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Qualidade vida na perspectiva de mulheres no exercício do trabalho sexual: estudo de representações sociais

RESUMO

Objetivos:

analisar as representações sociais elaboradas por trabalhadoras sexuais procedentes do Alto Sertão Produtivo Baiano sobre qualidade de vida.

Métodos:

estudo qualitativo, baseado na Teoria das Representações Sociais, realizado na Região do Alto Sertão Produtivo Baiano, com 30 trabalhadoras sexuais. Realizou-se entrevista em profundidade individual, com discursos organizados em um corpus e tratados no software IRAMUTEQ, possibilitando a análise lexical para a Classificação Hierárquica Descendente.

Resultados:

revelaram-se quatro classes temáticas, nas quais as representações sociais da qualidade de vida perpassam: pelo dinheiro conquistado para suprimento das necessidades; pela associação à vida saudável e obtenção da saúde (física e mental); pelo equilíbrio das emoções (ainda que haja algumas sensações negativas como o medo e ansiedade); e pela fé em uma divindade.

Considerações Finais:

as representações sociais elaboradas pelas trabalhadoras sexuais acerca da qualidade de vida estão ancoradas em conceitos, subjetivos e práticos, pontuados pela Organização Mundial da Saúde.

Descritores:
Qualidade de Vida; Profissionais do Sexo; Trabalho Sexual; Saúde da Mulher; Enfermagem

ABSTRACT

Objectives:

to analyze the social representations elaborated by sex workers from Alto Sertão Produtivo Baiano about quality of life.

Methods:

a qualitative study, based on the Social Representation Theory, carried out in the region of Alto Sertão Produtivo Baiano, with 30 sex workers. Individual in-depth interview was carried out, with speeches organized in a corpus and treated in IRAMUTEQ, enabling lexical analysis for Descending Hierarchical Classification.

Results:

four thematic classes emerged, in which social representations of quality of life pervade: money earned to supply needs; association with healthy living and obtaining health (physical and mental); balance of emotions (although there are some negative sensations such as fear and anxiety); and faith in a deity.

Final Considerations:

the social representations elaborated by sex workers about quality of life are anchored in concepts, subjective and practical, punctuated by the World Health Organization.

Descriptors:
Quality of Life; Sex Workers; Sex Work; Women’s Health; Nursing

RESUMEN

Objetivos:

analizar las representaciones sociales elaboradas por trabajadoras sexuales del Alto Sertão Produtivo Baiano sobre la calidad de vida.

Métodos:

estudio cualitativo, basado en la Teoría de las Representaciones Sociales, realizado en la región de Alto Sertão Produtivo Baiano, con 30 trabajadoras sexuales. Entrevista individual en profundidad, con discursos organizados en un corpus y tratados en IRAMUTEQ, posibilitando el análisis léxico para Clasificación Jerárquica Descendente.

Resultados:

surgieron cuatro clases temáticas, en las que impregnan las representaciones sociales de la calidad de vida: el dinero ganado para suplir las necesidades; para la asociación con la vida sana y la obtención de la salud (física y mental); el equilibrio de las emociones (aunque hay algunas sensaciones negativas como el miedo y la ansiedad); y la fe en una deidad.

Consideraciones Finales:

las representaciones sociales elaboradas por las trabajadoras sexuales sobre la calidad de vida están ancladas en conceptos, subjetivos y prácticos, puntuados por la Organización Mundial de la Salud.

Descriptores:
Calidad de Vida; Trabajadores Sexuales; Trabajo Sexual; Salud de la Mujer; Enfermería

INTRODUÇÃO

O trabalho sexual tem sido compreendido como um comércio do próprio corpo, cujo serviço é habitual e ofertado para a satisfação sexual de inúmeras pessoas, sobretudo homens. Conforme o Ministério do Trabalho e do Emprego, muitas mulheres que oferecem esse tipo de serviço vivenciam a liberdade de seus corpos para obtenção de lucro e renda, ao atender e acompanhar clientes, pois rompem com o determinismo sociocultural da sexualidade feminina, por não restringirem à prática sexual ao espaço privado do matrimônio(11 Leite GS, Murray L, Lenz F. The Peer and Non-peer: the potential of risk management for HIV prevention in contexts of prostitution. Rev Bras Epidemiol. 2015;18(Suppl 1):7-25. https://doi.org/10.1590/1809-4503201500050003
https://doi.org/10.1590/1809-45032015000...
-22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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).

Nesse sentido, a prática da prostituição por mulheres tem sido comum ao longo da história, desde o período anterior à conformação das cidades e estruturas sociais, fundamentadas no patriarcado e em doutrinas religiosas conservadoras (quando estabeleceu-se o matrimônio com regras rígidas de casamento, para se instituir o controle dos corpos e da sexualidade das mulheres), no intuito de obtenção de renda financeira para a subsistência(33 Beauvoir S. O Segundo Sexo II: a experiência vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2016. 498 p.

4 França M. A vida pessoal de trabalhadoras do sexo: dilemas de mulheres de classes populares. Sex Salud Soc. 2017;(25):134-55. https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2017.25.07.a
https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2...

5 Pasini E. Limites simbólicos corporais na prostituição feminina. Cad Pagu [Internet]. 2015 [cited 2020 Sep 25];14:181-200. Available from: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635351
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...

6 Banuth RF, Santos MA. Vivências de discriminação e resistência de uma prostituta negra. Psicol Cienc Prof. 2016;36(3):763-76. https://doi.org/10.1590/1982-3703002862015
https://doi.org/10.1590/1982-37030028620...
-77 Lopes N. "Prostituição sagrada" e a prostituta como objeto preferencial de conversão dos "crentes". Relig Soc. 2017;37(1):34-46. https://doi.org/10.1590/0100-85872017v37n1cap02
https://doi.org/10.1590/0100-85872017v37...
). Considera-se trabalho sexual o conceito, proposto por teóricas feministas progressistas, que o define enquanto uma atividade laboral cuja prática do sexo é consentida e remunerada, na qual as mulheres ofertam o prazer sexual (ao cliente) em troca de renda que as possibilite o sustento/a subsistência(88 Broqua C, Deschamps C. Transactions sexuelles et imbrication des rapports de pouvoir. In: L’échange economico-sexuel. Paris: Éditions EHESS; 2014; p. 7-17.).

Assim, ao tangenciar olhares para o serviço sexual exercido por mulheres, deve-se romper com o senso comum e posicionamentos fundamentalistas e estigmatizatórios, bem como com o preconceito e o juízo de valor perpetrados contra a profissão(22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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3 Beauvoir S. O Segundo Sexo II: a experiência vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2016. 498 p.

4 França M. A vida pessoal de trabalhadoras do sexo: dilemas de mulheres de classes populares. Sex Salud Soc. 2017;(25):134-55. https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2017.25.07.a
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5 Pasini E. Limites simbólicos corporais na prostituição feminina. Cad Pagu [Internet]. 2015 [cited 2020 Sep 25];14:181-200. Available from: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635351
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...

6 Banuth RF, Santos MA. Vivências de discriminação e resistência de uma prostituta negra. Psicol Cienc Prof. 2016;36(3):763-76. https://doi.org/10.1590/1982-3703002862015
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7 Lopes N. "Prostituição sagrada" e a prostituta como objeto preferencial de conversão dos "crentes". Relig Soc. 2017;37(1):34-46. https://doi.org/10.1590/0100-85872017v37n1cap02
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-88 Broqua C, Deschamps C. Transactions sexuelles et imbrication des rapports de pouvoir. In: L’échange economico-sexuel. Paris: Éditions EHESS; 2014; p. 7-17.). Tais fatores fomentam as diversas iniquidades sociais sofridas pelas trabalhadoras sexuais (gênero, raça e classe), que são edificadas pelo sistema patriarcal de países que não têm essa atividade laboral legalizada, cooperando para a invisibilidade da profissão pelo Estado e manutenção das situações de vulnerabilidade(33 Beauvoir S. O Segundo Sexo II: a experiência vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2016. 498 p.

4 França M. A vida pessoal de trabalhadoras do sexo: dilemas de mulheres de classes populares. Sex Salud Soc. 2017;(25):134-55. https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2017.25.07.a
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-55 Pasini E. Limites simbólicos corporais na prostituição feminina. Cad Pagu [Internet]. 2015 [cited 2020 Sep 25];14:181-200. Available from: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635351
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
).

Os estigmas construídos tendem a comprometer o bem-estar, a saúde, as relações e, consequentemente, a qualidade de vida das trabalhadoras sexuais, visto que uma parcela considerável compõe a base da pirâmide da sociedade, com dificuldades de acessar serviços mínimos e básicos para sobrevivência(99 Leal CBM, Souza DA, Rios MA. Aspects of life and health of sex workers. J Nurs UFPE [Internet]. 2017 [cited 2020 Feb 15];11(11):4483-91. Available from: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaenfermagem/article/view/22865/24743
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-1010 Thng C, Blackledge E, Mclver R, Smith LW, McNulty A. Private sex workers’ engagement with sexual health services: an online survey. Sex Health. 2018;15(1):93-5. https://doi.org/10.1071/SH16243
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). Por isso, ponderar que o serviço sexual é uma profissão que apenas proporciona prazer é contribuir para a manutenção da exclusão social de pessoas que não têm sua profissão regulamentada, comprometendo a avaliação e a representação da qualidade de vida(11 Leite GS, Murray L, Lenz F. The Peer and Non-peer: the potential of risk management for HIV prevention in contexts of prostitution. Rev Bras Epidemiol. 2015;18(Suppl 1):7-25. https://doi.org/10.1590/1809-4503201500050003
https://doi.org/10.1590/1809-45032015000...
,66 Banuth RF, Santos MA. Vivências de discriminação e resistência de uma prostituta negra. Psicol Cienc Prof. 2016;36(3):763-76. https://doi.org/10.1590/1982-3703002862015
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,99 Leal CBM, Souza DA, Rios MA. Aspects of life and health of sex workers. J Nurs UFPE [Internet]. 2017 [cited 2020 Feb 15];11(11):4483-91. Available from: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaenfermagem/article/view/22865/24743
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).

A noção de qualidade de vida (QV) é ampla e marcada pela subjetividade, cujo conceito está para além de ponderações biologistas, positivistas e reducionistas, não sendo apenas a presença da doença ou ausência da saúde. Conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), é marcado por questões afetivas, psicológicas, emocionais, atitudinais, políticas, culturais e sociais, assim como tudo aquilo que venha dificultar a manutenção dos direitos humanos(1111 Silva DPE, Oliveira DC, Marques SC, Hipólito RL, Costa TL, Machado YY. Social representations of the quality of life of the young people living with HIV. Rev Bras Enferm. 2021;74(2):e20200149. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0149
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).

Nessa perspectiva, a Teoria das Representações Sociais (TRS) é utilizada para fundamentar estudos cujo intuito é aprofundar significados e conhecimentos que grupos de pertencimento social constroem em relação aos fenômenos subjetivos, visto que o saber é elaborado e compartilhado entre as pessoas, com um objeto prático. As representações sociais (RS) são construídas socialmente por pessoas que compartilham (ou não) consensos, como é o caso das trabalhadoras sexuais(22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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,1212 Jodelet D. Representações sociais e mundos de vida. Curitiba: PUCPRess; 2017. 544 p.).

Alguns estudos anteriores foram publicados envolvendo a temática QV com aporte da TRS, tendo como participantes pessoas convivendo com HIV(1111 Silva DPE, Oliveira DC, Marques SC, Hipólito RL, Costa TL, Machado YY. Social representations of the quality of life of the young people living with HIV. Rev Bras Enferm. 2021;74(2):e20200149. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0149
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), mulheres trans(1313 Sánchez-Fuentes MM, Araújo LF, Parra-Barrera SM, Fontes ERS, Santos JVO, Moyano N. Transphobia and gender identity: social representations of trans women from Brazil and Colombia. Ciênc Saud Colet. 2021;26(11):5793-5804. https://doi.org/10.1590/1413-812320212611.33642020
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) e idosos(1414 Silva TL, Motta VV, Garcia WJ, Arreguy-Sena C, Pinto PF, Parreira PMSD, et al. Quality of life and falls in elderly people: a mixed methods study. Rev Bras Enferm. 2021;74(Suppl 2):e20200400. http://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0400
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), por exemplo. Todavia, não houve algum publicado que trouxesse as RS da QV para trabalhadoras sexuais.

Destarte, considerando que as RS são construídas em um processo dinâmico de compartilhamento de informações em um grupo sociocultural acerca de um objeto ou fenômeno, a partir de vivências em um determinado contexto, é relevante aprofundar sobre como essas mulheres representam a QV. Além disso, como o contexto é determinante também para a construção de RS, pondera-se que a região do Alto Sertão Produtivo Baiano tem em sua constituição sócio-histórica iniquidades interseccionais marcantes, como a influência do patriarcado, a desigualdade social e a carência de bens básico para a obtenção da QV, com o aumento da pobreza. Acrescenta-se a essa justificativa a escassez de pesquisas científicas sobre o objeto apresentado em interface à TRS. Diante disso, traçou-se como questão norteadora: quais são as RS que trabalhadoras sexuais do Alto Sertão Produtivo Baiano possuem sobre QV no cotidiano do serviço sexual?

OBJETIVOS

Analisar as RS elaboradas por trabalhadoras sexuais procedentes do Alto Sertão Produtivo Baiano sobre QV.

MÉTODOS

Aspectos éticos

Foram respeitados os princípios e normas nacionais e internacionais de ética em pesquisas que envolvem seres humanos da Resolução 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde, com o projeto submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa. As participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. No intuito de garantir sigilo e preservar o anonimato de cada uma, adotaram-se códigos para nomear as participantes, usando a letra “E” de entrevistada, seguida de um número (exemplo: E1).

Referencial teórico-metodológico

A TRS é uma teoria do senso comum, pensada para dar sentido e elucidação às ideias, conceitos e significados em instâncias do saber prático construídos socialmente, considerando-se os aspectos simbólicos partilhados enquanto origem dos processos representacionais(1212 Jodelet D. Representações sociais e mundos de vida. Curitiba: PUCPRess; 2017. 544 p.). Dessa forma, a representação toma significado daquele conhecimento conformado por meio de um senso coletivo, em trocas e compartilhamentos de informações e experiências intragrupos, com repercussão em práticas e comportamentos construídos e difundidos socialmente(1515 Marková I. The making of the theory of social representations. Cad Pesqui. 2017;47(163):358-75. https://doi.org/10.1590/198053143760
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-1616 Rodrigues AS, Oliveira JF, Suto CSS, Coutinho MPL, Paiva MS, Souza SS. Care for women involved with drugs: social representations of nurses. Rev Bras Enferm. 2017;70(1):71-8. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0339
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).

A perspectiva processual da teoria, adotada para este estudo, remete à formação das representacções sociais a partir da memória social e construção de significados, ancorados e objetivados na forma de ideias, ideologias, símbolos, comportamentos e atitudes. A ancoragem e a objetivação são dois mecanismos do sistema mental, por meio da memória e das conclusões passadas, transformando o que é desconhecido, inquietante e estranho, em conhecido e familiar(1212 Jodelet D. Representações sociais e mundos de vida. Curitiba: PUCPRess; 2017. 544 p.).

Tipo de estudo

Estudo qualitativo, fundamento na perspectiva processual da TRS, desenvolvido com 30 trabalhadoras sexuais do Alto Sertão Produtivo Baiano. No transcorrer do desenvolvimento e instrumentalização da pesquisa e desenvolvimento do estudo, os autores cumpriram as normas e critérios de rigor da qualidade, ao guiarem-se pelas diretrizes do COnsolidated criteria for REporting Qualitative research (COREQ).

Procedimentos metodológicos, cenário do estudo e fontes de dados

As mulheres que contribuíram com o estudo são originárias do Alto Sertão Produtivo Baiano, abrangendo 19 municípios, com cerca de 400.000 habitantes(22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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), região na qual frequentam ou convivem, residem e/ou exercem o serviço sexual.

Adotou-se como critérios de seleção e recrutamento possuir idade maior que 18 anos e estar inserida no serviço sexual há pelo menos 1 ano (considerando que a experiência possibilita a visão mais ampliada do serviço sexual). Assim, contribuíram com a pesquisa, respondendo aos instrumentos, 30 trabalhadoras do sexo, dentre as 39 convidadas. Não houve a necessidade da aplicação de critério de exclusão, pois as participantes receberam convites e apenas aquelas que aceitaram contribuíram como o estudo.

A amostra por conveniência foi delimitada com a técnica snowball (bola de neve), a partir do auxílio dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) que atuam nos bairros e regiões em que as trabalhadoras estão presentes, os quais indicaram e contactaram a primeira participante, a qual foi indicando algumas outras que, por sua vez, indicavam as demais. A snowball é uma técnica de seleção e recrutamento das participantes, cujo acesso e estimativa da população são dificultosas, como as trabalhadoras do sexo(1717 Vinuto J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Temat. 2014;22(44):203-20. https://doi.org/10.20396/temáticas.v22i44.10977
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).

Coleta e organização dos dados

A coleta de dados foi realizada por três pesquisadores responsáveis pelo estudo (sendo dois docentes mestres e uma monitora do grupo de pesquisa responsável pela coleta, a qual foi previamente treinada). Ocorreu individualmente entre o mês de abril de 2017 e junho de 2018, em salas reservadas na Estratégias Saúde da Família dos bairros em que estão localizados diversos “empreendimentos”, como bares, restaurantes, pensões e pousadas, nos quais as trabalhadoras do sexo atuam. As participantes, que não residiam na cidade sede, agendaram visitas aos espaços destinados aos serviços desenvolvidos por elas, com auxílio dos ACS, que atuam no território adscrito. Salienta-se que a aproximação com as participantes se deu anteriormente à coleta, ainda com o projeto de extensão de promoção à saúde junto às trabalhadoras sexuais da região e também em parceria com o Centro de Testagem e Aconselhamento local.

Utilizaram-se um roteiro com itens estruturados para caracterização das participantes, bem como duas perguntas que guiaram a entrevista em profundidade, técnica adotada para a coleta de dados: fale-me o que você entende por QV e como você a percebe a QV em seu dia a dia no serviço sexual? Além disso, com o desdobramento das entrevistas, e no intuito de obter maior clareza nas respostas, elas eram indagadas sobre “quais estratégias elas utilizavam para alcançar bem-estar e QV em um serviço laboral permeado por vulnerabilidades”. As entrevistas tiveram uma duração média de 25 a 30 minutos. As respostas foram gravadas com recursos de áudio em um aparelho celular, em seguida transcritas na íntegra no software Microsoft Word 2016, no mesmo dia em que as entrevistas se encerravam.

Análise dos dados

Os discursos transcritos foram lidos criteriosamente; em seguida, foram transformados em corpus textual, sendo desenvolvida a análise lexical com auxílio do software IRAMUTEQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires)(1515 Marková I. The making of the theory of social representations. Cad Pesqui. 2017;47(163):358-75. https://doi.org/10.1590/198053143760
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). O IRAMUTEQ emite um dendrograma de classes que permite realizar análises estatísticas em variáveis qualitativas, por meio de lexicografia do método de Classificação Hierárquica Descendente (CHD), obtendo-se contextos e classes geradas sobre os segmentos de texto (ST) decorrentes dos léxicos e seus conjuntos de vocábulos, apresentados em formas reduzidas, a partir de matrizes de corpus textuais, cruzando ST e palavras em contínuos testes do tipo Qui-Quadrado (X22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271...
)(1717 Vinuto J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Temat. 2014;22(44):203-20. https://doi.org/10.20396/temáticas.v22i44.10977
https://doi.org/10.20396/temáticas.v22i4...
-1818 Brandão BMGM, Angelim RCM, Marques SC, Oliveira RC, Abrão FMS. Living with HIV: coping strategies of seropositive older adults. Rev Esc Enferm USP. 2020;54:e03576. https://doi.org/10.1590/S1980-220X2018027603576
https://doi.org/10.1590/S1980-220X201802...
). Esse recurso da CHD apresenta as respostas dividas em ST, que originam as classes temáticas(1818 Brandão BMGM, Angelim RCM, Marques SC, Oliveira RC, Abrão FMS. Living with HIV: coping strategies of seropositive older adults. Rev Esc Enferm USP. 2020;54:e03576. https://doi.org/10.1590/S1980-220X2018027603576
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).

RESULTADOS

Dentre as 30 participantes que compuseram a amostra do presente estudo, a maioria possuiu idade de 18 a 35 anos (78,26%); possuía poucos anos de escolaridade, cinco anos ou menos de estudo, (53,62%); se autodeclarou negra (59,42%); autorreferiu ser de religião católica (45,07%) e protestante (34,6%); trabalhava há menos de 05 anos (68,12%); não estava satisfeita com a profissão (55,97%); usava preservativos nas relações sexuais (63,77%); e referia uso de anticoncepcional oral hormonal (66,66%). Salienta-se que, pelas condições sociodemográficas desfavoráveis, e em consonância ao baixo nível de escolaridade, evidenciou-se que a maioria tem renda mensal fixa variável, na qual 67% cobram entre R$30,00 e R$100,00 por programa, mensalmente, alcançando no máximo pouco mais de um salário mínimo. A maioria, 91%, declarou-se ser “arrimo de família”, ou seja, filhos, cônjugues e outros parentes sobrevivem com a renda oriunda do serviço sexual.

O dendrograma da CHD (Figura 1) gerou quatro classes, a partir de 2.126 ST extraídos das entrevistas, com 85,32% de aproveitamento do corpus textual analisado, o que possibilita melhor compreensão das palavras e frases ditas pelo grupo de participantes, apresentadas nas unidades de contexto elementares (UCE).

Figura 1
Dendrograma de Classes para Classificação Hierárquica Descendente, Guanambi, Bahia, Brasil (N=30)

As classes oriundas da análise trazem os elementos que apresentam influência estatisticamente significantes que tornam as RS atribuídas à QV com sentido, apresentando as maiores forças em relação à frequência com o vocábulo central e mais importante para a representação das profissionais do sexo. As classes foram nomeadas conforme os léxicos de maior X22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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, e emergiram e se organizaram com o processamento do dendrograma em relação às oposições com as outras classes geradas, permitindo acessar a construção de um sistema explicativo sobre o fenômeno/objeto investigado.

Para melhor entendimento dessa estrutura de divisão textual, que conforma o corpus das respostas, para se alcançar as classes, há a apresentação dos conteúdos semânticos-lexicais que são heterogêneos, por terem sucessivas divisões até se obter a homogeneidade das classes, como está demonstrado no dendrograma (Figura 1). São dois grandes blocos temáticos e quatro classes, a saber: o primeiro referente às classes 2 e 1, o segundo, às classes 3 e 4. As classes apresentadas na Figura 1, segundo o seu tema e o conteúdo que compõe cada uma delas, estão descritas na sequência.

Classe 2 - Medo da rua e a necessidade de dinheiro para subsistência

A classe 2 apresenta 33,72% das UCE, tendo medo (x22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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= 9,22), filho (x22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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= 8,82), preciso (x22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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= 8,25), programa (x22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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= 6,11), sustento (x22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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= 6,11), entre outros elementos, como principais elementos que a compõe.

Desde que separei do meu marido, não vi outro caminho a não ser prostituir e, desde então, decidi que só faria sexo por dinheiro e não por prazer. (E17)

Qualidade de vida estar bem consigo mesmo, estar saudável, ter dignidade, ter condições de pagar um médico, se estiver sentindo a dor, comprar o remédio que precisar, cuidar do corpo, fazer academia. (E9)

Mas nem sempre possível, e aí vem a tristeza, ter que enfrentar o medo pelos perigos que tem na rua, alguém fazer algo, da gente se sentir um lixo. (E23)

Chegar em casa mesmo, que seu filho não saiba de sua vida, mas você sabe que o amor dele é só seu. Isso recompensa pelas coisas péssimas e estressantes que acontece com nós. (E 16)

Percebe-se um processo de formação da RS acerca da atividade exercida como um caminho para alcançar a QV, mesmo que se mantenha, diante de familiares, o sigilo sobre a profissão. O medo pode estar associado à apreensão em serem vítimas de violência e/ou do preconceito sofrido na sociedade e à inexistência de formulação e implementação políticas de saúde voltadas à proteção, ao cuidado e à segurança.

Classe 1 - Vida saudável para enfrentar o trabalho, adquirir renda e ter bem-estar

A presente classe é responsável por 23,26% da UCE, composta pelos termos vida saudável (x22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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=33,17), bom (x22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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=21,17), violência (x22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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=10,26), difícil (x22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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=9,91) e QV (x22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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=6,32). Verificam-se distintas facetas presentes na rotina da profissão, além de elementos que narram os reflexos em suas vidas.

Amor próprio, conforto, ajudar a família. Dinheiro, paz, segurança, amor, prevenção, oportunidade, vida financeira, vida saudável, trabalho, conforto. Acho minha vida boa, só está faltando um pouquinho mais de saúde. (E15)

É ter vida financeira, boas oportunidades no nosso dia, encontrar um cliente bom. Levar uma vida saudável é ter saúde para trabalhar e ter conforto. A profissão não é prazerosa não. Difícil emocionalmente. (E10)

Qualidade de vida é ter o amor da sua família, ter segurança de que nenhum mal ou violência você irá sofrer. Dinheiro que dá uma vida financeira segura e garante o suficiente para você ter saúde mental sem estresse e ansiedade e levar uma vida saudável. (E20)

Ter felicidade, levar uma vida saudável, o que nem sempre acontece. Ter segurança mesmo sabendo que isso difícil, porque temos receio e estamos sujeitas à violência da rua ao estupro, qualidade de vida vem de dentro, também vem da vaidade do amor próprio. (E1)

As RS verificadas nas UCE perpassam por aspectos das emoções e sentimentos que ensejam na saúde mental, como ansiedade, felicidade, receio, vaidade e amor próprio. Por sua vez, a perspectiva prática remete à adoção de uma vida saudável, do conforto, da necessidade em se ter segurança para enfrentar a violência. Por fim, percebe-se que o dinheiro continua atrelado a essa classe, devido à importância da obtenção de renda para autopromoção da QV nas RS.

Classe 4 - O trabalho sexual enquanto escolha e um meio para conquistar saúde

Essa classe exibe 23,26% das UCE aproveitadas, cujos principais léxicos com maiores x22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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são coisa (x22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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=12,58), aprender (x22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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= 10,26), prostituição (x22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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=10,26), querer (x22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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=6,81) e saúde (x22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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= 6,32). Tais termos podem estar associados à necessidade de elas terem que readequar a vida cotidiana, por conta dos estigmas arraigados a essa prática laboral.

Aquele medo que eu tinha de ser violentada, de ser humilhada pelos clientes, era no início quando ficava no ponto. Uma vez fui fazer BO [boletim de ocorrência] e o delegado falou que foi pouco, quem mandou eu fazer vida? Daí desiludi e procurei ficar em locais que me desse mais proteção, como na casa de uma senhora que aluga quarto para a gente. (E22)

A escolher melhor os clientes, tudo melhorou. Eu aprendi a fazer as coisas direito, mas às vezes ainda sinto um vazio quando estou na minha casa cuidando dela, lavando a roupa, mas depois esqueço logo das coisas ruins. (E7)

Se alguém pergunta alguma coisa, eu não conto realmente o que eu faço, porque tem aquilo muito nova e trabalha com prostituição poderia estudar, então o fato de viver escondida prejudica meu emocional. (E26)

Como eu te digo? Foi uma iniciativa, uma opção minha estar na prostituição. Eu entrei nessa vida pra cuidar de mim da minha saúde e, pra mim, hoje, está cem por cento, ainda que na condição desse serviço encontramos muitos problemas, como a violência. (E22)

Qualidade devida e saúde estão juntas. Sabe, se eu não tiver saúde, levar uma vida saudável, eu não vou estar bem no trabalho, além da ausência de doenças, é o estado físico mental social de uma pessoa. (E2)

Pondera-se que, nessa classe, o serviço sexual remunerado, praticado pelas mulheres é uma escolha profissional e, mesmo com os problemas enfrentados no cotidiano do labor, é através da renda que conseguem encontrar formas de acessar bens materiais e serviços de saúde, ainda que o segredo sobre atividade laboral seja mantido. Aqui, a QV está representada na ideia de saúde (física e mental) e no cuidado consigo para o alcance da autoestima.

Classe 3 - Confiar em Deus para enfrentar as adversidades, ter saúde e bem-estar

Essa classe obteve 19,77% das UCE, trazendo os elementos pensar (x22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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= 35,8), Deus (x22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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= 26,18), passar (x22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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= 17,03), sexual (x22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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= 17,03) e dor (x22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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= 8,07). Ela discorre sobre a relação com a autoestima da própria condição profissional e de saúde, a busca de melhora a partir desse condicionante e a ligação com o transcendente, aqui identificado como Deus.

Foi pensando nisso que a minha vida íntima ia melhorar meu conforto, a minha casa e, graças a Deus, tudo melhorou quando eu passei a me amar mais e a ter autoestima. (E11)

[...] confio muito em Deus, por maior que seja a atribulação, coloco Deus na frente. O dinheiro que o trabalho como garota de programa, eu não iria ganhar em lugar nenhum, em nenhuma casa de madame. (E23)

Vem de dentro também, da fé que devemos ter [...] a vida saudável, quando se tem dinheiro, é mais fácil [...] pago procedimento para o nosso corpo, além de malhar quando tenho tempo. (E24)

Já fui violentada por um tio meu, quando eu era menina, então, quando um homem encosta em mim, eu fico ansiosa, mas engulo a seco e vou, pois preciso do dinheiro, para levar o que minha família precisa. (E3)

Essa última classe apresenta a representação da qualidade vida remetida à crença em uma divindade (Deus) como um caminho para conquistar a felicidade e bem-estar, em meio a uma prática laboral estigmatizada.

DISCUSSÃO

As características do perfil das trabalhadoras sexuais aqui estudadas se apresentaram similares a pesquisas de outrora desenvolvidos tanto no Brasil, na Malásia, ou na África (Quênia), com predominância de mulheres com baixa nível de escolaridade, autodeclaradas pretas e parte delas pouco satisfeita com a profissão. Além disso, obtêm uma renda relativamente baixa, para dar conta de suprir as demandas dos familiares que convivem com elas(22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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,44 França M. A vida pessoal de trabalhadoras do sexo: dilemas de mulheres de classes populares. Sex Salud Soc. 2017;(25):134-55. https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2017.25.07.a
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,1010 Thng C, Blackledge E, Mclver R, Smith LW, McNulty A. Private sex workers’ engagement with sexual health services: an online survey. Sex Health. 2018;15(1):93-5. https://doi.org/10.1071/SH16243
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,1919 Campbell R, Sanders T, Hassan R, Gichuna S, Mutonyi M, Mwangi P. Global Effects of COVID-19, government restrictions and implications for sex workers: a focus on Africa. LIAS Working Paper Series. 2020;3(S.l.):1-19. https://doi.org/10.29311/lwps.202033600
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).

Para a insatisfação com o trabalho sexual, representada por algumas mulheres que têm nessa profissão a confiança de receber alguma remuneração, resultados de estudos anteriores, realizados em Belo Horizonte (Brasil), França e Canadá, revelaram que há dificuldade de trabalhadoras do sexo acessar direitos sociais, como trabalhistas e previdenciários, por negligência do Estado, reverberada na invisibilidade e falta de proteção. Os referidos estudos reforçaram ainda que profissionais de saúde perpetuam o estigma a esse labor, por meio do preconceitos institucional(44 França M. A vida pessoal de trabalhadoras do sexo: dilemas de mulheres de classes populares. Sex Salud Soc. 2017;(25):134-55. https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2017.25.07.a
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,88 Broqua C, Deschamps C. Transactions sexuelles et imbrication des rapports de pouvoir. In: L’échange economico-sexuel. Paris: Éditions EHESS; 2014; p. 7-17.,2020 Jozaghi E, Bird L. COVID-19 and sex workers: human rights, the struggle for safety and minimum income. Can J Public Health. 2020;111(3):406-7. https://doi.org/10.17269/s41997-020-00350-1
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).

Nesses contextos que revelam o perfil, as lutas e enfrentamentos por condições melhores para a prática do serviço sexual, constroem-se, nos sistemas de cognição dessas mulheres, os significados representacionais para a QV, que ocorre em um movimento coletivo de trocas de informações, conhecimentos e vivências intragrupos, possibilitando a interpretação da realidade, do senso comum e das práticas desenvolvidas(22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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,1111 Silva DPE, Oliveira DC, Marques SC, Hipólito RL, Costa TL, Machado YY. Social representations of the quality of life of the young people living with HIV. Rev Bras Enferm. 2021;74(2):e20200149. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0149
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0...
-1212 Jodelet D. Representações sociais e mundos de vida. Curitiba: PUCPRess; 2017. 544 p.,1515 Marková I. The making of the theory of social representations. Cad Pesqui. 2017;47(163):358-75. https://doi.org/10.1590/198053143760
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).

Essas primeiras RS atribuídas à QV revelam a renda oriunda do serviço sexual para enfrentamento das adversidades, sendo o conteúdo prático das RS, na medida em que se mostram como um fenômeno que justifica a construção de ideias consensuais, apreendido e compartilhado pelas atrizes sociais, proporcionando uma visão global de seu contexto(1212 Jodelet D. Representações sociais e mundos de vida. Curitiba: PUCPRess; 2017. 544 p.).

A particularidade de ser mulher, trabalhadora sexual e, muitas vezes, negra e pobre, causa a insegurança para realizar suas atividades, tendo em vista o temor de ser violentada e julgada como culpada, esmagando o papel de vítima do Estado, atrelada ao esquecimento e impunidade de seus agressores(44 França M. A vida pessoal de trabalhadoras do sexo: dilemas de mulheres de classes populares. Sex Salud Soc. 2017;(25):134-55. https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2017.25.07.a
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5 Pasini E. Limites simbólicos corporais na prostituição feminina. Cad Pagu [Internet]. 2015 [cited 2020 Sep 25];14:181-200. Available from: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635351
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
-66 Banuth RF, Santos MA. Vivências de discriminação e resistência de uma prostituta negra. Psicol Cienc Prof. 2016;36(3):763-76. https://doi.org/10.1590/1982-3703002862015
https://doi.org/10.1590/1982-37030028620...
,2121 Howard S. Covid-19: Health needs of sex workers are being sidelined, warn agencies. BMJ. 2020;369:m1867. https://doi.org/10.1136/bmj.m1867
https://doi.org/10.1136/bmj.m1867...
-2222 Tobar NJM, Mendoza MPR. Quality of life and health of breast cancer woman survivors in Popayan-Colombia. Rev Cienc Cuidad. 2020;17(1):8-17. https://doi.org/10.22463/17949831.1538
https://doi.org/10.22463/17949831.1538...
). Essa condição reflete no alto índice de feminicídio no Brasil, onde o fato de ser mulher já é o suficiente para justificar o comportamento do “homem” e seus “bons costumes”, estruturado a partir do senso comum, o ideal pejorativo da figura feminina, principalmente se esta estiver atrelada a algum panorama de expressão da sexualidade(11 Leite GS, Murray L, Lenz F. The Peer and Non-peer: the potential of risk management for HIV prevention in contexts of prostitution. Rev Bras Epidemiol. 2015;18(Suppl 1):7-25. https://doi.org/10.1590/1809-4503201500050003
https://doi.org/10.1590/1809-45032015000...
,33 Beauvoir S. O Segundo Sexo II: a experiência vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2016. 498 p.-44 França M. A vida pessoal de trabalhadoras do sexo: dilemas de mulheres de classes populares. Sex Salud Soc. 2017;(25):134-55. https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2017.25.07.a
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).

Essa RS acerca de direitos básicos de qualquer cidadão, que estão sedimentados na constituição, processada na troca intragrupal em sociedade, mostra a autonomia que muitas trabalhadoras sexuais têm ao reforçar suas opiniões, experiências, emoções e todo os sistemas de valores que contribuem para a notoriedade da representação acerca de um fenômeno e, aqui, a QV. A associação às sensações positivas ou negativas presentes nas RS serve para compreensão das vulnerabilidades e enfrentamentos do processo saúde-doença em relação à subjetividade que o grupo social apresenta(2323 Karamouzian M, Foroozanfar Z, Ahmadi A, Haghdoost AA, Vogel J, Zolala F. How sex work becomes an option: Experiences of female sex workers in Kerman, Iran. Cult Health Sex. 2016;18(1):58-70. https://doi.org/10.1080/13691058.2015.1059487.
https://doi.org/10.1080/13691058.2015.10...
-2424 Pereira-Caldeira NMV, Goes FGB, Almeida-Cruz MCM, Caliari JS, Pereira-Ávila FMV, Gir E. Quality of Life for Women with Human Papillomavirus-induced Lesions. Rev Bras Ginecol Obstet. 2020;42(04):211-7. https://doi.org/10.1055/s-0040-1709192
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).

Pondera-se que a formação das RS se dá amparada em saberes do senso comum e não em saberes técnicos-científicos e teóricos, sobretudo quando o grupo social é conformado por pessoas com vulnerabilidades tão marcantes, como as trabalhadoras do sexo, já que se origina de experiências cotidianas, servindo de guia e leitura da realidade, funcionando como linguagem em razão de sua função simbólica(1212 Jodelet D. Representações sociais e mundos de vida. Curitiba: PUCPRess; 2017. 544 p.,1515 Marková I. The making of the theory of social representations. Cad Pesqui. 2017;47(163):358-75. https://doi.org/10.1590/198053143760
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).

Assim, se, de um lado, há pessoas que fazem relação a um maior acesso aos serviços de saúde, de outro, tem algumas que condicionam a um bem-estar, psicosocialemocional. Além disso, outras tantas consideram a aquisição de dinheiro como fator preponderante para a conquista de bens e acesso a diversos setores da sociedade(22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271...
). Resultados de estudos anteriores, realizados com trabalhadoras sexuais da França, da África e Brasil, revelaram a importância que o dinheiro possui, sobretudo pela possibilidade de ter a aquisição de bens(22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
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,88 Broqua C, Deschamps C. Transactions sexuelles et imbrication des rapports de pouvoir. In: L’échange economico-sexuel. Paris: Éditions EHESS; 2014; p. 7-17.,1919 Campbell R, Sanders T, Hassan R, Gichuna S, Mutonyi M, Mwangi P. Global Effects of COVID-19, government restrictions and implications for sex workers: a focus on Africa. LIAS Working Paper Series. 2020;3(S.l.):1-19. https://doi.org/10.29311/lwps.202033600
https://doi.org/10.29311/lwps.202033600...
). Nessa perspectiva, as RS elaboradas por esse grupo segmentado de mulheres, diante de convicções conformadas socialmente, designarão tanto a RS da QV quanto a noção de tal termo em seu cotidiano de trabalho(1515 Marková I. The making of the theory of social representations. Cad Pesqui. 2017;47(163):358-75. https://doi.org/10.1590/198053143760
https://doi.org/10.1590/198053143760...
,2424 Pereira-Caldeira NMV, Goes FGB, Almeida-Cruz MCM, Caliari JS, Pereira-Ávila FMV, Gir E. Quality of Life for Women with Human Papillomavirus-induced Lesions. Rev Bras Ginecol Obstet. 2020;42(04):211-7. https://doi.org/10.1055/s-0040-1709192
https://doi.org/10.1055/s-0040-1709192...
).

Ainda assim, a presença de sentimentos negativos, como o medo e o receio nas RS, remete ao contexto apresentado no dia a dia do trabalho sexual, como a violência por vezes perpetrada por clientes ou exploradores, a dificuldade em discutir e garantir o uso de preservativo com os homens que pagam pelo serviço, a incerteza de ter uma boa renda a cada dia de trabalho, além dos preconceitos e estigmas constantes, muito comum em diversos serviços e setores(22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271...
,44 França M. A vida pessoal de trabalhadoras do sexo: dilemas de mulheres de classes populares. Sex Salud Soc. 2017;(25):134-55. https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2017.25.07.a
https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2...
-55 Pasini E. Limites simbólicos corporais na prostituição feminina. Cad Pagu [Internet]. 2015 [cited 2020 Sep 25];14:181-200. Available from: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635351
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
).

Há nas RS das participantes uma conotação negativa à QV. Mesmo constituindo uma minoria, verbalizaram léxicos afetivos-emocionais, como tristeza, estresse e ansiedade, revelando que a felicidade é um sentimento um tanto longíquo da realidade vivenciada por elas. Tais representações podem ser verificadas em resultados de outros estudos, que associaram as condições da profissão e da vida de muitas delas ao abuso físico, psicológico e à submissão aos homens(2525 Martynowskyj E. Prostituição e feminismo (s). Disputas de reconhecimento nos Encontros Nacionais de Mulheres (Argentina, 1986-2017). Sex Salud Soc. 2018;30:22-49. https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2018.30.02.a
https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2...
-2626 França M. Práticas e sentidos da aprendizagem na prostituição. Horiz Antropol. 2017;23(47):325-49. https://doi.org/10.1590/s0104-71832017000100011
https://doi.org/10.1590/s0104-7183201700...
).

Destarte, diversas profissionais referiram que o ato de exercer o serviço sexual está atrelado às dificuldades pelas quais passam diariamente, nomeadamente: econômicas, familiares, integração no mercado de trabalho formal, poucos anos de estudo e aspectos afetivos. Essa questão é reafirmada por um estudo realizado no Irã, no qual relatou o déficit de oportunidades distribuídas pelo poder estatal, resultando em um estado de pobreza extrema, sendo fator preponderante para a busca de subsistência com o trabalho sexual(88 Broqua C, Deschamps C. Transactions sexuelles et imbrication des rapports de pouvoir. In: L’échange economico-sexuel. Paris: Éditions EHESS; 2014; p. 7-17.,2525 Martynowskyj E. Prostituição e feminismo (s). Disputas de reconhecimento nos Encontros Nacionais de Mulheres (Argentina, 1986-2017). Sex Salud Soc. 2018;30:22-49. https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2018.30.02.a
https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2...
,2727 Belém JM, Alves MJH, Pereira EV, Maia ER, Quirino GS, Albuquerque GA. Prostitution and health: Social representations of nurses in the family health strategy. Rev Baiana Enferm. 2018;32:e25086. https://doi.org/10.18471/rbe.v32.25086
https://doi.org/10.18471/rbe.v32.25086...
).

Essas situações corroboram evidências científicas descritas em um estudo, desenvolvido no México, sobre a responsabilização das mulheres no contexto de violências dispostas a essas, tendo o mundo midiático contribuído na construção desse paradigma, ao noticiar tais informações. Essa condição reflete em RS preconceituosa e misógina do trabalho sexual, ditando que tais trabalhadoras fogem do padrão normativo ideal, apenas por atrelar sexo ao dinheiro, tornando a profissão associada ao desprezo e à abominação(2828 Montes LMG, López RQ. Reflexiones sobre los cuerpos negados: mujeres mayas contemporáneas en Tahdziú, México. Sex Salud Soc. 2019;32: 40-64. https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2019.32.04.a
https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2...
).

A autonomia sexual e sobre seu corpo (em relação à prática sexual fora do matrimônio) choca a sociedade, regida pela cultura do patriarcado, visto que a prática sexual remunerada, tanto no Brasil como na França, estabelece troca econômica com prazer/sexual(22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271...
,88 Broqua C, Deschamps C. Transactions sexuelles et imbrication des rapports de pouvoir. In: L’échange economico-sexuel. Paris: Éditions EHESS; 2014; p. 7-17.). A determinação do tempo e do serviço sexual a ser oferecido, bem como do acordo referente ao valor estipulado, leva-as ao rompimento de constructos histórico-culturais demarcados para as mulheres, pois, mesmo que muitas sejam exploradas, outras tantas são responsáveis diretamente pelo trabalho desempenhado(11 Leite GS, Murray L, Lenz F. The Peer and Non-peer: the potential of risk management for HIV prevention in contexts of prostitution. Rev Bras Epidemiol. 2015;18(Suppl 1):7-25. https://doi.org/10.1590/1809-4503201500050003
https://doi.org/10.1590/1809-45032015000...

2 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271...
-33 Beauvoir S. O Segundo Sexo II: a experiência vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2016. 498 p.,55 Pasini E. Limites simbólicos corporais na prostituição feminina. Cad Pagu [Internet]. 2015 [cited 2020 Sep 25];14:181-200. Available from: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635351
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
). É com essa renda que muitas obtêm independência financeira, conforto, aquisição de bens materiais, práticas de cuidado para atingir uma aparência agradável aos clientes e promoção de uma vida saudável e digna para si e seus familiares(22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271...
,88 Broqua C, Deschamps C. Transactions sexuelles et imbrication des rapports de pouvoir. In: L’échange economico-sexuel. Paris: Éditions EHESS; 2014; p. 7-17.,2525 Martynowskyj E. Prostituição e feminismo (s). Disputas de reconhecimento nos Encontros Nacionais de Mulheres (Argentina, 1986-2017). Sex Salud Soc. 2018;30:22-49. https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2018.30.02.a
https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2...
).

Outros termos revelados nas RS da QV concatenam a ideia de saúde física, mental, autoestima, amor e cuidado, dando suporte mais uma vez à noção do conceito de QV. Adotar hábitos saudáveis de vida e, por conseguinte, tentar levar uma vida saudável, poderá suscitar a QV, ainda que seja difícil em alguns momentos, em decorrência da alteração do padrão de sono e repouso e nem sempre ter condições de fazer atividade física, além do envolvimento de algumas com álcool, tabaco e/ou outras drogas ilícitas(99 Leal CBM, Souza DA, Rios MA. Aspects of life and health of sex workers. J Nurs UFPE [Internet]. 2017 [cited 2020 Feb 15];11(11):4483-91. Available from: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaenfermagem/article/view/22865/24743
https://periodicos.ufpe.br/revistas/revi...
,2626 França M. Práticas e sentidos da aprendizagem na prostituição. Horiz Antropol. 2017;23(47):325-49. https://doi.org/10.1590/s0104-71832017000100011
https://doi.org/10.1590/s0104-7183201700...
-2727 Belém JM, Alves MJH, Pereira EV, Maia ER, Quirino GS, Albuquerque GA. Prostitution and health: Social representations of nurses in the family health strategy. Rev Baiana Enferm. 2018;32:e25086. https://doi.org/10.18471/rbe.v32.25086
https://doi.org/10.18471/rbe.v32.25086...
).

Um ponto deve ser destacado, pois fez-se presente nas RS apreendidas com as classes 2 e 4 a necessidade de parte delas manter o sigilo da atividade laboral, diante do círculo de convívio social como família e amigos. Possivelmente, tal evidência tem relação com a absorção dos estigmas sociais atribuídos a elas, já que algumas estão nessa atividade laboral para obtenção por vontade própria; de outro modo, outras tantas não veem outra forma de atividade laboral e, por isso, não vivenciam a liberdade e autonomia evidenciadas em estudos anteriores(11 Leite GS, Murray L, Lenz F. The Peer and Non-peer: the potential of risk management for HIV prevention in contexts of prostitution. Rev Bras Epidemiol. 2015;18(Suppl 1):7-25. https://doi.org/10.1590/1809-4503201500050003
https://doi.org/10.1590/1809-45032015000...

2 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271...
-33 Beauvoir S. O Segundo Sexo II: a experiência vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2016. 498 p.,55 Pasini E. Limites simbólicos corporais na prostituição feminina. Cad Pagu [Internet]. 2015 [cited 2020 Sep 25];14:181-200. Available from: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635351
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
,88 Broqua C, Deschamps C. Transactions sexuelles et imbrication des rapports de pouvoir. In: L’échange economico-sexuel. Paris: Éditions EHESS; 2014; p. 7-17.). Essa decisão pode fomentar a invisibilidade e dificultar para implementação/garantia dos direitos enquanto cidadãs e classe trabalhista, bem como o reconhecimento social dessa atividade enquanto profissão, no sentido de estarem inseridas nos movimentos sociais da classe que estão em luta contínua pelos direitos(33 Beauvoir S. O Segundo Sexo II: a experiência vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2016. 498 p.,66 Banuth RF, Santos MA. Vivências de discriminação e resistência de uma prostituta negra. Psicol Cienc Prof. 2016;36(3):763-76. https://doi.org/10.1590/1982-3703002862015
https://doi.org/10.1590/1982-37030028620...
,99 Leal CBM, Souza DA, Rios MA. Aspects of life and health of sex workers. J Nurs UFPE [Internet]. 2017 [cited 2020 Feb 15];11(11):4483-91. Available from: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaenfermagem/article/view/22865/24743
https://periodicos.ufpe.br/revistas/revi...
,2323 Karamouzian M, Foroozanfar Z, Ahmadi A, Haghdoost AA, Vogel J, Zolala F. How sex work becomes an option: Experiences of female sex workers in Kerman, Iran. Cult Health Sex. 2016;18(1):58-70. https://doi.org/10.1080/13691058.2015.1059487.
https://doi.org/10.1080/13691058.2015.10...
,2929 Olivar JMN. Género, dinero y fronteras amazónicas: la “prostitución” en la ciudad transfronteriza de Brasil, Colombia y Perú. Cad Pagu. 2017;(51):e175115. https://doi.org/10.1590/18094449201700510015
https://doi.org/10.1590/1809444920170051...
).

Em um dos postulados de Ivana Marková sobre RS, há a ideia de que o “eu” e os “outros” (Ego-Alter), por meio da interdependência e interação, têm a possibilidade de criar em conjunto uma realidade social permeada por objetos de crenças, conhecimento, imagens, ou símbolos que dão sentidos e significados a um fenômeno, determinados por suas experiências sociais, suas intenções, expectativas e compreensões de uma situação(1515 Marková I. The making of the theory of social representations. Cad Pesqui. 2017;47(163):358-75. https://doi.org/10.1590/198053143760
https://doi.org/10.1590/198053143760...
). Nesse sentido, possivelmente, as trabalhadoras do sexo aqui estudadas conformam suas RS sobre QV por meio da articulação enquanto organização de classe, para sobrevivência frente aos agravos presentes no serviço sexual, assim como um subterfúgio para a invisibilidade estatal.

Ao revelarem, nas representações, a fé um ser superior (Deus) enquanto um instrumento subjetivo para conseguir equilíbrio, bem-estar e saúde, é demonstrada a importância que a crença em uma divindade tem para a QV desse grupo de mulheres(1111 Silva DPE, Oliveira DC, Marques SC, Hipólito RL, Costa TL, Machado YY. Social representations of the quality of life of the young people living with HIV. Rev Bras Enferm. 2021;74(2):e20200149. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0149
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0...
). Pessoas que cotidianamente vivenciam a marginalidade e experenciam vulnerabilidades intersecionais, potencializadas pela ausência de amparo do Estado, recorrem a esse subterfúgio para o enfrentamento de obstáculos diários, que tornam a prática do serviço sexual dificultosa(44 França M. A vida pessoal de trabalhadoras do sexo: dilemas de mulheres de classes populares. Sex Salud Soc. 2017;(25):134-55. https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2017.25.07.a
https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2...
,77 Lopes N. "Prostituição sagrada" e a prostituta como objeto preferencial de conversão dos "crentes". Relig Soc. 2017;37(1):34-46. https://doi.org/10.1590/0100-85872017v37n1cap02
https://doi.org/10.1590/0100-85872017v37...
,2525 Martynowskyj E. Prostituição e feminismo (s). Disputas de reconhecimento nos Encontros Nacionais de Mulheres (Argentina, 1986-2017). Sex Salud Soc. 2018;30:22-49. https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2018.30.02.a
https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2...
-2626 França M. Práticas e sentidos da aprendizagem na prostituição. Horiz Antropol. 2017;23(47):325-49. https://doi.org/10.1590/s0104-71832017000100011
https://doi.org/10.1590/s0104-7183201700...
,3030 Carter A, Greene S, Money D, Sanchez M, Webster K, Nicholson V, et al. Supporting the sexual rights of women living with hiv: a critical analysis of sexual satisfaction and pleasure across five relationship types. J Sex Res. 2018;55(9): 1134-54. https://doi.org/10.1080/00224499.2018.1440370
https://doi.org/10.1080/00224499.2018.14...
). Estudos anteriores desenvolvidos no Brasil, como em Belo Horizonte, no Alto Sertão Produtivo Baiano, bem como na fronteira amazônica com a Colômbia e o Peru, mostram a importância da crença em Deus como meio para equilibrar as emoções e manter a saúde mental(22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271...
,2626 França M. Práticas e sentidos da aprendizagem na prostituição. Horiz Antropol. 2017;23(47):325-49. https://doi.org/10.1590/s0104-71832017000100011
https://doi.org/10.1590/s0104-7183201700...
,2929 Olivar JMN. Género, dinero y fronteras amazónicas: la “prostitución” en la ciudad transfronteriza de Brasil, Colombia y Perú. Cad Pagu. 2017;(51):e175115. https://doi.org/10.1590/18094449201700510015
https://doi.org/10.1590/1809444920170051...
).

A RS da QV associada à vida saudável também se desdobra na obtenção de recursos financeiros, essencial para que elas mantenham o cuidado com seus corpos em toda sua totalidade, considerando-as seres holísticos. O dinheiro adquirido com essa ocupação também custeia o sustento de seu núcleo familiar(55 Pasini E. Limites simbólicos corporais na prostituição feminina. Cad Pagu [Internet]. 2015 [cited 2020 Sep 25];14:181-200. Available from: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635351
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
,88 Broqua C, Deschamps C. Transactions sexuelles et imbrication des rapports de pouvoir. In: L’échange economico-sexuel. Paris: Éditions EHESS; 2014; p. 7-17.). Além disso, em consonância aos resultados de estudos anteriores, possivelmente é com a renda oriunda do exercício do trabalho sexual que acessam serviços de saúde privados, para manter o atendimento às suas demandas de saúde sem necessariamente expor sua atividade laboral(11 Leite GS, Murray L, Lenz F. The Peer and Non-peer: the potential of risk management for HIV prevention in contexts of prostitution. Rev Bras Epidemiol. 2015;18(Suppl 1):7-25. https://doi.org/10.1590/1809-4503201500050003
https://doi.org/10.1590/1809-45032015000...
-22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271...
).

Outrossim, cabe destacar que, nas RS do grupo de mulheres em questão, fez-se presente que o cuidado com a saúde pode remeter à preocupação com a aparência física e manutenção do corpo que atenda aos padrões exigidos, para mulheres em sociedade, regidos e pautados na cultura machista e capitalista: silhueta esguia, com aparência saudável, de preferência com os contornos corporais delimitados (glúteos e músculos das pernas tonificados). Também é mais uma necessidade imposta às mulheres que atuam no trabalho sexual, para que tenham mais possibilidades de ofertar seus serviços aos homens que tendem a pagar ‘mais’(11 Leite GS, Murray L, Lenz F. The Peer and Non-peer: the potential of risk management for HIV prevention in contexts of prostitution. Rev Bras Epidemiol. 2015;18(Suppl 1):7-25. https://doi.org/10.1590/1809-4503201500050003
https://doi.org/10.1590/1809-45032015000...
,33 Beauvoir S. O Segundo Sexo II: a experiência vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2016. 498 p.

4 França M. A vida pessoal de trabalhadoras do sexo: dilemas de mulheres de classes populares. Sex Salud Soc. 2017;(25):134-55. https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2017.25.07.a
https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2...
-55 Pasini E. Limites simbólicos corporais na prostituição feminina. Cad Pagu [Internet]. 2015 [cited 2020 Sep 25];14:181-200. Available from: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635351
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
,88 Broqua C, Deschamps C. Transactions sexuelles et imbrication des rapports de pouvoir. In: L’échange economico-sexuel. Paris: Éditions EHESS; 2014; p. 7-17.). Essa pode ser mais uma faceta do capitalismo, quando elas têm nas RS da QV uma relação da renda e da manutenção saudável do corpo, não necessariamente com a especificidade da prostituição em si, mas sim como uma característica voltada ao contexto do trabalho no mundo capitalista(55 Pasini E. Limites simbólicos corporais na prostituição feminina. Cad Pagu [Internet]. 2015 [cited 2020 Sep 25];14:181-200. Available from: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635351
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
).

Este estudo trouxe à tona as RS de trabalhadoras sexuais do alto sertão produtivo baiano sobre QV, associada ao dinheiro/renda como forma de obtenção de vida saudável, segurança, saúde mental, proteção, cuidado e amor próprio. A saúde é fator determinante para o desempenho do labor, visto que elas trazerem nas RS o autocuidado, o equilíbrio emocional e espiritual, limites impostos para manutenção da intimidade, pois, no mundo do trabalho capitalista, há exigência de profissionais saudáveis para manutenção da produção(22 Couto PLS, Gomes AMT, Porcino C, Rodrigues VV, Vilela ABA, Flores TS, et al. Between money, self-esteem and the sexual act: social representations of female sexual satisfaction for sex workers. Rev Eletr Enferm. 2020;22(59271):1-8. https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271
https://doi.org/10.5216/ree.v22.59271...
,55 Pasini E. Limites simbólicos corporais na prostituição feminina. Cad Pagu [Internet]. 2015 [cited 2020 Sep 25];14:181-200. Available from: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635351
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
,88 Broqua C, Deschamps C. Transactions sexuelles et imbrication des rapports de pouvoir. In: L’échange economico-sexuel. Paris: Éditions EHESS; 2014; p. 7-17.).

Limitações do estudo

Os fatores limitantes foram as restrições do universo de estudo que permitiu apresentar as RS de um grupo populacional segmentado, associadas a um único contexto, dentre os diversos existentes no Brasil. O objeto de estudo envolve um tema permeado de estigmas e preconceitos, que é o serviço sexual, exercido por mulheres, impossibilitando que mais mulheres participassem, por vergonha ou medo de exposição. Por isso, sugere-se a realização de novas pesquisas que transversalizam TRS, QV e serviço sexual em outras regiões do país, a fim de ampliar discussões sobre o estudo.

Contribuição para as áreas da enfermagem, saúde, ou políticas públicas

Os resultados possibilitarão aos profissionais de saúde, sobretudo enfermeiros, repensar e refletir na importância em dispensar um atendimento humanizado, acolhedor, empático, ancorado em uma escuta ativa terapêutica, livre de julgamentos, preconceitos, estigmas e discriminação, com base no interesse de atualização constante sobre as demandas oriundas de mulheres inseridas no serviço sexual. Reflexões sobre a assitência destinada às trabalhadoras sexuais devem centrar em ações pautadas na promoção da dignidade da pessoa humana, a fim de que a atenção prestada seja universal, integral e equânime.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As trabalhadoras sexuais revelaram em suas RS que a QV perpassa pelo dinheiro conquistado com o serviço sexual, por propiciar meios para aquisição de bens materiais e sustento de si e da família, aspectos que compõem o entendimento que elas possuem sobre os itens essenciais para obtenção de bem-estar e de uma vida saudável. Conforme os significados representacionais presentes nos discursos, ter vida saudável, equilíbrio das emoções e sentimentos positivos, assim como segurança no dia a dia da profissão, remetem ao delineamento teórico da QV apresentado pela OMS. A busca pelo divino e a crença em Deus foram atreladas à noção da QV e ao alcance dela, pois é um meio de ter as emoções e os sentimentos harmonizados com o “eu” interior, fundamentais para o enfrentamento das situações de vulnerabilidades.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Maria Itayra Padilha

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Abr 2022
  • Aceito
    02 Out 2022
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