro de 2018, a campanha global Nursing Now (2018-2020), implementada em colaboração entre o CIE e a OMS, com o apoio do Burdett Trust for Nursing(⁵). Destacou-se a premência de se elevar o perfil dos enfermeiros de modo que essa categoria de profissionais desenvolva seu pleno potencial, para impactar a saúde, a igualdade de gênero e a economia(⁵). A Nursing Now parte do pressuposto de que as agendas de saúde não serão bem-sucedidas se não houver enfermeiros em posições de liderança, nos diferentes espaços de definição de políticas de saúde e de tomadas de decisão política para a saúde, com maior eficácia no desempenho de suas funções(⁵).

Também em 2018, a OPAS e a OMS elaboraram o documento “Ampliação do papel dos enfermeiros na Atenção Primária à Saúde”(⁷), no qual conclamavam os governos e enfermeiros de países da América a implementarem a formação dos enfermeiros de prática avançada para a APS. O Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) tem apoiado a iniciativa de EPA no Brasil, subsidiando programas de mestrado profissional por todo o país.

Segundo a OPAS/OMS, os enfermeiros de prática avançada na APS são profissionais com formação de pós-graduação que contribuem sobremaneira para a gestão dos cuidados de pacientes com enfermidades agudas leves e condições crônicas diagnosticadas via diretrizes/protocolos clínicos. A EPA se diferenciaria do exercício profissional do enfermeiro na APS em razão do grau de autonomia na tomada de decisões e do diagnóstico e tratamento das condições de saúde dos pacientes(⁷). Evidências cientificas demonstram o impacto dos enfermeiros de prática avançada nos serviços e nos custos de saúde(⁶,¹⁰), ainda que os países mais desenvolvidos e com a maior relação médicos por habitantes sejam aqueles que incorporaram mais enfermeiros de prática avançada do que os países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos(⁶,¹⁰).

Estudo realizado em 39 países, com objetivo de analisar os estágios de desenvolvimento da EPA na APS em distintos países(¹¹), verificou a importância de reformas políticas e educacionais para maximizar o escopo de atuação clínica dos enfermeiros de prática avançada. Assim, é premente a definição clara e padronizada dos papéis, da formação mínima para a função, da liderança e protagonismo das associações de enfermagem, órgãos de normatização, regulação e fiscalização do exercício profissional. Além disso, são relevantes e recomendadas as articulações intersetoriais em âmbito nacional e internacional para esse desenvolvimento e incorporação dos enfermeiros de prática avançada. Salienta-se que o sucesso da implementação da EPA na APS depende de profunda avaliação das necessidades dos serviços, da RAS, das particularidades de cada sistema de saúde e sobretudo, das reais necessidades de saúde da população do/no território. Igualmente importante é o envolvimento de todas as partes interessadas que prestam assistência e cuidados colaborativos com enfermeiros no cenário de atuação profissional e com usuários, a fim de alinhar as expectativas sobre o escopo da prática dos enfermeiros de prática avançada nesse nível de atenção(¹²).

De modo a compreender o processo de implementação e avaliação da EPA, algumas barreiras aos sistemas de saúde se interpõem e precisam ser transpostas. Primeiro, ainda paira certa confusão na terminologia da EPA. Segundo, há falhas importantes na definição de papéis e objetivos dos enfermeiros de prática avançada. Terceiro, ainda existe uma ênfase na compreensão limitada de substituição de médicos. Quarto, verifica-se uma subutilização de todos os domínios da EPA. Quinto, é nítida a falha na análise dos fatos macroestruturais que engloba diferentes atores e partes interessadas (sociedade, sistema de saúde, enfermeiros, associações, órgãos de regulação e normatização do exercício profissional, instituições formadoras, locais de trabalho); e por fim, ainda é muito incipiente a adoção e incorporação da prática baseada em evidências por parte dos enfermeiros da APS no cotidiano dos serviços e na prática clínica(¹²).

Cumpre ressaltar que a EPA contribui para ampliar o acesso e a CUS; e, para sua implementação, três lições políticas são essenciais: i) realizar debates baseados em evidências sobre a qualidade, segurança e satisfação do paciente com os cuidados prestados por enfermeiros de prática avançada; ii) garantir políticas de regulação, normatização, recursos humanos, financiamento e formação adequadas a essa categoria profissional; iii) compreender que os enfermeiros de prática avançada melhoram a enfermagem enquanto carreira, por isso é importante desenvolver políticas que fortaleçam a enfermagem para atingir seu pleno potencial(¹²).

Embora as experiências internacionais reportem diferentes estágios de desenvolvimento da EPA em diversos países, ainda permanecem incipientes ou mesmo escassas as discussões e as pesquisas sobre EPA na América Latina e no Caribe. Especialmente nessas regiões, as demandas e necessidades de saúde são muito complexas, para além do fato de os sistemas de saúde apresentarem disparidades e iniquidades em saúde expressivas(⁷). Apesar dos benefícios aparentes da implementação da EPA na APS, as repercussões para os enfermeiros de prática avançada podem apresentar fragilidades em seu processo laboral, pois assumem uma sobrecarga de trabalho dos médicos, intensificando o seu exercício(¹⁰). Um ponto importante a se levar em conta ao se discutir acesso universal à saúde diz respeito à singularidade e à organização do sistema de saúde no qual os profissionais de enfermagem se inserem. No Brasil, por exemplo, temos o SUS (um “sistema de saúde universal”) e que não deve ser confundido com “cobertura universal de saúde” nem tratado de forma intercambial com esta. Experts da área de saúde coletiva e que estudam com profundidade os sistemas de saúde diferenciam esses dois termos de forma bastante clara e assertiva(¹,⁹).

Na última década, acirrou-se o debate internacional sobre diferentes concepções de universalização da saúde, polarizado em duas vertentes: Sistema Universal de Saúde (do inglês, Universal Health System - UHS) versus Cobertura Universal em Saúde (do inglês, Universal Health Coverage). Na Europa, em geral, universalidade diz respeito à cobertura pública de sistemas nacionais, sob designações de CUS ou Universal Health Care. Já para países em desenvolvimento, o termo CUS consiste na cobertura de serviços básicos (cesta mínima de serviços), ou cobertura de seguros de saúde, públicos ou privados(¹).

CUS apresenta-se como termo ambíguo, muitas vezes utilizado de forma intercambial com UHS e que tem imputado diferentes interpretações por parte das autoridades sanitárias, organizações governamentais e não governamentais, nos diversos países. A proposta de CUS resume-se em elementos essenciais: 1) foco no financiamento por fundos combinados; 2) afiliação por modalidade de asseguramento; e 3) cesta limitada de serviços. Na verdade, a “cobertura” consiste na titularidade por um seguro, ou seja, refere-se somente à cobertura financeira; e isso não significa, em tese, garantia de acesso ou prestação de serviços e uso efetivo(¹).

A CUS, no âmbito internacional, visa compatibilizar UHS com reformas pró-mercado no sentido de harmonizar a prestação de serviços em contextos de recursos escassos(¹). O propósito da CUS é minimizar o papel do Estado, confinando-o no espaço da regulação do sistema de saúde. Ressalta-se que existem características distintas das propostas de UHS e de CUS em termos de tipo de cidadania e ideologia, isto é, na UHS, prevalece uma cidadania plena; já na CUS, verifica-se uma cidadania residual, alinhada a uma ideologia neoliberal(¹,⁹).

A proposta de UHS é financiada por fundos públicos originados da receita de impostos gerais e contribuições sociais, o que possibilita maior solidariedade, redistribuição e equidade(¹). Sobretudo, a UHS tem o intuito de que todas as pessoas tenham as suas reais necessidades atendidas sem restrições para o acesso, ou seja, consagra a garantia do acesso universal como condição de cidadania plena(¹,⁹). Na proposta de UHS, a garantia de cuidado integral, no âmbito individual e/ou coletivo, pressupõe a coordenação entre serviços, organizados em redes, na territorialização e orientados pela APS. Sistemas universais integram cuidados individuais e ações coletivas de prevenção e promoção, e seu enfoque populacional exige a promoção de políticas transversais intersetoriais para atuar/intervir no enfrentamento dos determinantes sociais da saúde(¹,⁹-¹⁰).

A APS é preconizada como estratégia para a cobertura universal, todavia pode ter significados muito diferentes. Na proposta de CUS, APS refere-se a uma cesta limitada de serviços e medicamentos essenciais definidos em cada país, aproximando-se mais de uma abordagem de APS seletiva para alcance de uma universalização mínima. Distingue-se da proposta integral e robusta dos UHSs, em que a APS ocupa o centro da rede assistencial, é ordenadora da rede e coordenadora do cuidado, além de ser a base do sistema de saúde(¹,¹⁰). A concepção de CUS está mais atrelada às demandas de seguradoras nacionais, do capital financeiro e de organismos internacionais por ampliação de participação na mercantilização da saúde. Salienta-se que o fortalecimento do setor privado representa a maior ameaça ao SUS e ao direito universal à saúde. A proposta de CUS é pouco clara quanto a seus pressupostos e propósitos. A utilização de conceitos semelhantes, e de forma intercambial no documento da OPAS/OMS(⁷), aos previstos para um sistema universal de saúde dificulta a compreensão das mudanças em curso.

Nesse sentido, respeitando-se os princípios doutrinários e organizativos do SUS, essas transformações em curso devem acontecer por meio do desenvolvimento de políticas que fortaleçam a formação (principalmente na pós-graduação), a regulação dessa prática profissional, a educação permanente e o reconhecimento e valorização dos enfermeiros de prática avançada para que assumam e desempenhem seu pleno potencial no âmbito do SUS(⁹). Pesquisadores afirmam que, de fato, o Brasil tem todas as condições para ampliar, reconhecer, valorizar e ampliar o papel dos enfermeiros de prática avançada na APS. Contudo, caberá um forte e integrado trabalho coletivo, englobando governo, associações profissionais, Conselho Nacional de Saúde, universidades, entre outros atores, na sensibilização dos profissionais de saúde e também da população em geral(⁶).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A APS, como importante nível de atenção para garantia do acesso universal aos sistemas de saúde e efetivação da integralidade, necessita de uma atenção maior quanto aos problemas relacionados aos recursos humanos. Isso porque existe uma insuficiência e escassez de profissionais, bem como despreparo para suprir as condições desse nível de atenção, que abrange uma diversificada e complexa realidade sanitária. Ademais, o SUS enfrenta, atualmente, ameaças à sua consolidação, evidenciadas pelos diversos ataques no plano político, somados ao risco de desmonte com a onda neoliberal que avança no Brasil, além das políticas de austeridade fiscal. No âmbito internacional, o SUS se vê ameaçado diante da proposta CUS e da ação política dos que defendem sistemas de saúde orientados para o mercado em detrimento dos UHSs baseados em APS.

Devido à diversidade cultural, histórica, social, político-administrativa, dos mecanismos de financiamento, recursos humanos, e diante das reais necessidades de saúde da população, é crucial que o Brasil realize seu próprio processo sistemático para priorizar e definir o papel ou papéis da EPA a ser(em) implementado(s) no âmbito do SUS. Esse processo sistemático de definição de papéis dos enfermeiros de prática avançada brasileiros precisa incluir no seu bojo a promoção e fortalecimento da APS com valorização da força de trabalho dos enfermeiros de prática avançada, por meio de um plano de carreira reconhecido e desejável por esses profissionais. Deve ainda: incluir a base para a certificação/acreditação; primar por programas de pós-graduação e de educação permanente; guiar revisões de planos de cargos e salários e avaliação de desempenho; fomentar a formação de professores enfermeiros.

Espera-se que a ampliação da força de trabalho para a atuação no SUS e a inserção da EPA permitam um maior reconhecimento e incentivos para as ações executadas nesse nível de atenção. Por exemplo, tais ações devem ocorrer via integração entre os profissionais e a comunidade nas ações de promoção de saúde, com disponibilidade de tecnologias adequadas ao trabalho, de modo a garantir que haja qualidade e resolutividade da APS e, sobretudo, que os usuários assistidos por esse nível de atenção sintam-se acolhidos e obtenham melhores desfechos no seu processo saúde-doença-cuidado.

MATERIAL SUPLEMENTAR

Lopes-Júnior LC; Bolina AF, Lazarini WS, Sarti TD, Andrade J, Elauar RB, et al. Atenção Primária à Saúde forte e robusta: uma necessidade premente. In: Silva Júnior FJG, Sales JCS, Galiza FT, Lopes-Júnior LC (Orgs.). Políticas, Epidemiologia e Experiências no Sistema Único de Saúde (SUS) - possibilidades e desafios do cenário brasileiro.2ed.Curitiba-PR: CRV, 2021;2:19-35. doi: 10.24824/978652511188.9

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Editado por

EDITOR CHEFE: Álvaro Sousa

EDITOR ASSOCIADO: Carina Dessotte

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  09 Maio 2022
• Data do Fascículo
  2022

Histórico

• Recebido
  24 Jul 2021
• Aceito
  11 Fev 2022