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Progressão atípica de perda visual em paciente com glaucoma primário de ângulo aberto

Resumos

A dolicoectasia da artéria carótida interna (ACI) é uma condição rara que pode ser acompanhada de manifestações neuro-oftalmológicas, como perda da acuidade e alteração do campo visual decorrente da compressão do nervo óptico (NO). O objetivo é relatar um caso de paciente do sexo masculino, 67 anos, portador de glaucoma primário de ângulo aberto (GPAA) com evolução atípica, assimetria de escavação, palidez da rima do NO à esquerda, devido à neuropatia óptica compressiva à esquerda, por segmento dolicoectásico da ACI. O diagnóstico foi baseado na história clínica, aspecto do NO e exames de neuroimagem.

Doenças do nervo óptico; Doenças vasculares; Glaucoma ângulo aberto; Angiografia por ressonância magnética; Relatos de casos


Dolichoectasia of the internal carotid artery (ICA) is a rare condition that may be associated with neuro-ophthalmic manifestations, such as loss of visual acuity and visual field resulting from compression of the optic nerve (ON). The aim is to report a 67-year-old male patient with primary open-angle glaucoma (POAG) with atypical evolution, asymmetry of cupping and increased pallor of the rim of the left ON, due to compressive optic neuropathy by the dolichoectatic segment. The diagnosis was based on clinical history, appearance of the ON and neuroimaging.

Optic nerve diseases; Vascular diseases; Glaucoma, open-angle; Magnetic resonance angiography; Case reports


Introdução

Dolicoectasia dos vasos intracerebrais é uma condição rara que acomete as grandes artérias da base do crânio, significando elongação e distensão das mesmas. Usualmente, o sistema vértebro-basilar é mais frequentemente acometido que as ACI. Os deficits neurológicos podem ocorrer secundariamente à embolização local, oclusão trombótica, compressão ou ruptura. As manifestações neuro-oftalmológicas são relacionadas à compressão das estruturas vizinhas e incluem: paralisias de nervos cranianos, neuropatia óptica, síndromes quiasmáticas, nistagmo, espasmo hemifacial e perda visual decorrente da compressão das vias ópticas anteriores pelos vasos dolicoectásicos(11. Purvin V, Kawasaki A, Zeldes S. Dolichoectatic arterial compression of the anterior visual pathways: neuro-ophthalmic features and clinical course. J Neurol Neurosurg Psychiatry. 2004;75(1):27-32.).

O objetivo é relatar um caso de paciente portador de glaucoma primário de ângulo aberto (GPAA) apresentando assimetria de escavação, de acuidade visual e de defeito de campo visual maior à esquerda, associado à palidez da rima do nervo óptico (NO) ipsilateral, na presença de ACI dolicoectásica comprimindo NO intracraniano à esquerda.

Relato de Caso

Paciente masculino, 67 anos, branco, com queixa de perda da acuidade visual em ambos os olhos (AO), pior no olho esquerdo (OE), de caráter insidioso e progressivo, há 18 meses. Negava dor ou trauma. Apresentava história de diabetes mellitus, hipertensão arterial sistêmica, doença pulmonar obstrutiva crônica grave e tabagismo.

Ao exame, apresentava acuidade visual, com correção, de 20/20 no olho direito (OD) e de conta dedos a 4m no OE. Alteração do reflexo pupilar com diminuição do reflexo fotomotor direto à esquerda, e defeito aferente relativo (DAR) 3+/4+ à esquerda. À biomicroscopia (AO): córnea transparente, câmara anterior profunda e sem reação, íris tróficas e catarata nuclear incipiente. Pressão intra-ocular (PIO) 35mmHg OD e 36mmHg OE. Seio camerular aberto 360°, visualizando-se o esporão escleral (AO). À oftalmoscopia: NO com rima corada e escavação 0,6x0,7 OD e palidez de rima e escavação 0,8x0,9 OE (Figura 1).

Figura 1
Retinografias revelando nervo óptico corado e com escavação 0,6 x 0,7 à direita e nervo óptico pálido, com escavação 0,8 x 0,9 à esquerda

A campimetria computadorizada 24:2 branco-branco (Humphrey Systems, San Leandro, Calif) do OD mostrava defeito arqueado inferior e a do OE redução difusa da sensibilidade (Figura 2). Tais alterações foram confirmadas em pelo menos três exames de campo visual.

Figura 2
Campimetria computadorizada (24:2, branco-branco) revelando defeito arqueado inferior no olho direito e redução difusa de sensibilidade no olho esquerdo; tais achados no OE são compatíveis com a grande escavação e palidez do disco óptico observadas nas retinografias

A evolução assimétrica, com perda visual indolente, palidez do NO, DAR no OE e defeito central difuso no campo visual levou à hipótese de neuropatia óptica compressiva pré-quiasmática à esquerda. Sendo assim, foram solicitados exames de neuroimagem (ressonância nuclear magnética (RNM) e angio-ressonância), que evidenciaram a presença de dolicoectasia da ACI esquerda comprimindo o NO ipsilateral e desnivelando a porção esquerda do quiasma óptico para cima (figura 3).

Figura 3
Ressonância nuclear magnética revelando contato da artéria carótida interna com o nervo óptico esquerdo e supradesnivelamento do quiasma óptico (setas brancas); Angiorressonância mostra assimetria de calibre das carótidas internas intracranianas, maior à esquerda (ponta de seta branca)

Diante dos valores elevados de PIO, optou-se pelo tratamento clínico com colírios hipotensores (bimatoprosta 0,03%, tartarato de brimonidina 0,2% e cloridrato de dorzolamida 2%). Houve redução da PIO (12/14mmHg), sem progressão dos defeitos nos campos visuais seriados do OD. Quanto ao OE, no período de seguimento de três anos, não foi observada a progressão do defeito de campo visual. Quanto ao quadro compressivo da via óptica à esquerda, considerando-se os riscos e benefícios, optou-se pelo seguimento clínico.

Discussão

Dolicoectasia é uma condição na qual ocorre afilamento das paredes arteriais, com substituição das fibras reticulares e elásticas por tecido fibroso. Isto resulta em aumento do comprimento, tortuosidade e irregularidades do lúmen. As artérias intra-cranianas mais acometidas nesta condição são a ACI, a vertebral e a basilar(22. Ellis MF, Scott M, Erwin G. Carotid artery ectasia coexistent with primary open angle glaucoma. Clin Experiment Ophthalmol. 2001;29(1):44-6.).

Embora os limites normais de diâmetro e posição da artéria basilar tenham sido bem definidos, a definição de ACI dolicoectásica ainda permanece subjetiva. Cabe ressaltar que uma variabilidade anatômica normal da relação entre a ACI e o NO pode predispor alguns pacientes a uma compressão sintomática(33. Jacobson DM. Symptomatic compression of the optic nerve by the carotid artery: clinical profile of 18 patients with 24 affected eyes identified by magnetic resonance imaging. Ophthalmology. 1999;106(10):1994-2004. Comment in Freeman JY, Newman NJ. Carotid artery compression of the optic nerve. Ophthalmology. 2000;107(10):1798-9.).

No glaucoma, ocorre perda característica das fibras nervosas retinianas arqueadas superiores ou inferiores, poupando-se, em um momento inicial, o feixe papilo-macular, como observado no OD. Já nas neuropatias ópticas compressivas, observa-se perda visual com alteração do reflexo pupilar e defeitos centrais ou cecocentrais no campo visual, e a dolicoectasia de ACI pode ser demonstrada como uma das causas da neuropatia(22. Ellis MF, Scott M, Erwin G. Carotid artery ectasia coexistent with primary open angle glaucoma. Clin Experiment Ophthalmol. 2001;29(1):44-6.).

Embora o GPAA seja uma patologia de acometimento bilateral, usualmente manifesta-se de forma assimétrica, podendo apresentar assimetria de escavação e defeitos campimétricos distintos entre os dois olhos(22. Ellis MF, Scott M, Erwin G. Carotid artery ectasia coexistent with primary open angle glaucoma. Clin Experiment Ophthalmol. 2001;29(1):44-6.). No presente caso, havia uma grande assimetria entre os dois olhos (pior à esquerda), além de outros achados que levantaram a suspeita de uma doença neuro-oftalmológica associada, como, por exemplo, o defeito aferente relativo e a rápida evolução assimétrica da doença glaucomatosa. Por estes motivos, optou-se pela realização de neuroimagem para esclarecimento diagnóstico.

A dolicoectasia da ACI pode mimetizar o glaucoma de pressão normal (GPN), no qual a compressão ou o comprometimento do suprimento vascular do NO causam perda visual e aumento da escavação do nervo ipsilateral. Estudos radiológicos têm demonstrado a presença de afecções como calcificação, dilatação e ectasia das artérias carótidas intracavernosas adjacentes à abertura intracraniana do canal óptico em portadores de GPN. Discute-se se existe uma correlação entre a assimetria da escavação do NO e a severidade da patologia carotídea. É reconhecido que o alargamento progressivo do lúmen da ACI associado, por exemplo, ao envelhecimento e à hipertensão arterial sistêmica, pode resultar em compressão do NO adjacente em um indivíduo predisposto(22. Ellis MF, Scott M, Erwin G. Carotid artery ectasia coexistent with primary open angle glaucoma. Clin Experiment Ophthalmol. 2001;29(1):44-6.).

A compressão crônica do NO pode também comprometer a perfusão regional, produzindo isquemia sobreposta ao dano compressivo das fibras nervosas. Além disso, a compressão em longo prazo do NO intracraniano pode produzir um padrão de perda de campo visual em feixe de fibras nervosas e escavação do NO, sinais consistentes com glaucoma(33. Jacobson DM. Symptomatic compression of the optic nerve by the carotid artery: clinical profile of 18 patients with 24 affected eyes identified by magnetic resonance imaging. Ophthalmology. 1999;106(10):1994-2004. Comment in Freeman JY, Newman NJ. Carotid artery compression of the optic nerve. Ophthalmology. 2000;107(10):1798-9.). No caso apresentado, deve ser considerado, além do dano glaucomatoso em AO, os efeitos da compressão do NO esquerdo pela ACI dolicoectásica, que resultou na assimetria de escavação com palidez da rima neural.

Estudo utilizando a RNM demonstrou que a compressão anatômica do NO intracraniano pela ACI supraclinóide ocorre com relativa frequência em pacientes assintomáticos. Assim, a identificação desta relação, por si só, pode não ser clinicamente importante. Mesmo assim, existem relatos de pacientes com neuropatia óptica oculta ou progressiva nos quais nenhum outro mecanismo plausível de dano ao NO esteja presente(33. Jacobson DM. Symptomatic compression of the optic nerve by the carotid artery: clinical profile of 18 patients with 24 affected eyes identified by magnetic resonance imaging. Ophthalmology. 1999;106(10):1994-2004. Comment in Freeman JY, Newman NJ. Carotid artery compression of the optic nerve. Ophthalmology. 2000;107(10):1798-9.).

Alguns autores sugerem que os sinais mais específicos de dano não-glaucomatoso associados a lesões compressivas são idade menor que 50 anos, palidez de NO com escavação aumentada e defeitos de campo visual que respeitam o meridiano vertical. Nestes casos, exames de neuroimagem estariam indicados(44. Greenfield DS, Siatkowski RM, Glaser JS, Schatz NJ, Parrish RK 2nd. The cupped disc. Who needs neuroimaging? Ophthalmology. 1998;105(10):1866-74. Comment in Lee AG. Differentiating glaucomatous from nonglaucomatous optic atrophy. Ophthalmology. 1999;106(5):855.).

A descompressão do NO afetado frequentemente não resulta em recuperação visual significativa, estando associada a uma maior taxa de morbimortalidade(33. Jacobson DM. Symptomatic compression of the optic nerve by the carotid artery: clinical profile of 18 patients with 24 affected eyes identified by magnetic resonance imaging. Ophthalmology. 1999;106(10):1994-2004. Comment in Freeman JY, Newman NJ. Carotid artery compression of the optic nerve. Ophthalmology. 2000;107(10):1798-9.). Por isso, optou-se pelo seguimento clínico do paciente relatado.

Após revisão bibliográfica sobre o assunto, não foram encontrados casos semelhantes na literatura nacional, até o presente momento, de que os autores tenham conhecimento.

Concluindo, quando da detecção de sinais atípicos aos encontrados no glaucoma, o oftalmologista deve ficar alerta para a possibilidade de que o paciente glaucomatoso possa apresentar uma lesão compressiva associada. Para um diagnóstico preciso é necessário avaliar não só o aspecto da escavação, mas também o da rima neural residual, o padrão da perda de fibras nervosas da retina e do defeito de campo visual, assim como o reflexo pupilar e a visão de cores. Uma vez formulada a suspeita de compressão de nervo ou de quiasma óptico, os exames de neuroimagem, como a RNM e a angioRNM, são imperativos.

  • Trabalho realizado junto à Clínica Oftalmológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo - USP - São Paulo (SP) - Brasil.

Referências

  • 1
    Purvin V, Kawasaki A, Zeldes S. Dolichoectatic arterial compression of the anterior visual pathways: neuro-ophthalmic features and clinical course. J Neurol Neurosurg Psychiatry. 2004;75(1):27-32.
  • 2
    Ellis MF, Scott M, Erwin G. Carotid artery ectasia coexistent with primary open angle glaucoma. Clin Experiment Ophthalmol. 2001;29(1):44-6.
  • 3
    Jacobson DM. Symptomatic compression of the optic nerve by the carotid artery: clinical profile of 18 patients with 24 affected eyes identified by magnetic resonance imaging. Ophthalmology. 1999;106(10):1994-2004. Comment in Freeman JY, Newman NJ. Carotid artery compression of the optic nerve. Ophthalmology. 2000;107(10):1798-9.
  • 4
    Greenfield DS, Siatkowski RM, Glaser JS, Schatz NJ, Parrish RK 2nd. The cupped disc. Who needs neuroimaging? Ophthalmology. 1998;105(10):1866-74. Comment in Lee AG Differentiating glaucomatous from nonglaucomatous optic atrophy. Ophthalmology. 1999;106(5):855

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2014

Histórico

  • Recebido
    13 Fev 2012
  • Aceito
    04 Nov 2012
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