A Cura Médica de Almas: uma estratégia de acolhimento em saúde mental pós-pandemia

RESUMO

Objetivo:

refletir sobre a aplicabilidade da Cura Médica de Almas (CMA) por profissionais de saúde como estratégia de acolhimento em saúde mental pós-pandemia.

Métodos:

estudo teórico e reflexivo, fundamentado na filosofia de Viktor Frankl, baseado no livro “The Doctor and the Soul, From Psychotherapy to Logotherapy” e literatura científica.

Resultados:

o estudo foi estruturado em dois enfoques discursivos: A CMA no campo da saúde; A aplicabilidade da CMA no acolhimento em saúde mental pós-pandemia.

Considerações finais:

a CMA pode ser usada na atenção em saúde mental, em emergências sanitárias, promovendo uma atuação do profissional de saúde mais humanizada, facilitando a integração do sofrimento inevitável em uma vida com sentido.

Descritores:
Logoterapia; Profissional da Saúde; Pandemias; Acolhimento; Saúde Mental

ABSTRACT

Objective:

to reflect on the applicability of the Medical Healing of Souls (MHS) by health professionals as a welcoming strategy in post-pandemic mental health.

Methods:

a theoretical and reflective study, based on Viktor Frankl’s philosophy, based on the book “The Doctor and the Soul, From Psychotherapy to Logotherapy” and scientific literature.

Results:

the study was structured in two discursive approaches: MHS in the field of health; The applicability of MHS in post-pandemic mental health care.

Final considerations:

MHS can be used in mental health care, in health emergencies, promoting a more humane performance of health professionals, facilitating the integration of inevitable suffering into a meaningful life.

Descriptors:
Logotherapy; Health Care Professional; Pandemics; User Embracement; Mental Health

RESUMEN

Objetivo:

reflexionar sobre la aplicabilidad de la Cura Médica de Almas (CMA) por parte de los profesionales de la salud como estrategia de acogida en la salud mental pospandemia.

Métodos:

estudio teórico y reflexivo, basado en la filosofía de Viktor Frankl, a partir del libro “The Doctor and the Soul, From Psychotherapy to Logotherapy” y literatura científica.

Resultados:

el estudio se estructuró en dos enfoques discursivos: CMA en el campo de la salud; La aplicabilidad de la CMA en la atención de la salud mental pospandemia.

Consideraciones finales:

la CMA puede ser utilizada en la atención a la salud mental, en emergencias de salud, promoviendo una actuación más humana del profesional de la salud, facilitando la integración del sufrimiento inevitable a una vida con sentido.

Descriptores:
Logoterapia; Profesional de la Salud; Pandemias; Acogimiento; Salud Mental

INTRODUÇÃO

A pandemia de COVID-19 impactou a saúde pública em nível mundial, sem nenhum precedente. Nos últimos 50 anos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) registrou desde o início mais de 6.940.000 mil mortes até o primeiro semestre de 2023(¹). O impacto da pandemia pode ser dividida em quadro ondas: a primeira aborda a sobrecarga nos sistemas de saúde na atenção rápida aos pacientes; a segunda está relacionada à diminuição de recursos na área da saúde para o cuidado com outras condições clínicas agudas; a terceira é a interrupção nos cuidados de saúde de várias doenças crônicas(²); por exemplo, durante a pandemia, os serviços de atenção mental e de prevenção do suicídio foram interrompidos(³); e a quarta inclui o aumento dos transtornos mentais provocados diretamente pela COVID-19 ou seus desdobramentos secundários(²). Entre eles, podem-se destacar as repercussões biológicas do vírus, as incertezas sobre a infecção, o número crescente de mortes, a morte de pessoas próximas, o isolamento social, os impactos financeiros nas famílias, a interrupção de tratamentos por falta de acesso, entre outras(²-³), que, como consequência, têm desencadeado o aumento de 25% na prevalência de ansiedade e depressão em todo o mundo no primeiro ano da pandemia. Por esse motivo, a OMS fez um chamado de alerta a todos os países para intensificar os serviços de saúde e apoio em saúde mental(³).

O impacto psicológico da pandemia tem evidenciado a fragilidade e vulnerabilidade humana, ao ponto que os profissionais de saúde são cada vez mais confrontados com um novo tipo de pacientes, uma nova classe de neurose, um novo tipo de sofrimento, cuja característica é o fato de não representar uma doença no sentido próprio do termo, mas uma frustração existencial, um vazio, uma incapacidade de atribuir um sentido ao sofrimento, característica comum das pessoas com depressão e com pensamento suicida(⁴).

Nessa perspectiva, o médico psiquiatra, criador da logoterapia, Viktor Emil Frankl, propôs uma forma de atuação para os médicos da sua época que, perante a pacientes vivenciando situações de sofrimento impostas pelo destino (catástrofes naturais; epidemiologias; pandemias; a morte de seres queridos; a vivência de uma enfermidade terminal; a dor de uma doença crônica; a amputação de um membro físico; a perda de uma capacidade motora; a impossibilidade de ter filho; o nascimento de um filho com deformidades congênitas; cuidar de um familiar com deficiência, entre outras), sensação de falta de sentido, ou vazio existencial deveriam realizar a Cura Médica de Almas (CMA)(⁴).

O termo cunhado por Frankl é uma proposta para humanizar a atuação de todos os profissionais de saúde, para que tenham uma aproximação acolhedora à pessoa que sofre, convocando seus pacientes a ter atitudes de busca e encontro do sentido da vida no seu sofrimento inevitável, visando à transformação de uma situação adversa em uma realização pessoal(⁵). Não deve ser confundida com a função do sacerdote ou do pastor, que pregam a salvação da alma, e nem com a psicoterapia, que tem se preocupado com a capacidade dos homens de trabalhar e aproveitar a vida, mas trata-se de um ministério médico, uma missão na prática da medicina, “capacitar o ser humano frente ao seu sofrimento”(⁴). Para uma melhor compreensão da temática, a seguir, há uma descrição sucinta da origem da logoterapia e CMA.

Logoterapia: uma aproximação teórica ao pensamento de Viktor Frankl

Viktor E Frankl (1905-1997) nasceu em Viena, Áustria, no berço cultural e artístico da Europa e nascente da psicologia moderna. Desde jovem, foi um estudioso e seguidor de Sigmund Freud (psicanálise) e de Alfred Adler (psicologia individual), mas, por não acreditar que a pessoa humana caminha pelo mundo sob a força dos impulsos (princípio do prazer-psicanálises), e não concordar que o ser humano estava no mundo em busca de poder e da conquista da superioridade (princípio do poder-psicologia individual), desenvolveu sua própria teoria chamada de análise existencial, afirmando que a consciência da responsabilidade sobre seu existir é o fundamento da existência humana e, consequentemente, a busca pelo sentido da vida (vontade de sentido-logoterapia). É dizer que sua teoria pretende trazer a consciência à “liberdade para” e à “responsabilidade” frente aos condicionantes da existência(⁴).

A teoria de Frankl foi inspirada nas abordagens filosóficas da fenomenologia e do existencialismo, fundando a escola psicoterapêutica chamada de logoterapia: a terapia pelo sentido da vida, proposta que foi colocada à prova com a sua própria experiência, quando se tornou prisioneiro nos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial e, posteriormente à sua libertação, argumenta a relação direta entre a falta de sentido de vida e o sofrimento psíquico(⁴-⁵), experiência descrita na sua obra célebre “O homem em busca de sentido”, best-seller mundial (1985).

Frankl propõe uma visão de ser humano, reconhecendo-o como uma unidade na totalidade que inclui corpo, psiquismo e espírito (noos). Essa dimensão espiritual, exclusiva do ser humano, é fonte do sentido da vida, e compreende não apenas a religiosidade, mas toda a expressão valorativa, intelectual e artística(⁴). Frankl afirma que essa dimensão não adoece, e, ao contrário do corpo e da mente, possui recursos para o enfrentamento das situações adversas, como a autotranscedência e o autodistanciamento. O primeiro está relacionado ao sentido da vida, à capacidade de estar sempre direcionado a algo ou alguém, ter um objetivo, é como um salto de fé, que se refere a confiar, acreditar, atuar e buscar algo maior do que si próprio, encontrado no amor, no outro e em Deus a quem serve(⁴,⁶). Já o autodistanciamento é considerado uma virtude de tomar distância de uma situação ou da própria postura que se está assumindo frente a ela, afastando-se das condições e dos determinantes somáticos e psíquicos para contemplá-los desde outra perspectiva(⁴,⁶).

A logoterapia em si é mais do que uma psicoterapia, é uma antropologia filosófica aplicada à vida, portanto, uma praxiologia constituída por práxis com as seguintes caraterísticas: teleológicas: do grego, τέλος, finalidade, e -logía, estudo, é o estudo filosófico dos fins, isto é, do propósito, objetivo ou finalidade, algo o que fazer (busca do sentido); estratégicas: procura criar vínculos e relacionar-se com outros; comunicativas: a possibilidade de fazer tudo com um logos, um sentido e uma razão de ser; integrativas: conecta uns saberes com outros saberes, enfrentando os problemas humanos em diversos campos; inclusivas: inclui a dimensão espiritual e a busca da pessoa pelo seu sentido da vida; interativas: as relações dimensionais são interativas, e não comportamentos isolados. Desde uma perspectiva dimensional, dialógica, passa a ser uma proposta válida na atualidade(⁶). A Figura 1 apresenta os principais termos da teoria de Viktor Frankl.

Figura 1
Sínteses compreensiva da teoria de Viktor Frankl

A logoterapia e análise existencial é dividida em logoterapia específica e inespecífica. A primeira é conhecida na área da saúde como CMA ou Ministério Médico, cujo foco são as questões de vazio existencial definida por Frankl, como a neurose massiva do nosso tempo, uma asseveração de que o ser carece de significado, caracterizada por uma sensação de tédio, sem esperança, falta de interesse, indiferença, entre outras, que podem ocasionar transtornos psicossociais, como drogadição, agressão, depressão e suicídio. Essa abordagem é destinada para a prática pelos profissionais de saúde(⁴).

A logoterapia inespecífica é focada no processo clínico e psicoterapêutico, campo exclusivo dos psicólogos que também pode e/ou deveria trabalhar as questões sobre o vazio existencial, isto é, realizar uma logoterapia específica em todo processo psicoterapêutico(⁴,⁶). Os três princípios filosóficos da logoterapia compreendem a liberdade de vontade, a vontade de sentido e o sentido da vida. O primeiro deslumbra o ser humano livre e responsável, que não somente reage a estímulos ou obedece a impulsões, mas tem a capacidade de responder, portanto, é concebido como ser consciente de tomar decisões perante os condicionantes da vida, com a liberdade de se submeter ou transcender às determinações(⁴,⁶).

A vontade de sentido deslumbra o ser humano como ser autotranscendente capaz de direcionar-se com objetivo a algo ou a alguém que não a si mesmo, encontrando sentido(⁴,⁶). Finalmente, o sentido da vida pode ser entendido como a percepção cognitiva e afetiva de valores (o que há de maior importância e significado), que dá direção, orientação, propósito e coerência pessoal(⁶). Considerado o motor para a existência humana, está ligado a uma situação única, irrepetível e percebido quando o ser humano realiza valores, por meio da capacidade de amar, trabalhar e suportar o sofrimento, também conhecido como: valores de experiência: primeiro compreende tudo o que se recebe do mundo, nas relações, no amor e na natureza; valores de criação: inclui tudo o que pode ser aportado ao mundo, quando cria, trabalha ou se doa; e valores de atitude: a postura de enfrentamento do sofrimento inevitável, partindo da capacidade espiritual de ser responsável e tomar uma decisão favorável apesar do inevitável(⁴,⁶).

A proposta de Frankl acerca da CMA é uma intervenção médico-paciente que sugere um acolhimento e um acompanhamento como “medicus humanus”: o médico que não só trata como médico, mas atua como homem ao “homo patiens”, ao homem que sofre, mediante a capacidade de ver além da enfermidade, ao ser que sente e que, apesar do padecimento, ainda luta por um sentido(⁴-⁶).

Considerando o impacto da pandemia na saúde mental a nível mundial, esta reflexão sugere a possibilidade que outros profissionais de saúde usem a CMA como estratégia de acolhimento. Este estudo também se justifica pelas pesquisas em andamento das autoras no Núcleo de Pesquisa Qualitativa Translacional em Espiritualidade e Emoções na Saúde (Qualitees), registrado no diretório do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) da Escola de Enfermagem Aurora de Alfonso Costa da Universidade Federal Fluminense, cujo enfoque transdisciplinar avança em estudos das dimensões do existir humano, afetivas, espirituais, psicossociais e bem-estar das pessoas no contexto da saúde/doença ou situações de risco, utilizando a logoterapia e sentido da vida como fundo teórico e metodológico(⁷), e pela escassez da literatura sobre a temática na atual pós-pandemia, sugerindo uma oportunidade de estudo e aprofundamento.

OBJETIVO

Refletir sobre a aplicabilidade da CMA por todos os profissionais de saúde como estratégia de acolhimento em saúde mental pós-pandemia.

MÉTODOS

Estudo teórico e reflexivo, fundamentado na filosofia de Viktor Frankl, baseado no livro “The Doctor and the Soul, From Psychotherapy to Logotherapy” (O Médico e a Alma, da Psicoterapia à Logoterapia), acervo bibliográfico dos autores e literatura científica nacional e internacional. Foi realizada uma revisão não sistemática de estudos que tratassem o tema “CMA no cuidado em saúde mental no contexto da pandemia de COVID-19”. A busca foi realizada no mês de dezembro de 2022. As bases de dados consultadas foram: Biblioteca Virtual em Saúde (BVS); Google Scholar; Biblioteca Eletrônica Científica Online (SciELO); e Biblioteca Virtual de Enfermagem (COFEN). Os critérios de inclusão foram: qualquer idioma, sem restrição de tempo, e que se dialoga com a temática deste estudo. Os termos utilizados foram: cura médica de almas, cura de alma, logoterapia, pandemia, COVID-19, saúde mental e acolhimento, combinados entre si por meio de operadores booleanos AND e OR. Os critérios de exclusão foram: estudos de caráter religioso ou com propostas de acolhimento diferentes a CMA. Foi realizada uma leitura dos títulos e resumos dos artigos e outros achados literários, como guias e livros, sendo selecionados de forma conveniente os mais relevantes que contribuíram com a discussão desta reflexão.

RESULTADOS

A discussão do estudo foi estruturada em duas categorias: A Cura Médica de Almas no campo da saúde; A aplicabilidade da Cura Médica de Almas no acolhimento em saúde mental pós-pandemia.

A Cura Médica de Almas no campo da saúde

O pensamento antropológico de Frankl resgatou a espiritualidade da pessoa, procurando humanizar a psicoterapia e a relação terapeuta-paciente. Esses paradigmas iluminaram o viver de Frankl e sua atuação profissional: “Eu queria ser médico e consegui; Tentei ser um bom médico e espero não ter decepcionado ninguém; mas, enfim, decidi continuar homem...” e “não sou psiquiatra para atender a doença do homem. Sou psiquiatra para atender o humano do doente e o espiritual da pessoa”(⁵).

A CMA nasce desde os primórdios de suas investigações antes mesmo dos campos de concentração. No “amor” pelo homem e o “respeito” à sua humanidade, Frankl propõe que a relação médico-paciente envolve “presença, atitude e convidar” de estar junto ao outro no seu sofrimento, porque ainda existe uma pergunta para este: o que mais você pode fazer?(⁴). A atitude do profissional de saúde deve superar a análise do que ocasionou o padecimento de seu paciente e compreender seu sofrimento, mas também convocá-lo a enfrentar os desafios do destino e conceber junto com ele novas alternativas de viver plenas de sentido(⁴).

Na área do cuidado em saúde, a fundadora da enfermagem moderna, Florence Nightingale (1820-1910), chama a atenção de que “o importante não é o que nos faz o destino, mas sim o que nós fazemos dele”. Enfrentando um problema de saúde, não se trata de retirar o impacto da dor em si, mas de inverter a perspectiva: em vez de ver a via no contexto do problema dor, passar a ver o problema dor no contexto do sentido que confere dignidade à vida(⁴,⁶).

Outra das enfermeiras de maior reconhecimento que adotou a CMA foi a Joyce Travelbee (1926-1973), influenciada pela corrente frankliana, que desenvolveu a teoria da relação interpessoal, propondo a importância de trabalhar a espiritualidade, o sentido da vida e o amor junto ao paciente(⁷). Para Travelbee, o cuidado espiritual na área da enfermagem está orientado à promoção do sentido de vida, que facilita a integração de contextos desfavoráveis, como a dor e o sofrimento, pela liberdade e responsabilidade inerente à tomada de decisão, que promove a competência de controle sobre as consequências(⁷).

Por sua vez, o grupo de pesquisa Qualitees vem ampliando suas investigações utilizando a temática “sentido da vida” no ensino em enfermagem, capacitando os alunos de graduação a descobrir o sentido na prática da enfermagem visando uma práxis mais humanizada(⁷). Também realiza pesquisas que visam desvelar o sentido da vida dos pacientes nas especialidades da cardiologia e oncologia.

Na área da cardiologia, um estudo realizado na consulta de enfermagem em saúde mental no ambulatório analisou a dimensão espiritual de 6 pacientes e verificou a importância de encontrar um sentido da vida para o enfrentamento da doença, possibilitando responder a condições desfavoráveis de forma madura e ousada, pois o espírito humano é rico e capaz de superar qualquer circunstância e, assim, retomar a vida(⁸).

Na área da oncologia, uma das pesquisas em andamento se fundamenta na proposta dos psiquiatras Dr. William Breitbart e Dr. Greenstein, pesquisadores do Hospital Memorial Sloan-Kettering Cancer Center, da cidade de Nova Iorque, que, no ano 2000, a partir dos pressupostos desenvolvidos por Viktor Frankl, criaram uma técnica denominada “psicoterapia centrada no sentido” para pacientes com câncer. Objetivam estudar as demandas dos pacientes oncológicos em estado avançado: a perda de bem-estar espiritual; a necessidade de se ter um sentido na vida; o sofrimento existencial; e a presença de comorbidades psicológicas, como depressão, ansiedade e estresse(⁹).

Estimulados pela importância do bem-estar espiritual, visaram ajudar o paciente na sua experiência de atribuir um sentido à sua vida, além de paz e propósito, mesmo quando próximos ao fim da vida. Na atualidade, existe um crescente interesse pelo bem-estar espiritual, desencadeando uma nova onda de intervenções voltadas diretamente para esse tipo de população(⁹).

Por sua vez, Frankl citou diversos exemplos em que outras especialidades da medicina podem usar a CMA: o cirurgião, que precisa acolher seu paciente quando ele se depara com um caso inoperável, ou quando ele deve aleijar o paciente por toda a vida, amputando um membro; o mesmo acontece com o dermatologista, que trata de casos desfigurados; o clínico geral, que deve tratar deficientes, já que em todos os casos a vida é mais do que o membro a ser amputado, uma boa aparência, ou as limitações que as doenças possam impor sobre uma pessoa(⁴). Na Figura 2, apresenta-se a síntese da CMA.

Figura 2
Sínteses compreensiva da Cura Médica de Almas

Assim, a CMA pode ser adotada por todos os profissionais de saúde, independentemente da sua especialidade, para encorajar a pessoa que sofre a enfrentar com sentido sua condição de sofrimento, comunicando-lhes esperança(⁴).

A aplicabilidade da Cura Médica de Almas no acolhimento em saúde mental pós-pandemia

A pandemia de COVID-19 tem desencadeado estressores de magnitudes nunca enfrentados em escala global(²), com um aumento da ansiedade e depressão devido às diversas perdas socioafetivas, econômicas, da própria saúde e inúmeras situações percebidas como ameaçantes pelas pessoas durante e pós-pandemia(³). A depressão está relacionada ao conceito frankliano de vazio existencial, condição que cada vez mais pode estar levando muitas pessoas para os serviços de saúde, com ou sem a presença de uma condição física de enfermidade, com a expectativa de encontrar respostas aos seus questionamentos existenciais por meio do profissional de saúde(⁴-⁵).

Frente a esse cenário, cada vez mais, os pacientes estão precisando ou, talvez, possa-se dizer, demandando de um acolhimento em saúde mental diferenciado, uma atenção que os auxilie a lidar com um destino que não podem mais moldar, mas que só podem dominar e controlar, suportando e sofrendo com sentido.

A partir da pandemia de COVID-19, surgiu a necessidade de criar políticas governamentais inclusivas que coloquem a saúde mental na agenda dos cuidados primários à saúde, buscando um cuidado bio-psico-espiritual da pessoas em sofrimento(²). Por sua vez, estratégias de acolhimento no primeiro contato com o paciente vêm se consolidando(¹⁰). A seguir, listamos algumas das que dialogam estreitamente com a CMA: incentivar (sem pressionar) a pessoa a falar sobre sua situação, ouvindo-a com atenção respeito e acolhimento; ajudar a pessoa a identificar suas necessidades e preocupações, prioridades e possibilidades; incentivar ao paciente a nomear seus sentimentos; reconhecer o paciente como alguém que pode encontrar uma resposta a sua situação; enxergar o paciente, mesmo que em uma condição de sofrimento, como um ser espiritual tanto nas suas questões de fé quanto na sua capacidade de encontrar sentido ao sofrimento; incentivar o desvelar do sentido por meio dos valores, pelo amor, por algo ou por alguém, o trabalho ou tarefa a ser realizada, o cuidado por alguém e o legado a ser construído; ajudar a refletir sobre as melhores alternativas para lidar com a situação; refletir sobre quais coisas lhe dão sentido à sua vida e pelas quais vale seguir vivendo; contemplar a rede de apoio e pedir ajuda profissional, se necessário, para continuar nesse processo de adaptação e superação para a consolidação do sentido da vida; e incentivar a cuidar de suas necessidades espirituais(²,⁴,¹⁰).

Assim, a proposta de acolhimento em saúde pós-pandemia não somente se preocupa com a saúde do corpo e da mente, mas com a saúde da alma (sede das emoções, sentimentos e afetos, etc.). Para Frankl, é saudável quando ele permanece no que ele é intrinsecamente, ou seja, um ser consciente de sua responsabilidade perante a vida e a resposta que deve dar ao seu sofrimento, em suas palavras: “Porque não será o que a vida tem para oferecer, mas o que cada pessoa tem para dar a sua própria vida, ao mundo, aos outros”(⁴). Finalizando esta reflexão, destacamos que o impacto da pandemia tem desencadeado interrogantes existenciais, surgindo a necessidade de um cuidado humanizado para que tanto os profissionais de saúde quanto os pacientes possam usufruir da potencialidade humana, “sua espiritualidade” de poder atribuir sentido ao sofrimento, experimentando uma sensação de cura da alma.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O impacto da pandemia na saúde mental chama a atenção para o cuidado humanizado, já que, cada vez, mais as pessoas procuram os atendimentos de saúde em busca de respostas aos desafios para além do psicofísico. O psiquiatra Viktor Frankl propôs um caminho de intervenção para o cuidado da humanidade da pessoa, a cura da alma, com o objetivo de ajudar-lhes a enfrentar o sofrimento inevitável por meio do desvelar o sentido da vida. Com a intenção de infundir consolo, fé e esperança, o profissional de saúde encoraja o seu paciente a responder ao sofrimento de forma consciente: livre e responsável, com a certeza que ainda no sofrimento é possível encontrar um sentido. A tomada dessa consciência promove buscar soluções e atitudes de enfrentamento em prol à vida, prevenindo comportamentos de luta e fuga como as drogas e o suicídio. Diversos estudos nas áreas da enfermagem, cardiologia e oncologia estão utilizando a CMA nos últimos anos como estratégia de cuidado em saúde. Conclui-se que a CMA pode ser uma estratégia de cuidado humanizado para todos os profissionais de saúde no acolhimento em saúde mental em emergências sanitárias, pandemias e pós pandemias, facilitando a integração do sofrimento inevitável em uma vida com sentido.

• EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa
• EDITOR ASSOCIADO: Mitzy Danski

• FOMENTO
  O presente trabalho foi realizado com apoio do Programa Acadêmico em Ciências do Cuidado em Saúde (PACCS) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -Brasil (CAPES) -Código de Financiamento 001.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  04 Dez 2023
• Data do Fascículo
  2023

Histórico

• Recebido
  30 Jun 2022
• Aceito
  13 Jul 2023