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Prazer e sofrimento de enfermagem em unidades hospitalares COVID-19: entre desencantos e formação de sentidos

RESUMO

Objetivo:

analisar as vivências de prazer e sofrimento de trabalhadores de enfermagem em unidades hospitalares COVID-19.

Métodos:

estudo multicêntrico, qualitativo, desenvolvido com 35 trabalhadores de enfermagem de unidades COVID-19 de sete hospitais do Sul do Brasil. Os dados foram produzidos por meio de entrevistas semiestruturadas, submetidos à análise temática de conteúdo com auxílio do software NVivo.

Resultados:

vivências de prazer estavam vinculadas à gratificação, identificação com o conteúdo do trabalho, resultados positivos na assistência, reconhecimento, integração com a equipe e superações pessoais. O sofrimento se relevou no cotidiano de mortes e perdas, sentimento de impotência, conflitos na equipe, cobranças institucionais, desvalorização profissional. Os trabalhadores relataram desencantos, mas também fortalecimento dos sentidos do seu trabalho, ressaltando impactos da linha de frente em sua saúde mental.

Considerações finais:

na dinâmica entre prazer e sofrimento no trabalho de enfermagem em unidades hospitalares COVID-19, elementos sinalizam para o risco de adoecimento psíquico.

Descritores:
Enfermagem; Saúde do Trabalhador; COVID-19; Profissionais de Enfermagem; Unidades Hospitalares

ABSTRACT

Objective:

to analyze the experiences of pleasure and suffering of nursing workers in COVID-19 hospital units.

Methods:

a multicenter, qualitative study, developed with 35 nursing workers from COVID-19 units in seven hospitals in southern Brazil. Data were produced through semi-structured interviews, submitted to thematic content analysis with the help of NVivo.

Results:

experiences of pleasure were linked to gratification, identification with work content, positive results in care, recognition, integration with the team and personal overcoming. Suffering was revealed in daily life of deaths and losses, feelings of helplessness, team conflicts, institutional demands, professional devaluation. Workers reported disenchantment, but also strengthening the meaning of their work, highlighting frontline impacts on their mental health.

Final considerations:

in the dynamics between pleasure and suffering in nursing work in COVID-19 hospital units, elements point to the risk of psychological illness.

Descriptors:
Nursing; Occupational Health; COVID-19; Nurse Practitioners; Hospital Units

RESUMEN

Objetivo:

analizar las experiencias de placer y sufrimiento de trabajadores de enfermería en unidades hospitalarias COVID-19.

Métodos:

estudio multicéntrico, cualitativo, desarrollado con 35 trabajadores de enfermería de unidades COVID-19 de siete hospitales del sur de Brasil. Los datos fueron producidos a través de entrevistas semiestructuradas, sometidas al análisis de contenido temático con el auxilio del software NVivo.

Resultados:

las experiencias de placer se vincularon a la gratificación, identificación con el contenido del trabajo, resultados positivos en el cuidado, reconocimiento, integración con el equipo y superación personal. El sufrimiento se reveló en el cotidiano de muertes y pérdidas, sentimientos de impotencia, conflictos de equipo, exigencias institucionales, desvalorización profesional. Los trabajadores informaron desencanto, pero también fortalecieron el significado de su trabajo, destacando los impactos de primera línea en su salud mental.

Consideraciones finales:

en la dinámica entre placer y sufrimiento en el trabajo de enfermería en unidades hospitalarias COVID-19, elementos apuntan para el riesgo de enfermedad psíquica.

Descriptores:
Enfermería; Salud Laboral; COVID-19; Enfermeras Practicantes; Unidades Hospitalarias

INTRODUÇÃO

A enfermagem é a mais numerosa força de trabalho em saúde no Brasil e no mundo. Desempenha um trabalho fundamental no estabelecimento dos cuidados diretos(11 Conselho Federal de Enfermagem (Cofen). O Sistema Cofen/Conselhos Regionais de Enfermagem e a prevenção e combate ao novo Coronavírus (COVID-19) no Brasil. 2020 [cited 2020 Apr 12]. Available from: http://www.cofen.gov.br/cofen-publica-nota-de-esclarecimento-sobre-o-coronavirus-covid-19_77835.html
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), ofertando promoção, proteção e tratamento dos agravos à saúde da população. No entanto, há elementos estressores em seu cotidiano, como a complexidade das relações interpessoais, além de sobrecarga de atividades e de responsabilidade técnica, o que pode fragilizar sua saúde mental. Esses elementos se potencializaram com o advento da coronavirus disease 2019 (COVID-19)(22 Dal'Bosco EB, Floriano LSM, Skupien SV, Arcaro G, Martins AR, Anselmo ACC. Mental health of nursing in coping with COVID-19 at a regional university hospital. Rev Bras Enferm. 2020;73(Suppl 2):e20200434. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0434
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), doença causada pelo Severe Scute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (SARS-CoV-2).

Atuar na linha de frente da assistência aos doentes acometidos por COVID-19 expõe os trabalhadores de enfermagem a situações de risco para a infecção pelo SARS-CoV-2(33 David HMSL, Rafael RMR, Alves MGM, Breda KL, Faria MGA, Neto M. Infection and mortality of nursing personnel in Brazil from COVID-19: a cross-sectional study. Int J Nurs Stud. 2021;124:104089. https://doi.org/10.1016/j.ijnurstu.2021.104089
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). Além disso, o excesso de trabalho, o isolamento, a falta de contato com a própria família e a exaustão física e emocional oriunda do cotidiano com doentes graves representam riscos à saúde sua mental(44 Kang L, Li Y, Hu S, Chen M, Yang C, Yang BX, et al. The mental health of medical workers in Wuhan, China dealing with the 2019 novel coronavirus. Lancet Psychiatry. 2020;7(3):e14. https://doi.org/10.1016/S2215-0366(20)30047-X
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).

Por esse motivo, é importante conhecer as relações que se estabelecem entre o trabalho na linha de frente e sua subjetividade. Um caminho para isso é identificar as vivências de prazer e de sofrimento no trabalho, conceitos desenvolvidos pela Psicodinâmica do Trabalho (PDT), corrente francesa que estuda as maneiras pelas quais os fenômenos que ocorrem nas relações de trabalho interferem na subjetividade e na saúde psíquica dos trabalhadores(55 Souza SKG, Brito MAA, Aguiar IC, Menezes BS. Vacancies of pleasure and suffering at work in the perception of human resources professionals. Rev Empreend Inov Tec. 2017;4(2). https://doi.org/10.18256/2359-3539.2017.v4i2.2020
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).

As vivências de prazer são resultado de dimensões positivas que estruturam o contexto de trabalho. Se manifestam por meio de gratificação pessoal, da realização, do reconhecimento, da liberdade e da valorização. Fortalecem a saúde mental, pois possibilitam a estruturação da identidade do trabalhador e criam sinergia entre a subjetividade do indivíduo e a realidade concreta do trabalho. Já as vivências de sofrimento são resultado dos desencontros entre os desejos, aspirações e expectativas do indivíduo e o trabalho real, ou seja, o cotidiano marcado por elementos que fogem ao prescrito ou ao esperado. Além disso, o sofrimento se manifesta quando os profissionais não encontram espaços de liberdade dentro da organização do trabalho que lhes permitam a expressão da sua individualidade e a transformação do objeto conforme seu desejo(55 Souza SKG, Brito MAA, Aguiar IC, Menezes BS. Vacancies of pleasure and suffering at work in the perception of human resources professionals. Rev Empreend Inov Tec. 2017;4(2). https://doi.org/10.18256/2359-3539.2017.v4i2.2020
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6 Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez-Oboré, 2015.
-77 Dejours C. Addendum: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. In: Lancman S, Sznelwar LI, (Orgs.). Christophe Dejours: da psicopatologia à Psicodinâmica do Trabalho. Brasília: Paralelo 15; 2011.).

Segundo a PDT, as vivências de prazer operam como mediadoras da saúde mental e do sentido do trabalho. Porém, a memória do sofrimento constitui uma força capaz de mobilizar os sujeitos em direção à transformação da organização do trabalho. Sendo assim, o prazer e o sofrimento são vivências cotidianas coexistentes. A saúde ou o adoecimento psíquico dependem da dinâmica entre esses sentimentos e, sobretudo, da capacidade dos indivíduos em transformar sua organização do trabalho e de ressignificar as vivências de sofrimento em prazer(55 Souza SKG, Brito MAA, Aguiar IC, Menezes BS. Vacancies of pleasure and suffering at work in the perception of human resources professionals. Rev Empreend Inov Tec. 2017;4(2). https://doi.org/10.18256/2359-3539.2017.v4i2.2020
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-66 Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez-Oboré, 2015.).

A força de trabalho em saúde é um dos mais importantes recursos para o enfrentamento eficaz da COVID-19(88 The Lancet [Editorial]. COVID-19: protecting health-care workers. Lancet. 2020;395(10228):922. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)30644-9
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). Porém, estar na linha de frente eleva os riscos de sofrimento psíquico e adoecimento mental, especialmente em trabalhadores de enfermagem. Assim, reconhecer as relações entre trabalho, subjetividade e saúde possibilitará a implementação de ações que mitiguem os impactos negativos da pandemia na categoria(99 Souza NVDO, Carvalho EC, Soares SSS, Varella TCMYML, Pereira SRM, Andrade KBS. Nursing work in the COVID-19 pandemic and repercussions for workers' mental health. Rev Gaucha Enferm. 2021;42(spe):e20200225. https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200225
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). Somado a isso, não se conhecem até o momento pesquisas que analisem as vivências de prazer e sofrimento de trabalhadores de enfermagem especificamente em unidades hospitalares COVID-19, o que justifica a relevância deste estudo.

OBJETIVO

Analisar as vivências de prazer e sofrimento de trabalhadores de enfermagem em unidades hospitalares COVID-19.

MÉTODOS

Aspectos éticos

Foram atendidos os aspectos éticos das pesquisas com seres humanos preconizados pelo Conselho Nacional de Saúde, conforme as Resoluções nº 466/2012 e nº 510/2016. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa local.

Tipo de estudo e cenário

Estudo multicêntrico, qualitativo descritivo, conduzido conforme as diretrizes do COnsolidated criteria for REporting Qualitative research (COREQ). Foi realizado em sete instituições hospitalares de médio e grande porte localizadas em diferentes mesorregiões do Rio Grande do Sul, Brasil (Noroeste, Centro-Ocidental, Centro-Oriental, Metropolitana, Sudeste e Sudoeste). Cinco eram de caráter filantrópico, e duas, hospitais públicos vinculados a instituições de ensino federais. Os cenários foram setores que recebiam pacientes com suspeita ou confirmação de COVID-19: uma unidade de triagem respiratória; cinco setores de urgência e emergência; quatro unidades de internação clínica; e quatro Unidades de Terapia Intensiva (UTIs).

A escolha por cenários diversos no que diz respeito à localização geográfica, porte e formas de administração/gestão teve como objetivo captar as diferentes vivências possíveis no estado do Rio Grande do Sul. A diversidade na composição dos cenários enriqueceu os achados deste estudo, pois possibilitou a identificação de contrapontos entre diferentes visões. No entanto, cabe destacar que a escolha por unidades COVID-19 estabeleceu uma aproximação destes cenários, tendo como referência a natureza do trabalho, o que possibilitou homogeneizar os achados.

Participantes e critérios de elegibilidade

Os participantes do estudo foram selecionados mediante os seguintes critérios de inclusão: ser trabalhador de enfermagem (enfermeiro, técnico ou auxiliar) e estar lotado em unidade COVID-19, realizando atividades assistenciais na linha de frente do atendimento aos pacientes. Foram excluídos os trabalhadores em férias ou qualquer tipo de afastamento funcional.

As instituições forneceram listas com nomes e contatos de e-mail e/ou telefone dos profissionais que respondiam aos critérios de elegibilidade (470 no total). Optou-se pelo sorteio de cinco trabalhadores de cada instituição, para que houvesse representação paritária na composição do estudo. Esse foi o contingente inicial de participantes para deflagrar a produção de dados.

Ao realizar os sorteios, doze trabalhadores não responderam aos pesquisadores, mesmo quando contatados por três vezes. Além disso, houve cinco recusas, cujos principais motivos referidos foram o excesso de trabalho e de pesquisas. Nesses casos (ausência de resposta ou recusas), eram realizados novos sorteios até que se atingissem cinco participantes por instituição.

Alcançada essa representatividade, os dados foram submetidos à pré-análise de saturação teórica, por meio da qual identificou-se que os achados eram consistentes o suficiente para serem considerados revelações do grupo, permitindo inferências sobre eles(1010 Minayo MCS. Sampling and saturation in qualitative research: consensuses and controversies. Rev Pesq Qualit. 2017 [cited 2022 Oct 11];5(7):01-12. Available from: https://editora.sepq.org.br/rpq/article/view/82
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). Portanto, foi concluída a composição do grupo de participantes com 35 depoentes (ou seja, cinco de cada instituição).

Produção dos dados

Os dados foram produzidos entre setembro de 2020 e julho de 2021 por meio de entrevistas semiestruturadas individuais. Foram realizadas por um grupo de professores vinculados a instituições públicas, com titulação de doutorado, experiência em coleta de dados qualitativos, além de duas mestrandas de um programa de pós-graduação em enfermagem previamente capacitadas. O contato com os participantes sorteados foi mediado pelas chefias de enfermagem.

Em cinco instituições, as entrevistas ocorreram presencialmente no local de trabalho. Foram utilizados espaços seguros, privativos e mantidas medidas de biossegurança. Após a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), foram coletados dados para caracterização dos participantes (gênero, idade, cor/raça, categoria profissional, unidade/setor em que se encontravam lotados). Na sequência, foi conduzida a entrevista a partir de um roteiro semiestruturado que tinha como foco as percepções e sentimentos sobre o trabalho na linha de frente do enfrentamento à COVID-19.

Em dois hospitais, as entrevistas foram realizadas de maneira online, por solicitação dos administradores. Os participantes receberam o TCLE e assinalaram sua anuência por meio de um formulário eletrônico (Google Forms). Os encontros ocorreram com auxílio do Google Meet, uma plataforma gratuita que permite a interlocução em tempo real, com compartilhamento de áudio e imagem. A condução das entrevistas online foi idêntica à realizada no formato presencial. A gravação ocorreu por meio de recurso da própria plataforma Google Meet.

O roteiro semiestruturado foi construído pela equipe multicêntrica especialmente para este estudo. O protocolo de seleção de participantes, abordagem e condução da coleta foi uniformizado para as sete instituições. A primeira entrevista, considerada piloto, não mostrou necessidade de mudança no roteiro, sendo incluída no estudo. As entrevistas foram audiogravadas, com anuência dos participantes, e tiveram duração aproximada de 22,5 minutos.

Reforça-se que a etapa de campo foi encerrada ao término da 35ª entrevista (obtida a partir da representatividade de cinco participantes por instituição). Constatada a saturação teórica do material empírico(1010 Minayo MCS. Sampling and saturation in qualitative research: consensuses and controversies. Rev Pesq Qualit. 2017 [cited 2022 Oct 11];5(7):01-12. Available from: https://editora.sepq.org.br/rpq/article/view/82
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), o corpus foi considerado suficiente para responder ao objetivo do estudo.

Análise dos dados

Foi utilizada a técnica da análise temática de conteúdo, a qual se desenvolve em três etapas: pré-análise; exploração do material; tratamento dos dados obtidos e interpretação(1111 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016.).

Na pré-análise, foi realizada a imersão no conteúdo empírico, por meio de leitura flutuante, a qual possibilitou a apreensão do conteúdo e seleção do material pertinente para análise. Na exploração do material, procedeu-se a decomposição e codificação do material com auxílio do software New NVivo Academic, possibilitando o agrupamento de categorias e subcategorias analíticas. No tratamento dos dados obtidos e interpretação, os pesquisadores se debruçaram sobre os resultados e realizaram interpretações e inferências que conduziram às conclusões(1111 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016.).

Durante a análise dos dados, foi considerada a diversidade de vivências dos participantes, devido às distintas instituições e unidades às quais estavam vinculados. Portanto, teve-se o cuidado de atentar para a pluralidade dos achados, incluindo nas UR depoimentos que representavam diferentes pontos de vista em relação a cada núcleo de sentido.

Na apresentação dos resultados, os depoentes estão identificados pela letra T (que inicia a palavra “trabalhador”), seguida por um número cardinal aleatório. Há também a identificação de sua unidade de lotação: Urgência/Emergência ou Unidades de Triagem Respiratória COVID-19 (Emerg. COVID-19); Unidades de Internação COVID-19 (Intern. COVID-19); Unidade de Terapia Intensiva COVID-19 (UTI COVID-19); e mais de um setor COVID-19 (Setores COVID-19). Os códigos também informam se o participante estava lotado em instituição pública ou filantrópica.

RESULTADOS

Ao todo, 35 trabalhadores de enfermagem participaram da pesquisa. Dentre eles, 80% (n=28) eram mulheres, e a média de idade foi de 38 (±8,9) anos. No que tange à cor/raça, 77% (n=27) eram brancos e 23% (n=8), pretos ou pardos. No que diz respeito à categoria profissional, 71,4% (n=25) eram técnicos em enfermagem e 28,6% (n=10), enfermeiros.

No que diz respeito às unidades de lotação, 42,8% (n=15) estavam em Unidades de Urgência e Emergência ou Unidades de Triagem Respiratória COVID-19, 31,4% (n=11), em Unidades de Internação COVID-19, 22,8% (n=22,8), em UTI COVID-19, e 2,8% (n=1), em mais de um setor COVID-19. Os resultados estão apresentados nas categorias analíticas a seguir.

Vivências de prazer no trabalho de enfermagem em unidades hospitalares COVID-19

Os participantes desvelaram um conjunto de sentimentos que sinalizam para vivências de prazer no cotidiano de trabalho em unidades hospitalares COVID-19. Essas vivências foram comuns aos trabalhadores das instituições públicas e filantrópicas e de todas as unidades COVID-19. Eles não deixaram de reconhecer as perdas que vivenciaram na linha de frente da pandemia, porém ponderaram que esta experiência também proporcionou gratificação pessoal:

[...] estressante em alguns momentos, mas gratificante em outros. Assim como nós víamos pacientes que iam a óbito, víamos também pacientes que conseguiam sobreviver. Conseguiam sair da UTI. Pacientes que conversavam, colocavam em exposição até a sua vida pessoal. Desse ponto de vista foi legal [...]. (T29-UTI COVID-19/filantrópico)

[...] por mais que seja cansativo, estressante [...] Eu gosto, estou aqui por escolha. Pelo salário, claro, e também porque eu gosto. [...] me sinto importante. Ver aquelas pessoas passarem por tantas coisas e depois saírem bem [...]. (T20-Emerg. COVID-19/público)

Identificar-se com a natureza do trabalho também potencializava as vivências de prazer, pois a atenção prestada aos pacientes com COVID-19 proporcionava aos participantes a aproximação com a essência do cuidado de enfermagem:

[...] foi um retorno, um reencontro com tudo que eu sempre gostei de fazer. Eu estava me sentindo frustrada, por não estar mais em contato com o paciente. Eu sempre gostei de cuidar. Existe uma cuidadora, eu nasci para isso [...]. (T20-Emerg. COVID-19/público)

[...] gosto, amo trabalhar lá [unidade COVID-19]. [...] eu amo o meu trabalho, amo a enfermagem. [...] eu estou há 12 anos nesse ramo. Gosto de lidar com o paciente, estar na assistência, poder ajudar, de me sentir útil [...]. (T31-Intern. COVID-19/público)

Os trabalhadores destacaram que parte importante de suas vivências de prazer estavam relacionadas aos resultados positivos do seu trabalho, por meio dos quais eles eram capazes de se conhecer como parte importante do enfrentamento à pandemia:

[...] acho que nós temos um papel muito importante e especial no enfrentamento. Isso não me deixa desistir. Temos um potencial muito forte e uma grande força de vontade. [...] eu me sinto feliz em estar aqui [...]. (T12-Emerg. COVID-19/filantrópico)

[...] o paciente está com falta de ar. Eu começo a comemorar cada vitória dele. Eles chegam aqui com Hudson litro 15 [15 l/min], reduzem para 10, para 8, para 6, para 4. De repente vão para o cateter, 5 litros, 4 litros, quando vê estão com meio litro. [...] e quando conseguem sair, eu comemoro muito isso [...]. (T33-Intern. COVID-19/público)

Houve destaque para o reconhecimento obtido por parte dos pacientes, sobretudo nos momentos em que resultados positivos da assistência eram obtidos:

[...] muito gratificante ver o retorno do paciente. [...] um cara me agradeceu: “Com certeza, você ficou marcado na minha vida, você me ajudou, você contribuiu na minha saúde”. Essas palavras são legais. Eu sinto aquela gratificação: “Consegui ajudar na vida de alguém, consegui fazer a diferença” [...]. (T14-Emerg. COVID-19/filantrópico)

[...] muitas vezes, é gratificante. Quando conseguimos vencer essa batalha. Quando o dia vira e vemos a melhora deles, é muito gratificante. Eles ficam agradecidos. [...] eles nos dizem: “vocês são os anjos que nos protegem” [...]. (T35-Intern. COVID-19/público)

[...] quando um paciente se recupera, isso me toca muito. Me sinto satisfeita. [...] Na saúde mental, somente me fez bem trabalhar com a COVID-19. É algo impressionante. (T22-Emerg. COVID-19/público)

Os trabalhadores destacaram a integração e a convivência com os colegas de setor. Confiar na equipe possibilitava que os profissionais se sentissem fortalecidos frente os desafios do trabalho:

[...] trabalhar em uma equipe coesa, ter profissionais competentes, empáticos acima de tudo. [...] eu acho que isso faz muito bem para a saúde mental de quem tem que atuar em uma linha de trabalho como a [unidade] COVID-19 [...]. (T33-Intern. COVID-19/público)

[...] a gente é muito alegre. A gente ri, brinca. Mesmo que a gente esteja atendendo um caso difícil, mesmo com os colegas positivando, a gente está enfrentando do nosso jeito. É por isso que eu gosto muito de trabalhar aqui [...]. (T12-Emerg. COVID-19/filantrópico)

[...] eu tenho um grupo de trabalho maravilhoso. [...] pessoas que correm atrás, que querem crescer e conquistar as coisas. É legal, isso dá uma finalidade para a gente. (T20-Emerg. COVID-19/público)

Por fim, identificar seu processo de resiliência, superação das adversidades e orgulho também se destacou como uma importante vivência de prazer:

[...] eu tenho uma pequena deficiência física. [...] eu fiquei afastada do hospital, acabei achando que não seria mais capaz. [...] essa foi uma das minhas vitórias. Eu falo para todo mundo que 2020 foi um ano vitorioso, porque foi o ano em que me encontrei de novo na minha profissão. [...] eu vi que sou capaz. [...] eu evoluí muito lá dentro [unidade COVID-19]. As minhas chefes gostam muito do meu trabalho. Esse trabalho só me só trouxe felicidade [...]. (T22-Emerg. COVID-19/público)

[...] o lado humano floresceu muito em mim. Hoje, tudo que eu posso fazer pelo paciente, eu faço. [...] amadureci como profissional, como pessoa, como ser humano. Além do conhecimento que busquei. Me aperfeiçoei em coisas que não pensava em buscar antes. Foi muito difícil. Ainda há muitas dificuldades. Mas eu acho que agregou muito na nossa profissão e na gente enquanto pessoa [...]. (T11-Emerg. COVID-19/filantrópico)

Eu tenho orgulho de dizer que eu sou da linha de frente! (T6-UTI COVID-19/filantrópico)

Os achados evidenciam que o trabalho de enfermagem, ao mesmo tempo em que era desafiador, proporcionava experiências intensas para os profissionais, as quais eram capazes de mobilizar sentimentos de gratificação, realização, superação e, portanto, prazer.

Vivências de sofrimento no trabalho de enfermagem em unidades hospitalares COVID-19

Em contraste com os dados até então apresentados, a segunda categoria analítica evidencia as vivências de sofrimento. Vivências de sofrimento foram referidas por trabalhadores de todos os tipos de unidades COVID-19, mas predominaram enunciações das instituições filantrópicas. Primeiramente, destacaram-se referências às mortes causadas pela doença:

[...] no bloco [cirúrgico], não há óbitos. Ali [unidade COVID-19] há. É um óbito por dia. Hoje mesmo perdemos dois pacientes. É impactante, tem que ter o psicológico muito forte para poder trabalhar em cima daquilo. Temos a psicóloga para isso, ela vai conversar. É um baque. [...]. (T6-UTI COVID-19/filantrópico)

[...] nem todos os pacientes que foram a óbito chegaram morrendo. Muitos pacientes que foram a óbito, a maioria, chegaram conversando, lúcidos, orientados, se comunicando. Tínhamos um vínculo com o paciente, conversávamos. Sabíamos que tinha filho, era casado, morava em tal lugar. Isso afetava, abalava [...]. (T29-UTI COVID-19/filantrópico)

Após o óbito, os mortos por COVID-19 passavam por um protocolo diferenciado que incluía a preparação do corpo pela enfermagem, o que causava desconforto na equipe. Ao não permitir que os familiares se despedissem presencialmente de seu ente querido, os profissionais se sensibilizavam com seu sofrimento. Algumas vezes, lançavam mão do conforto espiritual, reconhecendo que gostariam de ter mais poder de intervenção sobre o declínio de alguns pacientes:

[...] nos choca bastante quando o paciente vai a óbito. Há um protocolo de preparar o corpo. É bastante chocante porque não éramos acostumados com isso. [...] o corpo sai daqui praticamente lacrado. O único registro que o familiar tem é uma foto do rosto do paciente já morto [...]. (T29-UTI COVID-19/filantrópico)

[...] mexe bastante com a gente ter que preparar o corpo. Fazer tamponamento, ensacar e levar para o morgue. Esse último momento que a família deveria ter e que não pode ter, de ver a pessoa [...]. (T1-Emerg. COVID-19/filantrópico)

[...] [o paciente] chega com a família. Falando da família, falando dos filhos. Deu 40 minutos, eu perdi aquela pessoa. [...] eu procuro falar de Jesus para as pessoas, porque eu não tenho o que oferecer. Pedir para manter a calma, porque eu vejo que a ansiedade mata muito também. Faz com que elas acabem indo para o tubo [...]. (T8-UTI COVID-19/filantrópico)

Outras vivências de sofrimento se evidenciaram para além do cotidiano de cuidado assistencial prestado aos pacientes. Alguns profissionais de enfermagem revelaram a contaminação e morte de colegas e de seus próprios familiares por COVID-19. Os profissionais se sentiram vulneráveis e, por vezes, culpados e impotentes, como se um paradoxo se estabelecesse entre salvar vidas diariamente e perder a vida de um ente querido:

[...] meu marido tinha problemas [...] obeso mórbido, hipertenso e cardíaco. [...] na realidade, eu me culpei bastante. Tantos anos trabalhando no hospital, e eu não vi os sintomas nele. Achei que [era] porque ele tomou uma chuva [...] [suspiro] achei que ele ficou gripado. Ele estava com todos os sintomas [choro] perdi meu marido na pandemia. Dois dias depois do meu resultado [positivo]. (T7-Intern. COVID-19/filantrópico)

[...] às vezes, acontece com colegas. Ficam mal, vão para a UTI. Vão para o tubo. Alguns dos nossos foram a óbito. Isso acabou com a minha saúde mental. Me fez lembrar que sou um ser humano, como qualquer outro. (T12 - Emerg. COVID-19/filantrópico)

Elementos adstritos à organização e processo de trabalho também se revelaram como promotores de vivências de sofrimento. Houve destaque para a falta de apoio de alguns membros da equipe no enfrentamento da pandemia:

[...] os enfermeiros não colaboraram. A grande maioria deles. Foi muito triste. Principalmente o pessoal do turno do dia, eram largados ali sem assistência de enfermeiros. [...] isso foi um sofrimento muito grande. [...] faltou aquela parte humana de ver como eu estou com o paciente, [se] ele está saturando bem. Eu tenho muita raiva. Isso é uma coisa que me magoou muito [...]. (T18-Intern. COVID-19/filantrópico)

[...] saio da minha unidade toda paramentada. Chego na unidade em que vou receber um paciente com COVID-19, meu colega não está paramentado, está contaminando tudo. Cheguei agora mesmo na UTI para receber um paciente com COVID-19 grave, a técnica levou ele sem paramento nenhum, depois voltou para atender o paciente dela que não estava contaminado com COVID-19. Isso é um crime com as pessoas [...]. (T26-Intern. COVID-19/filantrópico)

Os participantes destacaram as cobranças institucionais e sobrecarga, sentidas em demasia em um momento em que esperavam apoio da gestão. Os relatos indicam que a pressão, as cobranças e a sobrecarga estiveram relacionadas aos afastamentos e à vontade de abandonar o trabalho:

[...] os colegas todos falavam em desistir, que estava muito ruim de trabalhar lá [unidade COVID-19]. [...] eu acho que muitas coisas tinham que ser ressaltadas, mas não tão cobradas como eram. Nos doamos para aqueles pacientes, para tudo, e é só cobrança, cobrança [...] a enfermagem sofreu uma pressão grande lá. Tinha pessoal que até desistiu do serviço, acabou pedindo demissão [...]. (T31-Intern. COVID-19/público)

[...] agora, a gente está vendo muitos atestados por esgotamento. A gente já não está mais vendo afastamento, porque está com COVID-19, mas porque as pessoas não estão aguentando mais essa pressão e essa sobrecarga de trabalho. Não estão aguentando continuar nesse ambiente [...]. (T34-UTI COVID-19/público)

Por fim, alguns profissionais de enfermagem destacaram que suas vivências de sofrimento foram potencializadas pela falta de reconhecimento e valorização profissional. Apesar da visibilidade midiática que ocorreu por um período, eles se revelaram frustrados com a precarização das condições laborais e, algumas vezes, pelo descaso das instituições:

[...] descaso com quem estava lá [linha de frente]. Para mim, o impacto psicológico maior foi esse. Eu não vejo ninguém reconhecer os profissionais que trabalharam lá dentro [unidade COVID-19], principalmente a enfermagem. [...] nem todo mundo vive de aplausos. [...] o salário não muda, o reconhecimento é zero. [...] eu trabalhei na H1N1 também, foi a mesma coisa, não mudou nada [...]. (T29-UTI COVID-19/filantrópico)

[...] [colega] apresentou sintomas, eu estava junto com ela. Foi no pronto-socorro, o raio-X apresentou uma mancha, o médico a mandou voltar para o trabalho; se caso piorasse, iria tomar alguma medida. Tive que fazer um escândalo para ela ser liberada, porque ela não estava bem [...] mesmo assim, ela ficou na unidade um pouco para me ajudar, porque ela estava com pena de me deixar sozinha. (T26-Intern. COVID-19/filantrópico)

Entrei [ingresso no hospital], porque eles precisavam de mais funcionários. Hoje, eu vejo o quanto é ruim. O quanto se perde colegas bons porque não se adaptam. Quem se sujeita a isso? [...]. (T2-Emerg. COVID-19/filantrópico)

Os dados sinalizam que houve vivências de sofrimento. Essas vivências se relacionam, principalmente, com a morbimortalidade dos pacientes, mas também com aspectos individuais dos trabalhadores e adstritos ao processo, organização do trabalho e valorização profissional.

Impactos do trabalho na linha de frente: entre desencantos e formação de sentidos

As categorias analíticas anteriores desvelaram que o trabalho de enfermagem em unidades hospitalares COVID-19 foi complexo, pois envolveu vivências concomitantes de prazer e de sofrimento. Em alguns momentos, a experiência de compor a linha de frente foi edificante, atribuiu significados à identidade profissional, resgatando a formação de sentidos para trabalho na enfermagem e, portanto, permitindo um movimento subjetivo de (re)apaixonar-se pela profissão:

[...] eu sempre quis cursar história e iniciei esse ano. Porque eu queria ganhar mais, ter 60 dias de férias. Quando começou a pandemia, ao mesmo tempo em que eu tinha medo, eu também sabia que não podia correr da briga [...] eu tranquei a faculdade, eu não sei se eu volto [...] não quero mais largar a enfermagem, é aqui que eu quero ficar. Eu estou no lugar certo. É muito importante para mim essa parte de ajudar. Não é só o dinheiro que conta, não são só as férias maiores que contam. Essa parte de saber que eu estou no lugar certo. Eu gosto de História, mas estar aqui [...]. Eu nasci para isso. Não tem preço [...]. (T12-Emerg. COVID-19/filantrópico)

Porém, o modo como essas vivências impactam na saúde mental, na subjetividade e na vida dos trabalhadores de enfermagem foi singular. Para outro depoente, estar na linha de frente foi um catalisador de desencantos e vontade de não exercer mais a profissão:

[...] eu estou no começo da minha trajetória como técnico [de enfermagem], eu fiquei bem chateado, porque eu criava aquele vínculo com o paciente [...] no primeiro plantão, estava ensacando o cara, ele tinha morrido. Está sendo bem difícil psicologicamente [...] É estressante, estou bem cansado. Não sei se eu vou seguir na profissão. [...] eu iria fazer enfermagem agora, a faculdade. Mas eu acho que vou optar por educação física. [...] estou saturado. Gosto de ajudar, gosto bastante do contato com o paciente, mas principalmente ter pegado essa pandemia, acho que [afetou] bastante o psicológico [...]. (T14-Emerg. COVID-19/filantrópico)

Diante de sentimentos intensos relacionados ao trabalho em uma crise sanitária importante como a COVID-19, os profissionais reforçaram o impacto destas experiências em sua saúde mental e o processo de transformação subjetiva e profissional que se deflagrou a partir da linha de frente, em alguns momentos, no sentido do sofrimento, e, em outros, em direção ao crescimento:

[...] não tem como eu olhar para ti e dizer que o meu psicológico vai ser o mesmo. Não vai mais! Nunca mais eu vou ser a mesma pessoa, por tudo que eu vejo ali [unidade COVID-19], por tudo que eu vivo [...]. (T8-UTI COVID-19/filantrópico)

[...] eu me contaminei, fui afastada. Senti o que eles [pacientes] sentem. Depois que eu me contaminei, eu vi que é muito mais difícil. [...] depois, quando voltei, chorava muito. Eu me colocava no lugar das pessoas, porque elas entravam e não saíam mais. Eu via a separação de famílias que nunca mais se veriam. [...] hoje eu me sinto mais preparada. Tenho uma carga muito grande de conhecimento [...] sei orientar as pessoas e ser ágil no atendimento [...] o lado emocional melhorou com o conhecimento que a gente adquiriu [...] hoje, me sinto muito mais preparada. Muito mais linha de frente! (T11 - Emerg. COVID-19/filantrópico)

Por fim, cabe destacar que alguns depoimentos sinalizaram danos à saúde mental dos trabalhadores de enfermagem, evidenciando sinais de adoecimento laboral:

[...] tenho tido bastante insônia. [...] uma tristeza muito grande [...] são vidas, são famílias que perdem entes queridos e é triste [...] abala a gente [...]. (T35-Intern. COVID-19/público)

[...] a equipe vai adoecer vendo pessoas agonizando, vendo as pessoas indo e você não conseguindo. O quanto você oferta de O2 não está sendo suficiente e não tem um respirador. Você vivenciar coisas assim. É o amor de alguém que está ali e você pensa que podia ser o seu amor [...] a gente tenta canalizar [...] a gente tenta lidar, mas eu sei que, para mim, uma hora vai bater mais forte [...]. (T10-Setores COVID-19/filantrópico)

No contraponto entre prazer e sofrimento, os trabalhadores de enfermagem das unidades COVID-19 são impactados de diferentes maneiras. Para alguns, as vivências de prazer culminaram na formação de sentidos do trabalho. Porém, outros experimentaram o desencanto, a vontade de abandonar a profissão, sinalizando para a eminência de danos psicológicos oriundos do trabalho na linha de frente.

DISCUSSÃO

A primeira categoria analítica desvela que o trabalho na linha de frente do enfrentamento à pandemia de COVID-19 proporcionou aos trabalhadores de enfermagem um conjunto de vivências de prazer. A representatividade dos hospitais públicos e privados e dos diversos setores nas enunciações sinaliza que essas vivências são comuns às instituições que participaram deste estudo. Elencou-se, primeiramente, gratificação profissional por compor a linha de frente, resultado semelhante ao encontrado em estudo com trabalhadores de enfermagem de urgência e emergência, cujas vivências de prazer se mostraram vinculadas à satisfação profissional e identificação com o conteúdo do trabalho(1212 Miorin JD, Camponogara S, Pinno C, Beck CLC, Costa V, Freitas EO. Pleasure and pain of nursing workers at a first aid service. Texto Contexto Enferm. 2018;27(2):e2350015. https://doi.org/10.1590/0104-070720180002350015
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).

A identificação com o conteúdo do trabalho é evidente quando os trabalhadores se reconhecem no papel de quem protagoniza o cuidado, considerado o eixo central da profissão. Resultados semelhantes foram encontrados em outros estudos qualitativos realizados com equipes de enfermagem hospitalares, nos quais a afinidade com a natureza do trabalho foi referida como importante vivência de prazer(1313 Lamb FA, Beck CLC, Coelho APF, Vasconcelos RO. Nursing work in a pediatric emergency service: between pleasure and pain. Cogitare Enferm. 2019;24:e59396. https://doi.org/10.5380/ce.v24i0.59396
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-1414 Duarte MLC, Glanzner CH, Bagatini MMC, Silva DG, Mattos LG. Pleasure and suffering in the work of nurses at the oncopediatric hospital unit: qualitative research. Rev Bras Enferm. 2021;74(Suppl 3):e20200735. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0735
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). A PDT resgata o conceito de ressonância simbólica, compreendida como a compatibilização entre as representações simbólicas do indivíduo e a realidade do trabalho, ocorrendo quando o conteúdo do trabalho incorpora um sentido para o indivíduo e para sua história de vida(66 Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez-Oboré, 2015.-77 Dejours C. Addendum: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. In: Lancman S, Sznelwar LI, (Orgs.). Christophe Dejours: da psicopatologia à Psicodinâmica do Trabalho. Brasília: Paralelo 15; 2011.).

Isso remete aos depoimentos dos trabalhadores de enfermagem, os quais sinalizam para os resultados positivos do seu trabalho na linha de frente (a recuperação dos pacientes). Estudos qualitativos realizados com trabalhadores de enfermagem hospitalares também sinalizaram que a recuperação de pacientes operava como uma vivência de prazer(1212 Miorin JD, Camponogara S, Pinno C, Beck CLC, Costa V, Freitas EO. Pleasure and pain of nursing workers at a first aid service. Texto Contexto Enferm. 2018;27(2):e2350015. https://doi.org/10.1590/0104-070720180002350015
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13 Lamb FA, Beck CLC, Coelho APF, Vasconcelos RO. Nursing work in a pediatric emergency service: between pleasure and pain. Cogitare Enferm. 2019;24:e59396. https://doi.org/10.5380/ce.v24i0.59396
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-1414 Duarte MLC, Glanzner CH, Bagatini MMC, Silva DG, Mattos LG. Pleasure and suffering in the work of nurses at the oncopediatric hospital unit: qualitative research. Rev Bras Enferm. 2021;74(Suppl 3):e20200735. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0735
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).

Essas vivências fortalecem o sentimento de orgulho por ser parte importante da linha de frente do enfrentamento à COVID-19. Na PDT, considera-se que, quando o trabalhador contribui com seu espaço laboral, tem como retorno a retribuição simbólica, processo no qual são fortalecidas a construção da identidade pessoal/profissional e a realização de si mesmo por meio do trabalho(66 Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez-Oboré, 2015.).

Somado a isso, os participantes sinalizaram os momentos em que receberam reconhecimento por parte dos pacientes, vinculando-os a vivências de prazer, o que converge com resultados de outras pesquisas qualitativas conduzidas com equipes de enfermagem hospitalar(1212 Miorin JD, Camponogara S, Pinno C, Beck CLC, Costa V, Freitas EO. Pleasure and pain of nursing workers at a first aid service. Texto Contexto Enferm. 2018;27(2):e2350015. https://doi.org/10.1590/0104-070720180002350015
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13 Lamb FA, Beck CLC, Coelho APF, Vasconcelos RO. Nursing work in a pediatric emergency service: between pleasure and pain. Cogitare Enferm. 2019;24:e59396. https://doi.org/10.5380/ce.v24i0.59396
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-1414 Duarte MLC, Glanzner CH, Bagatini MMC, Silva DG, Mattos LG. Pleasure and suffering in the work of nurses at the oncopediatric hospital unit: qualitative research. Rev Bras Enferm. 2021;74(Suppl 3):e20200735. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0735
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). Para a PDT, a dinâmica do reconhecimento é a categoria central para a conquista da identidade no campo social e na construção do sentido do trabalho. Por meio do reconhecimento, são validadas as contribuições que os indivíduos fazem em prol do seu coletivo(66 Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez-Oboré, 2015.).

Os momentos de convivência compartilhados entre a equipe, com estabelecimento de relações de colaboração, integração e afetividades também foram vinculados a vivências de prazer, indo ao encontro de resultados de outros estudos que investigaram prazer e sofrimento na enfermagem(1212 Miorin JD, Camponogara S, Pinno C, Beck CLC, Costa V, Freitas EO. Pleasure and pain of nursing workers at a first aid service. Texto Contexto Enferm. 2018;27(2):e2350015. https://doi.org/10.1590/0104-070720180002350015
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-1313 Lamb FA, Beck CLC, Coelho APF, Vasconcelos RO. Nursing work in a pediatric emergency service: between pleasure and pain. Cogitare Enferm. 2019;24:e59396. https://doi.org/10.5380/ce.v24i0.59396
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). Para a PDT, a cooperação assegura a vontade das pessoas de trabalharem juntas e, coletivamente, superarem as contradições do trabalho. Por meio da cooperação, o coletivo potencializa a eficiência das suas atividades e se protege contra o sofrimento(55 Souza SKG, Brito MAA, Aguiar IC, Menezes BS. Vacancies of pleasure and suffering at work in the perception of human resources professionals. Rev Empreend Inov Tec. 2017;4(2). https://doi.org/10.18256/2359-3539.2017.v4i2.2020
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).

A primeira categoria analítica se finaliza enunciações em que os participantes reconhecem a atuação na linha de frente como um catalizador de um processo de superação de seus próprios limites, resiliência e orgulho. É importante pontuar que, no contexto do trabalho na COVID-19, a relação entre ameaça e desafio é dinâmica e subjetiva. Situações inicialmente avaliadas como ameaçadoras podem passar a ser encaradas como desafiadoras como consequência de um processo de enfrentamento que permite uma visão mais positiva. Sendo assim, os indivíduos se fazem capazes de mobilizar melhor seus recursos para enfrentar essas situações(22 Dal'Bosco EB, Floriano LSM, Skupien SV, Arcaro G, Martins AR, Anselmo ACC. Mental health of nursing in coping with COVID-19 at a regional university hospital. Rev Bras Enferm. 2020;73(Suppl 2):e20200434. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0434
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) e, portanto, são capazes de transformar vivências de sofrimento em prazer.

Em contraste com esses resultados, a segunda categoria analítica coloca em tela as vivências de sofrimento. Foram representativas enunciações de trabalhadores de diferentes setores. Porém, nos dados empíricos, predominaram os cenários filantrópicos. Isso pode ser resultado da prevalência destas instituições nesta pesquisa (pois foram incluídas cinco, ao passo que as públicas estiveram em número de duas). No entanto, pode ser indicativo também que as vivências de sofrimento sejam mais agudas nesses locais.

Inicialmente, destacaram-se as narrativas relacionadas ao cotidiano de sofrimento e mortes dos doentes da COVID-19, bem como o sentimento de impotência frente ao declínio clínico deles. Pesquisas sinalizaram que o convívio com a morte se destacava como uma importante vivência de sofrimento para a enfermagem nos hospitais(1212 Miorin JD, Camponogara S, Pinno C, Beck CLC, Costa V, Freitas EO. Pleasure and pain of nursing workers at a first aid service. Texto Contexto Enferm. 2018;27(2):e2350015. https://doi.org/10.1590/0104-070720180002350015
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,1414 Duarte MLC, Glanzner CH, Bagatini MMC, Silva DG, Mattos LG. Pleasure and suffering in the work of nurses at the oncopediatric hospital unit: qualitative research. Rev Bras Enferm. 2021;74(Suppl 3):e20200735. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0735
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), sobretudo quando havia constituição de vínculos entre trabalhadores e pacientes(1313 Lamb FA, Beck CLC, Coelho APF, Vasconcelos RO. Nursing work in a pediatric emergency service: between pleasure and pain. Cogitare Enferm. 2019;24:e59396. https://doi.org/10.5380/ce.v24i0.59396
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).

Nas unidades COVID-19, trabalhadores de enfermagem sofrem emocionalmente frente à morte dos pacientes e sofrimento de suas famílias(1515 Koren A, Alam MAU, Koneru S, DeVito A, Abdallah L, Liu B. Nursing perspectives on the impacts of covid-19: a social media analytics approach. JMIR Form Res. 2021;5(12):e31358. http://doi.org/10.2196/31358
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). Pesquisa qualitativa com profissionais de saúde canadenses evidenciou que, na percepção desses, a COVID-19 aumentou o sofrimento dos pacientes em processo de morte e morrer, em parte devido à ausência de seus entes queridos e, consequentemente, à solidão e angústia vivenciadas no momento da morte. Os profissionais do estudo sentiam dificuldades em humanizar esse momento, o que lhes proporcionava sentimentos de angústia(1616 Wiebe E, Kelly M, McMorrow T, Tremblay-Huet S, Sum B, Hennawy M. How the experience of medical assistance in dying changed during the COVID-19 pandemic in Canada: a qualitative study of providers. CMAJ Open. 2021;9(2):E400-E405. https://doi.org/10.9778/cmajo.20200163
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).

Para a PDT, o sofrimento se instaura quando o trabalhador mobiliza ao máximo suas capacidades intelectuais, psicoafetivas, de aprendizagem e adaptação, porém não é capaz de transformar o produto do seu trabalho da forma que deseja. Para além das exigências físicas e psicoafetivas que o indivíduo enfrenta em seu cotidiano, a experiência da insatisfação e da frustração é potente mecanismo de sofrimento(66 Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez-Oboré, 2015.).

As frustrações cotidianas relacionadas ao declínio clínico e morte dos pacientes se interseccionavam a experiências pessoais dos participantes, sobretudo nas situações em que houve contaminação e morte de colegas de trabalho e de entes queridos. Estudo qualitativo brasileiro, realizado com trabalhadores de enfermagem, evidenciou intersecções entre as vivências do trabalho e as memórias de experiências pessoais, sobretudo relacionadas a questões familiares. Os profissionais de enfermagem nem sempre eram capazes de gerir a complexidade de suas emoções ao perceber no sofrimento do outro, aspectos que lhes remetiam à sua própria família(1313 Lamb FA, Beck CLC, Coelho APF, Vasconcelos RO. Nursing work in a pediatric emergency service: between pleasure and pain. Cogitare Enferm. 2019;24:e59396. https://doi.org/10.5380/ce.v24i0.59396
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).

A PDT considera que a vida perpassada no trabalho e fora dele é um continuum de difícil dissociação(66 Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez-Oboré, 2015.). Nas unidades COVID-19, os trabalhadores ocupam concomitantemente o lugar de cidadãos comuns que compartilham as perdas humanas e familiares ocasionadas pela pandemia. Gerenciar essas perdas e estar ao mesmo tempo na linha de frente constitui um desafio, pois, ao mesmo tempo que se é referência no espaço de trabalho, o trabalhador se sente uma referência no núcleo familiar(1717 Laskowski-Jones L. When you are the nurse in the family... Nursing. 2021;51(3). https://doi.org/10.1097/01.NURSE.0000733988.48272.f0
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).

Além das questões relacionadas à morbimortalidade dos doentes da COVID-19, emergiram vivências de sofrimento relacionadas à organização do trabalho (com destaque para a insatisfação com a equipe, instituição, falta de reconhecimento e desvalorização). Para a PDT, a organização do trabalho está no centro de grande parte das vivências de sofrimento, que se evidenciam quando os indivíduos não encontram nesta organização espaços de flexibilidade e negociação. Portanto, nesses casos, o trabalho deixa de ser um espaço sinérgico com a individualidade do trabalhador(66 Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez-Oboré, 2015.).

Os depoentes sinalizaram para a falta de colaboração e agregação da equipe em alguns momentos. Sabe-se que relações interpessoais disruptivas são uma realidade nas equipes de enfermagem e que elas implicam danos ao bem-estar dos profissionais e ao desempenho do seu trabalho(1818 Moore LW, Sublett C, Leahy C. Nurse managers speak out about disruptive nurse-to-nurse relationships. J Nurs Adm. 2017;47(1):24-29. https://doi.org/10.1097/NNA.0000000000000432
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). Estudo qualitativo realizado com profissionais de enfermagem de oncopediatria mostrou que os ruídos de comunicação o gerenciamento das relações interpessoais operavam como vivências de sofrimento(1414 Duarte MLC, Glanzner CH, Bagatini MMC, Silva DG, Mattos LG. Pleasure and suffering in the work of nurses at the oncopediatric hospital unit: qualitative research. Rev Bras Enferm. 2021;74(Suppl 3):e20200735. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0735
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).

As relações no espaço de trabalho eram agravadas pela percepção de que havia sobrecarga e excessos nas cobranças institucionais. Esse sentimento despontou em um momento em que, ao compor a linha de frente, os trabalhadores sentiram não receber o apoio institucional de que necessitavam. Pesquisa qualitativa brasileira com trabalhadores de enfermagem de um serviço de pronto-atendimento mostrou que algumas vivências de sofrimento se relacionavam à falta de apoio da gestão hospitalar(1212 Miorin JD, Camponogara S, Pinno C, Beck CLC, Costa V, Freitas EO. Pleasure and pain of nursing workers at a first aid service. Texto Contexto Enferm. 2018;27(2):e2350015. https://doi.org/10.1590/0104-070720180002350015
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), indo ao encontro destes achados.

A isso, somou-se a falta de reconhecimento institucional e desvalorização profissional. Para a PDT, quando não se estabelecem sentimentos de reconhecimento profissional, os trabalhadores não conseguem transformar seu sofrimento em prazer e não encontram um sentido para o trabalho(66 Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez-Oboré, 2015.). Estudo desenvolvido com profissionais de enfermagem atuantes em unidades COVID-19 nas Filipinas evidenciou que aqueles que percebiam maior suporte organizacional e social relatavam menores níveis de ansiedade quando comparados aos demais(1919 Labrague LJ, De Los Santos JAA. COVID-19 anxiety among front-line nurses: predictive role of organisational support, personal resilience and social support. J Nurs Manag. 2020;28(7):1653-61. https://doi.org/10.1111/jonm.13121
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). Portanto, percebe-se que os apoios institucionais e sociais são fundamentais para a satisfação laboral e para a saúde psíquica.

Por fim, a última categoria analítica desvela os impactos singulares da linha de frente sobre a subjetividade dos trabalhadores. A comparação entre a percepção de dois participantes sugere que, ao passo que, para alguns, o trabalho junto às unidades COVID-19 pode ter permitido um (re)apaixonar-se pela profissão, por meio do fortalecimento dos sentidos do trabalho, para outros, a mesma experiência pode ter culminado em desencantos e vontade de abandonar a profissão.

A PDT pontua a existência de dois tipos de sofrimento: o criativo e o patogênico. O sofrimento criativo funciona como catalizador de um processo de mobilização subjetiva ou coletiva em direção à transformação da organização do trabalho e das situações que desencadeiam insatisfação. Já o sofrimento patogênico se estabelece quando os trabalhadores não encontram na organização do trabalho recursos para enfrentar as adversidades, evoluindo para o risco de adoecimento(66 Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez-Oboré, 2015.).

É importante um olhar especial para o desejo de não exercer mais a profissão, deflagrado a partir da experiência de compor a linha de frente. Estudo realizado com enfermeiros hospitalares brasileiros evidenciou associação entre a exaustão emocional e a vontade de deixar de exercer a enfermagem(2020 Dutra HS, Cimiotti JP, Guirardello EB. Nurse work environment and job-related outcomes in Brazilian hospitals. Appl Nurs Res. 2018;41:68-72. http://dx.doi.org/10.1016/j.apnr.2018.04.002
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). Somado a isso, sabe-se que a COVID-19 agudizou problemas relacionados à retenção da força de trabalho de enfermagem no mundo(2121 Shaffer FA, Rocco G, Stievano A. Nurse and health professional migration during COVID-19. Prof Inferm. 2020;73(3):129-130. https://doi.org/10.7429/pi.2020.733129
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).

Em contrapartida, é importante também lançar luz sobre o paradoxal (re)encontro com o sentido do trabalho em um período de austeridade e perdas, como o da COVID-19. Sabe-se que a pandemia agudizou a precarização já existente no cotidiano de profissionais de enfermagem ao redor do mundo. No entanto, estar na linha de frente promoveu a incorporação de sentidos relacionados ao reconhecimento do valor social, político e econômico da enfermagem. Isso fortaleceu, na subjetividade de muitas pessoas, a razão de ser e estar nesta profissão(2222 Sousa Filho JD, Sousa KHJF, Silva IR, Zeitoune RCG. Covid-19 pandemic and Brazilian Nursing: unveiling meanings of work. Rev Esc Enferm USP. 2022;56:e20220156. https://doi.org/10.1590/1980-220X-REEUSP-2022-0156en
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). Portanto, apesar das duras vivências de sofrimento, as de prazer puderam permitir com que o trabalho fizesse (ou voltasse a fazer) sentido.

Por fim, destacam-se os impactos deletérios da pandemia na saúde mental de alguns dos participantes. Estudo brasileiro evidenciou a prevalência de ansiedade (48,9%) e de depressão (25%) entre trabalhadores de enfermagem de unidade COVID-19(22 Dal'Bosco EB, Floriano LSM, Skupien SV, Arcaro G, Martins AR, Anselmo ACC. Mental health of nursing in coping with COVID-19 at a regional university hospital. Rev Bras Enferm. 2020;73(Suppl 2):e20200434. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0434
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), o que sinaliza para a relevância de se discutir os riscos de adoecimento mental entre os profissionais que estão na linha de frente.

A COVID-19 ressaltou os reflexos da precarização do setor saúde, potencializando o sofrimento psíquico dos trabalhadores e impactando negativamente sua saúde física e mental. No entanto, deseja-se que esses trabalhadores se mantenham saudáveis física e mentalmente, pois são parte importante do enfrentamento à pandemia(99 Souza NVDO, Carvalho EC, Soares SSS, Varella TCMYML, Pereira SRM, Andrade KBS. Nursing work in the COVID-19 pandemic and repercussions for workers' mental health. Rev Gaucha Enferm. 2021;42(spe):e20200225. https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200225
https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.2...
,1515 Koren A, Alam MAU, Koneru S, DeVito A, Abdallah L, Liu B. Nursing perspectives on the impacts of covid-19: a social media analytics approach. JMIR Form Res. 2021;5(12):e31358. http://doi.org/10.2196/31358
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). Além disso, ao retornarem aos seus setores de origem na transição para o período pós-pandêmico, devem encontrar condições de ressignificar essas vivências de sofrimento, para que o adoecimento mental não seja um legado da linha de frente.

Para o alcance disso, espera-se que o vivido pelos trabalhadores de enfermagem que atuaram em unidades hospitalares COVID-19 tenha visibilidade na academia, na ciência, na sociedade e na administração da rede de atenção à saúde. Almeja-se que a visibilidade se converta em valorização da categoria, melhoria das condições de trabalho, potencialização da autonomia profissional e geração de espaços de promoção à saúde mental no trabalho, inclusive no período pós-pandêmico.

Limitações do estudo

Este estudo apresentou como limitação a temporalidade em que foi realizado. Ao longo de um ano de produção de dados, entrevistas foram conduzidas em diferentes fases sanitárias da pandemia. Com as mudanças abruptas nas taxas de lotação das unidades e índices de morbimortalidade, as entrevistas podem ter refletido aspectos relacionados ao momento em que foram produzidas.

Contribuições para as áreas de enfermagem, saúde, ou políticas públicas

Os resultados deste estudo oferecem informações sobre os elementos potencializadores e fragilizadores da saúde mental dos trabalhadores de enfermagem de unidades hospitalares COVID-19. Ao incluir o olhar de trabalhadores de diferentes regiões, de hospitais de médio e grande porte, públicos e privados e de diferentes setores, foi enriquecida a representatividade dos achados. Espera-se que esses resultados sejam utilizados como subsídios para a estruturação de ações de promoção à saúde mental e gestão participativa do processo de trabalho de enfermagem hospitalar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo permitiu analisar as vivências de prazer e sofrimento dos trabalhadores de enfermagem em unidades hospitalares COVID-19. As vivências de prazer se relacionaram à gratificação pessoal, identificação com o conteúdo do trabalho, resultados positivos obtidos no cotidiano da assistência, reconhecimento, convivência/integração com a equipe, resiliência e superações pessoais. Já o sofrimento se vinculava ao cotidiano de perdas e mortes, impotência frente ao declínio clínico dos pacientes, perdas de colegas e de entes queridos por COVID-19, falta de colaboração da equipe, cobranças institucionais, falta de valorização e de reconhecimento.

A dinâmica entre as vivências de prazer e de sofrimento mobilizava os trabalhadores ora para um reencontro com os sentidos do trabalho, ora para o desencanto e vontade de deixar a profissão. É possível concluir que, na dinâmica entre prazer e sofrimento no trabalho de enfermagem em unidades hospitalares COVID-19, elementos sinalizam para o risco de adoecimento psíquico.

  • FOMENTO
    Esta pesquisa foi apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS), por meio do Edital Emergencial 06/2020 - Ciência e Tecnologia no Combate à COVID-19.

AGRADECIMENTO

Às sete instituições hospitalares que viabilizaram as coletas de dados junto às suas equipes. Aos trabalhadores de enfermagem, que contribuíram com seus relatos do cotidiano na linha de frente, mesmo que em situações adversas, por acreditaram na importância da pesquisa e da ciência.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Priscilla Broca

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Jul 2022
  • Aceito
    30 Nov 2022
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