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Sofrimento mental no cotidiano familiar: trajetória temporal segundo Merleau-Ponty

RESUMO

Objetivos:

descrever a experiência da família em relação ao cotidiano com o familiar em sofrimento mental.

Métodos:

estudo qualitativo, descritivo, do tipo fenomenológico, fundamentado na ontologia da experiência de Merleau-Ponty, realizado em dez domicílios de uma cidade do estado da Bahia (Brasil), onde residem os 24 participantes das Rodas de Intersubjetividade. As descrições produzidas foram submetidas à técnica Analítica da Ambiguidade.

Resultados:

as descrições foram categorizadas em: ausência como potência criadora do sentido de “ser” e “não ser família”; e exclusão e acolhimento como expressão do sofrimento mental no contexto da família.

Considerações Finais:

a experiência do sofrimento mental no cotidiano da família é marcada por sentimentos ambíguos, como alegria e tristeza, decepção e satisfação, desamor e amor. Entretanto, a vivência desses sentimentos pode mobilizar o desejo de “tornar-se” família, aumentar o senso de autonomia e independência, e impulsionar a formação de novas configurações familiares.

Descritores:
Saúde Mental; Relações Familiares; Filosofia; Enfermagem; Serviços Comunitários de Saúde Mental.

ABSTRACT

Objectives:

to describe the family’s experience in relation to daily life with a family member experiencing mental suffering.

Methods:

a qualitative, descriptive, phenomenological study grounded in Merleau-Ponty’s ontology of experience was conducted in ten households in a city in the state of Bahia, Brazil, where 24 participants of the Intersubjectivity Wheels reside. The descriptions produced were subjected to the Ambiguity Analytics technique.

Results:

the descriptions were categorized into: absence as a creative power of the sense of “being” and “not being a family”; and exclusion and acceptance as expressions of mental suffering in the family context.

Final Considerations:

the experience of mental suffering in the family’s daily life is marked by ambiguous feelings, such as joy and sadness, disappointment and satisfaction, lack of love and love. However, experiencing these feelings can mobilize the desire to “become” a family, increase the sense of autonomy and independence, and drive the formation of new family configurations.

Descriptors:
Mental Health; Family Relations; Philosophy; Nursing; Community Mental Health Services

RESUMEN

Objetivos:

describir la experiencia de la familia en relación con la vida diaria de un miembro familiar que experimenta sufrimiento mental.

Métodos:

se realizó un estudio cualitativo, descriptivo y fenomenológico basado en la ontología de la experiencia de Merleau-Ponty en diez hogares de una ciudad en el estado de Bahía, Brasil, donde residen 24 participantes de los Círculos de Intersubjetividad. Las descripciones producidas fueron sometidas a la técnica de Análisis de Ambigüedad.

Resultados:

las descripciones se clasificaron en: la ausencia como un poder creativo del sentido de “ser” y “no ser una familia”; y la exclusión y aceptación como expresiones del sufrimiento mental en el contexto familiar.

Consideraciones Finales:

la experiencia del sufrimiento mental en la vida diaria de la familia está marcada por sentimientos ambiguos, como alegría y tristeza, decepción y satisfacción, falta de amor y amor. Sin embargo, experimentar estos sentimientos puede movilizar el deseo de “convertirse” en una familia, aumentar el sentido de autonomía e independencia, y promover la formación de nuevas configuraciones familiares.

Descriptores:
Salud Mental; Relaciones Familiares; Filosofía; Enfermería; Servicios Comunitarios de Salud Mental

INTRODUÇÃO

A apropriação da loucura pelo saber psiquiátrico, que a tornou administrável, medicalizou e lhe deu status de doença, fez com que ao louco restasse apenas a exclusão do seio sociofamiliar(11 Venturini E. A linha curva: o espaço e o tempo da desinstitucionalização. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016.

2 Rosa LCS, Silva EKB. Família na política brasileira de saúde mental, álcool e outras drogas. SER Soc. 2019;21(44):199-22. https://doi.org/10.26512/ser_social.v21i44.23491
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3 Almeida MHS, Mendonça ES. Um olhar à família: ressonâncias psicossociais em familiares que convivem com uma pessoa em situação de transtorno mental. Barbarói. 2017;49:1-24. https://doi.org/10.17058/barbaroi.v0i49.6617
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-44 Santos DVS, Rosa LCS. Reforma psiquiátrica, famílias e estratégias de cuidado: uma análise sobre o cárcere privado na saúde mental. Libertas [Internet]. 2016 [cited 2020 Jun 3];16(2):25-36. Available from: http://ojs2.ufjf.emnuvens.com.br/libertas/article/view/18437/9627
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). O isolamento nos manicômios foi justificado de forma ambígua, visto que, ora a psiquiatria responsabilizava a família pelo adoecimento, ora a colocava em condição de vítima(22 Rosa LCS, Silva EKB. Família na política brasileira de saúde mental, álcool e outras drogas. SER Soc. 2019;21(44):199-22. https://doi.org/10.26512/ser_social.v21i44.23491
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3 Almeida MHS, Mendonça ES. Um olhar à família: ressonâncias psicossociais em familiares que convivem com uma pessoa em situação de transtorno mental. Barbarói. 2017;49:1-24. https://doi.org/10.17058/barbaroi.v0i49.6617
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4 Santos DVS, Rosa LCS. Reforma psiquiátrica, famílias e estratégias de cuidado: uma análise sobre o cárcere privado na saúde mental. Libertas [Internet]. 2016 [cited 2020 Jun 3];16(2):25-36. Available from: http://ojs2.ufjf.emnuvens.com.br/libertas/article/view/18437/9627
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-55 Santos QG, Silva GWS, Sobreira MVS, Miranda FAN. Mental health services in the Brazilian psychiatric reform from the family perspective: an integrative review. Rev Pesqui Cuid Fundam. 2016;8(1):3740-57. https://doi.org/10.9789/2175-5361.rpcfo.v8.3944
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). A relação da família com o ‘louco’ limitou-se ao papel de encaminhamento ao hospício para receber cuidados médicos, além de visitação e fornecimento de informações relativas ao seu histórico(22 Rosa LCS, Silva EKB. Família na política brasileira de saúde mental, álcool e outras drogas. SER Soc. 2019;21(44):199-22. https://doi.org/10.26512/ser_social.v21i44.23491
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).

As propostas de desinstitucionalização, impulsionadas no Brasil na década de 1970 pelo movimento da Reforma Psiquiátrica, compõem o projeto de substituição das práticas psiquiátricas pelo cuidado realizado na comunidade, com o envolvimento das famílias(11 Venturini E. A linha curva: o espaço e o tempo da desinstitucionalização. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016.,44 Santos DVS, Rosa LCS. Reforma psiquiátrica, famílias e estratégias de cuidado: uma análise sobre o cárcere privado na saúde mental. Libertas [Internet]. 2016 [cited 2020 Jun 3];16(2):25-36. Available from: http://ojs2.ufjf.emnuvens.com.br/libertas/article/view/18437/9627
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,66 Soares RH, Oliveira MAF, Pinho PH. Psychosocial care assessment of alcohol and drug patients from the perspective of family members. Psicol Soc. 2019;31:1-15. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2019v31214877
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). Assim, o modelo de atenção psicossocial passou a orientar o compartilhamento do protagonismo do cuidado por usuários e familiares, de modo a pautar a reinserção social em termos de complexidade e existência(55 Santos QG, Silva GWS, Sobreira MVS, Miranda FAN. Mental health services in the Brazilian psychiatric reform from the family perspective: an integrative review. Rev Pesqui Cuid Fundam. 2016;8(1):3740-57. https://doi.org/10.9789/2175-5361.rpcfo.v8.3944
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,77 Siqueira DF, Xavier MS, Serbim AK, Terra MG. Redes sociais de apoio no cuidado à pessoa com transtorno mental: reflexões. Rev Enferm UFSM. 2018;8(4):859-69. https://doi.org/10.5902/2179769226118
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).

Esse modelo de cuidado demanda a criação de uma Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) que ofereça suporte à família para reconhecer as mudanças cotidianas emergentes sob o signo de diferentes configurações e dinâmicas e adaptar-se a elas(88 Kublikowski I, Rodrigues CM. "Kangaroo generations": new contexts, new experiences. Estud Psicol. 2016;33(3):535-42. https://doi.org/10.1590/1982-02752016000300016
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). Tais mudanças ocorrem no ciclo da vida individual e familiar e são próprias do desenvolvimento humano, no contexto das transformações políticas, culturais, demográficas, entre outras, que, de alguma forma, repercutem nas famílias(77 Siqueira DF, Xavier MS, Serbim AK, Terra MG. Redes sociais de apoio no cuidado à pessoa com transtorno mental: reflexões. Rev Enferm UFSM. 2018;8(4):859-69. https://doi.org/10.5902/2179769226118
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8 Kublikowski I, Rodrigues CM. "Kangaroo generations": new contexts, new experiences. Estud Psicol. 2016;33(3):535-42. https://doi.org/10.1590/1982-02752016000300016
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9 Covelo BSR, Badaró-Moreira MI. Links between family and mental health services: family members’ participation in care for mental distress. Interface (Botucatu). 2015;19(55):1133-44. https://doi.org/10.1590/1807-57622014.0472
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-1010 Cacciacarro MF, Macedo RMS. A família contemporânea e seus valores: um olhar para a compreensão parental. Psicol Rev (Belo Horizonte). 2018;24(2):381-401. https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2018v24n2p381-401
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).

O envolvimento familiar no cuidado torna-se mais evidente à medida que um de seus integrantes passa por um sofrimento que demanda a reorganização do grupo para lidar com a nova situação e depende do potencial do qual a família dispõe para ressignificar o passado, o presente e o futuro, de modo a fazer mover o circuito solidário entre seus entes(1111 Costa GM. A importância da família nas práticas de cuidado no campo da Saúde Mental. Cad ESP/CE [Internet]. 2014 [cited 2020 Jun 3];8(1):41-57. Available from: http://cadernos.esp.ce.gov.br/index.php/cadernos/article/view/75/81
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-1212 Souza IP, Araújo LFS, Bellato R. Gift and care during the time lived with the family. Rev Pesqui Cuid Fundam. 2017;9(4):990-98. https://doi.org/10.9789/2175-5361.rpcfo.v9.5650.
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). Nessa compreensão, o cuidado engloba modos de ser envoltos em valores, atitudes, empatia e afetos que possibilitam às pessoas cuidarem do semelhante ao mesmo tempo em que cuidam de si mesmas(1212 Souza IP, Araújo LFS, Bellato R. Gift and care during the time lived with the family. Rev Pesqui Cuid Fundam. 2017;9(4):990-98. https://doi.org/10.9789/2175-5361.rpcfo.v9.5650.
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).

Em decorrência das transformações e necessidades sentidas por famílias que vivenciam o sofrimento mental, vários atores sociais têm tentado apoiá-las: desde líderes religiosos, médicos, pedagogos, até, mais recentemente, os terapeutas de família, todos buscando construir alianças e bons encontros(33 Almeida MHS, Mendonça ES. Um olhar à família: ressonâncias psicossociais em familiares que convivem com uma pessoa em situação de transtorno mental. Barbarói. 2017;49:1-24. https://doi.org/10.17058/barbaroi.v0i49.6617
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). Entre os profissionais de saúde, destacam-se os da enfermagem, que, por meio de consultas, atividades de grupo e visitas domiciliares, entre outras ações, têm buscado desenvolver relações terapêuticas pautadas na escuta, no diálogo e no atendimento às necessidades desveladas por meio da intersubjetividade, construída com as famílias(66 Soares RH, Oliveira MAF, Pinho PH. Psychosocial care assessment of alcohol and drug patients from the perspective of family members. Psicol Soc. 2019;31:1-15. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2019v31214877
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-77 Siqueira DF, Xavier MS, Serbim AK, Terra MG. Redes sociais de apoio no cuidado à pessoa com transtorno mental: reflexões. Rev Enferm UFSM. 2018;8(4):859-69. https://doi.org/10.5902/2179769226118
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,1313 Carvalho PAL, Moura MS, Carvalho VT, Reis MCS, Lima CBO, Sena ELS. The family in the psychosocial rehabilitation of people with mental suffering. Rev Enferm UFPE. 2016;10(5):1701-8. https://doi.org/10.5205/reuol.9003-78704-1-SM.1005201616
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-1414 Brischiliari A, Bessa JB, Waidman MAP, Marcon SS. Conception of family members of people with mental disorders on self-help groups. Rev Gaúcha Enferm. 2014;35(3):29-35. https://doi.org/10.1590/1983-1447.2014.03.41015
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).

Nesse contexto, a família tanto pode ser considerada uma extensão de seu integrante com sofrimento mental quanto uma rede de apoio informal para ele, de modo que a sua participação no cuidado pode fortalecer laços afetivos e auxiliar em suas relações sociais(77 Siqueira DF, Xavier MS, Serbim AK, Terra MG. Redes sociais de apoio no cuidado à pessoa com transtorno mental: reflexões. Rev Enferm UFSM. 2018;8(4):859-69. https://doi.org/10.5902/2179769226118
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,99 Covelo BSR, Badaró-Moreira MI. Links between family and mental health services: family members’ participation in care for mental distress. Interface (Botucatu). 2015;19(55):1133-44. https://doi.org/10.1590/1807-57622014.0472
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). Essa compreensão tem impulsionado os profissionais da saúde a desenvolverem práticas voltadas ao reconhecimento e à valorização de situações cotidianas que mobilizam o cuidado no território, por meio de iniciativas de educação permanente, que possibilitem a construção de conhecimentos, autonomia, empoderamento e reinserção social(77 Siqueira DF, Xavier MS, Serbim AK, Terra MG. Redes sociais de apoio no cuidado à pessoa com transtorno mental: reflexões. Rev Enferm UFSM. 2018;8(4):859-69. https://doi.org/10.5902/2179769226118
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,1515 Vasconcelos EM. As abordagens anglo-saxônicas de empoderamento e recovery (recuperação, restabelecimento) em saúde mental: uma apresentação histórica e conceitual para o leitor brasileiro. Cad Bras Saúde Mental[Internet]. 2017 [cited 2020 Jun 3];9(21):31-47. Available from: http://stat.ijie.incubadora.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/4675/4859
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-1616 Firmo AAM, Jorge MSB. Experiences of caregivers of people with mental illness in the face of psychiatric reform: production care, autonomy, empowerment and solvability. Saúde Soc. 2015;24(1):217-31. https://doi.org/10.1590/S0104-12902015000100017
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).

Embora os autores consultados(66 Soares RH, Oliveira MAF, Pinho PH. Psychosocial care assessment of alcohol and drug patients from the perspective of family members. Psicol Soc. 2019;31:1-15. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2019v31214877
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-77 Siqueira DF, Xavier MS, Serbim AK, Terra MG. Redes sociais de apoio no cuidado à pessoa com transtorno mental: reflexões. Rev Enferm UFSM. 2018;8(4):859-69. https://doi.org/10.5902/2179769226118
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,99 Covelo BSR, Badaró-Moreira MI. Links between family and mental health services: family members’ participation in care for mental distress. Interface (Botucatu). 2015;19(55):1133-44. https://doi.org/10.1590/1807-57622014.0472
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,1313 Carvalho PAL, Moura MS, Carvalho VT, Reis MCS, Lima CBO, Sena ELS. The family in the psychosocial rehabilitation of people with mental suffering. Rev Enferm UFPE. 2016;10(5):1701-8. https://doi.org/10.5205/reuol.9003-78704-1-SM.1005201616
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-1414 Brischiliari A, Bessa JB, Waidman MAP, Marcon SS. Conception of family members of people with mental disorders on self-help groups. Rev Gaúcha Enferm. 2014;35(3):29-35. https://doi.org/10.1590/1983-1447.2014.03.41015
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) evidenciem sua concordância quanto à importância das ações de cuidado à família, não foram encontrados discussões e trabalhos que sistematizassem um conhecimento contextualizado a respeito da percepção da família sobre o modo como a instabilidade e a imprevisibilidade cotidiana interferem na saúde e no sofrimento de seus integrantes. A vivência no campo da saúde mental tem permitido a aproximação com as famílias que vivenciam o sofrimento mental e tem oferecido espaço de escuta da experiência do sofrimento em seu cotidiano, como um desenrolar do tempo, uma experiência atual entrelaçada a um passado que se impõe, mas que não se mantém como um eterno presente.

A temática do estudo é fundamental, tendo em vista que o potencial para a promoção da (des)institucionalização por parte de famílias que experimentam o sofrimento em seu cotidiano pode lançar mais luz sobre o fenômeno, vez que a família pode se configurar como um cenário propício à construção de autonomia, empoderamento e reinserção social.

Essa reflexão nos permitiu compreender que, assim como o cotidiano se constitui de eventos dinâmicos, experiências de sofrimento mental também podem mostrar-se de forma dinâmica e ambígua, tanto no seio de uma mesma família quanto nas diferentes famílias.

OBJETIVOS

Descrever a experiência de famílias no convívio cotidiano com o familiar em sofrimento mental.

MÉTODOS

Aspectos éticos

A pesquisa atendeu aos critérios éticos estabelecidos pela Resolução nº 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde, tendo sido aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Para garantir o anonimato, os usuários participantes do Centro de Atenção Psicossocial II (CAPS II) escolheram codinome de aves; os demais integrantes da família, de animais. A gravação das descrições vivenciais foi autorizada pelos participantes com a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Referencial teórico-metodológico

O estudo valeu-se do referencial fenomenológico de Maurice Merleau-Ponty, que aborda a temporalidade trazendo a noção de que a consciência se organiza em relação ao fluir do tempo(1717 Merleau-Ponty M. O visível e o invisível. 4. ed. São Paulo: Perspectiva; 2014.). Essa abordagem foi construída a partir da compreensão de que o passado, como um não-saber de si (corpo habitual) surge apoiado à experiência presente (corpo atual), como um lançar-se ao futuro (corpo perceptivo), uma abertura de vir a ser(1717 Merleau-Ponty M. O visível e o invisível. 4. ed. São Paulo: Perspectiva; 2014.-1818 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2018.). Para Merleau-Ponty, essa simultaneidade aparece no contato do sujeito perceptivo com o mundo, “como se a visibilidade que anima o mundo sensível emigrasse não para fora do corpo, mas para outro corpo menos pesado, mais transparente, como se mudasse de carne, abandonando a do corpo pela da linguagem”(1717 Merleau-Ponty M. O visível e o invisível. 4. ed. São Paulo: Perspectiva; 2014.).

Tipo de estudo

Trata-se de uma pesquisa descritiva, de abordagem qualitativa, do tipo fenomenológica. Foi utilizado para nortear a metodologia, o Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ).

Procedimentos metodológicos

Cenário do estudo

O estudo foi desenvolvido no período de julho de 2017 a junho de 2018, em uma cidade do estado da Bahia, Brasil, nos domicílios dos 24 participantes que integraram as 10 famílias de usuários de um CAPS II. O procedimento para a seleção das famílias ocorreu em reunião realizada no serviço, onde treze usuários demonstraram interesse e indicaram outros membros de suas famílias para participar da pesquisa. No entanto, três usuários desistiram de participar.

Fonte de dados

O estudo foi desenvolvido com 10 famílias, das quais participaram das produções vivenciais 24 familiares que experienciam o convívio cotidiano com o sofrimento mental. Utilizou-se para seleção dos familiares os seguintes critérios: ser maior de dezoito anos; ser usuário do CAPS II ou familiar (considerando que só puderam participar aquelas famílias que tivessem ao menos um de seus membros cadastrado no serviço); e ser pessoa significativa para a família, mesmo não possuindo laço consanguíneo. No que se refere às características dos entrevistados, a maioria ganha um salário mínimo, tem ensino fundamental, é de religião protestante e idade entre 18 a 77 anos.

Coleta e organização dos dados

A produção das descrições vivenciais, com duração média de 50 minutos, ocorreu por meio da realização de vinte e quatro entrevistas fenomenológicas, dez Rodas de Intersubjetividade realizadas nos domicílios e uma Roda de Intersubjetividade desenvolvida na UESB, sob a condução da primeira autora deste texto, sempre acompanhada por uma das co-autoras. Neste artigo, apresentamos algumas descrições que surgiram mediante o diálogo decorrente das rodas de intersubjetividade, que foram norteadas pela seguinte reflexão: no modelo manicomial a pessoa em crise estaria sujeita à internação, mas o modelo psicossocial orienta que o tratamento deva ocorrer no território, por meio da inserção dos diversos dispositivos e das relações com pessoas significativas; o hospital psiquiátrico seria o último recurso.

Ao construirmos a estratégia das rodas de intersubjetividade, buscamos inspiração nas rodas de conversa, que constituem espaços de transformação, que mobiliza uma discussão aberta e dialógica(1919 Ferrari Filho CA, Freitas LHM, Callegari MCB, Lewkowicz AB, Freitas MFLC, Costa R, et al. Rodas de conversa entre educação e psicanálise: um projeto de pesquisa. Rev Psicanal[Internet]. 2019 [cited 2020 Jun 3];26(3):523-36. Available from: http://revista.sppa.org.br/index.php/RPdaSPPA/article/view/470/490
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), com momentos de escuta e de fala entre vários interlocutores que constroem percepções mediante a interação com o outro(2020 Adamy EK, Zocche DAA, Vendruscolo C, Santos JLG, Almeida MA. Validation in grounded theory: conversation circles as a methodological strategy. Rev Bras Enferm. 2018;71(6):3299-304. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0488
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), com vistas a uma maior adequação ao referencial teórico filosófico utilizado. Propõe-se compreender as vivências por meio do “retorno às coisas mesmas”, ocorrendo como uma retomada do mundo vivido intuitivamente(1818 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2018.).

As rodas de intersubjetividade foram iniciadas mediante a apresentação de um texto contendo o retrato do território onde as famílias habitam, oriundo da experiência descrita por cada participante, durante as entrevistas fenomenológicas. Essa denominação foi inspirada em uma noção de Clínica que considera o perambular das pessoas em sofrimento mental pelo território como possibilidade para desenvolver experiências clínicas que envolvem a descoberta de dispositivos que contribuem para a reinserção social(2121 Borges SAC, Duarte MJO. Surfando no controle: os lugares que os agentes comunitários ocupam na produção de saúde mental. Saúde Debate. 2017;41(114):920-31. https://doi.org/10.1590/0103-1104201711420
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).

Etapas do trabalho

As rodas de intersubjetividade foram realizadas conforme as seguintes etapas: apresentação do projeto de pesquisa, acolhimento e integração entre pesquisadoras e famílias durante reunião no CAPS II (ambientação); leitura do texto contendo o retrato do território; construção do mapa do “eu posso” (forma de apresentar os espaços sociais que apareceram na síntese peripatética em figuras ilustrativas, posicionadas em papel madeira como imagem única); jogo das redes (forma lúdica de levar a família a refletir sobre as possibilidades de inserção pelo território, mediante utilização de pincéis atômicos para ligar as figuras contidas no mapa do “eu posso”, justificando o porquê da escolha); encerramento (avaliação da atividade).

Análise dos dados

As entrevistas fenomenológicas e as rodas de intersubjetividade cessaram quando a essência do fenômeno foi revelada. As transcrições dos textos resultantes das rodas de intersubjetividade foram submetidas à Analítica da Ambiguidade, que consiste em uma estratégia de compreensão de descrições vivenciais originárias de estudos de base fenomenológica e ocorre na perspectiva de que, enquanto estamos lendo o material empírico, sentimos algo com o qual nos identificamos e “somos capturados por uma experiência inédita que nos faz trazer para o presente um mundo que nos é estranho, mas que, ao mesmo tempo, parece-nos familiar”(2222 Sena EL, Ribeiro BS, Santos VC, Meira VS, Malhado S, Carvalho PA. Percepção de familiares sobre a reabilitação psicossocial de alcoolistas. Rev Cuba Enferm[Internet]. 2019 [cited 2020 Jun 3];35(1). Available from: http://www.revenfermeria.sld.cu/index.php/enf/article/view/1851/421
http://www.revenfermeria.sld.cu/index.ph...
).

A Analítica da Ambiguidade ocorreu conforme as seguintes etapas: realização de leitura primorosa das descrições buscando perceber a relação figura-fundo, que emergia do texto e de suas entrelinhas; identificação de teses que sustentam a objetificação das coisas como um em si; percepção de expressões que revelam ambiguidades e que se caracterizam como perfis de um todo; e, em seguida, categorização(2222 Sena EL, Ribeiro BS, Santos VC, Meira VS, Malhado S, Carvalho PA. Percepção de familiares sobre a reabilitação psicossocial de alcoolistas. Rev Cuba Enferm[Internet]. 2019 [cited 2020 Jun 3];35(1). Available from: http://www.revenfermeria.sld.cu/index.php/enf/article/view/1851/421
http://www.revenfermeria.sld.cu/index.ph...
). As categorias foram apresentadas e ratificadas pelas famílias participantes durante uma roda de intersubjetividade realizada na UESB.

RESULTADOS

A partir da análise percebeu-se as ambiguidades presentes na experiência da família que convive com o sofrimento mental em seu cotidiano, desveladas neste artigo em duas categorias: ausência como potência criadora do sentido de “ser” e “não ser” família; e, exclusão e acolhimento como expressão do sofrimento mental no contexto da família.

Ausência como potência criadora do sentido de ser e não ser família

Nessa categoria, apresentamos descrições dos participantes do estudo que revelam a potência da ausência da família no cotidiano e sinalizam desejo de pertença, afetividade e estruturação, mobilizados pela percepção do “ser” e “não ser” família no contexto do sofrimento mental.

A falta da família apareceu entrelaçada a sentimentos de solidão, tristeza e decepção, que, por um lado, revelam o desejo de afetividade, companhia e atenção, e, por outro, podem produzir independência e autonomia.

[...] sempre morei sozinho. [...] eu tinha minha madrasta em casa e minha irmã, mas, nenhuma interferiu na minha vida. Nunca tive isso de família, meu pai andava viajando. Aprendi a viver sozinho, e, isso, de qualquer forma, não foi só culpa minha porque nunca tive estrutura tive quando morei com minha mãe, ela me estruturava, só que ela foi embora. A culpa hoje foi do meu pai, a pessoa que sou foi graças ao passado. Nunca tive um pai, só o pai da monetarização, porque ele só pagava. Dava um conselho de longe, por telefone. (Pitbull)

[...] ninguém pode viver sozinho. (Ovelha)

[...] não é bem assim! Tem dois lados. [...] passei pela experiência do casamento, e, quando me vejo morando sozinho, às vezes, me sinto muito feliz. Sei que não é saudável morar sozinho. É ter momentos ruins também, momentos de tristeza. (Fênix)

[...] também moro sozinha [risos], gosto muito da minha independência, é dez, é tudo. [...] você não está gostando porque é novo, quer ter uma mulher. Mas, no meu caso, não. (Tigre)

As descrições revelam ambiguidades relacionadas à ausência de apoio da família na figura do pai ou cônjuge do integrante com sofrimento mental, no entanto parece abrir perspectivas para vivências mais gratificantes em experiências futuras.

[...] posso melhorar, porém, a pessoa que foi estruturada desse jeito, nunca vai mudar. [...] a gente volta tudo para o pilar da família [...], sei que a pessoa pode viver sem uma, mas é difícil. Podemos viver sem um pai, mas é difícil. (Pitbull)

[...] É verdade, porque eu também não tive meu pai, quando minha avó morreu, tive que pegar o exemplo de outras pessoas para ser quem eu sou [...]. (Avestruz)

[...] eu tomei como experiência que se eu tiver um filho ou uma filha, vou fazer diferente: a minha esposa, eu não vou trair, não vou ter mais de uma esposa; eu vou cuidar do meu filho; vou ser presente em minha família. (Pitbull)

[...] meu filho gostava de jogar bola e eu também jogava [...]. (Arara)

[...] sempre gostei de jogar bola com os meninos e ele sempre me prendia disso. [...] eu pulava a cerca, eu dava um jeito de ir. (Ursa)

[...] o que a gente viveu no passado junto com o que está vivendo no presente, pegar isso tudo e jogar lá no futuro. Só basta ter força de vontade. [...] quem sabe a gente dá uma sorte na vida, dá um revertério [mudança]! (Arara)

As descrições mostraram que, apesar de os integrantes das famílias residirem na mesma cidade, não há aproximação suficiente para mobilizar a família ao acompanhamento do usuário do CAPS, embora demonstre desejar fazê-lo:

[...] machuca não ter um pai, não ter uma mãe, [...] mas ela [a namorada] veio, ela supriu a minha solidão [...] o que falta hoje, só é acompanhar mais a minha mãe [usuária do CAPS] [...]. (Pitbull)

[...] a vida dele se resume a casa, rede sociais, namorada e trabalho, agora, porque eu estou fora. (Avestruz)

[...] minha tia falou com minha irmã para cuidar de mim, ela [a irmã] disse que eu não estava doente. Quando ela viu que eu ia matar a filha dela, porque eu fiquei surtada, aí ela me internou [...] [ainda hoje], meus irmãos cuidariam de mim, ela não. (Galinha)

[...] ela tem condições financeiras, poderia até ajudar, mas não faz isso. (Rottweiler)

Exclusão e acolhimento como expressão do sofrimento mental no contexto da família

Nessa categoria aparecem descrições que refletem, por um lado, a exclusão da família consanguínea, que se entrelaça à vivência do sofrimento mental e ao individualismo dos seus integrantes; e, por outro lado, o surgimento de uma nova configuração de família pela coexistência de sentimentos como respeito, amizade e alegria, entre usuários do CAPS.

As descrições revelam a exclusão no seio familiar, demonstrada por meio de sentimentos de desinteresse, desunião, desamor, modos de expressar o distanciamento, e da falta de escuta e acolhimento que desconstruiu a tese de que há sempre amor entre a família.

[...] a gente se afastou, ninguém senta para perguntar o que está acontecendo, ninguém quer saber. Somos muito individualistas. [...] fiquei até surpresa de saber que você, achou que a família te excluiu. (Tigre)

Tem muitas exceções, mas que eu senti, eu senti. Eu também tirei essa fala vinda do próprio casamento, pois quando eu adoeci, a gente separou por causa da doença. [...]. (Fênix)

[...] o dever dela [esposa] não era chutar, era ajudar. (Ovelha)

[...] acho que há desunião da parte dos irmãos [...] cada qual quer viver a sua vida, não se importa com o outro, [...] da parte da gente, dos filhos, acho que é falta de afeto mesmo, cada um vive a sua vida, se preocupa, mas não como deveria. Da minha parte, já começou a reconstrução da relação, ele sabe disso, há muito tempo. (Ursa)

[...] filho só gosta do pai se tiver dinheiro. Não tenho isso. Eles podiam pensar que eu tenho problema, que fico lá sozinho, jogado, igual cachorro, e pensar: vou lá ajudar ele em algo. Não queria nada, bastava dar carinho e amor. É mais fácil tu chegar aqui [domicílio], me levar em algum lugar, do que eles [a família], por isso que eu mesmo saio sozinho, viajo para tudo quanto é canto, sozinho. [...]. Esse pessoal quer que a gente morra, quando a pessoa tem amor por outra a gente conhece. (Arara)

Por outro lado, as famílias desvelaram o potencial do diálogo que acontece no CAPS para a transcendência de sentimentos mais gratificantes, como acolhimento, confiança, alegria, amizade e pertença, que compõem novas relações e uma nova configuração de família, como mostram as descrições:

[...] fico triste porque eu não posso ir mais lá [cidade onde morava antes da crise], a família ficou revoltada comigo, porque ele morreu mais por causa da facada que eu dei nele [o marido], porque atingiu a veia do coração dele. Aí a família ficou de mal comigo. [...] gosto de ficar conversando com meus colegas para esquecer o passado, porque ele ainda está na minha cabeça. [No CAPS] fico alegre, parece que nasci de novo, lá, a gente fala a mesma língua, eu me solto, falo tudo, tem muita gente com quem eu gosto de prosear, como se fosse uma família. (Galinha)

[...] na semana que eu estou meio triste, converso com Bambu e já saio de lá [do CAPS II] renovado. Um lugar essencial, um porto seguro, o CAPS é um lugar assim [...]. (Fênix)

[...] quando você sai com uma pessoa que você gosta, não vai nem perceber a multidão que está em volta. [...] conversar sobre alguns assuntos e tal, isso é maravilhoso. (Tigre)

[...] Um dia, Cisne falou: Arara, a gente não pode ficar com raiva, não, porque nós somos amigos. Aí, eu falei: mas você xingou minha mãe [...], eu já ia sair do CAPS por sua causa, ele falou: não, não sai capitão. (Arara)

[...] ele incentiva outras pessoas a conviver na sociedade, porque lá [no CAPS] estão vendo o exemplo, um ajudando o outro. (Ursa)

[...] É por isso que eu falo que são minha família, dia a dia nós estamos juntos, somos uma família. (Arara)

DISCUSSÃO

Olhar a experiência do sofrimento mental no cotidiano da família de usuários do CAPS II, à luz da noção de temporalidade, como intencionalidade inerente ao ser, possibilita compreender a atividade temporal do mundo familiar como um turbilhão(1717 Merleau-Ponty M. O visível e o invisível. 4. ed. São Paulo: Perspectiva; 2014.), termo utilizado pelo autor, especialmente, para referir-se à vivência de intercorporeidade que se instala nas relações entre os sujeitos. Nesse turbilhão, ocorre um processo de autoconstituição temporal e, portanto, diferenciação do ser em modos de ser no mundo, mediante a experiência da transcendência suscitada entre os sujeitos, cuja identidade se faz e refaz na relação com o outro(1717 Merleau-Ponty M. O visível e o invisível. 4. ed. São Paulo: Perspectiva; 2014.-1818 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2018.).

A constituição temporal configura-se pela atualização constante do presente, que carrega em si um horizonte de passado, referente à retomada de vividos sociohistóricos e intuições, e um horizonte de futuro, caracterizado como virtualidade prospectiva, preenchida de desejos e esperanças(1717 Merleau-Ponty M. O visível e o invisível. 4. ed. São Paulo: Perspectiva; 2014.). Para Merleau-Ponty, “o passado se adere ao presente, e não a consciência do passado que adere à consciência do presente”(1717 Merleau-Ponty M. O visível e o invisível. 4. ed. São Paulo: Perspectiva; 2014.).

A vivência do sofrimento mental no cotidiano da família constitui um campo fenomenal, no qual os fluxos temporais de seus membros se entrelaçam e vários perfis se manifestam, trazendo consigo ambiguidades. Dentre esses perfis, o sentimento de solidão pelo distanciamento dos integrantes da família fez ver modos de “ser” e “não ser” família, que se atualizam na simultaneidade das dimensões de presença e ausência, visibilidade e invisibilidade, perfis que se mostraram como traços essenciais tanto da experiência percebida quanto da experiência intersubjetiva.

O convite à família para voltar seu olhar à experiência do sofrimento mental desvelou a ausência, tanto como o “não ser” família, quanto como o desejo de “tornar-se” família, na cotidianidade da vida; mostrou a percepção dos participantes do estudo de que a família não acompanha como deveria o integrante com sofrimento mental em seu cotidiano; e, ainda, revelou um horizonte de coexistência que permitiu às famílias reconhecerem a falta de afeto e o individualismo, no lugar da escuta e do entendimento de sua dinâmica vivencial(99 Covelo BSR, Badaró-Moreira MI. Links between family and mental health services: family members’ participation in care for mental distress. Interface (Botucatu). 2015;19(55):1133-44. https://doi.org/10.1590/1807-57622014.0472
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,2323 Avena ME, Rabinovich EP. Novas tecnologias e novos vínculos familiares: repercussões no processo de socialização. Rev Psicol, Divers Saúde. 2016;5(2):164-75. https://doi.org/10.17267/2317-3394rpds.v5i2.873
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).

Essa percepção sobre a falta de afeto e sobre o individualismo, que permeiam as relações entre a família e o integrante com sofrimento mental, relaciona-se à noção de efemeridade de relações que parecem submetidas à lógica do mercado, em que os vínculos estabelecidos com os semelhantes, que deveriam ser duradouros, são tratados como mercadorias e produtos que podem ser substituídos a qualquer tempo(2323 Avena ME, Rabinovich EP. Novas tecnologias e novos vínculos familiares: repercussões no processo de socialização. Rev Psicol, Divers Saúde. 2016;5(2):164-75. https://doi.org/10.17267/2317-3394rpds.v5i2.873
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).

Nessa perspectiva, o afeto e o sentimento de pertença a uma relação ou a um grupo seriam substituídos por relacionamentos fragilizados e esvaziados de humanidade, porém muito mais funcionais na lógica da cultura utilitarista(2323 Avena ME, Rabinovich EP. Novas tecnologias e novos vínculos familiares: repercussões no processo de socialização. Rev Psicol, Divers Saúde. 2016;5(2):164-75. https://doi.org/10.17267/2317-3394rpds.v5i2.873
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). Essa compreensão reverberou nas descrições dos participantes, ao tentarem desconstruir a tese defendida por Galinha, de que “sempre há amor na relação entre pais e filhos”. Eles o fizeram mediante a expressão de sentimentos ambíguos relacionados à falta de atenção e afeto, a exemplo de Arara, que afirma não ter dinheiro para dar aos filhos, e Pitbull, que diz não ter tido um pai presente, só o pai da monetarização.

As descrições também revelam ambiguidades relacionadas ao sentimento de solidão. A vivência de solidão ora se mostra como promotora de independência, autonomia e empoderamento frente à vida, ora como coexistência de sentimentos de tristeza e alegria, desejo de continuar morando sozinho e de buscar companhia. Esse movimento ambíguo da percepção corrobora a suspensão da tese presente nas descrições de que “ninguém pode viver sozinho”. O desejo de buscar companhia ficou mais evidente entre as descrições dos usuários do CAPS II, Fênix e Avestruz, corroborando um estudo que evidencia a necessidade de cuidado e proteção diante da trajetória intensa pela qual comumente passam(2424 Amarante P, Nunes MO. Psychiatric reform in the SUS and the struggle for a society without asylums. Ciênc Saúde Colet. 2018;23(6): 2067-74. https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.07082018
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).

Entretanto, a descrição de Pitbull, “nunca tive família”, desvelou o retorno a sua dimensão sensível, ou seja, o retorno às coisas mesmas, trazendo à tona sentimentos de abandono e desprezo vivenciados na relação com sua irmã e sua madrasta. Essa compreensão representa a ausência da família como um “não ser”, um invisível, que se, por um lado, mostra o distanciamento da família constituída pelo pai, ao casar-se com outra mulher(88 Kublikowski I, Rodrigues CM. "Kangaroo generations": new contexts, new experiences. Estud Psicol. 2016;33(3):535-42. https://doi.org/10.1590/1982-02752016000300016
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,2525 Martins-Súarez FC, Farias RCP. Novos arranjos familiares na contemporaneidade frente ao texto religioso: uma análise sobre o discurso em “defesa” da família. Rev Interd Cult Soc [Internet]. 2016 [cited 2020 Jun 3];2(1):83-108. Available from: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/ricultsociedade/article/view/4562
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), por outro lado, revela o sentido de ser família, fundamentado no desejo de construir relações de respeito, confiança, pertença, estruturação e afetividade.

Assim, a “carne sensível”, descrita por Merleau-Ponty(1717 Merleau-Ponty M. O visível e o invisível. 4. ed. São Paulo: Perspectiva; 2014.-1818 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2018.) como linguagem, experiência da fala, reflexão, promoveu abertura a novas e infindáveis transformações, por meio da comunicação de sentimentos mais gratificantes, tais como afeto, carinho e solidariedade; aspectos que revelam a coexistência com o semelhante, uma generalidade, que mobiliza a transformação da pessoalidade, do ser cultural.

A identificação com uma vivência gratificante promove uma mudança tão radical no “corpo” (percepção) que não percebemos mais onde e quando tudo começou. Ou seja, ao mesmo tempo em que a universalidade do sentir (sentimento de coexistência) nos mobiliza para a alteridade, para estabelecermos novas identificações como seres históricos, ela produz novas coexistências e generalizações(1717 Merleau-Ponty M. O visível e o invisível. 4. ed. São Paulo: Perspectiva; 2014.-1818 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2018.).

Essa compreensão sinaliza a disposição dos participantes do estudo para a transcendência a sentimentos mais gratificantes no futuro, como observado na descrição em que Pitbull revela a intenção de construir uma família nuclear/tradicional idealizada(1010 Cacciacarro MF, Macedo RMS. A família contemporânea e seus valores: um olhar para a compreensão parental. Psicol Rev (Belo Horizonte). 2018;24(2):381-401. https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2018v24n2p381-401
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,2626 Dias MC. Repensar o lugar da família nas políticas públicas. Encontros Teológic. 2016;31(2):357-68. https://doi.org/10.46525/ret.v31i2.66
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). Enquanto desconstrói a tese de que “uma pessoa estruturada de um jeito não pode mudar”, ele reafirma padrões presentes nos comportamentos transmitidos através de gerações(1010 Cacciacarro MF, Macedo RMS. A família contemporânea e seus valores: um olhar para a compreensão parental. Psicol Rev (Belo Horizonte). 2018;24(2):381-401. https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2018v24n2p381-401
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).

A noção de família, expressa por Pitbull, desvela um jeito de ser família como diferenciação e entrelaçamento e corrobora o estudo que evidencia o papel da família na sociedade como identidade relacional generativa e de reconhecimento interpessoal, envolvendo a estrutura “natural” como processo de geração, transmissão e expectativa de transformação cultural(2727 Fornasier RC. Memória e família na sociologia de Pierpaolo Donati e na antropologia de Francesco Botturi. Memorandum [Internet]. 2018 [cited 2020 Jun 3];35:100-14. Available from: https://periodicos.ufmg.br/index.php/memorandum/article/view/6889/4424
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). Ao mesmo tempo em que as descrições revelam o desejo de ressignificar a convivência familiar, elas mostram a necessidade do envolvimento afetivo e do tornar-se fonte de esperança, felicidade, solidariedade e criatividade(1212 Souza IP, Araújo LFS, Bellato R. Gift and care during the time lived with the family. Rev Pesqui Cuid Fundam. 2017;9(4):990-98. https://doi.org/10.9789/2175-5361.rpcfo.v9.5650.
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,2626 Dias MC. Repensar o lugar da família nas políticas públicas. Encontros Teológic. 2016;31(2):357-68. https://doi.org/10.46525/ret.v31i2.66
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).

Do mesmo modo, a percepção dos participantes sobre exclusão e acolhimento no contexto da família não se mostrou como uma assimilação de significações linguísticas silenciosas, mas como uma estrutura diacrítica que forneceu um conjunto de desvios, intervalos e descontinuidades entre os componentes sensíveis dos objetos percebidos que se desvelaram de modo ambíguo(1717 Merleau-Ponty M. O visível e o invisível. 4. ed. São Paulo: Perspectiva; 2014.-1818 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2018.); ora, como abandono, solidão e ausência por parte da família consanguínea, e, ora, como acolhimento, amizade e presença por parte de outros usuários e dos profissionais do CAPS, que se tornaram como uma família para os integrantes da família que vivenciam o sofrimento mental.

A intersubjetividade com os participantes possibilitou observar um jeito de ser família em cuja relação entre os membros, não obstante haja consanguinidade, coexistem sentimentos de distanciamento, desinteresse, exclusão, desunião, desamor e falta de escuta e acolhimento. São essas vivências ambíguas que desconstroem a tese de que “sempre há amor entre os familiares”. Porém, estudos destacam que o processo de identificação com a família sugere o reconhecimento do amor que existe entre seus membros, partindo do pressuposto de que se ama quando se percebe no outro o reconhecimento da própria necessidade de amar e sentir-se amado(1212 Souza IP, Araújo LFS, Bellato R. Gift and care during the time lived with the family. Rev Pesqui Cuid Fundam. 2017;9(4):990-98. https://doi.org/10.9789/2175-5361.rpcfo.v9.5650.
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,2323 Avena ME, Rabinovich EP. Novas tecnologias e novos vínculos familiares: repercussões no processo de socialização. Rev Psicol, Divers Saúde. 2016;5(2):164-75. https://doi.org/10.17267/2317-3394rpds.v5i2.873
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) - isso se compreendermos o poder do amor para tornar-se meio simbólico generalizado de intercâmbio entre a família e a sociedade inteira(2323 Avena ME, Rabinovich EP. Novas tecnologias e novos vínculos familiares: repercussões no processo de socialização. Rev Psicol, Divers Saúde. 2016;5(2):164-75. https://doi.org/10.17267/2317-3394rpds.v5i2.873
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).

Ao desvelar o potencial do diálogo entre seus integrantes e outros usuários do CAPS II, as famílias fizeram ver a vivência do amor entrelaçado a sentimentos gratificantes, como acolhimento, respeito, confiança, alegria e amizade, que evidenciam tanto relações de cuidado quanto a constituição de uma nova configuração de família, aquela que fortalece o sentido de pertença, de estar entre iguais(2323 Avena ME, Rabinovich EP. Novas tecnologias e novos vínculos familiares: repercussões no processo de socialização. Rev Psicol, Divers Saúde. 2016;5(2):164-75. https://doi.org/10.17267/2317-3394rpds.v5i2.873
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).

A imersão no contexto vivencial dos participantes do estudo possibilitou compreender que o diálogo sobre a experiência do sofrimento mental no cotidiano da família existe entre “dois silêncios”: o da “expressão à experiência muda, ignorante de seu próprio sentido”, mas que pode romper nosso contato com as coisas e nos “tirar do estado de confusão” em que nos achávamos com as coisas todas para nos “despertar para a verdade de sua presença, para tornar sensíveis seu relevo e nosso traço de união com elas”; e o da linguagem ao “enigma do ser, que, para além do movimento das puras significações, se perfila à massa silenciosa do discurso, aquilo que não é da ordem do dizível”(1717 Merleau-Ponty M. O visível e o invisível. 4. ed. São Paulo: Perspectiva; 2014.).

A intersubjetividade construída no estudo demonstrou a necessidade de se conduzir com sensibilidade a aproximação com as famílias que vivenciam o sofrimento mental, com intuito de produzir diálogos, vínculos e abertura de espaço à ressignificação de modos de ser família, no sentido de reconhecer que ambiguidades como tristeza e alegria, amor e ódio, orgulho e decepção são inerentes à natureza humana e, portanto, fazem parte do cotidiano da família.

Portanto, essa aproximação às famílias mostra a necessidade de mobilizar a sensibilidade do enfermeiro e de outros profissionais do campo da saúde mental com relação ao desejo de construir caminhos criativos e solidários para atuar no contexto da família, que vivencia o sofrimento mental como um retornar às coisas mesmas.

Essa sensibilidade dos profissionais de saúde é importante para lidar com ambiguidades que eventualmente os familiares possam despertar no cotidiano do serviço, uma vez que ora a família pode ser percebida como corresponsável pelo cuidado, ora pode ser vista como carente de cuidados. A ambiguidade entre cuidar e ser cuidado parece constituir-se como um desafio para os profissionais de saúde, pois o familiar que cuida também precisa ser cuidado(2828 Soares CJ, Sena ELS, Malhado SCB, Carvalho PAL, Santos VTC, Ribeiro BS. Inclusão da família na reabilitação psicossocial de consumidores de drogas: cuidar e ser cuidada. Enferm Foco. 2021;12(1):7-12. https://doi.org/10.21675/2357-707X.2021.v12.n1.3298
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).

A família também é percebida pela equipe de saúde como essencial no processo de reabilitação psicossocial, uma vez que o paradigma de atenção à saúde mental tem como principal objetivo o compartilhamento de responsabilidades frente às ações de cuidado(2828 Soares CJ, Sena ELS, Malhado SCB, Carvalho PAL, Santos VTC, Ribeiro BS. Inclusão da família na reabilitação psicossocial de consumidores de drogas: cuidar e ser cuidada. Enferm Foco. 2021;12(1):7-12. https://doi.org/10.21675/2357-707X.2021.v12.n1.3298
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).

Para que a família seja considerada base do cuidado em saúde mental, é necessário que sejam reconhecidos os problemas e dificuldades próprios da convivência com indivíduos em sofrimento psíquico. Sabe-se o quanto essa convivência é desgastante para as famílias, pois implica compreender e lidar com determinados comportamentos (falar sozinho, inverter o ciclo de sono, retrair-se socialmente, alterações de humor, descuido com a própria higiene), o que pode despertar sentimentos ambíguos, como amor, vergonha e angústia. É fundamental que os profissionais de saúde estejam atentos aos sinais que podem levar à sobrecarga familiar, oferecendo apoio e orientação nesse sentido(2929 Carvalho AS, Machado VM, Maagh SB, Santos AM, Guedes AC, Fávero FM, et al. A participação da família na reabilitação psicossocial do sujeito em sofrimento psíquico. J Nurs Helth. 2017;7(2):137-47. https://doi.org/10.15210/JONAH.V7I2.7702
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).

As famílias podem ter papel preponderante no sucesso do tratamento, desde que recebam orientações e apoio dos profissionais dos serviços de saúde(2929 Carvalho AS, Machado VM, Maagh SB, Santos AM, Guedes AC, Fávero FM, et al. A participação da família na reabilitação psicossocial do sujeito em sofrimento psíquico. J Nurs Helth. 2017;7(2):137-47. https://doi.org/10.15210/JONAH.V7I2.7702
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). O potencial da família para constituir-se como dispositivo existencial de cuidado aparece entrelaçado à sua disposição para construir e reconstruir virtudes. Famílias que vivenciam o sofrimento mental podem dar visibilidade a essas virtudes, que podem ser entendidas como bens relacionais, que se entrelaçam a sentimentos de felicidade no âmbito familiar, como reciprocidade, generosidade e solidariedade, aparecendo para a pessoa em sofrimento mental como possibilidades de (re)conquista da família(3030 Carvalho PAL, Santos VTC, Soares RH, Oliveira MAF, Fornasier RC, Sena ELS. Reflexividade do sensível e do cuidado à família no contexto da saúde mental. Rev Enferm UERJ [Internet]. 2020;28:e53264-e53264. https://doi.org/10.12957/reuerj.2020.53264
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).

Assim, por meio do diálogo e da intersubjetividade, os profissionais de saúde podem conhecer o que existe, o que é experimentado, o que é vivido pelas famílias, de modo a compreender suas singularidades e demandas cotidianas e, por meio de uma linguagem comum, expressar modos de cuidar na integralidade que constrói e é construído como intersubjetividade.

Limitações do estudo

Essa pesquisa deve ser vista levando em conta a limitação de ter-se privilegiado a fala dos integrantes das famílias presentes nos domicílios nos momentos de realização das rodas de intersubjetividade, de modo que alguns participantes das entrevistas fenomenológicas não foram ouvidos no contexto coletivo. Considerando que os participantes desvelaram o potencial das relações afetivas desenvolvidas no CAPS II para a construção de novas configurações familiares, sugere-se a realização de novos estudos que se proponham a ouvir outros atores sociais em diferentes pontos de atenção.

Contribuições para a área da enfermagem e saúde

O estudo traz como principal contribuição ao conhecimento teórico-científico de base o reconhecimento da potência da dialogicidade para “retornar às coisas mesmas”, isto é, às experiências familiares, que podem se mostrar como produtoras do cuidado às famílias no campo da saúde mental.

Nesse sentido, a atuação nesse campo, sobretudo quando se pretende inserir a família no cuidado, requer uma disposição do enfermeiro e dos demais trabalhadores da área para colocar-se ao mesmo tempo na condição de aprendiz e de mediador do empoderamento, o que pode ajudar a família que vivencia o sofrimento mental a tornar-se autônoma e criativa em seu jeito de desinstitucionalizar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo lança luz sobre a experiência da família no convívio com o sofrimento mental em seu cotidiano, que é permeado por sentimentos de solidão, tristeza e decepção, evidenciados na expressão de um “não ser” família, entrelaçado ao desejo de “tornar-se” família. Ao mesmo tempo, as descrições desvelam o verso e o reverso do “não ser” família como ausência cotidiana, que tanto produz a busca por novas aproximações e diálogos, quanto potencializa o senso de autonomia e independência, de modo a abrir perspectivas para experiências futuras mais gratificantes.

Não obstante o estudo desvelar as fragilidades de vínculos familiares no cotidiano de convivência com o sofrimento mental, evidenciadas como falta de escuta, redução do senso de pertença e até mesmo a exclusão do ‘louco’ do seio da própria família consanguínea, ele mostrou também a abertura da família, especialmente da pessoa com sofrimento mental, à construção de elos com outros usuários e trabalhadores do CAPS, o que inscreve esse dispositivo como uma nova configuração familiar no campo da saúde mental.

A reflexão construída na intersubjetividade com os participantes do estudo, em um clima de liberdade, autonomia e pluralismo de ideias, que não seriam conhecidas se não se possuíssem corpo e sensibilidade, constitui a abertura a um novo olhar para a experiência da família que convive com o sofrimento mental. Essa compreensão fundamenta-se em um estilo filosófico de ser profissional do campo da saúde mental, que utiliza a relação dialógica com os sujeitos no âmbito de seu território para construir possibilidades de cuidado à família.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Priscilla Valladares Broca

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Abr 2022
  • Aceito
    04 Jul 2023
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