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Contexto ibero-americano da enfermagem: construindo e compartilhando conhecimento

À Associação de Enfermagem Comunitária (AEC) e à Associação Latino-Americana de Escolas e Faculdades de Enfermagem (ALADEFE), por sua contribuição na construção do conhecimento de enfermagem.

“La realidad será lo que seamos capaces de construir”

“Dispara, yo ya estoy muerto” (2013), Julia Navarro* * Jornalista e escritor espanhol (1953)

Na próxima semana, acontecerão dois grandes eventos científicos em Madri e Granada (Espanha). Serão atividades internacionais, específicas e de forma muito especial, embora não exclusivas do campo ibero-americano, organizadas e desenvolvidas por duas sociedades científicas de enfermagem muito importantes, como a Associação de Enfermagem Comunitária (AEC) e a Associação Latino-Americana de Escolas e Faculdades de Enfermagem (ALADEFE), com implementação e influência internacional.

A AEC, com quase 35 anos de evolução, celebra aquele que será o seu VII Congresso Internacional com o lema “Vulnerabilidade e Saúde Comunitária: uma nova era para os determinantes da saúde” como parte dos seus princípios com a saúde da comunidade, das famílias e das pessoas a quem presta cuidados. Nessa ocasião, centra especial atenção na resposta às necessidades de cuidados das populações vulneradas e vulneráveis, ao mesmo tempo que analisa e reflete sobre a importante influência exercida pelos determinantes de saúde. Sem entrar em detalhes sobre os diferentes aspectos que serão abordados nas mesas, no workshops, colóquios, que compõem o Congresso, merece destaque a importância de realizar uma abordagem abrangente, integrada e integrativa da saúde como a que é realizada e que envolve uma perspectiva de enfermagem que, além disso, é compartilhada com outras perspectivas disciplinares para tentar identificar as necessidades que essas comunidades têm, mas também propor quais podem ou devem ser as respostas que, como enfermeiros, lhes damos em um contexto que transcende o local ou o nacional, para se estender globalmente à esfera ibero-americana.

A ALADEFE, por sua vez, com uma história semelhante à da AEC, de 37 anos, propõe como tema da sua XVII Conferência Ibero-Americana de Educação em Enfermagem: “Pesquisa em Educação em Enfermagem: construindo um contexto ibero-americano para o cuidado às pessoas”. Nesse caso, os enfermeiros levantam a necessidade de debater o que e como deve ser a formação dos futuros enfermeiros, em uma perspectiva global que permita também a construção de um contexto de enfermagem ibero-americano que atenda às necessidades de cuidados dos indivíduos, das famílias e da comunidade a partir de uma perspectiva de transculturalidade, transdisciplinaridade e transsetorialidade que facilita abordagens centradas nas pessoas.

Em relação à coincidência temporal (na semana de 23 a 28 de outubro) e espacial (Espanha), considero fundamental unir a complementaridade que ambas as abordagens científicas fazem, de uma realidade que exige respostas rigorosas, próximas, eficazes e eficientes, como aquelas que os enfermeiros ibero-americanos, comprometidos com a sua profissão, mas de forma muito especial com a sociedade e o seu direito a uma saúde digna e acessível, estão dispostos e são capazes de propor e contribuir.

A configuração de um mapa de conferências, congressos, conferências, simpósios deve ser vista e assumida como uma oportunidade e uma força na construção do conhecimento, compartilhando experiências, vivências, evidências, e não apenas mais um caminho de fazer turismo, tal como acontece com outras vertentes como a gastronômica, a cultural, a enológica. Os eventos científicos devem constituir uma decisão ponderada e transcendente de quem os organiza, identificando e levantando questões atuais e de interesse profissional, disciplinar e científico que, em cada momento, são mais relevantes e prioritárias, realizados com rigor e inovação, bem como de quem decidem optar por um ou outro para reforçar o seu desenvolvimento científico profissional, não só com a sua assistência, mas também com o compromisso de realizar uma participação ativa e real no seu âmbito.

A nossa contribuição para a saúde dos indivíduos, das famílias e da comunidade vai muito além da prestação sistemática, padronizada ou rotineira de cuidados da aplicação de técnicas diagnósticas, terapêuticas ou exploratórias, da gestão de recursos ou cuidados ou do ensino de enfermagem. Como enfermeiros e, portanto, profissionais de uma ciência e de uma disciplina, independentemente da área em que atuamos como tal, temos a obrigação moral, ética e estética de fazê-lo com o mais estrito rigor científico que garanta a prestação de cuidados, ensino ou gestão dos mesmos com a qualidade que merecem e devem ser oferecidas às pessoas com quem interagimos, seja na saúde ou na doença, no centro de saúde ou no hospital, na escola ou no trabalho, em casa ou na comunidade onde estão integrados para promover ou manter a sua saúde, prevenir ou cuidar da sua doença, promover a sua recuperação e integração ou acompanhá-los no luto.

Isso significa que temos que adquirir o compromisso de nos envolvermos na nossa formação permanente, contínua e continuada ao longo da vida. Pensar que se pode atuar como enfermeiro simplesmente por ter um diploma que o credencia como tal é um erro imenso e uma atitude inaceitável e irresponsável. O diploma universitário qualifica você oficialmente para atuar como enfermeiro, mas ser e sentir-se enfermeiro, com tudo o que isso significa, vai muito além de ter capacidade legal para o fazer. Representa uma responsabilidade profissional, científica, social e humana que devemos assumir e, assim, manter-nos sempre ativos.

Com base no que foi dito, a participação em atividades científicas profissionais deve ser identificada como parte fundamental do nosso desenvolvimento. Aprender, apreender e compartilhar conhecimentos é inerente ao ser, sentir e agir como enfermeiro. Não o fazer é uma fraude à profissão e à sociedade, que confia na nossa atitude e aptidão para prestar cuidados profissionais de qualidade.

Nesse sentido, é paradoxal que se proponha, como está sendo feito, a necessidade de aumentar o número de cursos que constituem o curso de enfermagem, ou o número de anos de formação nas especialidades. Porque essa abordagem esbarra no lamentável fato de, independentemente da duração dos estudos ou da formação especializada, não conseguirmos identificar, respeitar e promover a experiência e as competências adquiridas, fazendo-os apenas com base na antiguidade no cargo e ignorando o envolvimento e compromisso individual para se manter sempre atualizado, dinâmico e adaptado à evolução científico-profissional e social. Continuar mantendo a crença e a atitude, falsamente solidária, de que um enfermeiro tem a mesma capacidade de resposta, conhecimento ou rigor, ou a mesma capacidade de lidar com os complexos problemas de saúde que enfrenta diariamente, independentemente de poder provar essa capacidade ou conhecimento, apenas em virtude de ser enfermeiro, leva-nos a uma deterioração coletiva do nosso desenvolvimento e posterior reconhecimento acadêmico, profissional ou científico. Não se trata de estabelecer hierarquias, mas sim de tentar justificar que somos todos iguais pelo fato de termos um diploma ou pelo número de anos necessários para o obter. É essencialmente uma absoluta falta de maturidade profissional e científica que exige uma mudança imediata de atitude que permita lançar as bases da enfermagem. Se quisermos, claro, ter o respeito e a consideração da comunidade científica e profissional e da sociedade como um todo, devemos considerar seriamente amadurecer e atingir o nível que nos corresponde como ciência e disciplina. O contrário leva-nos inevitavelmente à mediocridade e à inconsequência que, logicamente, não são combatidas com o choro infrutífero do lamento vitimista(11 Benner P. Using the Dreyfus model of skill acquisition to describe and interpret skill acquisition and clinical judgment in nursing practice and education. Bull Am Soc Inf Sci. 2004;24(3):188-99. https://doi.org/10.1177/0270467604265061
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-22 Benner P, Tanner C, Chelsa C. Expertise in nursing practice: caring, clinical judgment and ethics. 2.ed. N.York: Springer; 2009. https://doi.org/10.1891/9780826125453
https://doi.org/10.1891/9780826125453...
).

Portanto, e para além das considerações temporais de duração dos estudos ou formação especializada, o que devemos ter presente é a necessidade imperiosa de analisar os conteúdos que compõem os atuais planos de estudo para identificar se eles realmente respondem às atuais necessidades e demandas de cuidados ou, pelo contrário, obedecem a critérios de oportunidade relacionados às demandas dos sistemas de saúde que se constituem como os principais empregadores de enfermeiros. Não podemos continuar a permitir que a formação de futuros enfermeiros seja sequestrada por interesses que se afastam do verdadeiro objetivo, ao qual, como enfermeiros, devemos atender. Ou seja, devem ser respondidas as dinâmicas sociais que regulam a procura de cuidados com base em determinantes de saúde, ativos de saúde ou objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), que devem ser identificados e valorizados na dimensão que representam e na qual, sem dúvida, o enfermeiro tem a obrigação de dar um contributo singular, específico e autônomo a partir do trabalho transdisciplinar. Não fazer isso contribui para alimentar e perpetuar o atual modelo medicalizado baseado no bem-estar social e fragmentado e assumir um papel subsidiário em que o cuidado é relegado à esfera doméstica de onde não é visível, nem reconhecível, nem valorizado, não atendendo às necessidades da população.

Tudo isso significa que a coincidência dessas duas atividades científicas a serem realizadas na próxima semana adquire um significado que vai além da sua celebração, configurando-se uma referência fundamental que não só lhes confere grande potencial de construção de conhecimento, mas também complementam suas abordagens, objetivos e desafios futuros para compartilhá-los e poder empreender essa construção necessária do contexto ibero-americano da enfermagem.

Embora seja verdade que a sobreposição de datas inviabiliza, nesse caso, a desejável ubiquidade que nos permitiria estar em ambos os espaços ao mesmo tempo, não é menos verdade que as conclusões alcançadas em ambos os eventos devem ser compartilhadas para enriquecer a contribuição final da AEC e da ALADEFE.

A construção do conhecimento de enfermagem deve contribuir para o amadurecimento necessário do enfermeiro - e não da enfermagem, embora logicamente seja alimentado pelas suas contribuições -, compartilhando-o, pois não é propriedade exclusiva de ninguém. Somente através da generosidade ao compartilhar conhecimentos poderemos construir um contexto tão desejável e necessário como o contexto da enfermagem ibero-americana. Da formação ao cuidado direto, passando por gestão e pesquisas que possibilitem a visibilidade e valorização do cuidado profissional de enfermagem como forma de sustentar nosso referencial científico-profissional e alcançar o respeito que merecem com a oferta de qualidade, carinho e humanidade que nós enfermeiros oferecemos.

A AEC e a ALADEFE nos oferecem um cenário favorável para a construção do contexto ibero-americano da enfermagem. Agora cabe ao enfermeiro saber aproveitá-la para exercer uma liderança transformadora que assuma a responsabilidade necessária, sendo criativo, inovador, proativo, assertivo, arriscado, otimista e lutador por uma sociedade melhor. Deve-se valorizar o contributo da enfermagem no cuidado profissional; formar enfermeiros para a comunidade; identificar e valorizar uma área de competência própria e autônoma que leve em conta os aspectos do cuidar na, com e para a comunidade, assumindo a responsabilidade pelas nossas competências; gerar espaços saudáveis, acompanhando as pessoas, as famílias e a comunidade para alcançar o seu empoderamento em um processo compartilhado de criação de saúde; articular os recursos comunitários, identificando as necessidades de cuidados sentidas; promover a autonomia e o autocuidado; colocar o foco da atenção nas pessoas e na sua saúde, promovendo a participação ativa da comunidade no desenvolvimento de competências para a vida; promover a mudança de comportamentos e hábitos saudáveis; e transformar o sistema de saúde em uma perspectiva salutogênica, respeitando a transculturalidade, favorecendo a transsetorialidade e trabalhando transdisciplinarmente(33 Martínez-Riera JR. La importancia Trans. Blog Enferm Comun. 2023 http://efyc.jrmartinezriera.com/2023/10/12/la-importancia-trans/
http://efyc.jrmartinezriera.com/2023/10/...
).

A identificação das diferenças nos ambientes que compõem o contexto ibero-americano da enfermagem deve ser vista como uma oportunidade de enriquecimento e nunca como um obstáculo à sua construção.

Por sua vez, a AEC e a ALADEFE, em conjunto com outras sociedades científicas, organizações ou representantes profissionais, devem promover espaços de análise, reflexão e construção coletiva do conhecimento em enfermagem para compartilhá-lo e possibilitar o progresso, que nos permite agir com decisão, firmeza e segurança, apoiado no nosso próprio conhecimento que, necessariamente, deve ser compartilhado com os de outras disciplinas e com os da própria sociedade, que deve participar na tomada de decisões sobre a sua saúde.

Parabéns à AEC e à ALADEFE, pelo trabalho, esforço e fé no que deveria ser uma referência internacional no cuidado profissional, e ao CONTEXTO IBERO-AMERICANO DE ENFERMAGEM.

  • *
    Jornalista e escritor espanhol (1953)

REFERENCES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2024
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