Introdução
O glaucoma é uma neuropatia óptica com lesões características que causam defeitos específicos no campo visual(1,2). O aumento da pressão intraocular (PIO) é o fator de risco mais importante, sendo também o foco da terapêutica para controle da doença(3,4). Variações da estrutura corneana geram alterações nas medidas da PIO, principalmente por meio da tonometria de aplanação de Goldmann (TAG)(5,6). Diante desse fato, a córnea tornou-se objeto de estudo nas lesões glaucomatosas já há algum tempo, principalmente com a paquimetria central, que faz a medida da espessura corneana central (ECC). A média da ECC na população é de 556 micra, segundo Ambrósio, com desvio padrão de 35 micra, variando entre 454 e 669 micra(7). A ECC foi demonstrada como fator de risco mais importante em pacientes hipertensos oculares(8). A explicação para isto está vinculada ao fato de que as medidas da PIO através da TAG hipoestimam as aferições em córneas com a espessura diminuída, e por isso não são tratados(9,10), consequentemente aumentam o risco de progressão da escavação do nervo óptico devido à constante lesão causada pela PIO aumentada.
O modelo de predição que combina os dados do OHTS (Ocular Hypertension Treatment Study) e do EGPS (European Glaucoma Prevention Study Group) calcula para cada 40 micra de diminuição da ECC, há um risco duas vezes maior de desenvolvimento de lesão glaucomatosa em cinco anos(9).
Outros parâmetros da córnea, como a ceratometria, também exercem importante influência no "erro" da medida da PIO por aplanação, que é hiperestimada em casos de córneas mais espessas e mais curvas. Diante desses fatos, levantou-se o questionamento sobre a necessidade da existência de novos parâmetros para uma melhor avaliação da córnea, frente a sua fundamental importância no seguimento dos pacientes glaucomatosos.
A paquimetria é um exame fundamental na avaliação desses pacientes, porém o seu uso isolado pode trazer uma série de equívocos de interpretação nos seus resultados, tornando-se necessário o uso de novas tecnologias, como por exemplo, o aparelho ORA (Ocular Response Analyser, ® Reichert).
O ORA é um tonômetro de sopro que utiliza um pulso de ar extremamente controlado e monitorado em sua intensidade, com fases ascendentes e descendentes simétricas. O exame leva cerca de 20 milissegundos. O pulso de ar desencadeia deformação na superfície da córnea, que passa por um primeiro momento de aplanação, que é identificado por um pico no reflexo da córnea (figura 1). Após tal momento, a córnea ainda sofre a pressão do pulso de ar até ficar ligeiramente côncava (figura 1), e retorna ao seu estado original de modo a passar por um segundo momento de aplanação (figura 1). O comportamento da córnea e o sinal obtido durante o exame representam as propriedades biomecânicas da córnea medida. A diferença entre as pressões, nos momentos de aplanação de entrada e saída, está relacionada com a capacidade viscoelástica da córnea de armazenar energia, denominada histerese.
Quatro parâmetros são gerados na versão atual do software do ORA(11):
- PIO calibrada para Goldmann;
- PIO compensada da córnea;
- Histerese;
- Fator de resistência corneana.
. Momento 1: primeira aplanação da córnea;
. Momento 2 : a córnea fica ligeiramente côncava;
. Momento 3 : segunda aplanação da córnea.
É possível analisar as alterações biomecânicas sofridas, apresentando uma diminuição importante na capacidade viscoelástica da córnea para absorver energia do sopro de ar simétrico(11)(sua fase ascendente é idêntica a sua fase descendente).
Relato de Caso
Paciente do sexo feminino, 54 anos, branca, do lar, natural do Rio de Janeiro, sem comorbidades oculares pré-existentes, em tratamento para hipertensão arterial com Captopril 25mg 2x/ao dia, veio ao serviço com queixa de redução da acuidade visual em ambos os olhos (AO), principalmente em olho direito. Relatava mãe com histórico de glaucoma. Ao exame oftalmológico, a paciente apresentava acuidade visual sem correção de 20/150 em AO. Realizada a refração, a acuidade passou a 20/40 e 20/30 respectivamente (refração: +1,75 = -0,50 x 90º - 20/40 /+1,50 = -0,50 x 85º - 20/30).
A TAG era de 18mmHg no olho direito e 17mmHg no olho esquerdo, às 17 horas. Ao exame na lâmpada de fenda (biomicroscopia) observou-se em AO córneas transparentes, com guttata 2+/4+ (figura 2), catarata nuclear grau 2 e catarata subcapsular posterior leve. Na gonioscopia, ângulo aberto até o esporão escleral nos quatro quadrantes em AO. Campo visual revelando diminuição difusa da sensibilidade em AO sem alterações específicas.
Foi medida a espessura corneana central através da paquimetria, com valor de 620 micra em AO(7). Realizaram-se os exames de não contato e avaliação biomecânica com sopro de ar (ORA), tonômetro de contorno dinâmico (TCD-Pascal ® Ziemer), além da tomografia(12,13) de córnea e segmento anterior por fotografias Scheimpflug rotacionais(13,14). Foram apresentados os seguintes valores: Histerese = 7,9 e 8,1 mmHg (valor normal médio = 10,17); IOPcc(PIO corrigida pela córnea)= 26,1 e 24,2 mmHg; IOPG = 18,1 e 17,9 mmHg; PASCAL (TCD): 27,2 e 26,5 mmHg. O estudo tomográfico demonstrou padrão de paquimetria espacial compatível com edema subclínico. Esse padrão é sugerido quando o perfil de progressão paquimétrico é retificado ou horizontalizado (figura 3)(12). Retinografia simples do nervo óptico apresentava a escavação aumentada e assimétrica, 0,8 x 0,8 e 0,6 x 0,6 respectivamente no olho direito e no olho esquerdo. Mácula sem alterações e retina aplicada em todos os quadrantes.

Figura 3 Curva de progressão paquimétrica espacial(12) com retificação do padrão de distribuição paquimétrico espacial
Discussão
Desde a publicação do estudo OHTS (Ocular Hypertension Treatment Study), em 2002, sabemos que ECC é o fator preditivo mais importante para o desenvolvimento do glaucoma em pacientes hipertensos oculares. Sendo bem claro que a medida da pressão intraocular (PIO) é hiperestimada em córneas espessas, enquanto que em córneas delgadas esta pressão é hipoestimada.
Porém, córneas com aumento da espessura por edema, apresentam resistência reduzida, e, portanto um efeito na TAG similar a córneas finas(7).
Com isso, fica bem claro que a paquimetria continua sendo um exame de grande valor na avaliação corneana frente ao glaucoma. No entanto, seu uso isolado passa a ser questionado diante dos possíveis equívocos no diagnóstico, que prejudicam o correto acompanhamento terapêutico do paciente.
Para o tratamento e acompanhamento clínico do caso relatado, tornou-se fundamental a avaliação biomecânica e tomográfica da córnea, com o ORA e o Pentacam, que possibilitaram análise minuciosa de um edema corneano decorrente da distrofia de Fuchs, que levou a uma PIO hipoestimada, sendo controlada e tratada corretamente.
Importante salientar que a aferição considerada definitivamente correta entre as mencionadas como TAG, ORA e PASCAL somente seria possível, se paralelamente se confirmasse a pressão na CA (Câmara Anterior) com um recurso tipo canalização direta dentro da CA e a medida hidrostática. Porém, por ser um método invasivo, este procedimento torna-se impraticável na rotina clínica.
Conclusão
Diante deste caso clínico, fica inquestionável a influência da córnea na medida da PIO por TAG. Entretanto, ela se dá de forma mais complexa que a antecipada por algoritmos lineares considerando-se exclusivamente a paquimetria central. Neste caso, se considerássemos a TAG e a paquimetria central relativamente elevada, um grave erro de interpretação ocorreria, pois o achado de hipertensão ocular seria "mascarado". O diagnóstico de glaucoma é realizado com base nos achados do nervo óptico.
Entretanto, o estudo biomecânico e tomográfico permitiu uma correta interpretação da influência da córnea na TAG, de modo a identificar a hipertensão ocular, e diagnosticar o glaucoma primário de ângulo aberto (GPAA). Tais exames devem ser considerados na avaliação de pacientes com suspeita de glaucoma, bem como no seu acompanhamento clínico.