Espiritualidade e religiosidade expressas por familiares de usuários de drogas: contribuições ao cuidado em saúde

RESUMO

Objetivo:

analisar as expressões da espiritualidade e da religiosidade de familiares de pessoas com uso abusivo ou dependente de substâncias psicoativas.

Métodos:

pesquisa exploratório-descritiva dialogando com o marco conceitual da espiritualidade e da religiosidade, realizada em ambulatório especializado no tratamento de drogas no sul do Brasil. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 11 familiares de pacientes em tratamento, sendo analisadas pela análise de conteúdo.

Resultados:

foram agrupados em duas categorias: formas de expressão de práticas de espiritualidade e religiosidade e influência delas na vida dos familiares. A espiritualidade e religiosidade quase sempre servem como fator de proteção diante de sentimentos de angústia, conflitos e solidão.

Considerações Finais:

as expressões da espiritualidade e religiosidade têm papel importante para muitos familiares, no entanto nem todos parecem se beneficiar delas. Os profissionais de saúde devem considerar essas expressões na construção do cuidado integral em saúde dos familiares.

Descritores:
Família; Espiritualidade; Religião; Usuários de Drogas; Saúde Mental

ABSTRACT

Objective:

to analyze the expressions of spirituality and religiosity of relatives of people who abuse or are dependent on psychoactive substances.

Methods:

exploratory-descriptive research that dialogues with the spirituality and religiosity conceptual framework. It was performed at an outpatient clinic specialized in drug treatment in southern Brazil. Semi-structured interviews conducted with 11 relatives of patients undergoing treatment were analyzed by content analysis.

Results:

the findings were grouped into two categories: forms of expression of spirituality and religiosity practices; and their influence on relatives’ lives. Spirituality and religiosity almost always serve as a protective factor against feelings of anguish, conflicts and loneliness.

Final considerations:

despite the important role of expressions of spirituality and religiosity for many relatives, not everyone seems to benefit from them. Health professionals should consider these expressions in the construction of comprehensive health care for relatives.

Descriptors:
Family; Spirituality; Religion; Drug Users; Mental Health

RESUMEN

Objetivo:

analizar las expresiones de espiritualidad y religiosidad de familiares de personas que abusan o son dependientes de sustancias psicoactivas.

Métodos:

investigación exploratoria-descriptiva que dialoga con el marco conceptual de la espiritualidad y la religiosidad. Fue realizado en un ambulatorio especializado en tratamiento de drogas en el sur de Brasil. Se analizaron mediante análisis de contenido entrevistas semiestructuradas realizadas a 11 familiares de pacientes en tratamiento.

Resultados:

los hallazgos fueron agrupados en dos categorías: formas de expresión de la espiritualidad y prácticas de religiosidad; y su influencia en la vida de los familiares. La espiritualidad y la religiosidad sirven casi siempre como factor protector contra los sentimientos de angustia, conflictos y soledad.

Consideraciones finales:

a pesar del importante papel de las expresiones de espiritualidad y religiosidad para muchos miembros de la familia, no todos parecen beneficiarse de ellas. Los profesionales de la salud deben considerar estas expresiones en la construcción de la atención integral a la salud de los familiares.

Descriptores:
Familia; Espiritualidad; Religión; Consumidores de Drogas; Salud Mental

INTRODUÇÃO

O diagnóstico de usos dependentes ou abusivos de substâncias psicoativas (SPA) baseia-se, de modo geral, em um padrão patológico de comportamentos relacionados ao seu uso, levando ao comprometimento ou sofrimento clinicamente significativo(¹). Esses quadros costumam ser caracterizados por prejuízos nas dinâmicas da rede de apoio familiar e afetiva, sugerindo-se, além da identificação e manejo de demandas clínicas, a importância de abordagens interdisciplinares a partir de intervenções psicoterápicas e sociais, com vistas à reconstrução dessas redes, visto que constituem os principais fatores de proteção(²).

Um dos aspectos centrais da etiologia de usos dependentes de SPA é o componente cultural de estigmas e tabus morais que não só dificultam abordagens pragmáticas no campo da saúde, como também atravessam o meio intrafamiliar em ambientes de dúvidas e reações acirradas.

Estima-se que 269 milhões de pessoas tiveram algum uso de SPA em 2018, enquanto 35,6 milhões destas desenvolveram usos dependentes ou abusivos(³). A etiologia dos quadros de usos abusivos ou dependentes de SPA associa-se fortemente aos determinantes sociais (condições de vida e trabalho) que atravessam os fatores de risco e proteção.

No Brasil, a prevalência de uso de bebidas alcoólicas correspondeu a 30,1% (46 milhões de habitantes), tendo o consumo em binge, por sua vez, uma prevalência de 38,4% nesta população (25 milhões de habitantes). Já o consumo de tabaco corresponde a 17,3% da população e, dentre as SPA consideradas ilícitas, o uso de maconha tem prevalência até cinco vezes maior que o de outras SPA, seguido-se pela cocaína em pó e cocaínas fumadas(⁴).

Entende-se que pessoas que usam SPA estão inseridas em um contexto no qual seus valores, crenças, emoções e atitudes influenciam tanto o comportamento dos membros de sua rede de apoio social e afetiva, como são influenciados por eles. Portanto a família pode ser o cenário onde o indivíduo tenha uma piora ou melhora do uso de substâncias, considerando-se o ambiente de convívio como um forte componente na mudança ou manutenção de hábitos, consumos e práticas corporais(⁵). O ambiente intrafamiliar deve ser compreendido de forma ampliada, como uma rede de pessoas que se originam de um sistema social mais amplo e que interagem por diferentes via: são pessoas unidas por diferentes vínculos, afinidades, consanguinidade ou descendência e que ocupam um mesmo ambiente(⁶).

O mais recente levantamento nacional sobre uso de drogas pela população brasileira estima que, em relação ao uso de substâncias como o crack, por exemplo, a maior parte da amostra de entrevistados trazia relações familiares rompidas ou fragilizadas, predominando-se rompimento e/ou fragilidade de vínculos intrafamiliares(⁴).

A família frequentemente oferece um cenário significativo para mudanças ou resolução do problema e deve ser inserida como parte importante ao tratamento, como um dos enfoques terapêuticos(⁵). A inserção do cuidado ao familiar por meio de atendimentos grupais e individualizados proporcionaram à equipe o auxílio na atenção em saúde mental desses familiares e pacientes, uma vez que nessa relação, as famílias dividiam angústias, recebiam orientações, informações e aprendiam maneiras para lidar com o uso problemático de SPA de um membro da família(⁶-⁷).

A convivência com pessoas em uso abusivo ou problemático de SPA no ambiente intrafamiliar pode levar a mudanças significativas na dinâmica das relações, incidindo sobre os fatores de risco e proteção comumente associados a esta rede de apoio, fazendo sentido também compreender a família em suas necessidades de atenção e cuidados específicos(³). Assim, torna-se indispensável a aproximação e tratamento dessas famílias nos serviços de saúde, num entendimento de resgatar fatores de proteção e diminuir os fatores de risco(⁵). Nesse sentido, as dimensões da espiritualidade e da religiosidade são frequentemente observadas em relatos de familiares, quando questionados sobre seus valores e estratégias para lidarem com sofrimentos psíquicos devido ao uso de SPA de algum familiar(⁸).

Uma das lacunas em pesquisas sobre estes relatos é que não há consenso na definição de religião, religiosidade, espiritualidade e noções de crença e fé. A religião circunscreve um conjunto de leis e ritos constituídos por uma doutrina, cerimônias, sistema ético com regras e proibições, e uma comunidade de fiéis organizados hierarquicamente. Por sua vez, as noções de crença e de fé respaldam a concepção de estar convencido voluntariamente a acreditar em asserções tidas como verdadeiras, como crenças morais, políticas e religiosas (fé religiosa)(⁹).

Embora haja o reconhecimento de sobreposição semântica entre os conceitos de espiritualidade e religiosidade, elas podem ser diferenciadas. O termo espiritualidade, enquanto distinto de religião ou religiosidade, é considerado um conceito recente no mundo ocidental que data da década de 1960(⁹) A espiritualidade trata-se de um construto de dimensão mais pessoal e existencial de crença em (ou relação com) um poder superior ou divindade, envolvendo a busca pelo autoconhecimento e questionamento filosófico da existência do universo e da vida(¹⁰). Já a religiosidade inclui crenças pessoais (em divindade ou um poder superior) capturadas por um sistema organizado de símbolos e práticas como meio de se aproximar da dimensão metafísica e transcendental mediante práticas institucionais, de pertença e compromissos doutrinários junto a igrejas ou religiões organizadas(¹¹-¹³).

Frente ao exposto anteriormente, e visando contribuir com a operacionalização de ambos os conceitos para a literatura na temática álcool e drogas, elaborou-se a seguinte questão de pesquisa: Como se expressam a espiritualidade e a religiosidade em familiares de pessoas que usam drogas? A relevância deste estudo se dá pelo reconhecimento das dificuldades vivenciadas por familiares de pessoas que usam drogas em tratamento em um serviço público de referência, buscando relacionar as implicações da expressão da espiritualidade e da religiosidade na vida desses familiares para a promoção de um cuidado integral em saúde.

OBJETIVO

Analisar as expressões da espiritualidade e da religiosidade de familiares de usuários de drogas.

MÉTODOS

Aspectos éticos

Esta pesquisa obteve aprovação de um Comitê de Ética em Pesquisas envolvendo seres humanos. Para preservar o sigilo dos participantes, utilizou-se a letra E para cada entrevistado seguido de número, na ordem de realização das entrevistas.

Tipo de estudo

Estudo de abordagem qualitativa, do tipo exploratório-descritivo com dados explorados de uma pesquisa maior intitulada “Familiares de Usuário de Drogas: um olhar compreensivo de suas vivências e trajetórias assistenciais” que tem como objetivo compreender as vivências e as trajetórias assistenciais de familiares de pessoas que usam drogas. Adotou-se o instrumento COREQ(¹⁴) para organizar as informações deste artigo.

Referencial teórico-metodológico

A conceitualização da espiritualidade e da religiosidade tem sido objeto de difícil consenso nas pesquisas em saúde, sendo desafiador encontrar um arcabouço teórico amplamente utilizado que permita operacionalizar esses conceitos de forma separada.

Assim, dialogou-se com marcos conceituais que permitem considerar a espiritualidade como fenômeno que envolve uma dimensão de busca de autoconhecimento e questionamento filosófico da existência do universo e da vida, sem vínculos ativos com instituições religiosas formais, como templos, terreiros e igrejas. A religiosidade, por sua vez, é tomada como conceito que auxilia na compreensão dessas buscas, quando estas se dão através de um sistema organizado de símbolos e práticas, mediado por instituições religiosas formais(⁹,¹²).

A espiritualidade trata-se de um construto de dimensão mais pessoal e existencial de crença em (ou relação com) um poder superior ou divindade, envolvendo a busca pelo autoconhecimento e questionamento filosófico da existência do universo e da vida(¹⁰). Já a religiosidade inclui crenças pessoais (em divindade ou um poder superior) capturadas por um sistema organizado de símbolos e práticas como meio de se aproximar da dimensão metafísica e transcendental mediante práticas institucionais, de pertença e compromissos doutrinários junto a igrejas ou religiões organizadas(⁹-¹¹).

Procedimentos metodológicos

A entrada no campo de estudo foi precedida pelo treinamento da equipe de pesquisa (duas mestrandas e dois alunos de graduação em enfermagem) que realizaram, sempre em dupla, as entrevistas. Esta etapa serviu para ambientação dos pesquisadores com a dinâmica do serviço, com a equipe assistencial e com os familiares/usuário de drogas atendidos. Antes de iniciar a coleta de dados, foi realizada uma entrevista piloto para avaliar a aplicabilidade do instrumento de pesquisa, a qual não revelou a necessidade de modificação por permitir que a exploração em profundidade dos aspectos estudados.

Ao longo do período de coleta, não houve recusa de nenhum dos familiares convidados para participar da pesquisa. Essa primeira aproximação era feita pelos pesquisadores quando os familiares se encontravam no Ambulatório de Adição, sendo apresentado o objetivo da pesquisa. As entrevistas aconteceram em sala reservada no próprio serviço e por ser conduzida em duplas permitiu aos pesquisadores observar e registrar de maneira mais atenta as expressões não verbais (alterações postural, facial e gestos) dos participantes, com o intuito de enriquecer o processo de análise das informações.

Cenário do estudo

O estudo foi realizado no ambulatório em adição (de álcool e outras drogas) de um hospital universitário do sul do Brasil, por ser um espaço de atendimento especializado e estar vinculado a uma instituição de ensino superior. Esse serviço oferece atendimentos individuais e em grupo, tanto para pessoas que usam drogas quanto seus familiares, utilizando abordagem motivacional, prevenção de recaída e reinserção social com vista à atenção integral em saúde.

Fonte de dados

Participaram do estudo 11 familiares de pessoas que usam drogas que estavam em tratamento. Elas foram escolhidas intencionalmente e convidados a participar da pesquisa, conforme os seguintes critérios de inclusão: Ser familiar adulto de usuário de drogas em tratamento no ambulatório em adição e estar mais envolvido com os cuidados do usuário conforme indicação da equipe assistencial e confirmado pelo próprio familiar.

Coleta e organização dos dados

As coletas foram conduzidas por equipe de pesquisa treinada e ocorreram no período de março a maio de 2018, por meio de entrevista semiestruturada com as seguintes perguntas norteadoras: O que você pensa sobre a espiritualidade e religiosidade? De que forma você demonstra a sua espiritualidade e religiosidade? Como a espiritualidade e religiosidade influenciam na sua vida? Como a espiritualidade e religiosidade influenciam na sua vida considerando a situação do seu familiar usuário de drogas? As entrevistas duraram em média 1 hora e 20 minutos, sendo realizadas em dois encontros para cada participante e registradas em gravador de áudio, sendo posteriormente transcritas para a análise.

Análise dos dados

O processo de coleta foi encerrado a partir da observação do não aparecimento de conteúdo substancialmente novo, indicando possível saturação dos dados e revelando os principais aspectos acerca do objeto de estudo. O encerramento da realização de novas entrevistas ocorreu a partir da observação da repetição das informações coletadas discutidas no grupo de pesquisa com outros pesquisadores. Não houve tempo hábil para devolução das transcrições das entrevistas para que os participantes pudessem revisar ou corrigir informações, contudo, o corpus de análise foi compartilhado e validado junto ao grupo de pesquisa.

Após a transcrição das entrevistas, para o tratamento dos dados, foi aplicada a técnica de análise de conteúdo, contemplando a pré-análise (organização e sistematização do material, transcrição de entrevistas), exploração do material (leitura por pares) e tratamento dos resultados (categorização)(¹⁴), sendo definidas a priori duas categorias de análise (“expressão da E e R” e “Influência da E e R”), descritas a seguir: 1) Formas de expressão da espiritualidade e religiosidade dos familiares; 2) Influência da espiritualidade e religiosidade na vida dos familiares. Cabe destacar que, ao longo da pesquisa, ficou evidenciada a complexidade da compreensão dos conceitos de espiritualidade e religiosidade pelos próprios participantes, uma vez que, diante das perguntas trazidas, puderam expressar de forma ampliada os benefícios dessas expressões(⁹).

RESULTADOS

Caracterização dos participantes

Participaram do estudo 11 familiares de pessoas que usam drogas, sendo um do sexo masculino (E11), de 59 anos, de religião luterana e 10 (E1-E10) do sexo feminino, com idade entre 28 e 80 anos, de diversas religiões ou crenças (cinco católicas, duas luteranas, uma espírita universalista, uma umbandista e uma mencionou ter “filosofias de vida”).

Quadro 1
Perfil sociodemográfico de familiares e responsáveis de pacientes entrevistados no ambulatório especializado em adição de hospital universitário da Região Sul do Brasil, 2018

Familiar (E1-E11)	Sexo	Idade	Escolaridade	Situação conjugal	Religião e/ou Espiritualidade	Paciente	Reside junto
E1	F	53	Superior completo	Separada	Católica	Ex-esposo	Não
E2	F	54	Superior completo	Divorciada	Não	Filho	Sim
E3	F	73	Fundamental incompleto	Casada	Católica	Esposo	Sim
E4	F	55	Médio completo	Casada	Luterana	Filho	Sim
E5	F	64	Fundamental Incompleto	Separada	Acredita em Deus	Filho	Sim
E6	F	80	Médio completo	Viúva	Católica	Filho	Sim
E7	F	77	Médio completo	Viúva	Católica	Filho	Sim
E8	F	73	Superior completo	Casada	Católica	Filho	Não
E9	F	72	Fundamental completo	Casada	Luterana	Filho	Sim
E10	F	28	Superior incompleto	Casada	Umbanda	Mãe	Sim
E11	M	59	Médio completo	Casado	Luterano	Filho	Sim

Legenda: E1 até E11 (Familiar entrevistado seguido de número da ordem de realização da entrevista); M (Masculino); F (Feminino).

No contexto da pesquisa, o recorte de gênero corresponde às teorizações que apontam o papel das mulheres como cuidadoras e responsáveis nas relações intrafamiliares. Das 11 pessoas entrevistadas, oito frequentavam o serviço como responsáveis pelos filhos, sendo que sete residiam no mesmo domicílio; enquanto uma entrevistada acompanhava sua mãe, uma entrevistada acompanhava o esposo e uma destas, o ex-esposo. O participante do sexo masculino estava como responsável pelo seu filho. No item escolaridade, predominou-se ensino superior completo (4) e médio completo (4), tendo 1 entrevistada ensino fundamental completo e 3 entrevistadas ensino fundamental incompleto.

Formas de expressão da espiritualidade e religiosidade dos familiares

Identificou-se, a partir das falas, que todos os familiares adotam algum tipo de expressão de espiritualidade e religiosidade no seu dia a dia. Muitos relatam expressar a sua religiosidade frequentando espaços como igreja, centro espírita, centro de umbanda e grupos de apoio mútuo.

Antes, a gente ia só na missa da igreja católica [...] ia muito no Allan Kardec [...] Agora, semanalmente, tem o centro de umbanda que a gente vai tomar passe [...] a gente vai se apegando em todas as formas. Continuo indo na igreja católica sempre no domingo à tarde. (E1)

No Amor Exigente comecei a ir mais regularmente nas aulas de espiritualidade. (E2)

Eu tenho minha paróquia que eu vou, e tem uma igreja católica bem perto da minha casa. (E4)

Tenho um grupo universalista [espírita]. (E5)

Eu gosto de ir à missa [...] na capela Santo Antônio Pão dos Pobres. (E7)

Eu vou nos domingos na missa. (E8)

Outra forma utilizada pelos familiares acontece por meio de simples atos como ler textos de cunho espiritual e religioso, o que caracteriza uma expressão da espiritualidade.

Eu leio bastante sobre o Budismo [...] Eu tenho uma rotina de leituras, que eu leio sobre vários temas assim né, vou lendo... (E2)

Eu tinha uma bíblia guardada [...] E aí já está aberta em casa, eu acho que aquilo ali eu me sinto bem. (E6)

Os atos de rezar, pedir e agradecer foram citados pelos entrevistados com o intuito de buscar uma relação com o divino/transcendental, sendo em sua maioria referenciado o Deus cristão, possibilitando neutralizar pensamentos “ruins” e sentimentos de tristeza, mesmo que momentaneamente.

Eu acredito em Deus, rezo bastante, peço ajuda pra ele [...] Eu rezo em casa, tenho os meus santinhos, meu pensamento. (E3)

Eu aprendi muito mais a me apegar a Deus [...] Hoje eu agradeço todos os dias a Deus por tudo. (E4)

Quando eu me dou conta que estou pensando ruim, eu começo a fazer aquelas orações, aquelas coisas que a gente diz automáticas. [...] que o pensamento vai embora. Percebi que a minha energia estando boa, eu atraio coisas boas. (E5)

Fazer uma oração rápida, não deixo de rezar um Pai Nosso sempre que eu acho que tenho que fazer eu faço [...] às vezes, eu me sinto triste né, ai peço, eu sempre faço isso [...] Eu tô procurando mais Deus. (E6)

Faço orações pedindo ajuda e agradecendo. (E9)

Eu tô sempre pedindo. Algumas entidades em si, assim, eu tenho uma adoração por Iemanjá, sempre peço pra ela ‘que essa maré de ondas ruim vá com tudo e traga só ondas boas’. (E10)

Influência da espiritualidade e religiosidade na vida dos familiares

Os entrevistados identificaram que as expressões de espiritualidade e religiosidade têm influência significativa em suas vidas, uma vez que as reconhecem como elementos fundamentais de sua existência. Isso pode ser observado nas falas a seguir.

Me ajudam muito! Me ajudam bastante! É muito bom! [chora/emocionada]. (E1)

Eu acho extremamente importante, eu acho que faz assim, é uma base né pra ti pode tá bem. (E2)

Eu acho que é o fundamental. (E4)

É a minha vida! (E5)

É a minha vida, eu vivo, eu sou católica e eu já estudei teologia, então eu vejo a religião muito diferente do que muita gente vê. (E7)

Ah eu acho muito fundamental assim, não importa o que tu seja, qualquer religião que tu for né?! (E10)

Fica evidente que os familiares encontram apoio nas expressões de espiritualidade e religiosidade. Por esse motivo, as enxergam como práticas fundamentais e estruturantes para suas vidas de forma tão intensa que uma participante, durante a entrevista, se emociona e chora ao falar o quanto as suas práticas a auxiliam, inclusive em relação à convivência com o familiar usuário de substâncias.

Além disso, observam-se, nos relatos dos entrevistados, outros benefícios gerados pelas expressões de espiritualidade e religiosidade, sobretudo quando vivenciadas em grupo, visto que aliviam os sentimentos de angústia e solidão, refazendo as forças desses indivíduos e fortalecendo-os por meio do amparo encontrado nas pessoas.

[...] lá [centro espírita, umbanda, igrejas católica e luterana, terapias indianas e reiki] é o momento em que tu vai e consegue chorar o que tu não pode, ser fraca [...] A gente se sente assim meio abandonado, quando acha esses lugares assim é muito bom! [...] pra ti refazer as tuas forças [...] Aquela angústia que tu tem de não saber como é que vai ser amanhã, eles te dão esse apoio e aí é um momento que também é só teu e aí tu consegue sair de lá mais aliviada [...] Me faz muito bem, porque tu encontra apoio das pessoas. (E1)

É o grupo [espiritismo universalista] que me dá forças pra continuar vivendo. (E5)

A gente sempre acreditou em Deus e a igreja parece que é um templo que te dá uma força, te dá uma “recarga” e eu me sinto bem. (E11)

A calma e a tranquilidade também foram citadas omo uma repercussão das expressões de espiritualidade e religiosidade, visto que desse modo é possível compreender, amenizar e relativizar o contexto em que se encontram.

Eu gosto muito porque te dá uma calma, te dá uma tranquilidade. (E1)

Eu acho que te traz uma tranquilidade, uma outra visão assim né, relativiza um pouco as coisas [...] tu tem coisas maiores e que tu tem como lidar com isso, estar mais tranquilo também ajuda. (E2)

A fé que a gente tem, eu ligo muito com a esperança, e essas duas coisas tem que tá junto [...] Eu não perco essa esperança, essa fé, de que eu vou passar por isso [...] Que nós íamos conseguir vencer as barreiras do [familiar usuário] e trazer ele pra nós. (E4)

É o que me faz levantar, o que me faz dormir. (E5)

A religião me ajuda [...] me dá paz, eu tenho confiança [...] tu te mantém calma, não tem briga, não tem aquela revolta. (E7)

A gente se sente mais tranquila, tem mais fé. (E9)

Esses sentimentos de tranquilidade e calma ocorrem por meio da “fé” e “confiança” proporcionadas por meio das experiências espirituais e religiosas. Entretanto, contrapondo a essas constatações, um familiar se questiona quanto à real influência da espiritualidade e da religiosidade na sua vida, levando em consideração o problema do uso de drogas.

Olha, eu não sei, acho que não. Porque eu rezei a vida inteira e a vida inteira ele bebeu, então, às vezes, Deus me perdoe, às vezes eu digo assim: ‘não vou pedir mais pra Deus, vou pedir pro Diabo’... A coisa louca que dá na tua cabeça, porque eu digo: ‘pô, eu rezo’, de repente vou mudar. (E3)

Esse relato revela a complexidade das expressões da espiritualidade e da religiosidade experienciadas pela familiar, levantando questões para a discussão, tais como o sentimento de frustração diante da falta de resposta às suas angústias e vivências.

DISCUSSÃO

Os relatos sobre o modo da expressão da espiritualidade e religiosidade vão ao encontro da literatura científica, uma vez que a crença e a adesão a rituais de práticas religiosas formais auxiliam no fortalecimento e autoconfiança para o enfrentamento dos problemas subsequentes, fornecendo apoio e proteção para os familiares que estão lidando com a situação desgastante e apontando a fé é uma forte aliada quando se deparam com situações difíceis(¹⁵-¹⁶).

Ao participar de uma comunidade religiosa formal, o indivíduo se sente aceito e pertencente a uma rede de indivíduos que o amparam e compartilham das mesmas crenças; enquanto que, ao estabelecer hábitos informais, associados a uma busca espiritual autônoma, dedica-se ativamente a um fortalecimento diante de experiências difíceis(¹⁷).

A energia do grupo e o sentimento de pertencer a um todo maior auxilia as pessoas a suportarem os momentos árduos da vida; assim, a família pode procurar a comunidade de uma igreja, por exemplo, como uma forma de conseguir ajuda. Observa-se, portanto, que a expressão da espiritualidade e religiosidade dos familiares ocorrem em diferentes espaços significativos para cada um, não se restringindo a um único local de expressão.

Acredita-se que as práticas religiosa e espiritual promovem conforto pessoal e estados espirituais positivos, por intermédio da leitura de textos consideradas sagrados, cujas mensagens ou ensinamentos possibilitam uma reflexão acerca da vida do indivíduo e de suas atitudes para com as pessoas ao seu redor e até mesmo encontrar soluções para o enfrentamento de problemas vivenciados por ele, repercutindo em seu cotidiano(¹⁵).

Percebe-se que atos corriqueiros realizados por familiares de pessoas que usam drogas, como a leitura e reflexão de textos espirituais/religiosos, refletem positivamente em suas vidas no convívio com as dificuldades da vida e, inclusive, ajudam a lidar com o problema de uso de substâncias do familiar.

O ritual de orar, seja junto a uma instituição religiosa específica ou de forma autônoma, é uma prática espiritual frequentemente relatada pelos familiares entrevistados com a intenção de atrair boas energias para suas vidas. Estes achados corroboram com outros estudos, os quais trazem que a oração é uma das práticas religiosas mais comumente realizadas, a depender da crença religiosa podendo ser silenciosa, audível, um louvor, uma petição, um mantra, uma confissão ou uma adoração(¹⁷). Essa prática, muitas vezes, é realizada por meio de palavras que se originam de sentimentos(¹⁸) e que tem o significado de desejar o bem para a pessoa, além de obter uma graça ou alcançar um determinado estado mental(¹⁶). Cabe ressaltar que o ato de orar tem a capacidade de aliviar o estresse por meio da mudança do enfoque da mente nos problemas e tensões do momento(¹²,¹⁹).

Observa-se que a oração é um exercício simples e fácil de ser realizado no cotidiano dos familiares e se origina a partir de diferentes motivações, como: agradecer, aliviar sofrimento, pedir uma graça e mudar pensamentos. É praticada pelo familiar, com vistas à busca de apoio e conforto para lidar com o problema de uso de substâncias do seu ente, usuário.

Evidencia-se, uma vez que a espiritualidade está presente na maior parte dos indivíduos e é ela que, muitas vezes, possibilita dar um sentido à vida(²⁰), ou buscar novos significados a ela(¹⁷). A espiritualidade é uma força essencial para a manutenção e o cuidado da vida em suas diferentes dimensões e perspectivas(¹⁰).

Práticas de espiritualidade e religiosidade entre pessoas que estão em sofrimento psíquico representam um alívio de sentimentos de angústia ou solidão, o que vai ao encontro da literatura científica, uma vez que a crença proporciona-lhes força e confiança para enfrentar os momentos de dificuldade como fonte de apoio para contornar situações difíceis da vida(¹⁶).

Pessoas que acreditam em algum poder superior conseguem atravessar melhor as fases difíceis da vida. A espiritualidade atua como uma estratégia capaz de enfrentar crises existenciais e de convivência, bem como auxilia no desenvolvimento de uma maior resiliência ao estresse, ou seja, amplia a capacidade de superar as adversidades da vida em contextos difíceis(¹⁷,²⁰).

Percebe-se que as variadas expressões de fé estão fortemente presentes na vida desses familiares, pois nelas que renovam suas forças, encontram segurança e sentem-se bem, até mesmo para lidar com o estresse causado pelo problema de abuso de drogas de seu ente.

Os sentimentos como calma e tranquilidade são relatados como resultados da fé empregada de diferentes formas no cotidiano dos familiares, tornando-se um importante sistema de apoio, atuando na redução de estresses e possibilitando sensações de bem-estar diante da situação adversa do momento, diminuindo a ansiedade e melhorando as habilidades para lidar com as situações de sofrimento(²¹-²²)_.

A espiritualidade e a religiosidade, assim, estiveram presentes nos relatos como práticas capazes de trazer serenidade aos familiares mesmo frente à complicada posição em que se encontram, a de ser o familiar mais próximo e envolvido com o tratamento de um usuário de SPA.

Com isso, é possível notar que os familiares utilizam práticas espirituais e religiosas para enfrentamento do sofrimento, por meio do crescimento, da esperança e confiança, sentindo-se assim, mais amparados e renovados para seguir lidando com as circunstâncias estressantes da vida(²³). O uso da fé e a crença em algo maior, acolhe os familiares nas situações turbulentas, sendo um alicerce de esperança para uma melhora(²⁴). Nesta pesquisa, os relatos sugerem que, através da esperança gerada pela espiritualidade e religiosidade, os familiares de pessoas que usam drogas se mantêm estimulados a lidar com as adversidades e dar seguimento às suas vidas.

Como importante contraponto aos relatos mais predominantes neste estudo, identificou-se o sentimento de conflito relatado por uma das entrevistadas, quanto à expectativa de efetividade das expressões de espiritualidade e religiosidade sobre o sofrimento, associado à experiência de ser familiar de usuário de drogas em tratamento. Este relato sugere a importância de não tomar essas expressões como fatores de proteção por si só, na medida em que nem todos parecem vivenciar as sensações relatadas, como tranquilidade, confiança ou calma. Isso deve ser considerado no cuidado em saúde, no sentido de auxiliar a pessoa a elaborar suas experiências.

Isso indica que algumas pessoas podem vivenciar uma insatisfação com suas crenças, sobretudo quando não identificam respostas ou mudanças concretas em sua vida(²⁵). Assim, embora na maior parte dos relatos a prática religiosa formal ou algumas noções de espiritualidade surjam como tendo relação direta com o conforto recebido por meio de palavras e de orações, nem todas as pessoas que disseram ter práticas espirituais e religiosas se beneficiam destas na compreensão e alívio dos processos de sofrimento psíquico.

Para além de mera exceção, o relato que refere conflitos e dúvidas neste campo desafia o viés que naturalmente associa práticas espirituais e religiosas como se significassem fatores de proteção em sua essência.

Entre os principais achados deste estudo, reafirma-se a complexidade do tema, recolocando os conceitos de espiritualidade e religiosidade como sendo ricos em significados singulares, que podem ser úteis para as práticas clínica e de pesquisa.

Estudos indicam que o reconhecimento desta complexidade deve fazer parte do repertório de cuidado em saúde entre profissionais da saúde(¹⁰,¹⁶), como também advogam que pesquisadores deste tema se apropriem desta complexidade(¹⁶). Trata-se, portanto, de ir além da mera identificação dessas expressões, permitindo uma maior compreensão dos sentidos atribuídos a elas, potencializando a incorporação desses recursos na construção do cuidado em saúde, junto com usuários ou seus familiares.

Assim, a compreensão das práticas espirituais e religiosas em sua complexidade e nuances devem compor o referencial de profissionais de saúde mental, como forma de compreender fatores de risco e de proteção que permeiam o cotidiano dos familiares de pessoas que usam drogas(²⁶-²⁷).

Segundo os relatos aqui trazidos, tais práticas associam-se principalmente ao apoio, conforto, tranquilidade e esperança, influenciando de forma positiva em suas vidas; mas também podem surgir como elementos de tensionamento em experiências de dúvida, frustração, falta de pertencimento e conflitos com as dimensões singulares da espiritualidade e da religiosidade, cujas práticas e crenças são desafiadas diante dos percalços entre não-adesão, lapso e recaída do familiar acompanhado.

Limitações do Estudo

Como limitação do estudo, aponta-se a abordagem de um único representante do núcleo familiar dos pacientes atendidos em serviços especializados de um hospital da região sul do país. Faz-se fundamental a investigação da influência da expressão da espiritualidade e da religiosidade entre os outros membros da família e seus atravessamentos no convívio intrafamiliar.

Contribuições para a Área de Enfermagem e Saúde

Ao realizarem uma abordagem de modo integral, profissionais de saúde devem utilizar na assistência a famílias de pessoas que usam drogas, um cuidado que compreenda as necessidades espirituais de modo singular, levando em consideração e respeitando as crenças e valores de cada indivíduo, identificando como estas dialogam com os fatores de risco e proteção, na possibilidade de compreensão sobre a etiologia do quadro de dependência de SPA.

Com isso, espera-se que investigações sobre as expressões de espiritualidade e religiosidade de familiares de pessoas que usam drogas não se limitem a rótulos preestabelecidos de modo dicotômico, como se a discussão se restringisse entre “quem tem” e “não tem”. Desse modo, a compreensão desse fenômeno permite a observação dos relatos de forma qualificada.

Frente a isso, sugere-se a realização de novas pesquisas em outros contextos sobre espiritualidade e religiosidade no cuidado a familiares de pessoas que usam drogas, por entender este fenômeno como um importante elemento do cuidado em saúde e enfermagem, para além de um mero dado pontual da anamnese (valores e crenças), tendo implicações enquanto dimensão humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio deste estudo, foi possível analisar como se expressa a espiritualidade em familiares de pessoas que usam drogas em tratamento no ambulatório de um hospital público. A partir dos relatos dos familiares, identificaram-se as expressões das mesmas em seus cotidianos e de que maneira elas repercutem em suas vidas.

Em relação à forma que o familiar expressa sua espiritualidade nos relatos, predominou a busca por espaços onde eles pudessem praticar sua fé, como: igreja, centro espírita, centro de umbanda e grupos de apoio mútuo. Além disso, ressaltaram outras atividades por meio de pequenos atos como ler textos de cunho religioso, assim como, o ato de rezar, pedir e agradecer buscando uma relação com o divino/transcendental para a mudança de pensamentos ruins e de tristeza. Estas diferentes formas de expressão corroboraram a importância de uma distinção conceitual entre espiritualidade e religiosidade.

No que se refere à influência da espiritualidade e religiosidade na vida dos familiares, evidenciou-se que estas expressões assumiram um papel significativo no alívio de sentimentos de angústia e solidão, refazendo as forças desses indivíduos e fortalecendo-os por meio do apoio encontrados nas pessoas, proporcionando calma e tranquilidade, através da fé e esperança. Em outros relatos, também se percebe como a etiologia de usos dependentes de SPA, principalmente diante dos períodos de recaída e não-adesão ao tratamento, é relatada como desafiadora, podendo permitir sentimentos de conflito tanto em relação ao paciente, quanto em relação ao sentido das próprias práticas de espiritualidade e religiosidade na vida de familiares.

Os resultados deste estudo demonstraram que a espiritualidade e a religiosidade são relatadas prioritariamente enquanto fatores de proteção, no entanto é importante levar em conta os vieses na identificação, considerando-se questões culturais e a vivência singular de cada pessoa. Para tanto, se faz necessária a abertura a uma revisão conceitual que permita que profissionais de saúde e pesquisadores possam compreender estas nuances para melhor dar sentido às mesmas.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho

EDITOR ASSOCIADO: Hugo Fernandes

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  05 Set 2022
• Data do Fascículo
  2022

Histórico

• Recebido
  07 Out 2021
• Aceito
  17 Jan 2022