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Motivos atribuídos às tentativas de suicídio: percepção dos adolescentes

RESUMO

Objetivo:

Identificar os motivos atribuídos às tentativas de suicídio na percepção dos adolescentes.

Métodos:

Pesquisa qualitativa, realizada com 10 adolescentes que tentaram o suicídio e foram atendidos em um Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil de um município do Sul do Brasil. Os dados coletados por meio de entrevistas semiestruturadas, realizadas em julho de 2020, via aplicativo WhatsApp, foram analisados conforme análise temática de conteúdo de Minayo.

Resultados:

Foi possível identificar, nas falas dos adolescentes, os motivos desencadeadores das tentativas de suicídio, tais como mudanças no ciclo de vida e violência, em busca de uma solução para os problemas que os afligiam.

Considerações finais:

Ficou evidente a notória dificuldade de enfrentamento dos problemas vivenciados entre os adolescentes, provavelmente, também, pela inexperiência em lidar com as frustrações e decepções da vida.

Descritores:
Suicídio; Adolescente; Percepção; Saúde Mental; Enfermagem

ABSTRACT

Objective:

identify the reasons for attempting suicide from the perspective of adolescents.

Methods:

qualitative study conducted with ten adolescents who attempted suicide and were attending a Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil located in a city in the south of Brazil. Semi-structured interviews were held in July 2020 using WhatsApp. Data were analyzed according to Minayo’s Content Thematic Analysis.

Results:

the adolescents’ reports listed the reasons that triggered suicide attempts, such as changes in the adolescents’ life cycle and violence, which led them to attempt suicide to solve problems.

Final considerations:

Data analysis revealed the reasons that triggered suicide attempts from the adolescents’ perspective and difficulties to cope with problems, probably explained by their lack of experience in dealing with frustrations and disappointments.

Descriptors:
Suicide; Adolescent; Perception; Mental Health; Nursing

RESUMEN

Objetivo:

identificar los motivos atribuidos a intentos de suicidio en la percepción de adolescentes.

Métodos:

investigación cualitativa, realizada en 10 adolescentes, que practicaron intentos de suicidio, atendidos en un Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil, en un municipio del sur de Brasil. Las entrevistas fueron semiestructuradas y realizadas en julio de 2020, a través del aplicativo Whatsapp. Los datos fueron analizados de acuerdo al análisis temático de contenido de Minayo.

Resultados:

fue posible identificar a través de las declaraciones de los adolescentes, los motivos que desencadenaron los intentos de suicidio; por ejemplo, los cambios en el ciclo de vida del adolescente y la violencia, lo que llevó a los intentos de suicidio como siendo la solución para sus problemas.

Consideraciones finales:

el análisis de los datos permitió identificar: los motivos atribuidos a los intentos de suicidio por los adolescentes; la dificultad para enfrentar los problemas experimentados; y, probablemente también, por la inexperiencia en administrar las frustraciones y decepciones de la da vida.

Descriptores:
Suicidio; Adolescente; Percepción; Salud Mental; Enfermería

INTRODUÇÃO

A fase da adolescência centra-se no desenvolvimento biopsicossocial, na construção da maturidade para estabelecer relacionamentos interpessoais, definir provável atuação profissional e formar a identidade. Diante das novas exigências impostas durante esta fase da vida, o adolescente, geralmente, vai buscando se adaptar aos diferentes contextos dos quais começa a participar, mobilizando os recursos pessoais e habilidades sociais por ele construídos no decorrer do seu processo de desenvolvimento(11 World Health Organization. Coming of age: adolescent health [Internet]. Geneva: WHO; 2019[cited 2020 Sep 08]. Available from: https://www.who.int/healthtopics/adolescents/coming-of-age-adolescent-health
https://www.who.int/healthtopics/adolesc...
).

O adolescente, por não se sentir ouvido, reconhecido e, muitas vezes, pela própria dificuldade de se expressar verbalmente, manifesta, de forma não verbal, por meio de seus comportamentos inadequados, que algo não está bem e que não se sente recebendo a atenção, a compreensão e o carinho que necessita e gostaria de ter da família e da sociedade. Nesta fase, o jovem costuma agir com imediatismo e impulsividade; quando não tem o sentimento de pertença ao meio social em que vive, pode vislumbrar, como único caminho para a resolução dos problemas, terminar com a vida, ou seja, com seu sofrimento interior(22 Santos AA, Barros DB, Lima BM, Brasileiro TC. Automutilação na adolescência: compreendendo suas causas e consequências. Temas Saude. 2018;18(3):120-47. https://doi.org/10.29327/213319.18.3-8
https://doi.org/10.29327/213319.18.3-8...
).

Na maioria das vezes, os adolescentes adotam comportamentos de risco, como ausência da noção do perigo e, por isso, se colocam em situações que podem tirar sua vida, como a violência, jogos de suicídio e festas com uso liberado de drogas lícitas e ilícitas. Somam-se a isso fatores internos, tais como ansiedade excessiva, angústias ou conflitos pessoais em relação à autoestima e à autoimagem que, associados a aspectos externos como conflitos familiares ou sociais, podem levá-los a tentativas de suicídio. Frequentemente, as consequências dos problemas vivenciados pelos indivíduos ao longo do desenvolvimento, sobretudo relações distantes, conflituosas, traumas e diversos tipos de violência, somadas ao seu modo de ser, podem desencadear transtornos mentais, sendo o mais predominante o transtorno depressivo. As dificuldades na interação social e a falta de esperança também costumam estar relacionadas com as tentativas de suicídio.

O suicídio é a terceira causa de morte entre adolescentes de 15 a 19 anos, segundo a Organização Pan-Americana de Saúde, sendo estimado que 62 mil adolescentes morrem mundialmente por agravos cometidos contra si mesmos(33 Organização Pan-Americana da Saúde. Saúde mental dos adolescentes [Internet]. Brasília, DF: OPAS; 2018[cited 2019 Jul 28]. Available from: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5779:folha-informativa-saude-mental-dos-adolescentes&Itemid=839
https://www.paho.org/bra/index.php?optio...
). Em 2017, no Brasil, ocorreram 1.047 mortes por lesões autoprovocadas voluntariamente apenas no grupo de crianças e adolescentes com idade entre 10 e 19 anos e, especificamente no estado do Rio Grande do Sul, foram registrados 80 casos nesta faixa etária(44 Ministério da Saúde (BR). TabNet: óbitos por causas externas Brasil [Internet]. Brasília, DF: MS; 2017[cited 2020 Sep 08]. Available from: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sim/cnv/ext10uf.def
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi....
).

Assim, para melhor compreensão dos fatores que motivam as tentativas de suicídio entre adolescentes residentes em um município do extremo Sul do Brasil, o presente estudo apresenta a seguinte questão de pesquisa: Quais motivos são atribuídos às tentativas de suicídio pelos adolescentes?

OBJETIVO

Identificar os motivos atribuídos às tentativas de suicídio na percepção dos adolescentes.

MÉTODOS

Aspectos Éticos

Foram seguidos todos os preceitos éticos estabelecidos para o desenvolvimento de pesquisas com seres humanos, conforme determinam a Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde, e a Resolução nº. 510, de 07 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde/ Ministério da Saúde (CNS/MS). A pesquisa também recebeu a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande (CEP/FURG) e do Núcleo Municipal Educação em Saúde (NUMESC) da cidade do Rio Grande.

Tipo de Estudo

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, oriunda da dissertação de mestrado intitulada “Visibilidade da(s) tentativa(s) de suicídio a partir dos discursos dos adolescentes”, de natureza exploratória e descritiva. A abordagem qualitativa abrange o universo dos significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes que não podem ser reduzidos à operacionalização de varáveis e que estão diretamente ligados aos processos de interação entre as pessoas(55 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2014.). As expectativas exploratórias neste estudo dizem respeito aos motivos atribuídos às tentativas de suicídio na percepção dos próprios adolescentes. O roteiro COREQ foi utilizado para coleta de dados.

Procedimentos metodológicos

Cenário de estudo

O cenário do estudo foi o Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPS i) localizado no município do Rio Grande, na região Sul do Brasil, fundado em 17 de dezembro de 2009 para atender necessidades específicas das crianças e adolescentes com até 17 anos completos. Trata-se de um serviço de atenção psicossocial com características comunitárias de atenção diária à saúde, no espaço extra-hospitalar, em consonância com os princípios do SUS. Há garantia do acesso universal e tem como população-alvo crianças e adolescentes que apresentam transtornos mentais graves e severos, incluindo a família no tratamento prestado. Neste dispositivo de saúde, são realizadas intervenções terapêuticas, tais como atendimentos individuais, grupais, oficinas terapêuticas, atendimento familiar, visitas domiciliares e atividades de reinserção social e escolar. Durante o período da pandemia da COVID 19, o CAPS i atendia de forma on-line 17 adolescentes que praticaram tentativas de suicídio, os quais foram convidados a participar do estudo.

Fonte de dados

Participaram desta pesquisa dez adolescentes que atenderam aos seguintes critérios de inclusão estabelecidos para este estudo: estar participando dos grupos de apoio e dos atendimentos on-line, ter praticado tentativa de suicídio e encontrar-se na faixa etária de 10 a 17 anos, 11 meses e 29 dias, idade limite de acolhimento no CAPS i. Constituíram critérios de exclusão: participar dos grupos há menos de três meses, visto que o adolescente poderia estar em fase de adaptação ao tratamento e, portanto, não apto a falar sobre si mesmo.

Realizou-se contato inicial com 17 adolescentes que estavam recebendo atendimento de forma on-line, dos quais dez aceitaram participar da pesquisa. Do restante, três recusaram o convite por motivos pessoais, dois responsáveis não consentiram a participação, alegando inaptidão do filho para falar a esse respeito, um estava evadido da residência e outro foi desconsiderado por não estar apto a responder sobre si. No total, participaram deste estudo dez adolescentes com histórico de tentativas de suicídio.

Coleta de dados

A coleta dos dados ocorreu de forma on-line por ligações de vídeo e de áudio, via aplicativo WhatsApp, no mês de julho de 2020. Durante essas ligações, foram aplicadas entrevistas semiestruturadas compostas por 19 perguntas abertas, para que o participante pudesse falar e expressar melhor o que estava sentindo. As perguntas buscaram identificar a percepção do adolescente acerca do suicídio: A partir de que momento você começou a apresentar os sintomas depressivos? Qual o principal motivo que o levou a tentar tirar a própria vida? Quantas vezes você tentou tirar a própria vida e quais meio(s) você utilizou para fazer isto? Por que você considerou que o suicídio poderia ser a solução para os seus problemas?

Os depoimentos foram gravados e transcritos na íntegra, sendo assegurada a veracidade dos dados. Todos os responsáveis consentiram a participação do adolescente através de uma gravação de áudio via WhatsApp após a apreciação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Após a autorização dos responsáveis, todos os adolescentes assentiram suas participações, também por meio de uma gravação de áudio, após a análise do Termo de Assentimento Livre Esclarecido (TALE).

As entrevistas tiveram duração de quinze a cinquenta minutos, tendo a maioria durado, em média, 30 minutos. A entrevistadora manteve-se em uma sala apropriada, sem ruídos, em ambiente de aparência tranquila. Alguns adornos presentes nesta sala a tornavam visualmente mais aconchegante, como poltrona e planta, para que, mesmo de forma remota, pudesse ser agradável e transmitir segurança e confiança aos adolescentes, sendo garantido o sigilo das informações. Já os adolescentes, ao responderem a entrevista, encontravam-se em seus quartos, sozinhos, para evitar qualquer tipo de interferência das demais pessoas que residiam no domicílio. A fim de preservar o anonimato dos participantes, estes foram identificados com a letra “A” (adolescente), seguida das letras M (para sexo masculino) e F (para o feminino), conforme autodeclaração do adolescente.

Destaca-se que as pesquisadoras não realizaram treinamento prévio para a condução de entrevistas on-line, o que pode ter possibilitado lacunas nos resultados da pesquisa. No entanto, a pesquisadora responsável tem experiência com a temática de prevenção do suicídio e, inclusive, participou cursos sobre atendimento remoto e prática com discentes em serviços de saúde mental. Além disso, a entrevistadora, por ter trabalhado com adolescentes durante sua trajetória acadêmica, desenvolveu habilidades de aproximação com esta população, o que favoreceu o estabelecimento de vínculo de confiança e troca de conhecimentos durante o desenvolvimento da pesquisa, permitindo contemplar o objetivo proposto para este estudo.

Análise de dados

Os dados foram analisados segundo a proposta da Análise Temática de Conteúdo de Minayo(55 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2014.). Tal proposta é definida como um conjunto de técnicas de análise de comunicação, por meio das quais o pesquisador constrói o conhecimento a partir da análise dos discursos, visando não apenas conhecer os significados das palavras, mas, também, a mensagem nelas implícita. A análise temática é constituída por três etapas.

Na primeira, pré-análise, fez-se a leitura criteriosa das transcrições das entrevistas, retomando os objetivos da pesquisa. Durante a leitura do material emergiram novas situações, de acordo com o tema, as quais foram posteriormente analisadas junto com os resultados já existentes na literatura. A segunda etapa, de exploração do material, consistiu no processo de categorização, por meio do agrupamento de semelhanças e diferenças advindas das falas dos adolescentes. Por fim, a terceira etapa contemplou o tratamento dos resultados obtidos e a interpretação dos dados. Esta etapa permitiu que os dados reunidos fossem relacionados e interpretados, utilizando autores que abordam o tema da pesquisa, evidenciando os significados e resultados advindos do estudo e, também, com base nos discursos dos participantes.

Os adolescentes e os profissionais do CAPS i foram convidados a participar da apresentação dos resultados obtidos em uma cerimônia pública, aberta e realizada de forma remota. Isso permitiu a divulgação do conhecimento produzido a todas as pessoas diretamente envolvidas, com consequente troca de saberes e aprimoramento do processo de cuidar.

Da análise dos dados emergiram duas categorias: Mudanças no ciclo de vida do adolescente e a violência: motivos desencadeadores das tentativas de suicídio e o suicídio: enfrentamento e/ou solução dos problemas.

RESULTADOS

Caracterização dos participantes

Nove dos dez participantes eram do sexo feminino e um considerava-se não binário, ou seja, identificava-se com o gênero oposto ao sexo do nascimento. Indivíduos binários não se enquadram no gênero previamente determinado e não se autodeclaram exclusiva e totalmente mulheres e/ou homens, visto que permeiam diferentes formas de neutralidade, parcialidade em suas identificações.

Os adolescentes que participaram deste tudo tinham entre 12 e 17 anos, a maioria na faixa etária de 14 a 17 anos. Em relação à residência, três residiam com a mãe, quatro com os progenitores e três contavam com a presença do padrasto no mesmo domicílio. Alguns também relataram a coabitação com irmãos e uma adolescente dividia a casa com os avós. Todos eram estudantes e cursavam entre o sexto ano do Ensino Fundamental e o segundo ano do Ensino Médio. O tempo de acompanhamento junto ao CAPS i variou de 5 a 24 meses.

Mudanças no ciclo de vida do adolescente e a violência: motivos desencadeadores das tentativas de suicídio

Quando questionados sobre os prováveis fatores desencadeantes dos sintomas depressivos, os adolescentes referiram, sobretudo, mudança de cidade e de escola, por medo e insegurança de fazerem novas amizades, conforme evidenciado nos relatos a seguir:

Eu tinha muitos amigos na cidade que eu morava, aí eu vim para cá e esse fato de eu ter vergonha e ter que fazer novas amizades foi muito perturbador. (AF01)

Quando eu entrei para outra escola e comecei na escola de turno inverso, iniciaram os sintomas depressivos, eu estava muito para baixo. (AF03)

Não sei o que pode ter desencadeado os sintomas, um pouco pode ter sido a troca de escola. (AF08)

Perdas de familiares próximos e de referência e relações conflituosas também foram mencionadas pelos adolescentes. Nas falas, eles relataram o sofrimento vivenciado nessas situações:

Desde que a minha avó morreu comecei a ficar ruim, eu morava com ela, dormia na cama com ela, aí tive que vir morar com a minha mãe [...] Eu me sentia sozinha e via que realmente eu estava. (AF05)

Eu não me dava bem com a minha família, passei por momentos difíceis de discussões, de brigas, não me sentia acolhida onde estava, a morte do meu pai com 12 tiros pelas costas, perda de amigos. (AF09)

Eu não me sentia bem com tudo o que acontecia, me incomodava a relação dos meus pais que não estava boa, eles discordavam o tempo todo, a minha relação com meus irmãos e com meu namorado não estava boa. No colégio também, acho que tudo acumulou. (AF04)

Duas adolescentes sofreram violência física por familiares. Uma delas associava a origem dos sintomas depressivos com os diversos momentos em que foi vítima de violência psicológica e física provocada pelo pai:

O dia em que meu pai me espancou, na verdade, desde sempre. Quando ele me humilhava, me colocava para baixo, me chamava de idiota, falava que eu não sabia fazer nada, que eu era uma inútil, eu ficava mal. Eu tenho déficit de atenção e ele me chamava de mimada, que eu tomava remédio, mas não tinha nada. [...] Eu acho que desde criança fui depressiva, sempre fui rejeitada pelo meu pai, ele nunca teve muito afeto por mim, nunca demostrou o quanto me amava, se gostava de mim, nunca falou que me amava: minha filha, eu te amo. (AF02)

Já a outra adolescente, em um primeiro momento, não soube dizer qual teria sido o provável desencadeante dos sintomas depressivos, pois considerava-se uma menina perfeita. No entanto, com o decorrer da entrevista, relatou a vivência de violência física e abuso sexual, conforme evidencia o fragmento abaixo:

Eu não sei, eu era uma menina muito feliz, a menina perfeita! Eu era maravilhosa na escola, na família [...] Acho que foi as agressões da minha dinda, eu ficava com ela para minha mãe poder trabalhar, e ela me batia por eu não conseguir fazer as atividades do colégio, algumas vezes foi tanto que sangrou meu nariz, outra ela me soqueou o peito que eu senti falta de ar. Também o que o primo da minha mãe fez comigo, aqueles toques íntimos e invasores e, aqui em casa, a gente não tem uma relação muito boa. (AF06)

A dificuldade de autoaceitação da própria imagem foi exposta por uma adolescente, assim como o prejuízo de uma “rotulação imposta pela sociedade”:

Foi com 11 anos, era eu olhar para o espelho e não gostar do que eu via, de não entender o motivo de não conseguir me gostar, sentia muita raiva me olhando no espelho, não gostava do que eu via e do que eu ouvia. Eu escutava muito as pessoas falando da minha aparência, do jeito que eu gostava de me vestir, do jeito do meu corpo. (AF07)

Suicídio: enfrentamento e/ou solução dos problemas

Os adolescentes referiram identificar o suicídio como única alternativa para solucionar os problemas que estavam vivenciando. Sete disseram que este era o meio de terminar com a dor interna e o sofrimento; uma considerou que, provavelmente, este modo de agir não resolveria seus problemas; e outra relatou pedir proteção para afastar os pensamentos relativos à ideação suicida. Os relatos a seguir expressam essas crenças:

Eu achava que iria acabar com tudo ali e acabou, mas eu li sobre suicídio, que, para mim fez sentido, tu te suicida, mas os teus problemas não vão acabar com a morte. (AF01)

Pensei que se tirasse a vida iria acabar com todo esse sofrimento que eu sinto, eu não precisaria mais sorrir para as pessoas quando a vontade é chorar, fazer de conta que você é uma pessoa que você não é, de sentir essa dor que eu sinto. Às vezes, paro e rezo muito, peço para Deus tirar isso da minha cabeça, para me guiar e pensar em coisas boas. (AF02)

Eu estava cansada das brigas, de tudo, e achei que tirar a vida ia me ajudar, acabar com tudo. (AF04)

Era uma forma de fugir de todos os problemas, de encarar tudo aquilo e só querer tirar um peso que a gente sente, como se todos os dias fosse uma luta e uma hora cansa. (AF05)

Na minha cabeça eu não sentiria mais essa dor por dentro. (AF06)

Basicamente eu pensava que não sentiria mais nada, acabaria com tudo que eu estava sentindo naquele momento, muita confusão e dor. (ANB10)

Duas adolescentes referiram ausência de sentimento de pertença a este mundo. Para elas, a vida não tinha sentido e não conseguiam se adequar aos contextos nos quais estavam inseridas:

Tentei me matar porque eu não via sentido na vida. (AF08)

Eu achava que eu não me encaixava mais nesse mundo, eu só queria sair do mundo. Eu acredito em espiritismo, eu sei que a vida do suicida não é fácil, mas eu não aguentava mais esse momento, eu não queria saber o que vinha depois, só queria acabar com isso agora. (AF09)

Segundo os adolescentes, a maioria tentou suicídio diversas vezes ou, ao menos, mais de uma vez. O meio mais utilizado foi a ingestão de altas doses de medicamentos, sobretudo relaxantes musculares, analgésicos e antitérmicos:

Umas quatro vezes, eu tomei remédios, uma das vezes eu tomei seis relaxantes musculares. (AF04)

Já tomei muito remédio, tentei me jogar dos lugares, tentei me jogar do carro, me cortando, tomando coisa que fazia mal, tudo que eu vi que era possível tirar minha vida eu tentava. (AF05)

No ano passado, tentei praticamente o ano todo e, agora na quarentena, também, só que não foram bem-sucedidas. Tentei me enforcar, tomei produtos de limpeza, me joguei na frente de um caminhão e tomei remédios. (AF06)

Duas vezes foi com remédios. Na última vez eu tomei 15 paracetamóis e levou ao meu transplante do fígado. (AF09)

Uma adolescente contou que passou a se automutilar após observar as amigas se ferindo para aliviar a dor. Segundo ela, as autolesões foram praticadas ao longo de dois anos consecutivos:

As outras gurias faziam e eu não sabia porque, daí elas diziam que era para aliviar a dor. Aí eu comecei a fazer isso com a gilete do apontador. Eu me cortei por praticamente dois anos. (AF03)

DISCUSSÃO

Identificou-se, por meio dos relatos e da percepção dos adolescentes, que estes passaram por momentos de intenso sofrimento durante a infância, como perdas de familiares, abuso sexual, violência física e psicológica, o qual se perpetua na fase atual das suas vidas. A demonstração das emoções é uma capacidade desenvolvida e manifestada por meio de vivências ao longo da vida, sendo que essas experiências encorajam ou amedrontam o indivíduo para assumir determinadas atitudes. Contudo, o adolescente, por ainda estar em fase de aperfeiçoamento do seu pensar e agir, encontra dificuldades em determinadas situações para reconhecer e expressar o que sente(66 Herzog FF, Ribeiro AC, Welter LS, Senhem GD, Silveira LBTD, Freitas FF. Experiences of adolescents with depressive symptoms in school context. Rev Enferm UFSM. 2020;10:e69. https://doi.org/10.5902/2179769239810
https://doi.org/10.5902/2179769239810...
).

Esses fatos percebidos na vida dos adolescentes do presente estudo parecem evidenciar os múltiplos fatores que ocasionaram intenso impacto na vida emocional e social. A Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano de Urie Bronfenbrenner considera que as influências dos contextos, desde o macro até o micro, dentre eles, da família, podem interferir na qualidade do desenvolvimento do indivíduo, pois tal interferência é bidirecional, intervém e faz com que a pessoa seja influenciada por contextos internos e externos. O processo saúde-doença, de acordo com esta teoria, está diretamente relacionado aos processos proximais, os quais são entendidos como formas duradouras de interações positivas ou não nos diversos contextos, uma vez que o modo como estes acontecem pode desencadear avanços ou retrocessos, equilíbrios ou desequilíbrios e até mesmo provocar transtornos mentais ou outras doenças(77 Bronfenbrenner U. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed; 2011.).

O retraimento social pode ter sido um retrocesso no desenvolvimento pelas situações vivenciadas e, de forma prolongada, indica um aumento da probabilidade de problemas sociais e comportamentais nos relacionamentos pessoais e interpessoais. Isso pode explicar a dificuldade dos adolescentes do estudo em fazer amizades, por timidez, quando adentram um novo contexto, por motivo de mudança de cidade ou escola, por exemplo. Estudo realizado com mais de 400 adolescentes nos distritos de Coimbra e Aveiro alertou para uma relação em que adolescentes com alguma perturbação psicológica apresentam probabilidade significativamente maior de sentirem-se envergonhados, devido ao sentimento de inferioridade, bem como desvalorizados, autorrejeitados e autoavaliados negativamente em relação aos outros jovens. Quanto maior a vergonha, maior é a frequência de envolvimento em comportamentos de risco(88 Quinteiro AMV, Cunha MO. Autodano, vergonha e traços borderline em adolescentes: o papel mediador da autocompaixão [Dissertação][Internet]. Coimbra: Instituto Superior Miguel Torga. 2020[cited 2020 Sep 19]. Available from: http://repositorio.ismt.pt/bitstream/123456789/1207/1/Disserta%C3%A7%C3%A3o_AnaValenteQuinteiro.pdf
http://repositorio.ismt.pt/bitstream/123...
).

A vergonha é um estado emocional de repulsa, repugnância, que potencialmente leva a comportamentos autolesivos como um meio de evitar ou regular esses sentimentos, ou como forma de se punir em resposta a esses(99 Taylor PJ, Dhingra K, McDermott E, Dickson JM. Psychological correlates of self-harm within gay, lesbian and bisexual UK university students. Arch Suicide Res. 2020;24(Supp 1):41-56. https://doi.org/10.1080/13811118.2018.1515136
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). Outro autor compara as amizades a uma mercadoria, a algo de valor. Assim, em tempos de valorização das redes sociais, quanto mais amigos se tem, mais se é visto, valorizado e lembrado. Nesse sentido, as mudanças de escola e cidade dos adolescentes levaram ao caminho oposto, ou seja, reduziram o círculo de amigos e potencializaram a vergonha como fator que os impedia de fazer novas amizades ou dificultava essa aproximação aos demais(1010 Farias CA, Crestani P. A influência das redes sociais no comportamento social dos adolescentes. Rev Cienc Soc [Internet]. 2017[cited 2020 Sep 19];1(2):52-69. Available from: http://revistaadmmade.estacio.br/index.php/cienciaesociedade/article/view/2646
http://revistaadmmade.estacio.br/index.p...
). As mudanças na rotina dos adolescentes podem se tornar um trauma quando não conversadas e trabalhadas em conjunto com o suporte de apoio.

Os eventos traumáticos da vida aumentam o risco de tentativas suicidas reincidentes. Esses comportamentos provavelmente são desencadeados por fatores que causaram eventos traumáticos ao longo da vida, os quais não foram enfrentados, tampouco ressignificados e elaborados de forma positiva. Dessa forma, as lesões autoprovocadas, como a automutilação praticada pelos adolescentes, são uma forma de manifestar que algum acontecimento está ocasionando sofrimento. Quando os fatos atormentam e causam profunda tristeza e dor, as lesões autoprovocadas expressam a maneira encontrada para aliviar essa dor e cessar, momentaneamente, o sentimento de tristeza que tanto os aflige. Embora estudos assinalem a intenção não suicida de lesões autoprovocadas, há um entendimento de que essas ações realizadas repetidamente podem contribuir para o desenvolvimento de um potencial suicida(1111 Magalhães JRF, Gomes NP, Mota RS, Santos RM, Pereira Á, Oliveira JFD. Repercussões da violência intrafamiliar: história oral de adolescentes. Rev Bras Enferm. 2020;73(1):e20180228. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0228
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0...
).

Contudo, no presente estudo, pôde-se identificar, nos relatos dos adolescentes, diversos motivos que suscitaram eventos estressores, tais como violência física, psicológica, abuso sexual e perdas de pessoas próximas. O Relatório publicado no Official Journal Of The American Academy Of Pediatrics, em 2016, estabelece que o profissional de saúde deve atentar para os adolescentes que vivenciam ou vivenciaram situações estressoras ao longo do desenvolvimento, com atenção significativa para o impacto que isso poderá ocasionar em suas vidas e para a forma como enfrentarão esse problema, para que não vejam as tentativas de suicídio e o suicídio como única forma de enfrentamento e resolução das dificuldades(1212 Shain B, Committee on Adolescence. Suicide and suicide attempts in adolescents. Pediatrics. 2016;138(1):e20161420. https://doi.org/10.1542/peds.2016-1420
https://doi.org/10.1542/peds.2016-1420...
).

Pesquisa realizada pelo Departamento de Psiquiatria da Harvard Medical School com 397 adolescentes mostrou que jovens com ideação suicida sofrem de depressão grave e envolvem-se em comportamentos mais arriscados como queimaduras e raspagem da pele(1313 Stewart JG, Esposito EC, Glenn CR, Gilman SE, Pridgen B, Gold J, et al. Adolescent self-injurers: comparing non-ideators, suicide ideators, and suicide attempters. J Psychiatr Res. 2017;84:105-12. https://doi.org/10.1016/j.jpsychires.2016.09.03
https://doi.org/10.1016/j.jpsychires.201...
). O estudo ainda relatou que a autolesão sem risco de suicídio pode agravar ainda mais a angústia sentida e a tendência suicida, por aliviar a dor de forma momentânea(1313 Stewart JG, Esposito EC, Glenn CR, Gilman SE, Pridgen B, Gold J, et al. Adolescent self-injurers: comparing non-ideators, suicide ideators, and suicide attempters. J Psychiatr Res. 2017;84:105-12. https://doi.org/10.1016/j.jpsychires.2016.09.03
https://doi.org/10.1016/j.jpsychires.201...
). As autolesões caracterizam-se como lesões corporais moderadas sobre o próprio corpo, sem qualquer ideação suicida ou prazer sexual, tampouco intervenção de outrem, que causam danos físicos ou ferimentos e alívio da tensão sentida. Trata-se de uma tentativa de manter a integridade psicológica do indivíduo que não dispõe de estratégias adequadas para lidar com os sentimentos que considera insuportáveis, nem com as tensões causadas por estes(1414 Almeida CM, Horta P. Auto-lesão, auto-mutilação e auto-agressão: a mesma definição? [Internet]. News@fmul. 2010[cited 2020 Sep 21];(16). Available from: http://news.medicina.ulisboa.pt/2010/09/30/auto-lesao-auto-mutilacao-e-auto-agressao-a-mesma-definicao/
http://news.medicina.ulisboa.pt/2010/09/...
).

O luto por perda de familiares de referência e os conflitos também foram destacados pelos adolescentes como fatores que interferem nas suas decisões emocionais. As relações no contexto familiar não contemplam somente a manifestação de emoções em relação às pessoas vivas, pois também dizem respeito a pessoas importantes que faleceram, mas permanecem vivas nas lembranças dos adolescentes. No caso de luto de familiares, embora seja possível nutrir sentimentos positivos e seguir o exemplo daqueles que já se foram, ficou evidente, nas falas dos adolescentes deste estudo, que eles vivenciaram essa perda com extrema tristeza e dificuldade de lidar com essa separação. Isso vem ao encontro dos achados de outro estudo, cujo autor considera que a ausência de uma pessoa de referência, responsável pela criação e transmissão de valores de vida e de família, pode gerar sentimentos depressivos e ocasionar o desejo de não viver(1515 Silva AC. Adolescência e morte: uma análise psicanalítica de adolescentes em elaboração de luto [Internet]. Manaus: Universidade Federal do Amazonas; 2016[cited 2020 Sep 21]. Available from: http://riu.ufam.edu.br/bitstream/prefix/5407/1/Relatorio_Final_IC__.pdf
http://riu.ufam.edu.br/bitstream/prefix/...
).

Uma das adolescentes, após a morte da avó, por ela considerada uma mãe, precisou mudar de residência e morar com sua mãe biológica, com quem não mantinha qualquer tipo de vínculo afetivo. Considerando que adolescentes projetam imagens idealizadas nas pessoas de referência e que estão em processo de transformação de suas ideias, a morte destas pessoas, por eles reconhecidas como ídolos, poderá levar à criação de outros vínculos compensatórios com outros membros da família ou à busca de uma nova referência idealizada, como os amigos(1515 Silva AC. Adolescência e morte: uma análise psicanalítica de adolescentes em elaboração de luto [Internet]. Manaus: Universidade Federal do Amazonas; 2016[cited 2020 Sep 21]. Available from: http://riu.ufam.edu.br/bitstream/prefix/5407/1/Relatorio_Final_IC__.pdf
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). Entretanto, na ausência de outros vínculos ou diante de relações frágeis, o adolescente torna-se mais vulnerável ao luto, podendo desenvolver problemas de saúde e, por conseguinte, dificuldades de elaborar a perda, com intenso sofrimento. A adolescência é uma fase do ciclo vital que tem como característica principal a impulsividade e o desejo de resolução rápida dos problemas, o que prejudica sobremaneira a superação do luto. Todavia, a elaboração da perda de uma pessoa querida demanda um período de tempo que varia de acordo com a individualidade de cada um, sendo importante ficar atento às reações dos adolescentes a essas situações, a fim de identificar luto normal ou patológico(1616 Silva JCG. O luto no adolescente diante da perda por morte de uma pessoa querida [especialização][Internet]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2018[cited 2020 Sep 21]. Available from: https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/BUOS-BCEHYD/1/trabalho_de_conclus_o_de_curso___especializa__o_sa_de_do_adolescente____faculdade_de_medicina_ufmg.pdf
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).

Considerando que o luto nas duas situações expostas pelos participantes levou ao rompimento de uma relação afetiva, somado à própria vulnerabilidade da adolescência, essa perda, provavelmente, acrescentou dificuldades para o adolescente durante seu processo de desenvolver autonomia e independência, além de comprometer a construção e manutenção de novos vínculos afetivos. Pesquisa realizada na Holanda sugere que toda criança e adolescente com perda de familiares próximos, principalmente nos casos de homicídio, como relatado por uma das adolescentes do presente estudo, precisa de acompanhamento especializado de serviços de saúde mental e serviços sociais, para que não se torne um adolescente vulnerável ao luto, sinta-se acolhido e encontre maneiras de melhor enfrentar essa perda(1717 Alisic E, Groot A, Snetselaar H, Stroeken T, van de Putte E. Parental intimate partner homicide and its consequences for children: protocol for a population-based study. BMC Psychiatry. 2015;15:177. https://doi.org/10.1186/s12888-015-0565-z
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).

As perdas em um contexto familiar desajustado, isto é, em uma família desarmônica, que vivencia situações de violência, dificultam a formação da personalidade do adolescente, além de comprometerem as boas perspectivas futuras, tais como construção de uma identidade ocupacional, formação do caráter e compreensão do que é certo ou errado para si(1818 Fernandes VM, Zacharias DG. Adolescência, suicídio e redes de apoio: o desejo de morte enquanto grito pela vida. Anais J Pesqui Psicol [Internet]. 2016[cited 2020 Sep 21]. Available from: https://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/jornada_psicologia/article/view/14516/2978
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). Sabe-se que um ambiente social sem suporte para adolescentes, com relação prejudicada entre pais e filhos, mantendo eventos estressores ou discussões frequentes, aumenta o risco para as tentativas de suicídio, conforme publicado no Official Journal Of The American Academy Of Pediatrics(1212 Shain B, Committee on Adolescence. Suicide and suicide attempts in adolescents. Pediatrics. 2016;138(1):e20161420. https://doi.org/10.1542/peds.2016-1420
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).

De acordo com a Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano, a família é como o coração do nosso sistema social; assim, um adolescente, provavelmente, se transformará em um adulto saudável quando tem ao seu lado pessoas dedicadas e engajadas ativamente em sua vida, que o amam, dedicam-lhe tempo e demonstram interesse pelo que ele faz e deseja fazer no seu dia a dia. A família, desde que preparada para exercer suas funções parentais, é um dos contextos mais fortes e o mais econômico para tornar e manter o ser humano mais forte, sensível, resiliente e capaz de enfrentar as adversidades da vida(77 Bronfenbrenner U. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed; 2011.). Torna-se, portanto, importante refletir sobre a dinâmica familiar desses adolescentes, bem como a respeito das relações estabelecidas, uma vez que as tentativas de suicídio surgem em situações de extremo estresse. É possível compreender que a dinâmica familiar com relações intransigentes, correções violentas e relacionamentos distantes propicia que os adolescentes manifestem dificuldades para lidar com situações frustrantes e decepções, pois não encontram o apoio necessário para externalizar e lidar com suas emoções de forma saudável(1818 Fernandes VM, Zacharias DG. Adolescência, suicídio e redes de apoio: o desejo de morte enquanto grito pela vida. Anais J Pesqui Psicol [Internet]. 2016[cited 2020 Sep 21]. Available from: https://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/jornada_psicologia/article/view/14516/2978
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).

Estudo desenvolvido na Universidade de Zurique na Turquia corrobora os resultados do presente estudo, ao destacar as consequências negativas da violência para a construção de um emocional saudável, pois costumam ter um efeito duradouro nas pessoas afetadas(1919 Maercker A, Hecker T. Trauma- und Gewaltfolgen--psychische Auswirkungen. Bundesgesundheitsblatt. 2016;59(1):28-34. https://doi.org/10.1007/s00103-015-2259-6
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). O autor ainda faz uma comparação com o efeito de um bloco de construção cujas estruturas não estão bem firmes e desaba quando peso é colocado sobre ele. As situações expostas pelos participantes do presente estudo deixaram evidente, assim como em outros estudos encontrados na literatura, que o adolescente vítima de violência física e/ou psicológica e abuso sexual contínuos desmorona por não suportar mais tanto sofrimento. Na maioria das vezes, isso levou ao transtorno de estresse pós-traumático e a transtornos depressivos que resultam na construção de uma vida nada saudável, principalmente sob os aspectos emocional e social. Em outro estudo realizado na Holanda e na Bélgica investigou-se relação entre violência interpessoal contra crianças e qualidade de vida na fase adulta, tendo sido identificada significativa associação desses eventos com piora da saúde mental, levando a quadros de somatização, depressão, ansiedade e queda da qualidade de vida(2020 Vertommen T, Kampen J, Veldhoven NS, Uzieblo K, Eede FVD. Severe interpersonal violence against children in sport: Associated mental health problems and quality of life in adulthood. Child Abuse Neg. 2018;76:459-68. https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2017.12.013
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).

A autoimagem também foi identificada no estudo em tela como um incômodo para o adolescente. Embora este problema esteja relacionado a outros fatores como baixa autoestima e dúvidas quanto à opção sexual, sabe-se que o adolescente necessita sentir-se bem, ter boa autoimagem e boa autoestima para que possa construir uma personalidade madura e segura. O conceito do distúrbio da imagem corporal decorre da complexidade do mesmo, podendo ser concebido como um sintoma variável e parte de um desenvolvimento de identidade complexo, que é intrínseco e inclui uma gama de aspectos físicos e sociais(2121 Ábrahám I, Jambrik M, John B, Németh AR, Franczia N, Csenki L. A testképtől a testképzavarig. Orv Hetil. 2017;158(19):723-30. https://doi.org/10.1556/650.2017.30752
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).

O adolescente tem a necessidade de resolver os problemas de forma imediata, o que pode ser justificado pela baixa tolerância à frustração e dificuldade de fazer o enfrentamento dos problemas, sendo que esta advém das diversas situações já vividas. Indivíduos que convivem com o sofrimento psíquico ou a sintomatologia depressiva exteriorizam, frequentemente, o desejo de morrer e/ou cometer suicídio, como única saída para a resolução dos seus problemas(2222 Penso MA, Sena DPA. A desesperança do jovem e o suicídio como solução. Soc Estado. 2020;35(1):61-81. https://doi.org/10.1590/s0102-6992-202035010004
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). Foi o que aconteceu com os adolescentes que participaram desta pesquisa: quando não conseguiram externalizar ou resolver o problema, tentaram tirar a própria vida, como única alternativa de solução.

Destaca-se que, diante do atual cenário que estamos vivendo, de contínuas mudanças e relações passageiras, o que hoje importa, amanhã já não faz mais sentido; a evolução da sociedade, os benefícios, as novas formas de vínculos têm provocado sofrimento psíquico em muitas pessoas, principalmente nos jovens que, incapazes de lidar com tais desafios, encontram na morte uma maneira de fugir dessa realidade(2323 Santos HGB, Marcon SR, Espinosa MM, Baptista MN, Paulo PMC. Factors associated with suicidal ideation among university students. Rev Latino-Am Enfermagem. 2017;25:e2878. https://doi.org/10.1590/1518-8345.1592.2878
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). Pelas falas da maioria dos adolescentes do estudo, esta era a forma encontrada para fugir dos problemas, acabar com tudo, dando fim ao que estava incomodando. Também foi exposta a sensação de não pertencer mais a este mundo, a esta sociedade, o que os fazia duvidar da importância das suas próprias existências.

Alguns jovens, quando se sentem fracassados, identificam no suicídio uma maneira rápida de acabar com o sofrimento. O método utilizado para colocar em prática a tentativa de suicídio pela maioria das participantes foi a ingestão de altas doses de medicamentos. Pesquisa realizada na República da Eslovênia em 2018, com dados coletados dos registros de indivíduos que praticaram tentativas de suicídio, encontrou resultados idênticos para pessoas do sexo feminino, ou seja: a ingestão de grandes quantidades de medicamentos foi um dos principais meios para tentar terminar com a vida. Outras formas frequentes de tentativa de suicídio foram: envenenamento, pular de alturas e afogamento(2424 Zalar B, Plesničar BK, Zalar I, Mertik M. Suicide and suicide attempt descriptors by multimethod approach. Psychiatr Danub. 2018;30(3):317-22. https://doi.org/10.24869/psyd.2018.317
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). Estudo realizado no estado de Victoria, na Austrália, com dados de 273 adolescentes que se suicidaram, sugere que os adolescentes que ingeriram altas doses de medicações e se feriram com cortes pelo corpo estão sob risco aumentado de cometerem suicídio(2525 Lee S, Dwyer J, Paul E, Clarke D, Treleaven S, Roseby R. Differences by age and sex in adolescent suicide. Aust N Z J Public Health. 2019;43(3):248-53. https://doi.org/10.1111/1753-6405.12877
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).

Limitações do Estudo

A limitação desta pesquisa pode ser atribuída à impossibilidade de realizar as entrevistas com os adolescentes presencialmente, em virtude das orientações e protocolos instituídos por ocasião da pandemia da Covid 19, o que pode ter limitado, em parte, o estabelecimento de um vínculo de confiança dos participantes com a pesquisadora, com possível prejuízo no aprofundamento das entrevistas. Outro viés que pode ser interferido nesta limitação foi a ausência de treinamento específico das pesquisadoras para a realização de entrevistas on-line.

Contribuições para a Área

O presente estudo suscita reflexões sobre o papel do enfermeiro em ações e políticas de prevenção ao suicídio, uma vez que este profissional atua em diferentes fases do ciclo vital e, também, em diversos contextos. Acredita-se que esta pesquisa, assim como outros estudos a respeito do suicídio na adolescência, pontua vários aspectos relevantes que podem contribuir para futuras intervenções de prevenção em diferentes contextos, por meio do mapeamento das famílias em situação de vulnerabilidade no território.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo alcançou o objetivo de identificar os motivos atribuídos pelos adolescentes às tentativas de suicídio, bem como os fatores que desencadearam os sintomas depressivos. Os aspectos predominantes destacados nesta pesquisa foram: conflitos familiares, violência psicológica e física e abuso sexual, os quais potencializaram a predisposição dos adolescentes a se envolverem em tentativas de suicídio. Ressalta-se que esses aspectos, somados à inexperiência em manejar situações que causam desconforto e dor emocional, favoreceram a identificação do suicídio como solução para os problemas que enfrentavam. Terminar com a intensa dor emocional, com a tristeza e com todo tipo de sofrimento que os eventos estressores causam é o que impulsiona o adolescente a cometer uma tentativa de suicídio.

REFERENCES

Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Hugo Fernandes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2021
  • Aceito
    03 Ago 2021
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