Trabalho precário em centro cirúrgico: implicações organizacionais e a saúde do trabalhador de enfermagem

RESUMO

Objetivos:

analisar as implicações do trabalho precário para a organização do trabalho e para a saúde dos profissionais de enfermagem em centro cirúrgico.

Métodos:

estudo qualitativo, descritivo no qual se utilizou a técnica de entrevista com 30 profissionais de enfermagem de centro cirúrgico em um hospital universitário situado em um município da região sudeste, Brasil. Projeto aprovado por comitê de ética e pesquisa. Na categorização dos depoimentos aplicou-se a análise de conteúdo temática.

Resultados:

a precarização em centro cirúrgico interfere negativamente na organização do trabalho devido a rotatividade de pessoal, a fuga de capital intelectual e a necessidade de treinamento contínuo dos trabalhadores temporários. Há interferência na qualidade da assistência com riscos para a segurança dos pacientes e a saúde dos trabalhadores.

Considerações Finais:

ratifica-se a relevância da desprecarização do trabalho no intuito de minimizar a rotatividade dos profissionais, promover a qualidade do serviço ofertado e a saúde do trabalhador.

Descritores:
Enfermagem; Centro Cirúrgico Hospitalar; Administração de Recursos Humanos; Saúde do Trabalhador; Riscos Ocupacionais

ABSTRACT

Objectives:

to analyze the implications of precarious work for the organization of work and for the health of nursing professionals in a surgical center.

Methods:

qualitative, descriptive study in which the interview technique was applied on 30 nursing professionals from a surgical center in a university hospital located in the Southeast region of Brazil. The project was approved by the research ethics committee. Thematic content analysis was applied in the categorization of speeches.

Results:

precarious work in the surgical center negatively affects the organization of work due to staff turnover, loss of skilled talent, and the need for continuous training of temporary workers. It also affects the quality of care, leading to risks to patient safety and workers’ health.Final Considerations: it is important to make work conditions less precarious in order to minimize staff turnover and promote the quality of the service offered and the health of the worker.

Descriptors:
Nursing; Surgery Department; Hospital; Human Resources Management; Worker’s Health; Occupational Risk

RESUMEN

Objetivos:

analizar las implicaciones del trabajo precario para la organización laboral y la salud de los profesionales de enfermería en un centro quirúrgico.

Métodos:

se trata de un estudio cualitativo, descriptivo, llevado a cabo mediante entrevista con 30 profesionales de enfermería en un centro quirúrgico de un municipio de la región sureste de Brasil. El proyecto fue aprobado por el comité de ética e investigación. En la categorización de las declaraciones, se aplicó el análisis de contenido temático.

Resultados:

la precarización en centros quirúrgicos interfiere negativamente en la organización del trabajo debido a la rotación de personal, la fuga de capital intelectual y la necesidad de capacitación continua de los trabajadores temporarios. Existe una interferencia en la calidad de la atención con riesgos para la seguridad de los pacientes y la salud de los trabajadores.

Consideraciones Finales:

se ratifica la importancia de apuntalar el trabajo con el intuito de minimizar la rotación laboral y promover la calidad del servicio brindado y la salud del trabajador.

Descriptores:
Enfermería; Centro Quirúrgico Hospitalario; Gestión de Recursos Humanos; Salud del Trabajador; Riesgos Laborales

INTRODUÇÃO

Os hospitais atendem pacientes com variados quadros clínicos e/ou cirúrgicos que, em alguma fase do tratamento, poderão depender de procedimentos realizados em centro cirúrgico (CC), cuja estrutura deve possuir um conjunto de áreas e instalações que permitam efetuar procedimentos anestésicos e cirúrgicos nas melhores condições de segurança para o paciente e para a equipe.Por se tratar de um setor complexo e que se mantém operante diuturnamente, a capacidade de atendimento depende de todo um planejamento em termos de recursos humanos e materiais nas 24 horas que antecedem as cirurgias. Portanto, os profissionais que atuam em CC devem estar em constante comunicação com as demais unidades hospitalares diante de imprevistos que podem acarretar atrasos e suspensão das cirurgias com elevação dos custos sociais e financeiros da instituição(¹-²).

Para o funcionamento eficaz das salas cirúrgicas, o quantitativo de pessoal de enfermagem deve estar de acordo com a classificação das cirurgias, horas de assistência, segundo o porte cirúrgico de cada cirurgia, o tempo de espera e a limpeza das salas(³). Outro aspecto envolvido na assistência em CC é o conhecimento e/ou domínio tecnológico que remete à expertise profissional na realização de procedimentos assépticos nas fases pré, intra e pós-operatória (recuperação anestésica). Tais condutas devem primar pela segurança, conforto e bem-estar dos pacientes, tendo em vista o risco de complicações devido ao uso de anestésicos, contaminação do sítio cirúrgico, quedas e queimaduras(⁴).

No planejamento das cirurgias, é essencial que haja uma preocupação do enfermeiro gestor com a avaliação dos recursos humanos em termos qualitativos e quantitativos que atendam as reais necessidades do paciente com o objetivo de garantir cuidados de qualidade e seguros. Trata-se de um processo dinâmico, envolvendo a classificação de pacientes, as demandas cirúrgicas, as horas de trabalho exigidas, os turnos, a proporção de trabalhadores por setor e o número de salas(⁵). No entanto, com a precarização do trabalho resultante dos novos modelos produtivos e da flexibilização das relações trabalhistas, observou-se a redução do quadro de pessoal dos hospitais universitários com sérias implicações para a continuidade de atividades assistenciais, de ensino e de extensão(⁶). Amparados na Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 11/2000) e tendo em vista a ausência de concurso público para manter os serviços operantes, os hospitais adotaram outras estratégias de admissão de pessoal mediante contratos informais (precarização), acarretando desorganização dos processos de trabalho e prejuízos para a qualidade dos serviços(⁷).

Entende-se o trabalho precário como resultado da desregulamentação do emprego, ausência de proteção social (pleno gozo dos direitos trabalhistas e previdenciários) e perda de benefícios garantidos pela Constituição. Essa modalidade de trabalho, no setor saúde, tem sido associada à deterioração das condições de trabalho, aumento das jornadas, intensificação do sofrimento, descontinuidade de projetos de trabalho, dificuldade de retenção de profissionais qualificados, cobranças por produtividade, polivalência e não obediência às normas relativas à segurança dos trabalhadores por parte das instituições(⁸-⁹).

Estudos sobre o trabalho de enfermagem em centro cirúrgico descrevem esse ambiente permeado por problemas que mantêm estreita relação com a precarização do trabalho devido ao déficit de recursos humanos e materiais, comunicação inapropriada entre o setor e o complexo hospitalar com repercussões para o processo de trabalho, a qualidade de vida no trabalho e a saúde desses profissionais(²,⁴-⁵). Diante da lacuna de pesquisas que discutam o trabalho precário em centro cirúrgico e as implicações para a organização do trabalho e a saúde dos trabalhadores, o presente estudo busca avançar nessas questões de modo a contribuir para a reflexão sobre o quanto o trabalho precário pode afetar a saúde dos trabalhadores bem como comprometer a qualidade da assistência prestada pela enfermagem e demais equipes.

Para agravar essa situação, observa-se que, com a reforma trabalhista legitimada através da Lei nº 13.467, em um contexto de trabalho já precarizado, intensificou-se a flexibilização das normas protetivas da saúde dos trabalhadores e, entre elas, a não obrigatoriedade de inspeção prévia pelos órgãos governamentais dos ambientes de trabalho com qualquer grau de insalubridade (mínimo, médio e máximo). Na atualidade, devido a alterações na CLT, a necessidade de licença prévia por parte do governo para o início da jornada no contrato de trabalho passou a valer apenas para o grau máximo, tendo como consequências a exposição dos profissionais de enfermagem aos riscos ocupacionais, aumento dos acidentes e erros durante a assistência aos pacientes(¹⁰).

Diante dessa realidade de trabalho, questiona-se: quais as implicações do trabalho precário para a organização do trabalho em centro cirúrgico? De que modo a saúde dos trabalhadores de enfermagem é afetada devido à precarização do trabalho em centro cirúrgico?

OBJETIVOS

Analisar as implicações do trabalho precário para a organização do trabalho e para a saúde dos profissionais de enfermagem em centro cirúrgico.

MÉTODOS

Aspectos éticos

Foram atendidos os preceitos éticos envolvendo pesquisa com seres humanos com base na Resolução 466/12, tendo o projeto sido aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa da instituição onde foi realizada o estudo. Os dados foram coletados após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos participantes. No sentido de preservar a identidade dos entrevistados, na transcrição dos depoimentos, adotou-se as seguintes convenções: letra E (Entrevistado) seguida da abreviatura da categoria profissional (E=Enfermeiro e TE=Técnico de Enfermagem) e de um número de acordo com a ordem de realização das entrevistas (EE1, ETE2...).

Tipo de estudo

Estudo qualitativo descritivo cujo objeto remete às percepções, às crenças e aos valores das pessoas acerca do mundo, das suas experiências e/ou vivências e interpretações, aplicando-se ao estudo da história, das relações e das representações(¹¹). Optou-se pelo referencial teórico metodológico da precarização do trabalho cujas bases foram alicerçadas na reestruturação produtiva advinda do Toyotismo que determinou reajustes macroestruturais em todos os setores produtivos, afetando, também, o setor saúde. No campo social do trabalho, observou-se problemas como: redução da interferência do Estado na economia, diminuição da proteção jurídica das relações trabalhistas, fragmentação do trabalho, retração das organizações sindicais e outros(⁶-¹⁰).

O centro cirúrgico que serviu como campo de estudo pertence a um hospital público universitário de grande porte situado na região Sudeste e reconhecido por sua excelência nas áreas de assistência, pesquisa e ensino. O setor possui capacidade instalada de 16 salas realizando, em média, mais de 3 mil cirurgias por mês nas mais diversas especialidades como: cirurgia geral, pediátrica, urológica, cardíaca, ginecológica, vascular, proctológica, plástica, neurocirúrgica, oftalmológica, otorrinolaringológica e outras. Apesar de a unidade hospitalar não possuir serviço de emergência, o setor mantém-se operante nas 24 horas para o atendimento interno das cirurgias de urgência e emergência.

Fonte de dados

Participaram do estudo 30 profissionais de enfermagem (cinco enfermeiros e 25 técnicos de enfermagem) do quadro permanente e que exerciam atividades de cunho assistencial no CC, pelo menos há um ano. Excluídos os trabalhadores que se encontravam de férias, licenciados para tratamento de problemas de saúde ou de outra natureza no período de coleta de dados.

Coleta e organização dos dados

A coleta de dados ocorreu no período de maio a agosto de 2016, por meio de entrevista semiestruturada em que se utilizou um instrumento para o registro dos dados sociodemográficos e um roteiro elaborado pelos autores com quatro questões abertas acerca do objeto de estudo (O que você pensa sobre contratação de pessoal temporário no centro cirúrgico? Que fatores contribuíram para a contratação de pessoal temporário no centro cirúrgico? Quais as repercussões da contratação de pessoal temporário para o serviço? Quais as implicações da contratação de pessoal temporário para a saúde dos trabalhadores?). No intuito de aprimorar o roteiro e as entrevistas, foi realizado um teste piloto com dois profissionais de enfermagem (enfermeiro e técnico de enfermagem) que atuavam em um outro centro cirúrgico. Após a transcrição dos dados e discussão com os colaboradores, foi acrescentada uma pergunta ao roteiro, sendo que o material não fez parte do estudo. As entrevistas foram realizadas por uma enfermeira do programa de pós-graduação (mestrado) que se apresentou à chefia da unidade, falou da proposta e dos objetivos do estudo. Após o fornecimento da escala do serviço, foi realizado o contato prévio com os profissionais para a seleção, convite e agendamento. Em um segundo momento, a responsável pela coleta apresentou-se aos trabalhadores, tendo ratificado os objetivos e apresentado a autorização da entrada no campo. Os dados foram coletados individualmente, após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e em local privativo que proporcionou conforto, segurança e o anonimato dos participantes. O áudio das entrevistas foi registrado em gravador do tipo MP3 e transcrito posteriormente, tendo cada entrevista durado em torno de 40 minutos e devolvidas aos participantes que, após a leitura, concordaram com o teor das transcrições. Na medida em que as entrevistas foram coletadas, transcritas e aplicada a análise de conteúdo aos dados produzidos, no intuito de organizar as categorias e subcategorias, observou-se a saturação empírica(¹¹) dos dados; momento em que os depoimentos passaram a não agregar novos conhecimentos acerca da precarização do trabalho em centro cirúrgico ao considerar os objetivos propostos.

Análise dos dados

Na elaboração das categorias emergentes do estudo, aplicou-se a análise de conteúdo temática(¹²), mediante um conjunto de técnicas que possibilitaram a replicação e validação de inferências através de procedimentos especializados e científicos. Em um primeiro momento, procedeu-se a pré-análise (transcrição das entrevistas e organização dos dados produzidos na medida em que as entrevistas eram realizadas tendo como base o roteiro de perguntas). Em seguida, realizou-se a exploração do material com vistas a identificação das unidades de registro (leitura em profundidade com o objetivo de identificar nos depoimentos os pontos de convergência ou divergência acerca do objeto de estudo). Nessa fase, optou-se pela contagem das unidades de registro (unidades temáticas) significativas mediante os critérios de repetitividade das falas ou unidades de sentido, homogeneidade (convergência dos discursos) e representatividade ao considerar o objeto e objetivos do estudo. Ao final de todo processo, foram elaboradas as seguintes categorias: a) precarização como fator interveniente na organização do trabalho em centro cirúrgico (207 UR) e as subcategorias: fuga do capital intelectual (85UR); rotatividade de pessoal (67UR) e treinamento / capacitação dos trabalhadores temporários (55UR); b) a saúde do trabalhador no contexto do trabalho precário em centro cirúrgico (164 UR) e as subcategorias: ausência de direitos trabalhistas (94 UR) e desproteção social (70UR).As discussões foram balizadas na precarização do trabalho no setor saúde e em enfermagem, considerando que não foram encontrados estudos sobre a precarização do trabalho em centro cirúrgico.

RESULTADOS

Participaram do estudo 30 trabalhadores de enfermagem, majoritariamente do sexo feminino (n=22), não viviam com o(a) companheiro(a) (n=18), idade acima de 46 anos (n=20), renda familiar superior a cinco salários-mínimos (n=18). Atuavam no centro cirúrgico há mais de 5 anos (n=23), cumpriam carga horária de 30 horas semanais na instituição em regime de turnos (n=29) e acima de 60 horas (n=16) ao considerar os demais vínculos empregatícios.

As categorias resultantes da análise de conteúdo são apresentadas e discutidas a seguir:

Precarização como fator interveniente na organização do trabalho em centro cirúrgico

A realização dos procedimentos cirúrgicos envolve uma série de medidas de cunho técnico e assistencial com participação de profissionais de várias áreas e, para que as cirurgias ocorram como planejadas no mapa cirúrgico, há necessidade de pessoal que possua conhecimentos, experiência e esteja familiarizado com a rotina do setor. Trata-se de um processo de trabalho complexo envolvendo o preparo das salas, a checagem de todo arsenal cirúrgico, a recepção dos pacientes e realização de inúmeros procedimentos que implicam em riscos para a segurança do paciente. Dessa forma, o planejamento das cirurgias e a organização de todo trabalho são fundamentais para que os procedimentos ocorram dentro do tempo estimado e sem interferências que prejudiquem o andamento do serviço, a produtividade e a qualidade da assistência.

No entanto, como relatado pelos participantes, a ausência de concurso público, para suprir a necessidade de pessoal para manter o serviço operante, foi um dos fatores que contribuíram para a precarização do trabalho no CC. Dentre os problemas apontados e que interferem na organização do trabalho, identificou-se: desgaste das equipes diante do desconhecimento dos trabalhadores temporários acerca da rotina do setor e a rotatividade com consequente fuga de capital intelectual, cujos conhecimentos e habilidades adquiridas pelos temporários durante o treinamento em serviço nem sempre são aproveitados em prol do bom andamento do serviço devido à rescisão ou quebra do contrato.

A maioria dos funcionários foi se aposentando, adoecendo e não teve concurso público. Então, houve necessidade de contratação temporária de pessoal. (TE7)

Você precisa repor recursos humanos devido também ao aumento da capacidade instalada para atender o número de cirurgias. (ENF29)

O contrato temporário acho que traz um desgaste físico e acho que mental para todos porque não necessariamente as pessoas que chegam detêm a rotina. (TE28)

Você não consegue dar um andamento na formação daquele profissional [referindo-se ao contratado]. Você vê que aquele profissional que você está sempre formando não vai ser aproveitado. (TE1)

Outros aspectos apontados pelos participantes em relação ao trabalho realizado pelos profissionais temporários foram: a preocupação com a imagem do setor, a segurança dos procedimentos e a exposição dos pacientes a riscos diante da necessidade de treinamento e supervisão desses profissionais que não dominavam o processo de trabalho. Identificou-se,também, problemas relacionados à avaliação e ao acompanhamento dos temporários devido ao déficit de enfermeiros, como relatado:

Então, o risco para o setor, para a unidade, é muito grande se você for pensar na segurança dos procedimentos. É uma situação que expõe o paciente e a unidade ao risco, constantemente, porque você tem trabalhadores sendo treinados o tempo todo. (ENF3)

Vamos também desejar uma assistência de qualidade, e para isso é necessário treinamento. Treinamento para podermos melhorar o nosso atendimento à população. (TE6)

A gente não tem enfermeiros suficientes para acompanhar essa qualidade da assistência. A gente não consegue avaliar hoje a qualidade da assistência prestada com esse grupo que tem aí de contratados. (ENF29)

A saúde do trabalhador no contexto do trabalho precário em centro cirúrgico

Apesar de a instituição que serviu como campo de estudo possuir um Serviço de Saúde Ocupacional (SSO), o acompanhamento médico e a realização de exames periódicos dos profissionais temporários não são da alçada do SSO. Isto se explica pelo fato de os temporários não serem regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), portanto, não usufruíam dos direitos trabalhistas relativos à saúde e à segurança no trabalho. Como relatado pelos participantes, os trabalhadores temporários encontravam-se vulneráveis em relação à proteção trabalhista, principalmente nos casos de acidentes e/ou adoecimento, tendo de assumir os encargos sociais e financeiros relativos aos custos do tratamento e/ou recorrerem ao SUS.

Eles estão trabalhando aqui e não têm os mesmos direitos que a gente! Não podem ficar doentes, não podem isso, não podem aquilo. Não podem tirar licença, não podem tirar férias. (TE15)

O temporário é sempre prejudicado porque não tem benefícios trabalhistas! Não tem um vínculo. Se o temporário se machuca, sofre um acidente de trabalho, como é que vai ser atendido? (TE26)

Tem temporário que fica temeroso de tirar licença médica. Vai até piorar uma doença que ele tenha. Evita faltar com medo de se afastar para ir ao médico e perder a vaga dele aqui. (TE10)

DISCUSSÃO

O debate sobre recursos humanos na enfermagem envolve questões de cunho político e econômico que influenciam todo planejamento, pois, mesmo com a utilização de instrumentos para o cálculo de pessoal, há uma defasagem de trabalhadores atuantes nos serviços em relação às reais necessidades. Na enfermagem, problemas como quebra de contratos, faltas não justificadas, absenteísmo, doença e outros afastamentos interferem no processo de trabalho e na prestação de serviços, diante das dificuldades de reposição de pessoal. Tal situação reflete a implementação e estabilização das políticas neoliberais com importantes transformações na legislação trabalhista e previdenciária brasileira, visando o fortalecimento da flexibilização das relações trabalhistas(⁶). Trata-se de uma estratégia bastante vantajosa para o Estado por conta dos menores encargos trabalhistas, porém com sérios reflexos na organização dos serviços de saúde. Amparada na Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 11/2000), a flexibilização da contratação de pessoal temporário proporciona maior liberdade ao empregador para a admissão ou demissão de trabalhadores, necessitando, portanto, de um olhar mais atento para as suas consequências, principalmente no setor saúde, onde os trabalhadores lidam com vidas humanas(¹³-¹⁴).

Os resultados mostram essa situação de precarização na medida em que os profissionais se submetem aos seus efeitos, mantendo-se no trabalho e reforçando a realidade da desproteção social diante da ausência de direitos garantidos na CLT entre outras situações desgastantes. Essa realidade corrobora com estudo sobre a precarização do trabalho na enfermagem e a sobrecarga, do enfermeiro que, além de administrar as ausências dos trabalhadores do quadro permanente, enfrenta a rotatividade dos profissionais temporários, que, devido à instabilidade, rescindem o contrato em busca de melhores ofertas de trabalho ou são desligados pela instituição(¹⁵-¹⁶). As entradas e saídas de pessoal nos serviços de enfermagem implicam em custos financeiros e sociais às instituições por conta dos processos seletivos, treinamento e supervisão em serviço. Há interferências na qualidade do serviço cuja solução encontra-se atrelada ao investimento em uma política de retenção dos profissionais capacitados, o que pode minimizar as rescisões e a fuga de capital intelectual(⁷). A rotatividade nos serviços públicos deve-se à instabilidade empregatícia presente no trabalho precário, em que se observa a retração da função do Estado na regulação do mercado e a desproteção social dos trabalhadores. Essa questão abrange todos os profissionais, independente do estatuto pelo qual é regido, o que tem levado à deterioração das condições de trabalho, a perda do poder de barganha dos sindicatos e riscos à saúde dos trabalhadores(⁸-¹⁰).

Outro aspecto relevante nas discussões sobre o trabalho precário na enfermagem é que o centro cirúrgico por ser um setor restrito e de alta complexidade, exige dos profissionais tomada de decisão rápida, conhecimentos e habilidades específicas que implicam em riscos para os usuários, devido à realização de procedimentos invasivos com possibilidade de iatrogenias e complicações(²,⁴-⁵). Portanto, independente da modalidade de contrato ou formação, o profissional precisa atualizar seus conhecimentos e práticas em função dos avanços científicos e tecnológicos no campo, cabendo à instituição responsabilidade em termos de capacitação e supervisão, para um desempenho seguro. A realização de procedimentos, principalmente invasivos, sem os devidos conhecimentos e/ou habilidades, deixa os profissionais inseguros e apreensivos, podendo ser mais um fator gerador do estresse em centro cirúrgico, nas circunstâncias em que há riscos para a clientela e para o exercício profissional(¹⁷). Por outro lado, estudo realizado com 159 trabalhadores de enfermagem de centro cirúrgico, evidenciou baixo risco para sofrimento patogênico diante de um contexto de trabalho que possibilita a cooperação, a liberdade de expressão e o convívio harmonioso; fatores que contribuem para o sentimento de utilidade e realização(¹⁸).

Em um setor de alta complexidade como CC a precarização do trabalho expõe o profissional a dilemas éticos que atingem a sua subjetividade em face das limitações técnicas e a necessidade de aprimoramento. Deve-se considerar a alta carga emocional e social imposta ao indivíduo no contexto da precarização, tendo em vista as responsabilidades dos profissionais temporários em face do trabalho realizado e dos riscos implícitos nessa prática(¹⁶). Estudo que discute o sofrimento dos profissionais de enfermagem judicializados devido a erros na realização de procedimentos, identificou que nem sempre o indivíduo consegue intervir de forma preventiva na sua ocorrência, justamente pelas condições inadequadas de trabalho ao se considerar o déficit de recursos humanos e materiais que intensificam as cargas de trabalho e contribuem para o risco de incidentes. A falta de apoio institucional e dos órgãos de classe frente a judicialização desses profissionais acarreta sentimento de injustiça, revolta e impotência, havendo inclusive relatos de abandono da profissão(¹⁹).

Estratégias de prevenção de erros e/ou de acidentes em CC podem ser adotadas mediante o treinamento que possibilita ao indivíduo conhecer todo o processo de trabalho, a política de prestação de serviços da instituição e demais informações relevantes. Há necessidade de um sistema de avaliação de desempenho com objetivos bem definidos e adoção de métodos coerentes com a política e a filosofia institucional(⁴-⁵). Por sua vez, a rotatividade implica em investimento de tempo e de recursos humanos na capacitação de profissionais que, não necessariamente, permanecerão no emprego; característica do trabalho precário que desestabiliza os serviços e os processos de gerenciamento de pessoal(⁷,¹⁶). Assevera-se que a instabilidade empregatícia pode influenciar na diminuição do compromisso profissional com a qualificação, visto que, na atualidade, os modelos de gestão responsabilizam o trabalhador pela própria capacitação, não havendo por parte das instituições, incentivo financeiro e nem redução da carga horária para realização de cursos de atualização(²⁰).

Os profissionais da saúde, na modalidade de contrato temporário, além de receberem os menores salários, cumprem jornadas de trabalho maiores e não possuem os direitos trabalhistas previstos em lei, encontram-se mais expostos ao risco de sofrerem acidentes, adoecerem e morrerem por fatores relacionados às condições inadequadas de segurança e saúde no trabalho, devendo-se considerar os novos riscos ocupacionais em função dos avanços tecnológicos e terapêuticos(¹⁵,²¹-²²). No que diz respeito ao ambiente físico de CC, trata-se de uma área restrita, com ventilação e iluminação artificiais, cujos trabalhadores convivem diuturnamente com riscos de acidentes e exposição a material biológico, químico, ionizantes e ergonômicos que podem acarretar danos à saúde, mesmo na presença de uma cultura preventiva(¹⁷-¹⁸).Dentre os riscos ergonômicos, observa-se que o profissional de enfermagem, em função da realização de procedimentos cirúrgicos e demais atividades de cunho assistencial, assume posturas estáticas, mantém-se muito tempo em pé e/ou sentado; o que pode contribuir para problemas osteomusculares, varizes, cansaço, cefaleia e fadiga(²³-²⁴). Há, também, questões organizacionais em função da cobrança por produtividade atrelada ao número nem sempre suficiente de pessoal, acarretando sobrecarga e intensificação do trabalho que produzem sofrimento e desgaste(²⁵).

No trabalho precário, as organizações que buscam, a todo custo, maior produtividade têm proporcionado a seus trabalhadores condições laborais bastantes extenuantes, mediante algumas estratégias de intensificação do trabalho como imposição de metas nem sempre alcançáveis, extensão da jornada de trabalho e polivalência(²¹). Tais estratégias são balizadas na gestão pelo medo, nas formas sutis de abuso de poder e na perpetuação de um ambiente ocupacional nocivo à saúde, em que as organizações nem sempre prestam esclarecimentos sobre os riscos e as medidas coletivas de proteção e prevenção contra acidentes(²²).

Como relatado pelos participantes, os trabalhadores temporários, por não terem direito a afastamentos para tratamento de problemas de saúde, evitam faltar ao serviço pelo temor de sofrerem sanções e serem desligados, caracterizando o presenteísmo, situação em que o indivíduo mantém-se no posto de trabalho mesmo adoecido. Nessa situação de trabalho, há riscos para a saúde do profissional devido ao agravamento de afecções agudas e/ou crônicas, devendo-se atentar para os possíveis prejuízos para a qualidade do serviço e conflitos no relacionamento interpessoal diante da sobrecarga da equipe que deve se desdobrar para atender as demandas do serviço diante da baixa produtividade do profissional presenteísta(²⁶).

Com a desregulamentação de direitos sociais, previdenciários e trabalhistas, permite-se, com a anuência do Estado, a submissão dos trabalhadores a condições de trabalho inseguras que agridem a dignidade profissional e a sua cidadania. E, na medida em que há o enfraquecimento dos sindicatos, ocorre, também, a flexibilização dos direitos trabalhistas com o aval das organizações e dos próprios profissionais que, devido às diferenças contratuais e interesses distintos, não oferecem resistência. Há uma alienação dos trabalhadores na luta por melhores condições de trabalho e qualidade de vida, levando-os a se submeterem a condições de desamparo previdenciário e social para, através do trabalho precário, proverem meios de subsistência(⁸-⁹).

Limitações do estudo

Por se tratar de um estudo qualitativo e com uma parcela dos trabalhadores do quadro permanente, deve-se considerar algumas limitações devido ao método, ao número de participantes e por ter sido realizado em uma única instituição. A inexistência de estudos sobre a precarização do trabalho em centro cirúrgico foi outro fator limitante em termos de comparação e discussão dos achados.

Contribuições para a Enfermagem

Pelo fato de o CC ser um setor de alta complexidade, cujos trabalhadores e usuários encontram-se expostos a riscos de toda natureza, ratifica-se a relevância do estudo por contribuir para a discussão e reflexão acerca da desprecarização do trabalho consonante com a Política Nacional Interinstitucional de Desprecarização do Trabalho no SUS. Com a garantia de direitos trabalhistas previstos na CLT, valoriza-se a força de trabalho, diminui-se a rotatividade e a fuga de capital intelectual com reflexos positivos para a organização do trabalho, a qualidade da assistência e a saúde dos trabalhadores de enfermagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A precarização do trabalho em centro cirúrgico interfere negativamente na organização do trabalho devido à rotatividade de pessoal, à fuga de capital intelectual e à necessidade de treinamento contínuo dos trabalhadores temporários. Há interferência na qualidade da assistência com riscos para a segurança dos pacientes e a saúde dos trabalhadores. Portanto, ratifica-se a relevância da desprecarização do trabalho no intuito de minimizar a rotatividade dos profissionais, promover a qualidade do serviço ofertado e a saúde do trabalhador.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa

EDITOR ASSOCIADO: Rafael Silva

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  08 Maio 2023
• Data do Fascículo
  2023

Histórico

• Recebido
  04 Maio 2022
• Aceito
  25 Out 2022