Acessibilidade / Reportar erro

O papel da membrana de Descemet na patogenia do edema corneano após cirurgia de segmento anterior

Resumos

Objetivo:

Encontrar fatores importantes na patogenia do edema corneano pós-cirúrgico, em casos de pós-facectomia e pósceratoplastia, por meio do estudo dos achados histopatológicos, a fim de ver o que pode ser feito para evitar sucessivas ceratoplastias.

Métodos:

Estudo retrospectivo descritivo das alterações histopatológicas de casos de edema corneano pós-cirúrgicos. Os tecidos foram provenientes de ceratoplastia penetrante no período compreendido entre setembro de 2009 e agosto de 2013. Foi realizada revisão de prontuários em busca principalmente de informações sobre cirurgias prévias.

Resultados:

Foram incluídos 70 botões corneanos, sendo 34 de pacientes do sexo masculino e 36 do sexo feminino. A média das idades foi de 63,1±17,20 (média ± DP) anos. A maioria dos casos era de falência após transplante (71,43%). A rarefação celular foi a principal alteração encontrada no endotélio (58 casos), sendo também a alteração histopatológica mais frequente. Na membrana de Descemet, predominaram as alterações de integridade (53 casos), seja na forma de ruptura, de descolamento isolado ou de descolamento associado à ruptura. Foi frequente a associação de alterações endoteliais à ausência da integridade da membrana de Descemet.

Conclusão:

Descolamento da membrana de Descemet é um achado histopatológico frequente nos casos de edema corneano pós-cirúrgicos estudados, devendo ser considerado um fator importante na patogenia dos mesmos. Essa alteração deve ser procurada com atenção nos pós-operatórios, a fim de ser diagnosticada e tratada precocemente, vindo possivelmente a evitar muitas indicações de ceratoplastia.

Lâmina limitante posterior; Edema da córnea/etiologia; Edema da córnea/patologia; Ceratoplastia


Objective:

To find relevant factors in the pathogeny of postoperative corneal edema in post-cataract surgery and post-keratoplasty cases, through the study of histopathological findings in order to see what can be done to avoid successive keratoplasties.

Methods:

Retrospective descriptive study of histopathological findings in postoperative corneal edema cases. Tissues were obtained from penetrating keratoplasty in the period between september 2009 and august 2013. A medical record review was conducted primarily looking for information about previous surgeries.

Results:

Seventy corneal buttons were included, out of which 34 were from male patients and 36 were from female patients. The mean age was 63.1±17.20 (mean ± SD) years. Most of cases were corneal failure after keratoplasty (71.43%). The main change found in endothelium was cellular rarefaction (58 cases), and it was also the most common histopathological change. Changes in integrity predominated in Descemet's membrane (53 cases), whether in the form of rupture, isolated detachment or detachment associated with rupture. Endothelial changes associated with the absence in Descemet's membrane integrity were frequent.

Conclusion:

Descemet's membrane detachment is a frequent histopathological finding in postoperative corneal edema cases studied, thus it should be considered an important factor in the pathogeny of such cases. This change should be carefully researched in the postoperative period in order to be diagnosed and treated early, possibly avoiding many keratoplasty indications.

Descemet membrane; Corneal edema/etiology; Corneal edema/pathology; Keratoplasty


INTRODUÇÃO

O edema corneano é uma condição clínica caracterizada pelo aumento da espessura ou do diâmetro ânteroposterior corneano (1Alomar TS, Al-Aqaba M, Gray T, Lowe J, Dua HS. Histological and confocal microscopy changes in chronic corneal edema: implications for endothelial transplantation. Invest Ophthalmol Vis Sci. 2011;52(11):8193-207.,2Goldman JN, Kuwabara T. Histopathology of corneal edema. Int Ophthalmol Clin. 1968;8(3):561-79.). O edema pode ser confinado ao epitélio ou a uma parte dele, e o estroma também pode ter edema localizado. A mais frequente circunstância clínica é, no entanto, aquela em que ambos, epitélio e estroma, tornam-se edemaciados (2Goldman JN, Kuwabara T. Histopathology of corneal edema. Int Ophthalmol Clin. 1968;8(3):561-79.).

Onde o edema se desenvolve, elementos estruturais são separados uns dos outros. No estroma, ceratócitos separam-se uns dos outros e das fibras colágenas adjacentes; as fibras colágenas também se tornam separadas umas das outras. Edema é geralmente associado com a perda da transparência na porção da córnea em que está presente (2Goldman JN, Kuwabara T. Histopathology of corneal edema. Int Ophthalmol Clin. 1968;8(3):561-79.).

Os dois fatores principais considerados na etiologia do edema corneano são disfunção endotelial (2Goldman JN, Kuwabara T. Histopathology of corneal edema. Int Ophthalmol Clin. 1968;8(3):561-79.

Stocker FW. The endothelium of the cornea and its clinical implications. Trans Am Ophthalmol Soc. 1953;51:669-786.
-4Patel SP. The bull's eye: are we off-target for corneal endothelial cell physiology? J Ophthalmic Vis Res. 2013;8(1):83-5.)e defeitos na membrana de Descemet. Células endoteliais constituem uma única camada de células-bomba na porção posterior da córnea responsáveis pela constante desidratação corneana. Essas células diminuem em número com a idade e geralmente não são capazes de se regenerar (5Naumann GO, Holbach L, Kruse FE. Applied pathology for ophthalmic microsurgeons. Berlin: Springer; 2008.). Assim, oftalmologistas estão bem cientes da capacidade limitada de reparo do endotélio corneano humano e que muito cuidado deve ser tomado para evitar injúria a esse importante tecido durante procedimentos cirúrgicos(6Murphy C, Alvarado J, Juster R, Maglio M. Prenatal and postnatal cellularity of the human corneal endothelium. A quantitative histologic study. Invest Ophthalmol Vis Sci. 1984;25(3):312-22.).

Defeitos na membrana de Descemet também levam ao influxo de humor aquoso na córnea e edema estromal(5Naumann GO, Holbach L, Kruse FE. Applied pathology for ophthalmic microsurgeons. Berlin: Springer; 2008.). Descolamentos na membrana de Descemet podem ser atribuídos a qualquer fator que seja responsável por uma ruptura na membrana de Descemet, seja ele cirúrgico (extração de catarata, iridectomia, ciclodiálise, ceratoplastia penetrante) ou o resultado de rupturas causadas por glaucoma congênito, ceratocone, ceratoglobo ou trauma (7Mulhern M, Barry P, Condon P. A case of Descemet's membrane detachment during phacoemulsification surgery. Br J Ophthalmol. 1996;80(2):185-6.). Grandes e extensos descolamentos têm uma apresentação impressionante com edema corneano e marcada redução da acuidade visual, frequentemente necessitando de intervenção cirúrgica para prevenir descompensação corneana permanente e potencial transplante de córnea (8Kim T, Hasan SA. A new technique for repairing descemet membrane detachments using intracameral gas injection. Arch Ophthalmol. 2002;120(2):181-3.).

Diante do exposto, o nosso objetivo é determinar a patogenia do edema corneano pós-cirúrgico, em casos pósfacectomia e pós-ceratoplastia, através do estudo dos achados da membrana de Descemet e do endotélio em exame histopatológico, a fim de ver o que pode ser feito precocemente nesses casos como tentativa de evitar sucessivas ceratoplastias. A busca destas alterações poderá alertar o que deve ser pesquisado com rigor no pós-operatório dessas cirurgias.

MÉTODOS

Foi realizado estudo de botões corneanos provenientes de ceratoplastia penetrante no período compreendido entre setembro de 2009 e agosto de 2013, enviados para exame histopatológico ao Banco de Olhos. Os tecidos eram fixados em formol neutro a 10%, cortados pelo patologista apoiados pelo lado endotelial, com corte iniciando pelo epitélio e terminando pelo endotélio. A inclusão foi feita em parafina, com cortes subsequentes de 2,5µm e coloração com hematoxilina-eosina. Após o preparo, os tecidos foram examinados com microscópio óptico pelos autores.

O estudo foi retrospectivo descritivo das alterações histopatológicas que aparecem nos edemas corneanos pós-cirúrgicos. Na falta de estudos que pudéssemos comparar os resultados, verificamos somente a proporção do aparecimento desses achados. Outro fator que justifica usarmos esse tipo de estatística é que nos interessa estudar a patogenia e verificar as alterações encontradas. Em estudos posteriores, poderão ser feitas estatísticas de probabilidade, quando partiremos de achados conhecidos.

Foram selecionados botões corneanos que possuíam edema estromal. Chamamos de edema estromal, do ponto de vista anatomohistopatológico, a presença de afastamento entre estruturas como ceratócitos e fibras colágenas. A desigualdade na intensidade do edema nos levou a classificá-lo em cinco graus de acordo com esse afastamento. A presença de edema epitelial (edema celular, vacúolos citoplasmáticos, microcistos e bolhas) não foi utilizada na classificação, embora fosse percebido em quase todos os casos.

O edema leve ou grau I tinha afastamento pequeno e esparso das estruturas (figura 1a); ao se tornarem menos esparsos e mais difusos, tínhamos o edema leve-moderado ou grau II (figura 1b). No edema moderado ou grau III, havia edema mais generalizado, e mas ainda com espaçamentos pequenos (figura 1c). No edema moderado-acentuado ou grau IV, os espaços eram mais largos e muito frequentes (figura 1d). Por fim, no edema acentuado ou grau V; os espaços eram maiores, e o edema era generalizado (figura 1e). Em alguns casos, observamos que em uma mesma amostra de tecido existiam regiões com diferentes intensidades de edema. Classificamos esses últimos casos de acordo com o edema que predominava na maior porção da amostra, ou fizemos uma média entre as intensidades de edema encontrados.

Figura 1a
Edema leve (grau I) com afastamento pequeno e esparso das estruturas estromais; a membrana de Descemet encontra-se espessada neste caso
Figura 1b
Edema leve-moderado (grau II) com afastamento menos esparso e mais difuso
Figura 1c:
Edema moderado (grau III) mais generalizado, com espaçamentos ainda pequenos; microcistos podem ser vistos no epitélio
Figura 1d:
Edema moderado-acentuado (grau IV) com espaços mais largos e muito frequentes; uma extensa bolha pode ser vista descolando parte do epitélio
Figura 1e:
Edema acentuado (grau V) generalizado, com espaços muito maiores; algumas bolhas podem ser visualizadas no epitélio

Os critérios de exclusão foram a reação inflamatória, sinéquia, afinamento estromal, ausência de prontuário ou nenhum registro de cirurgia prévia. Assim, foram incluídos apenas casos de edema corneano pós-cirúrgicos puros, isto é, não associados a causas secundárias.

Os prontuários dos casos selecionados foram revisados em busca de informações sobre o diagnóstico feito pelo cirurgião, cirurgias anteriores, sexo e idade. Foram registrados os casos de facectomia ou transplante de córnea prévios. Aqueles casos em que havia o diagnóstico do cirurgião de ceratopatia bolhosa após facectomia ou falência após transplante prévio foram assim considerados. Os casos em que não havia nenhum diagnóstico informado pelo cirurgião tiveram esses dados obtidos por meio da cirurgia prévia encontrada no prontuário que tinha o formulário padrão de transplante de córnea. Os casos de transplante prévio foram considerados como falência, e os casos de facectomia prévia foram considerados como ceratopatia bolhosa.

No exame histopatológico foram, então, pesquisadas as alterações da membrana de Descemet e do endotélio corneano em casos de edema corneano de cinco graus convencionados ou arbitrados, com diagnósticos de ceratopatia bolhosa após facectomia ou falência após transplante prévio. As alterações pesquisadas na membrana de Descemet foram rupturas, descolamento, dobras, bifurcações, alterações de espessura e distensão. As alterações pesquisadas no endotélio foram rarefação celular ou alteração celular. Como o atual estudo é sobre a patogenia, incluímos, na coleta de dados, informações sobre fatores que consideramos como causa. Não deixamos, no entanto, de citar também os fatores que nos pareciam efeito, para tentar demonstrar de maneira mais ampla o painel de achados histopatológicos.

RESULTADOS

Foram incluídos 70 botões corneanos, sendo 34 de pacientes do sexo masculino e 36 do sexo feminino. A média das idades foi de 63,1±17,20 anos (média±DP). A composição da amostra era de 20 casos de ceratopatia bolhosa após facectomia e 50 casos de falência após transplante. A distribuição dos casos nos cinco graus de intensidade edema pode ser vista na tabela 1.

Tabela 1
Composição da amostra de acordo com o grau de manifestação do edema corneano na amostra estudada em pacientes com lâminas examinadas entre setembro de 2009 e agosto de 2013

Na tabela 2, encontramos as alterações histopatológicas encontradas na amostra. Observamos que as alterações mais encontradas na Descemet foram as rupturas em 41 (58,57%) casos e o descolamento em 40 (57,14%). Entre as outras alterações da Descemet, aquela que predominou foi a dobra em 25 (35,71%) casos. No endotélio, a principal alteração encontrada foi a rarefação celular em 58 (82,86%) casos. Considerando todas as alterações encontradas, aquela que predominou foi a rarefação celular do endotélio.

Tabela 2
Alterações encontradas nas córneas na amostra de lâminas de casos examinados entre setembro de 2009 e agosto de 2013

A distribuição das alterações histopatológicas encontradas entre ceratopatia bolhosa após facectomia e falência após transplante pode ser vista na tabela 3. Tanto em ceratopatias bolhosas como em falências predominaram na Descemet as rupturas e o descolamento. A rarefação celular foi a principal alteração encontrada no endotélio nesses dois grupos, sendo também a alteração histopatológica mais frequente nos mesmos.

Tabela 3
Comparação das alterações entre a ceratopatia bolhosa após facectomia e falência após transplante, na amostra colhida entre setembro de 2009 e agosto de 2013

Nos gráficos, observamos a distribuição das alterações histopatológicas nos cinco graus de edema corneano após cirurgia de segmento anterior. Aqui, mostramos apenas as alterações que podem ser consideradas como causa, sendo essas as alterações da integridade da membrana de Descemet (rupturas, rupturas + descolamento e descolamento isolado) e a alteração endotelial isolada. No gráfico 1, observamos que as alterações da integridade da Descemet predominaram, sendo o descolamento associado ou não à ruptura (40 casos) uma alteração bastante frequente. Alterações endoteliais isoladas foram vistas apenas em 17 casos. A distribuição das alterações entre ceratopatia bolhosa após facectomia e falência após transplante seguiram relativamente o mesmo padrão da amostra geral (gráfico 2).

Gráfico 1
Alterações histopatológicas distribuídas por grau de edema nos casos da amostra estudada pelos autores
Gráfico 2
Alterações histopatológicas encontradas nos casos ceratopatia bolhosa após facectomia (preto) e falência após transplante (cinza) da amostra estudada pelos autores

A frequência das alterações da integridade da membrana de Descemet isoladas ou associadas é demonstrada na tabela 4. A mais frequente foi o descolamento associado à ruptura encontrado em 28 (40%) casos. As rupturas isoladas foram vistas em 13 (18,57%) casos, e o descolamento isolado foi observado em 12 (17,14%).

Tabela 4
Alterações da integridade da membrana de Descemet associadas ou isoladas nos casos de edema corneano pós-cirúrgico estudados pelos autores

Considerando a distribuição das alterações por grau de edema (gráficos 3-7), observamos que as alterações da integridade da Descemet também predominaram em todos. Uma alteração da integridade da Descemet bastante frequente em todos os graus de edema também foi o descolamento associado ou não à ruptura. Alterações endoteliais isoladas foram vistas principalmente no edema grau IV, onde foram encontradas em 9 (47,37%) casos, predominando sobre o descolamento que esteve presente em 8 (42,10%) casos.

Gráfico 3
Alterações histopatológicas encontradas nos casos de ceratopatia bolhosa após facectomia (preto) e falência após transplante (cinza) com edema leve / grau I
Gráfico 4
Alterações histopatológicas encontradas nos casos de ceratopatia bolhosa após facectomia (preto) e falência após transplante (cinza) com edema leve-moderado / grau II
Gráfico 5
Alterações histopatológicas encontradas nos casos de ceratopatia bolhosa após facectomia (preto) e falência após transplante (cinza) com edema moderado / grau III
Gráfico 6
Alterações histopatológicas encontradas nos casos de ceratopatia bolhosa após facectomia (preto) e falência após transplante (cinza) com edema moderado-acentuado / grau IV
Gráfico 7
Alterações histopatológicas encontradas nos casos de ceratopatia bolhosa após facectomia (preto) e falência após transplante (cinza) com edema acentuado / grau V

DISCUSSÃO

Realizamos estudo descritivo das alterações histopatológicas da membrana de Descemet e do endotélio corneano em casos de edema após cirurgia de segmento anterior (ceratoplastia ou facectomia). Observamos que a maioria dos casos encontrados foi de falência após transplante, e atribuímos esse achado ao fato de que a maioria dos botões corneanos enviados para exame histopatológico ao Banco de Olhos do Estado são provenientes de ceratoplastia de urgência, o que é feito de rotina; os casos de facectomia são enviados apenas eventualmente. A maioria dos casos tanto de ceratopatia bolhosa após facectomia como de falência após transplante foi encontrada nos graus I e IV de edema de acordo com nossa classificação, por isso não correlacionamos o diagnóstico com o grau de edema.

A principal alteração histopatológica encontrada tanto nos casos de ceratopatia bolhosa após facectomia como naqueles de falência após transplante foi a rarefação celular do endotélio. Como alteração endotelial isolada foi vista em apenas 17 dos 70 casos (gráfico 1), observamos que foi frequente a associação da alteração endotelial com a ausência da integridade da membrana de Descemet, seja o descolamento isolado, a ruptura ou o descolamento associado à ruptura. Sugerimos que essa associação poderia não ser unicamente devido ao acaso, mas também a causa desse achado tão frequente em nosso estudo. Outro motivo possível seria a maneira como foi feito o corte da peça, sobre o qual não tivemos controle, pois realizamos estudo retrospectivo. Estamos cientes também de que as células endoteliais são muito facilmente alteradas pela fixação e coloração, sendo, portanto, difícil ter uma figura precisa da sua estrutura normal e patológica a partir do exame microscópico de lâminas fixadas e coradas (3Stocker FW. The endothelium of the cornea and its clinical implications. Trans Am Ophthalmol Soc. 1953;51:669-786.). Ressaltamos, porém, a confiabilidade de achados histopatológicos do endotélio, tendo como base estudos como o de Williams et al. que encontraram uma correlação direta entre o número de células endoteliais em exame histológico e a densidade de células na microscopia especular (9Williams KK, Noe RL, Grossniklaus HE, Drews-Botsch C, Edelhauser HF. Correlation of histologic corneal endothelial cell counts with specular microscopic cell density. Arch Ophthalmol. 1992;110(8):1146-9.). Nosso estudo, no entanto, não foi dirigido diretamente para o endotélio, uma vez que essas alterações já foram bastante estudadas. Nos detivemos principalmente à membrana de Descemet, pois a mesma dominou o quadro em 53 dos 70 casos (gráfico 1 e tabela 4), por causa das possíveis repercussões do edema sobre ela e da possibilidade de combater precocemente com sucesso suas alterações.

Sobre a membrana de Descemet, já que nosso objetivo é o estudo da patogenia, consideramos principalmente as alterações da integridade (gráfico 1 e tabela 4), pois são as citadas na literatura como possíveis responsáveis pelo edema corneano (5Naumann GO, Holbach L, Kruse FE. Applied pathology for ophthalmic microsurgeons. Berlin: Springer; 2008.). Entre essas alterações, foi bastante frequente o descolamento associado à ruptura (40% dos casos) ou isolado (17,14% dos casos). O descolamento foi, então, responsável por 57,14% dos casos estudados, demonstrando a importância do seu reconhecimento como causa tratável. Não ficou claro, no entanto, se a ruptura tensionou a Descemet para o Descolamento ou se foram concomitantes. Entre as alterações não relacionadas com a patogenia, a mais encontrada foi a dobra, seguida por afinamento, espessamento, distensão e bifurcações (tabela 2). Não podemos, porém, afirmar se esses últimos achados seriam uma consequência do edema ou um achado ao acaso. As dobras foram cerca de duas vezes mais frequentes nos casos de falência (42% dos casos) que nos de ceratopatia bolhosa após facectomia (20% dos casos). Tentamos explicar esse último achado pelo fato de dobras serem um achado biomicróscópico que diminui com o tempo, e de geralmente os casos de falência, principalmente primárias, serem transplantados mais precocemente.

A maioria dos estudos que falam sobre a etiologia da ceratopatia bolhosa ou do edema corneano, no entanto, citam como principal fator etiológico a disfunção ou a perda de células endoteliais (1Alomar TS, Al-Aqaba M, Gray T, Lowe J, Dua HS. Histological and confocal microscopy changes in chronic corneal edema: implications for endothelial transplantation. Invest Ophthalmol Vis Sci. 2011;52(11):8193-207.,2Goldman JN, Kuwabara T. Histopathology of corneal edema. Int Ophthalmol Clin. 1968;8(3):561-79.,1010 Gonçalves ED, Campos M, Paris F, Gomes JA, Farias CC. [Bullous keratopathy: etiopathogenesis and treatment: [review]]. Arq Bras Oftalmol. 2008;71(6 suppl 0):61-4. Portuguese.,1111 Yi DH, Dana MR. Corneal edema after cataract surgery: incidence and etiology. Semin Ophthalmol. 2002;17(3-4):110-4. Review.). Poucas fontes na literatura citam defeitos na membrana de Descemet levando ao edema corneano (5Naumann GO, Holbach L, Kruse FE. Applied pathology for ophthalmic microsurgeons. Berlin: Springer; 2008.), e geralmente não se referem ao trauma cirúrgico. Estudos sobre ausência da integridade da Descemet após cirurgia são geralmente específicos sobre o descolamento da membrana de Descemet após facectomia e suas modalidades de tratamento. Contrariamente à literatura que em sua maioria limita a etiopatogênese da ceratopatia bolhosa e do edema corneano ou ao fator endotélio ou, em menor número, à ausência da integridade da membrana de Descemet isoladamente, mostramos através de nosso estudo histopatológico que alterações da membrana de Descemet podem estar associadas à alteração endotelial na patogenia da ceratopatia bolhosa após facectomia.

A mesma sugestão de que a alteração da integridade da membrana de Descemet seria o provável fator principal na patogenia dos casos estudados de ceratopatia bolhosa após facectomia poderia ser feita também para os casos de falência após transplante. Apesar da melhora dos resultados que vem sendo verificada com a ceratoplastia penetrante, falência do enxerto permanece como um problema significante. As etiologias comuns são falência primária do doador, complicações cirúrgicas, complicações de lente intraocular, defeitos epiteliais persistentes, rejeição, infecção, glaucoma, trauma e recorrências de distrofias corneanas primárias (1212 Wilson SE, Kaufman HE. Graft failure after penetrating keratoplasty. Surv Ophthalmol. 1990;34(5):325-56. Review.). Observamos, no entanto, que assim como na ceratopatia bolhosa, um dos principais fatores citados na literatura como causa da falência de enxertos corneanos é a alteração das células endoteliais. Bell et al. demonstraram baixa contagem inicial de células endoteliais na microscopia especular sequencial e uma diminuição continuada nessa densidade ao longo de cinco anos de pós-operatório em pacientes que preenchiam critério para falência endotelial tardia e haviam realizado repetidas ceratoplastias (1313 Bell KD, Campbell RJ, Bourne WM. Pathology of late endothelial failure: late endothelial failure of penetrating keratoplasty: study with light and electron microscopy. Cornea. 2000;19(1):40-6.). Santos et al., estudando espécimes corneanas diagnosticadas como falência do enxerto, encontraram como achado histopatológico mais comum a descompensação endotelial(1414 Santos LN, de Moura LR, Fernandes BF, Cheema DP, Burnier MN Jr. Histopathological study of delayed regraft after corneal graft failure. Cornea. 2011;30(2):167-70.). Poucos são os estudos que como o de Aurora et al. citam defeitos na continuidade da membrana de Descemet na etiopatogênese da falência de enxerto corneano (1515 Aurora AL, Khandur RC, Singh G. Pathogenesis of corneal graft failure. Indian J Ophthalmol. 1974;22(2):11-6.).

Considerando a ausência da integridade da membrana de Descemet, representada em grande número de casos do nosso estudo pelo descolamento associado ou não à ruptura, como importante fator na patogenia dos casos estudados de ceratopatia bolhosa após facectomia e de falência após ceratoplastia, alertamos para a busca incessante dessa alteração em casos de edema no pós-operatório imediato dessas cirurgias. Descolamento da membrana de Descemet é uma complicação rara, porém séria das cirurgias intraoculares (1616 Kothari S, Kothari K, Parikh RS. Role of anterior segment optical coherence tomogram in Descemet's membrane detachment. Indian J Ophthalmol. 2011;59(4):303-5.). Não é incomum em cirurgia de catarata, e a incidência é relatada como 0,5 e 2,6% em cirurgia extracapsular e facoemulsificação, respectivamente (1717 Anderson CJ. Gonioscopy in no-stitch cataract incisions. J Cataract Refract Surg. 1993;19(5):620-1.). Muitas abordagens têm sido relatadas como observação (1818 Assia EI, Levkovich-Verbin H, Blumenthal M. Management of Descemet's membrane detachment. J Cataract Refract Surg. 1995;21(6):714-7.), injeção de gás C3F8 (1919 Lucena AR, Lucena DR, Macedo EL, Ferreira JL, Lucena AR. [C3F8 use in Descemet detachment after cataract surgery]. Arq Bras Oftalmol. 2006;69(3):339-43. Portuguese.,2020 Kim T, Sorenson A. Bilateral Descemet membrane detachments. Arch Ophthalmol. 2000;118(9):1302-3.) ou SF6 (8Kim T, Hasan SA. A new technique for repairing descemet membrane detachments using intracameral gas injection. Arch Ophthalmol. 2002;120(2):181-3.,2020 Kim T, Sorenson A. Bilateral Descemet membrane detachments. Arch Ophthalmol. 2000;118(9):1302-3.,2121 Tai MC, Yieh FS, Chou PI. Repair of near total Descemet's membrane detachment with intracameral injections of 20% sulfur hexafluoride gas. J Med Sci. 2002;22(5):231-4.) na câmara anterior, injeção de viscoelástico (2222 Sonmez K, Ozcan PY, Altintas AG. Surgical repair of scrolled descemet's membrane detachment with intracameral injection of 1.8% sodium hyaluronate. Int Ophthalmol. 2011;31(5):421-3.), suturas transcorneanas (2323 Pahor D, Gracner B. Surgical repair of Descemet's membrane detachment. Coll Antropol. 2001;25 Suppl:13-6.) e transplante de córnea. Descolamento da membrana de Descemet pode ser classificado em planar, quando a separação do estroma é de menos de 1mm; e não-planar, quando a separação é maior que 1mm. Cada um desses pode ainda ser descrito como periférico ou periférico com envolvimento central (7Mulhern M, Barry P, Condon P. A case of Descemet's membrane detachment during phacoemulsification surgery. Br J Ophthalmol. 1996;80(2):185-6.). Vastine et al. sugerem que descolamentos pequenos e planares são melhor observados, uma vez que muitos resolvem espontaneamente. Grandes descolamentos planares e não-planares ou descolamentos enrolados (scrolled) requerem intervenção cirúrgica (2424 Vastine DW, Weinberg RS, Sugar J, Binder PS. Stripping of Descemet's membrane associated with intraocular lens implantation. Arch Ophthalmol. 1983;101(7):1042-5.). Kim et al. citam como indicação para abordagem de tratamento com injeção de gás intracameral uma Descemet descolada, porém intacta (8Kim T, Hasan SA. A new technique for repairing descemet membrane detachments using intracameral gas injection. Arch Ophthalmol. 2002;120(2):181-3.).

Enfim, como citado acima, diversas abordagens são possíveis para o descolamento de Descemet. Alguns tratamentos podem ser alternativas ao transplante de córnea, levando à resolução completa do edema corneano e evitando a necessidade desse procedimento. Embora o reposicionamento possa demorar um período de tempo, o complexo endotélio/ membrana de Descemet descolado pode permanecer relativamente saudável na câmara anterior com eventual retorno da claridade corneana quando o reposicionamento ocorre (2121 Tai MC, Yieh FS, Chou PI. Repair of near total Descemet's membrane detachment with intracameral injections of 20% sulfur hexafluoride gas. J Med Sci. 2002;22(5):231-4.). Ressaltamos, então, novamente a busca exaustiva dessa alteração no pós-operatório imediato de casos com edema corneano após facectomia ou transplante de córnea, de modo a tentar evitar ceratoplastias através do diagnóstico precoce e uso de terapias alternativas. Cientes também de que em alguns casos, em que o edema corneano é severo, não é possível visualizar a membrana de Descemet na lâmpada de fenda (1616 Kothari S, Kothari K, Parikh RS. Role of anterior segment optical coherence tomogram in Descemet's membrane detachment. Indian J Ophthalmol. 2011;59(4):303-5.), e não dispondo, muitas vezes de meios mais sofisticados de diagnósticos, sugerimos que começemos a pensar inclusive na possibilidade de usar os métodos alternativos acima de rotina em casos de edema corneano precoce após cirurgias traumáticas de segmento anterior, como tentativa de tratamento antes da primeira ou de sucessivas ceratoplastias.

CONCLUSÃO

Demonstramos, através de achados histopatológicos, que alterações da integridade da membrana de Descemet, representadas em grande número de casos do nosso estudo pelo descolamento isolado ou associado à ruptura, são achados frequentes em casos de edema corneano após cirurgia de segmento anterior, mais especificamente facectomia e transplante de córnea. A alta frequência desse achado nos leva a sugerir que o mesmo tenha importante papel na patogenia dos casos de edema estudados.

Rarefação do endotélio também foi achado frequente, mas principalmente associado a defeitos na Descemet. Reconhecer que não apenas o endotélio, mas também o descolamento de Descemet pode ser importante na patogenia do edema corneano após cirurgia de segmento anterior deve alertar os oftalmologistas para pesquisa mais cuidadosa dessa alteração nos pósoperatórios, no sentido de tentar detectá-la e tratá-la precocemente, vindo possivelmente a evitar muitas indicações de ceratoplastia.

Como o presente estudo é descritivo e retrospectivo, esperamos que nossos achados sirvam de estímulo para estudos futuros prospectivos que venham a confirmar as inferências aqui realizadas.

  • Instituição onde o trabalho foi realizado: Banco de olhos do Estado do Ceará, Brasil

REFERÊNCIAS

  • 1
    Alomar TS, Al-Aqaba M, Gray T, Lowe J, Dua HS. Histological and confocal microscopy changes in chronic corneal edema: implications for endothelial transplantation. Invest Ophthalmol Vis Sci. 2011;52(11):8193-207.
  • 2
    Goldman JN, Kuwabara T. Histopathology of corneal edema. Int Ophthalmol Clin. 1968;8(3):561-79.
  • 3
    Stocker FW. The endothelium of the cornea and its clinical implications. Trans Am Ophthalmol Soc. 1953;51:669-786.
  • 4
    Patel SP. The bull's eye: are we off-target for corneal endothelial cell physiology? J Ophthalmic Vis Res. 2013;8(1):83-5.
  • 5
    Naumann GO, Holbach L, Kruse FE. Applied pathology for ophthalmic microsurgeons. Berlin: Springer; 2008.
  • 6
    Murphy C, Alvarado J, Juster R, Maglio M. Prenatal and postnatal cellularity of the human corneal endothelium. A quantitative histologic study. Invest Ophthalmol Vis Sci. 1984;25(3):312-22.
  • 7
    Mulhern M, Barry P, Condon P. A case of Descemet's membrane detachment during phacoemulsification surgery. Br J Ophthalmol. 1996;80(2):185-6.
  • 8
    Kim T, Hasan SA. A new technique for repairing descemet membrane detachments using intracameral gas injection. Arch Ophthalmol. 2002;120(2):181-3.
  • 9
    Williams KK, Noe RL, Grossniklaus HE, Drews-Botsch C, Edelhauser HF. Correlation of histologic corneal endothelial cell counts with specular microscopic cell density. Arch Ophthalmol. 1992;110(8):1146-9.
  • 10
    Gonçalves ED, Campos M, Paris F, Gomes JA, Farias CC. [Bullous keratopathy: etiopathogenesis and treatment: [review]]. Arq Bras Oftalmol. 2008;71(6 suppl 0):61-4. Portuguese.
  • 11
    Yi DH, Dana MR. Corneal edema after cataract surgery: incidence and etiology. Semin Ophthalmol. 2002;17(3-4):110-4. Review.
  • 12
    Wilson SE, Kaufman HE. Graft failure after penetrating keratoplasty. Surv Ophthalmol. 1990;34(5):325-56. Review.
  • 13
    Bell KD, Campbell RJ, Bourne WM. Pathology of late endothelial failure: late endothelial failure of penetrating keratoplasty: study with light and electron microscopy. Cornea. 2000;19(1):40-6.
  • 14
    Santos LN, de Moura LR, Fernandes BF, Cheema DP, Burnier MN Jr. Histopathological study of delayed regraft after corneal graft failure. Cornea. 2011;30(2):167-70.
  • 15
    Aurora AL, Khandur RC, Singh G. Pathogenesis of corneal graft failure. Indian J Ophthalmol. 1974;22(2):11-6.
  • 16
    Kothari S, Kothari K, Parikh RS. Role of anterior segment optical coherence tomogram in Descemet's membrane detachment. Indian J Ophthalmol. 2011;59(4):303-5.
  • 17
    Anderson CJ. Gonioscopy in no-stitch cataract incisions. J Cataract Refract Surg. 1993;19(5):620-1.
  • 18
    Assia EI, Levkovich-Verbin H, Blumenthal M. Management of Descemet's membrane detachment. J Cataract Refract Surg. 1995;21(6):714-7.
  • 19
    Lucena AR, Lucena DR, Macedo EL, Ferreira JL, Lucena AR. [C3F8 use in Descemet detachment after cataract surgery]. Arq Bras Oftalmol. 2006;69(3):339-43. Portuguese.
  • 20
    Kim T, Sorenson A. Bilateral Descemet membrane detachments. Arch Ophthalmol. 2000;118(9):1302-3.
  • 21
    Tai MC, Yieh FS, Chou PI. Repair of near total Descemet's membrane detachment with intracameral injections of 20% sulfur hexafluoride gas. J Med Sci. 2002;22(5):231-4.
  • 22
    Sonmez K, Ozcan PY, Altintas AG. Surgical repair of scrolled descemet's membrane detachment with intracameral injection of 1.8% sodium hyaluronate. Int Ophthalmol. 2011;31(5):421-3.
  • 23
    Pahor D, Gracner B. Surgical repair of Descemet's membrane detachment. Coll Antropol. 2001;25 Suppl:13-6.
  • 24
    Vastine DW, Weinberg RS, Sugar J, Binder PS. Stripping of Descemet's membrane associated with intraocular lens implantation. Arch Ophthalmol. 1983;101(7):1042-5.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2014

Histórico

  • Recebido
    08 Abr 2014
  • Aceito
    08 Jun 2014
Sociedade Brasileira de Oftalmologia Rua São Salvador, 107 , 22231-170 Rio de Janeiro - RJ - Brasil, Tel.: (55 21) 3235-9220, Fax: (55 21) 2205-2240 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: rbo@sboportal.org.br