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Migração e refúgio: temas necessários para o ensino na Enfermagem em tempos de COVID-19

RESUMO

Objetivos:

apresentar o panorama dos processos migratórios e de acesso à saúde de imigrante no Brasil e refletir sobre a importância da formação em Enfermagem, numa perspectiva interdisciplinar, voltada ao cuidado dessa população, no contexto de pandemia.

Métodos:

trata-se de um estudo teórico-reflexivo, pautado nas experiências dos autores e ancorado na literatura.

Resultados:

algumas particularidades no acesso a serviços de saúde de migrantes e pessoas refugiadas evidenciam como elas têm sido impactadas de diferentes maneiras com o avanço e continuidade da pandemia. A pesquisa e ensino de abordagem interdisciplinar são importantes para estudar e melhor compreender as necessidades de saúde da população migrante no país, especialmente no contexto de pandemia.

Considerações Finais:

a formação de profissionais de saúde, especialmente em Enfermagem, deve compreender as especificidades destas pessoas para que futuras intervenções sejam mais sensíveis e próximas da realidade que vivem.

Descritores:
COVID19; Migração Internacional; Refúgio; Acesso a Serviços Saúde; Enfermagem

ABSTRACT

Objectives:

to present an overview of migratory processes and access to health care for immigrants in Brazil and reflect on the importance of training in Nursing from an interdisciplinary perspective, focused on the care of this population in the context of a pandemic.

Methods:

this is a theoretical-reflective study based on the authors’ experiences and anchored in the literature.

Results:

some particularities in the access to health services by migrants and refugees show how the pandemic’s advancement and continuity impacted them in different ways. Interdisciplinary research and teaching are essential to study and better understand the health needs of the migrant population in Brazil, especially in the context of a pandemic.

Final Considerations:

the training of health professionals, especially in Nursing, must include these people’s specificities so that future interventions are more sensitive and closer to their reality.

Descriptors:
COVID-19; International Migration; Refugee; Accessibility of Health Services; Nursing

RESUMEN

Objetivos:

presentar el panorama de los procesos migratorios junto al acceso a los cuidados de salud de los inmigrantes en Brasil y reflexionar sobre la importancia de la formación en Enfermería dirigida a la atención de esta población desde una perspectiva interdisciplinaria en el contexto de la pandemia.

Métodos:

se trata de un estudio teórico-reflexivo, pautado en las experiencias de los autores y también basado en la literatura.

Resultados:

algunas particularidades en el acceso a los servicios de salud de los migrantes y las personas refugiadas evidencian que éstas han sido impactadas de diferentes maneras con el avance y la continuidad de la pandemia. La investigación y la enseñanza con un enfoque interdisciplinario son importantes para estudiar y comprender mejor las necesidades sanitarias de la población migrante en el país, especialmente en el contexto de la pandemia.

Consideraciones Finales:

la formación de los profesionales sanitarios, especialmente en Enfermería, debe comprender las especificidades de estas personas para que las futuras intervenciones sean más sensibles y cercanas a la realidad que viven.

Descriptores:
COVID-19; Migración Internacional; Refugio; Accesibilidad a los Servicios de Salud; Enfermería

INTRODUÇÃO

Esta reflexão é motivada pela nossa experiência de cientistas sociais e enfermeira no ensino de graduação em Enfermagem. De uma maneira geral, buscamos sensibilizar os estudantes a partir do instrumental teórico e metodológico da Antropologia para pensar o corpo humano como uma realidade múltipla construída por diversos atores sociais e saberes. A partir dessa referência, procuramos relativizar as noções de saúde, de doença e de cuidados à saúde, discutindo-as como processos de construção socioculturais que, como tais, comportam diversidade, mesmo na sociedade contemporânea, na qual prevalecem a visão e a prática biomédicas. Para alcançar tais objetivos, buscamos uma aproximação teórica com conceitos, concepções e processos socioculturais diversos de saúde/doença/cuidados. Temos discutido as diferenças e similitudes nas formas de pensar e agir sobre estes processos. Entre os temas abordados em nossa unidade curricular, destacamos os grupos vulneráveis que sofrem os reveses estruturais das desigualdades, com especial ênfase nas pessoas migrantes e refugiadas, dado que sua invisibilidade no contexto da pandemia da COVID-19 acentua ainda mais as iniquidades.

Apresentamos um panorama geral dos processos migratórios transnacionais no nosso país, as particularidades no acesso a serviços de saúde e como os migrantes têm sido impactados de diferentes maneiras com o avanço e continuidade da pandemia. Por fim, debatemos a importância da pesquisa e ensino de abordagem interdisciplinar para estudar e melhor compreender as necessidades de saúde da população de migrantes internacionais no Brasil, especialmente no contexto de pandemia.

Pretendemos contribuir para a formação de profissionais de saúde, especialmente a Enfermagem, para que compreendam as especificidades destas pessoas e que futuras intervenções sejam mais sensíveis e próximas da realidade que vivem.

OBJETIVOS

Apresentar o panorama dos processos migratórios e de acesso à saúde de imigrante no Brasil e refletir sobre a importância da formação em Enfermagem, numa perspectiva interdisciplinar, voltada ao cuidado dessa população, no contexto de pandemia.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo teórico reflexivo, baseado no pensamento crítico dos seus autores e sustentado na literatura científica sobre migrações e saúde. O texto está estruturado em três eixos temáticos, a saber: migrações transnacionais e iniquidades em saúde; experiências de acesso à saúde de migrantes e formação interdisciplinar de enfermagem: subsidiando o cuidado em saúde a população migrantes.

RESULTADOS

Migrações transnacionais e iniquidades em saúde

O avanço da pandemia de COVID-19 levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a decretar emergência internacional, em janeiro de 2020. Em março deste mesmo ano, o Brasil, a exemplo de outros países, decretou estado de calamidade pública, assim como adotou o isolamento social e restrição à mobilidade como medidas de prevenção, contágio e disseminação do vírus no país. Entretanto, essas medidas de prevenção e combate ao contágio e disseminação do coronavírus foram politicamente polemizadas no Brasil, exigindo grande mobilização regional e local na observação das restrições às aglomerações, às condições de mobilidade e circulação das pessoas. Tais medidas, demandaram grandes esforços individuais e coletivos que são condicionados pela situação socioeconômica, de moradia, de acesso à saúde e educação, dentre outros, de cada pessoa e/ou grupo social e, apesar de necessárias, produziram grandes impactos socioeconômicos para a maior parte da população. Tais impactos ocorrem de maneira desigual, afetando fundamentalmente as populações que vivem, precariamente, à margem da sociedade, dentre elas migrantes internacionais e refugiados(11 Baeninger R. Migrações Internacionais e a Pandemia da Covid-19 [Internet]. Campinas: NEPO/Unicamp, 2020[cited 2021 Oct 21]. Available from: https://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/livros/impactos_pandemia/COVID%20NAS%20MIGRA%C3%87%C3%95ES%20INTERNACIONAIS.pdf
https://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/...
).

Assim, a pandemia exacerbou as desigualdades sociais estruturais, sendo mais dramática nas populações mais pobres e vulneráveis. Em várias partes do mundo e no Brasil, a população em mobilidade, seja migrante ou em situação de refúgio, é sem dúvida um dos grupos mais severamente atingidos pela crise.

Nas últimas décadas, o Brasil tem sido destino de muitos migrantes e refugiados em uma tendência de migração Sul-Sul Global, principalmente de alguns países da América do Sul e Central, tais como Bolívia, Peru, Haiti, Síria e mais recentemente da Venezuela. Também de países africanos, tais como Congo, Senegal, dentre outros. O Sistema Nacional Migratório (SISMIGRA), do Ministério da Justiça-Polícia Federal, registrou, entre 2000 e março de 2020, a entrada de 1.504.736 pessoas no país, oriundas de 227 localidades diferentes, sendo a maioria delas do Sul Global(22 Ministério da Justiça e Segurança Pública (BR). Sistema de Registro Nacional Migratório - SISMIGRA. Tabulações: Banco Interativo do Observatório das Migrações em São Paulo[Internet]. NEPOUNICAMP, CNPq/MPT. OBMigra. 2020[cited 2022 Jan 03]. Available from: https://www.nepo.uni-camp.br/observatorio/bancointerativo/
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).

Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR-ONU), as pessoas podem deslocar-se para melhorar suas condições de vida, ou para reuniões familiares, ou por outros motivos. Migram para aliviar dificuldades ocasionadas por desastres naturais, pela fome ou extrema pobreza. Deixam seus países por esses motivos e normalmente não são consideradas refugiadas. As pessoas refugiadas são migrantes, mas nem todos os migrantes têm o status legal de refugiados. Neste caso, são especificamente definidos e protegidos pelo direito internacional e caracterizados como pessoas que estão fora de seus países de origem por fundados temores de perseguição, conflito, violência ou outras circunstâncias seriamente. O governo brasileiro reconheceu, até o final de 2020, 57.099 pessoas refugiadas(33 Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Dados sobre refúgio no Brasil[Internet]. 2020[cited 2021 Nov 5]. Available from: https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/dados-sobre-refugio-no-brasil/
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).

O processo de integração de migrantes e pessoas refugiadas em países que os recebem é complexo. A saúde, enquanto direito essencial no contexto de integração, se destaca como um importante componente neste processo(44 Risson AP, Matsue RY, Lima AC. Atenção em Saúde aos Imigrantes Haitianos em Chapecó e suas Dimensões Étnico-Raciais. Soc Questão [Internet]. 2018;41:111-30. [cited 2021 Nov 5]. Available from: http://osocialemquestao.ser.puc-rio.br/media/OSQ_41_art_5_Risson_Matsue_Lima.pdf
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-55 Goldberg A, Martin D, Silveira C. Por um campo específico de estudos sobre processos migratórios e de saúde na Saúde Coletiva. Interface. 2015;19(53):229-32. https://doi.org/10.1590/1807-57622015.0194
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).

Análises da inclusão de migrantes internacionais pelos sistemas oficiais de saúde mostram que parte dos casos ocorre sem que os sistemas de referência e os códigos próprios às sociedades de origem, incluídos aí todas as tradições e valores carregados por indivíduos e famílias no processo migratório, sejam colocados em diálogo dentro do sistema receptor(55 Goldberg A, Martin D, Silveira C. Por um campo específico de estudos sobre processos migratórios e de saúde na Saúde Coletiva. Interface. 2015;19(53):229-32. https://doi.org/10.1590/1807-57622015.0194
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). Desta forma, os fluxos migratórios suscitam diversos debates, como as políticas públicas de acesso à saúde, de trabalho e renda, de educação e de bem-estar-social. Para além disso, a atenção as suas singularidades também demonstram um caminho mais profícuo à garantia dos princípios trazidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), como a universalidade, a integralidade e a equidade.

Diante do exposto, este texto objetiva tencionar reflexões, numa perspectiva interdisciplinar, sobre a saúde da população migrante residente no Brasil frente a pandemia COVID-19.

Experiências de acesso à saúde de migrantes

De maneira geral, a saúde é um tema privilegiado à compreensão da maneira como migrantes e refugiados se inserem no país de acolhida e organizam a vida. A busca por soluções de possíveis sofrimentos e angústias no processo migratório e a integração local deve considerar como os processos de saúde e doença são vividos por estas pessoas.

As Unidades Básicas de Saúde (UBS), dispositivo de atenção primária no contexto do SUS, têm se tornado um ponto de contato importante com a população imigrante no país, especialmente na cidade de São Paulo. Vários estudos têm detalhado experiências de migrantes no sistema de saúde no Brasil. Experiências exitosas tal como a contratação de Agentes Comunitários de Saúde migrantes, podem ser confrontadas com várias situações em que os serviços de saúde não conseguem superar obstáculos que impedem o acesso. Impedimento de comunicação plena provocado pelas línguas nacionais estrangeiras, ou mesmo dialetos, ou a distância provocada pelos diferentes modos de conceber e praticar a saúde, podem emergir nas mais variadas situações: na apreensão da queixa, na comunicação de uma proposta terapêutica, no impedimento pautado por tradições que possam impedir o exame físico, entre outros exemplos(55 Goldberg A, Martin D, Silveira C. Por um campo específico de estudos sobre processos migratórios e de saúde na Saúde Coletiva. Interface. 2015;19(53):229-32. https://doi.org/10.1590/1807-57622015.0194
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).

A inserção de migrantes e pessoas refugiadas no sistema de saúde, em seus diversos níveis, evidencia a complexidade dos processos migratórios transnacionais. Constituem exemplos nos serviços de saúde: migrantes que enfrentam barreiras culturais, morais e políticas; experiências prévias de traumas emocionais, físicos ou sexuais que resultam em medo ou receio na relação com esses serviços; problemas de acesso ao novo sistema de saúde; ou mesmo, racismo, xenofobia ou preconceitos. O racismo foi identificado em estudos com refugiados no Brasil e em serviços de saúde mental(44 Risson AP, Matsue RY, Lima AC. Atenção em Saúde aos Imigrantes Haitianos em Chapecó e suas Dimensões Étnico-Raciais. Soc Questão [Internet]. 2018;41:111-30. [cited 2021 Nov 5]. Available from: http://osocialemquestao.ser.puc-rio.br/media/OSQ_41_art_5_Risson_Matsue_Lima.pdf
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).

Nas práticas de saúde desenvolvidas junto à população de migrantes é necessário considerar essa diversidade de experiências. É importante que profissionais em saúde estejam cientes de doenças, condições e lesões que diferentes grupos de migrantes podem padecer associados às condições de trabalho ou problemas de saúde mais frequentes no seu país de origem. Um exemplo de problema de saúde de migrantes bolivianos no Brasil, intimamente relacionado com suas condições de trabalho nas oficinas de costura, é a incidência de tuberculose neste grupo(55 Goldberg A, Martin D, Silveira C. Por um campo específico de estudos sobre processos migratórios e de saúde na Saúde Coletiva. Interface. 2015;19(53):229-32. https://doi.org/10.1590/1807-57622015.0194
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).

Milhares de migrantes vivem em condições precárias de moradia nas grandes cidades brasileiras: são moradores de cortiços, ocupações, oficinas de costura ou em centros de acolhida, além daqueles em situação de rua. Além disso, são alvo de discriminação social e racial e seus direitos na maioria das vezes não são respeitados nos espaços públicos, intensificando a sua condição de vulnerabilidade(44 Risson AP, Matsue RY, Lima AC. Atenção em Saúde aos Imigrantes Haitianos em Chapecó e suas Dimensões Étnico-Raciais. Soc Questão [Internet]. 2018;41:111-30. [cited 2021 Nov 5]. Available from: http://osocialemquestao.ser.puc-rio.br/media/OSQ_41_art_5_Risson_Matsue_Lima.pdf
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). Estão sujeitos, de maneiras distintas, a espaços e circunstâncias que potencializam diversos agravos à saúde, além das outras morbidades presentes nesta população. Doenças prevalentes em seus países de origem (doença de Chagas entre bolivianos, por exemplo), lesões e estresse provocado por excessivas cargas de trabalho (trabalhadores da indústria de corte de carne e oficinas de costura), insegurança alimentar entre haitianos, violência contra a mulher em ambiente doméstico e de trabalho, são alguns aspectos a serem considerados em qualquer reflexão acerca da proposta de isolamento de boa parte dos migrantes na região metropolitana de São Paulo(66 Carneiro Junior N, Silveira C, Silva LM, Shikanai-Yasuda MA. Migração boliviana e doença de Chagas: limites na atuação do Sistema Único de Saúde Brasileiro (SUS). Interface. 2018; 22(64):87-96. https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0338
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).

Na região central de São Paulo, por exemplo, a UBS Sé é uma unidade que atende muitas pessoas migrantes e refugiadas. Esta unidade de saúde é geograficamente muito próxima da Missão Paz que é uma instituição filantrópica gerida por missionários Scalabrianos para apoio e acolhimento a imigrantes e refugiados na cidade de São Paulo.

Dados de pesquisa de campo realizada pelo nosso grupo na UBS Sé, em 2020, mostram que havia 1271 migrantes cadastrados, sendo 1047 adultos, 469 homens e 578 mulheres, segundo a gerência da Unidade. Há grande diversidade de nacionalidades, entre elas pessoas originárias da Bolívia; República Democrática do Congo, Angola, China; Colômbia, Paraguai, Peru; Costa do Marfim, Senegal, Guine Bissau, Nigéria, Haiti; Síria e Venezuela. Resultados preliminares da pesquisa evidenciam que os profissionais de saúde estão atentos à complexidade dos cuidados a estas pessoas. Entre os desafios, destacam-se a multiplicidade de idiomas falados, a difícil compreensão do funcionamento do SUS, as distintas concepções de doença, saúde e cuidados e a vulnerabilidade estrutural a que muitos estão submetidos. Os profissionais de saúde conhecem as especificidades das pessoas que frequentam a unidade e criam estratégias para melhorar a comunicação e consequentemente o cuidado. Um exemplo, na pandemia, foi o de um enfermeiro que se comunicava com uma puérpera chinesa por meio de WhatsApp utilizando um tradutor para o mandarim. Neste caso, ele acompanhou todo o processo de aprendizagem sobre amamentação e pode tirar as dúvidas com a mulher.

Há evidências de que o confinamento já impactou na vida de migrantes e pessoas refugiadas, potencializando a precariedade da vida e as situações de violência intra-doméstica e nos espaços laborais coletivos. A paralisação das atividades laborais afetou imediatamente a vida dessas pessoas, gerando ainda a possibilidade de uma grande parte permanecer sem trabalho, acentuando ainda mais a instabilidade de sobrevivência. Cavalcanti et al. (2020)(77 Cavalcanti L, Oliveira WF. Os efeitos da pandemia de COVID-19 sobre a imigração e o refúgio no Brasil: uma primeira aproximação a partir dos registros administrativos. In: Cavalcanti L, Oliveira T, Macedo M. Imigração e Refúgio no Brasil. Relatório Anual 2020[Internet]. Brasília, DF: OBMigra 2020[cited 2021 Oct 21] Available from: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/dados/relatorio-anual/2020/OBMigra_RELAT%C3%93RIO_ANUAL_2020.pdf
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) destacam que, na dimensão dos efeitos sobre o mercado de trabalho formal, os impactos foram desiguais a depender do perfil do trabalhador e, em especial, do setor de atividade.

Por exemplo, o impedimento de trabalho para trabalhadores informais, como os vendedores ambulantes e trabalhadores diaristas dos grandes centros urbanos. Tal realidade impacta severamente na satisfação das necessidades básicas diárias das famílias, em especial na manutenção da moradia e acentuando a insegurança alimentar. A ausência de informações sobre morbimortalidade da população migrante e refugiada por, no mínimo, nacionalidade e etnia, compromete a vigilância sobre os casos e a possibilidade de ações de prevenção no contexto da pandemia.

A exclusão dos imigrantes foi explicitada nos problemas de acesso destes às políticas de minimização dos danos da pandemia, como o projeto de lei 1066/2020, que instituiu o benefício emergencial para famílias vulneráveis. A ausência de plataformas digitais inclusivas, a exigência de documentos brasileiros e a falta de informação centralizada constituem obstáculos para o acesso ao auxílio no Brasil. A situação se agrava ainda mais para os indocumentados ou para aqueles que chegaram há pouco tempo no país. A comprovação de endereço domiciliar com a apresentação de documento reconhecidamente oficial (contas e/ou cartas com comprovação da veracidade de assinatura), também criou enormes obstáculos aos migrantes e refugiados em relação à vacinação contra a COVID-19.

Por outro lado, vale ressaltar o apoio de redes da sociedade civil (Organizações não Governamentais, instituições beneficentes, entre outras) e políticas públicas para migrantes e refugiados de alguns municípios, buscando atenuar a gravidade da situação em que vivem atualmente. Casos específicos de ações inclusivas em saúde, dentro do Sistema Único de Saúde (SUS) no município de São Paulo, podem ser ilustrados pela mobilização de agentes comunitários de saúde em visita aos migrantes e pela reestruturação de ações mais adequadas às necessidades desse grupo, tais como sensibilização dos trabalhadores em saúde ou mesmo incentivo à aprendizagem das línguas mais prevalentes nos serviços. No caso da cidade de São Paulo, estas intervenções ampliaram-se a partir de 2016, momento em que foi promulgada a Lei Municipal para Imigrantes e Refugiados que criou o Conselho Municipal de Imigrantes e o Fórum Permanente de Imigrantes, ponto de inflexão nas ações públicas (estatais e da sociedade civil) junto aos migrantes e refugiados(88 Martin D, Goldberg A, Silveira C. Imigração, refúgio e saúde: perspectivas de análise sociocultural. Saúde Soc. 2018; 27:26-36. https://doi.org/10.1590/s0104-12902018170870
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).

Em paralelo às políticas públicas de saúde que visam a proteção da população, é necessário se questionar sobre os desafios e limites de propostas totalizantes e distantes das experiências particulares de cada grupo social. Por exemplo, como é compreendida uma mensagem oficial de isolamento social para conter a transmissão de um vírus que, para muitos, ainda é distante, midiático e compete com a sobrevivência? Como se exerce a possibilidade de desenvolver técnicas de higienização de mãos, uso de máscaras e condições de isolamento domiciliar para esta população? É possível dispender dinheiro com a compra de máscaras quando há insegurança alimentar? Além disso, há especificidades no cuidado em saúde de migrantes e pessoas refugiadas, que extrapolam a compreensão da língua nacional, como já afirmado anteriormente.

Em tempos de pandemia, é importante refletir sobre como se articulam as condições socioeconômicas com os desafios da interculturalidade em saúde, assim como se articulam as concepções sobre adoecimento e os diversos modos de lidar com a pandemia entre os diversos grupos de migrantes e refugiados. Observamos, por exemplo, relatos de lideranças migrantes sobre a dificuldade de entender a existência e a lógica de funcionamento do sistema nacional de vacinação representado no Brasil pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI-Ministério da Saúde): há países onde não há programa nacional de imunização; as rotinas burocráticas para acessar o sistema de saúde muitas vezes criam obstáculos, como a exigência de documentação e/ou comprovante de residência; além de dificuldades financeiras vivenciadas pelos migrantes na aquisição de máscaras e álcool gel e, mesmo que tenham acesso a estes dispositivos de proteção, os cuidados nem sempre são compreendidos e executados de acordo com as orientações comprovadamente eficazes.

A vacinação em massa e seu maior desafio, a produção e distribuição em uma dimensão global, precisam dialogar com as desigualdades sociais, as iniquidades em saúde e as diferenças culturais. A exposição da população ao contágio pela COVID-19, principalmente os segmentos mais vulneráveis, incluindo migrantes e pessoas refugiadas, grupos minoritários e milhões de brasileiros que também sofrem com as políticas econômicas neoliberais, impacta principalmente o SUS. Como consequência observa-se um número exacerbado e desnecessário de mortes, ignorando o sofrimento individual e coletivo.

Tal perspectiva evoca a interpretação de um contexto de necropolítica cuja lógica do sacrifício, o extermínio mesmo, dos mais fracos explicita a mais tenebrosa face do neoliberalismo. A regulação da vida foi transformada na regulação da morte em condições extremas produzidas pela sociedade. A morte pelo empobrecimento das minorias e pelo não direito à vida e à saúde; são corpos que já estavam expostos ao esgotamento físico e à substância tóxicas no trabalho, agora também expostos ao coronavírus(99 Mbembe A. O Direito Universal à Respiração. N-1 Edições 2020; 20: 1-13.).

A expectativa ética para o momento seria a de ações solidárias e cooperativas. Paradoxalmente, assistimos à insensatez de líderes políticos de diversas nações, inclusive o Brasil, culpabilizando uns aos outros pela situação de pandemia. Fica evidente que podemos e devemos contribuir agora e depois com nossos aportes teórico-metodológicos na perspectiva da interdisciplinaridade para um melhor entendimento e contextualização dos processos de saúde, doença e cuidado. Assim, desejamos contribuir para a elaboração de formas de cuidado mais porosas que pensem as especificidades e abarquem as necessidades da população migrante e refugiada.

Formação interdisciplinar de enfermagem: subsidiando o cuidado em saúde a população migrantes

É evidente a complexidade envolvida em articular diversos paradigmas, valores, crenças, práticas e prioridades dos profissionais de saúde, especificamente a Enfermagem. Essa postura interdisciplinar precisa ser exercitada ainda nos momentos de formação universitária/profissional.

Na nossa experiência na graduação em Enfermagem, destacamos algumas concepções que podem ser válidas para ações de intervenção com migrantes e refugiados, dentre vários grupos vulneráveis que sofrem com a pandemia. Segundo Menéndez (2020)(1010 Menéndez EL. Consecuencias, visibilizaciones y negaciones de una pandemia: los procesos de autoatención. Salud Colectiva. 2020;16:1-23. https://doi.org/10.18294/sc.2020.3149
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). a pandemia de COVID-19 evidenciou a importância estrutural e decisiva dos processos de saúde/enfermidade/atenção-prevenção com consequências e reações em todos os âmbitos da vida coletiva e individual.

Nossas abordagens pedagógicas envolvem o contato conceitual e prático com o tema das migrações internacionais e saúde. Entre as estratégias realizadas, apontamos algumas para uma aproximação mais sensível ao tema: introduzir teoricamente as questões sobre refúgio e migrações, no contexto do Sul Global; compreender os processos de saúde/doença/atenção-prevenção considerando os saberes específicos de cada grupo social e as formas de auto atenção; compreender os desafios da atuação em saúde intercultural. Estes tópicos tem sido tratados por meio de literatura especializada, palestras, debates e entrevistas com migrantes ou refugiados, abordando concepções de saúde, doença e cuidados nestes grupos. O cuidado voltado à população imigrante pode ser vivenciado pelos estudantes de enfermagem nas aulas teórico-práticas, nos espaços de assistência à saúde, bem como nos projetos de extensão.

Assim, discutir a temática do contexto sociocultural de migrantes e refugiados, nos espaços universitários, é fundamental para compreender as iniquidades e diferenças envolvidas nos processos de saúde/doença e cuidados destes grupos. Com o acirramento das vulnerabilidades desta população no contexto de pandemia, é importante que o profissional de Enfermagem tenha um olhar mais atento às suas especificidades e demandas. Nesse sentido, a formação em Enfermagem deve perspectivar um egresso com competências e habilidades para atuar frente as demandas de saúde de populações migrantes e refugiadas, numa lógica do trabalho interdisciplinar e interprofissional, buscando meios para prevenir agravos, promover saúde e desenvolver o mandato social da profissão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta reflexão buscou evidenciar a importância de conhecer e refletir sobre os processos migratórios transnacionais no Brasil na formação e pesquisa na área de Enfermagem. O SUS é uma porta de entrada importante desta população e precisa estar atento às suas especificidades e demandas. Além da nacionalidade e idioma diferentes, é notória a dificuldade de integração desta população aos contextos locais e regionais. Os estudos evidenciam a existência de xenofobia, o racismo, a dificuldade de acesso aos direitos sociais e de saúde, a discriminação e os preconceitos, potencializados no contexto da pandemia. A visão estereotipada sobre estas pessoas muitas vezes se resume à observação de diferenças culturais e, consequentemente, desdobram-se em explicações, justificativas e sentimentos negativos(88 Martin D, Goldberg A, Silveira C. Imigração, refúgio e saúde: perspectivas de análise sociocultural. Saúde Soc. 2018; 27:26-36. https://doi.org/10.1590/s0104-12902018170870
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). É necessário ampliar o debate sobre os processos de saúde, doença e cuidados das populações migrantes e refugiadas. A atuação da Enfermagem é central nos serviços de saúde para a identificação e o atendimento destas pessoas. Nesse sentido, apontamos que há um notável potencial na profissão para fazer uma aproximação mais sensível e culturalmente próxima de suas necessidades em saúde.

  • FOMENTO
    Este estudo foi realizado com apoio e financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Bolsa de Produtividade. Processo número: 307120/2018-0.

REFERENCES

Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Fátima Helena Espírito Santo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    26 Nov 2021
  • Aceito
    20 Jan 2022
Associação Brasileira de Enfermagem SGA Norte Quadra 603 Conj. "B" - Av. L2 Norte 70830-102 Brasília, DF, Brasil, Tel.: (55 61) 3226-0653, Fax: (55 61) 3225-4473 - Brasília - DF - Brazil
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