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Reflexões sobre elaboração e publicação de pesquisas clínicas

Aprender a idealizar e a realizar estudos clínicos pode ser um objetivo ambicioso, mas é perfeitamente viável. Talvez, a etapa mais importante para este aprendizado seja a reflexão inicial, a fim de se organizar para cumprir passo a passo os requisitos do treinamento, tendo em mente que mesmo os grandes pesquisadores não se capacitaram instantaneamente (1Azeka E, Fregni F, Auler Junior JO. The past, present and future of clinical research. Clinics (Sao Paulo). 2011;66(6):931-2.).

Mesmo que o objetivo final (aprender a pesquisar) seja intimidador, subdividido, o desafio se torna mais acessível. Assim, o pesquisador iniciante primeiro precisa se organizar, para definir e cumprir tarefas do aprendizado, as quais podem ser ainda divididas em minitarefas.

Completar cada parte (minitarefa) dará a sensação de recompensa, conferindo satisfação imediata para uma tarefa de longa duração. Nossos cérebros preferem atividades de recompensa imediata, como caçar, em detrimento das recompensas de longo prazo, como guardar lenha, refletindo, assim, a tendência de adiarmos tarefas de benefício distante (por exemplo, estudar para uma prova), em favor do prazer instantâneo (por exemplo, sair com amigos) (2Hallowel E, Ratey JJ. Driven to distraction: recognizing and coping with attention deficit disorder from childhood through adulthood. New York: Anchor Book; 2011.,3Bodenhamer BG Hall LM. The user's manual for the brain. Williston: Crown House; 2001.). Dessa maneira, para cumprir o objetivo final, sugerimos que o treinamento seja dividido em tarefas, e estas em minitarefas, objetivas e de fácil execução, da seguinte forma:

1- A primeira tarefa é aprender a buscar artigos em bases de dados eletrônicas e pode ser subdividida nas minitarefas: procurar uma biblioteca e agendar, com a bibliotecária responsável por essa seção, um treinamento prático (principais bases de dados, palavras-chaves, ferramentas de busca, etc); treinar como localizar artigos com temas relacionados a sua área de atuação; conferir a bibliografia de artigos encontrados na busca e publicados recentemente, a fim de relacionar estudos pertinentes que não tenham sido localizados pela busca inicial, identificando e corrigindo os motivos da exclusão.

2- A tarefa seguinte seria aprender a analisar criticamente a literatura, a fim de reconhecer entre os artigos selecionados, pela busca eletrônica, os metodologicamente corretos e consequentemente confiáveis. Neste caso, as minitarefas seriam, por exemplo: ler livros e textos sobre metodologia científica, com especial atenção ao capítulo de erros sistemáticos (vieses); ler atentamente a seção Métodos de artigos publicados em revistas científicas, treinando como identificar qualidades metodológicas de alguns e vieses de outros(4Chamon W. Plagiarism and misconduct in research: where we are and what we can do. Arq Bras Oftalmol. 2013;76(6):V-VIII. Portuguese.).

Uma vez cumpridas estas duas primeiras tarefas, estaremos mais confiantes, principalmente quando percebermos que já será possível realizar atualização médica continuada por meio de publicações científicas, definindo o assunto dos artigos a serem localizados e descartando pesquisas metodologicamente inadequadas. Além disso, definir pequenas tarefas de fácil execução, com recompensa imediata (benefício rapidamente visível), mantendo o foco no objetivo principal, é uma tática para tornar o aprendizado otimizado e agradável.

3- A próxima tarefa seria definir um tema para a pesquisa. As minitarefas seriam: escolher, dentro da subespecialidade que mais lhe agrada, um tema que se tenha condições logísticas de estudar, considerando a disponibilidade de recursos humanos e físicos de sua instituição; selecionar nas bases de dados artigos relacionados ao tema; avaliar criticamente os artigos encontrados; procurar uma lacuna no conhecimento científico publicado, que seja possível de ser preenchida por uma pesquisa viável de ser realizada em sua instituição.A dúvida só aparece para quem estuda. Quem sabe pouco, não consegue sequer ter dúvidas.Assim, a leitura criteriosa de artigos científicos relacionados a um tema específico certamente evidenciará uma série de questões que ainda não foram elucidadas pela ciência, mesmo porque muitos artigos até chegam a sugerir idéias para estudos futuros. Muitas soluções para estas questões em aberto talvez não sejam viáveis de serem executadas em todas as instituições, mas algumas poderão ser possíveis. A pertinência da “pergunta” que se pretende responder com a pesquisa corresponderá ao valor que será dado ao estudo.

Neste momento do planejamento, engajar um orientador, seria importante para ajudar a dimensionar a relevância do tema escolhido para o estudo, viabilizar o acesso a equipamentos cirúrgicos e diagnósticos e, principalmente, supervisionar as tarefas que virão a seguir.

4- Finalmente, desenhar o estudo. A definição da maneira e da padronização com que os dados serão obtidos na pesquisa é chamada de desenho do estudo e deve estar descrita na seção Métodos, do artigo. É a elaboração da estratégia que será utilizada para conduzir a pesquisa. Algumas sub-tarefas seriam: identificar a população-alvo e extrair uma amostra que a represente; definir critérios de exclusão; considerar o tipo de estudo mais adequado para responder à dúvida da pesquisa (prospectivo, retrospectivo, transversal, observacional, intervencionista, caso-controle, coorte, randomizado, etc); selecionar e padronizar intervenções e testes para mensuração de resultados. Nesta fase, seria útil já redigir a seção Métodos, a fim de assegurar o cumprimento das regras para a condução do estudo.

Nesse momento, a equipe que ajudará na execução do projeto de pesquisa poderia ser formada.

Após a realização do experimento, com auxílio do orientador e, eventualmente, de um estatístico, os dados são tabulados e o artigo é redigido(5Lopes B, Ramos IC, Ribeiro C, Correa R, Valbon B, Luz A, et al. Biostatistics: fundamental concepts and practical applications. Rev Bras Oftalmol. 2014;73(1):16-22.).

Consideramos que os principais requisitos para a realização de estudos clínicos de qualidade sejam: 1 - o engajamento de um orientador experiente e de uma equipe motivada; 2 - o acesso a pacientes e a tecnologias diagnósticas e terapêuticas, em geral presentes em hospitais universitários e em grandes clínicas; 3 - o trabalho diligente do pesquisador responsável, ao estudar a literatura para idealizar e desenhar o estudo, além de organizar tarefas, delegar funções e superar obstáculos logísticos.

Quanto à publicação do artigo, embora revistas internacionais, em geral, sejam as mais valorizadas, os periódicos nacionais estão progressivamente melhorando de qualidade e de visibilidade. Revistas científicas nacionais de boa qualidade representam, para autores, uma segurança de que artigos com temas relevantes e com metodologias adequadas, mesmo que pertinentes somente à realidade local, poderão ser publicados e divulgados(6Rocha e Silva M. Reflexões críticas sobre os três erres, ou os periódicos brasileiros excluídos. Clinics (São Paulo). 2011; 66(1): 3-7.,7Kara-Junior N, Ambrósio R Jr, Chamon W, Leme LE. The challenge for "multilingual" scientists in Brazil. Clinics (São Paulo). 2014;69(5):306-7).

Como Editor-Chefe da Revista Brasileira de Oftalmologia tive a oportunidade e o prazer de atuar nesta seara. Para cumprir a missão e assumir as responsabilidades da chefia editorial, foi importante a experiência adquirida como: pesquisador (autor de 83 artigos publicados em revistas científicas, índice H 8-ISI e 10-Scopus, bolsista produtividade em pesquisa do CNPQ), orientador (professor de pós-graduação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, com três alunos que já defenderam tese e outros três realizando doutoramento), supervisor (membro da Comissão de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da USP, avaliador do CNPQ para concessão de bolsas a projetos de pesquisa), revisor (Journal of Cataract and Refractive Surgery, Journal of Refractive Surgery, Arquivos Brasileiros de Oftalmologia) e editor científico (Editor Associado da revista Clinics e Coeditor da Revista Brasileira de Oftalmologia).

Considero que minhas principais ações à frente da Revista Brasileira de Oftalmologia (RBO) tenham sido:

1- Estimular e capacitar novos pesquisadores a realizar estudos clínicos de boa qualidade, ao escrever doze editoriais ensinando a realizar as etapas mais importantes da pesquisa clínica e ao organizar três simpósios de iniciação em pesquisa nos congressos de Oftalmologia (Congresso da Sociedade Brasileira de Oftalmologia em Foz do Iguaçu, 2013 e no Rio de Janeiro, 2014, Congresso da Sociedade Norte-Nordeste de Oftalmologia em Fortaleza, 2014).

2- Implementar o sistema em que Editores de Seção são os responsáveis pela distribuição dos artigos para os revisores e pela aprovação da publicação. Desta maneira, ao delegar funções científicas, o Editor-chefe tem melhor condição de realizar a triagem inicial dos artigos submetidos e supervisionar todas as etapas do processo de edição.

3- Contribuir para o preparo de autores, ao aperfeiçoar o desenho e a escrita de artigos científicos submetidos para publicação, por meio da formação de uma equipe de revisores científicos treinados para orientar autores de artigos com bom potencial, ensinando autores a melhorar seus estudos e, assim, investindo no aperfeiçoamento da pesquisa e do pesquisador.

4- Viabilizamos a tradução para o inglês de todos os artigos publicados, sem custos para os autores, estimulando a visibilidade internacional das pesquisas e da própria Revista.

5- A fim de formar parcerias com outros periódicos nacionais e otimizar o processo de revisão científica, organizamos um sistema de Fast Track para acelerar o reenvio e/ou aproveitar as revisões de artigos submetidos aos Arquivos Brasileiros de Oftalmologia e à revista Oftalmologia em Foco.

Tive a oportunidade e o privilégio de receber uma revista muito bem administrada pelos Editores que me precederam, e acredito ter colaborado para seu progressivo aperfeiçoamento.

Com o aprendizado adquirido na coordenação da Revista Brasileira de Oftalmologia, tendo inclusive participado de congressos de edição científica (Congresso da Associação Brasileira de Editores Científicos – ABEC e Congresso da Scielo), além de manter contato próximo com outros editores científicos e de muito refletir sobre o assunto, acredito ter cumprido mais uma importante etapa de minha carreira acadêmica.

Minha próxima ação, no sentido de colaborar ainda mais com o treinamento de novos pesquisadores, será a publicação, em 2015, de um livro de Iniciação à Pesquisa Clínica, um manual para jovens pesquisadores, no qual terei a oportunidade de orientar e expor minhas reflexões sobre o tema.

References

  • 1
    Azeka E, Fregni F, Auler Junior JO. The past, present and future of clinical research. Clinics (Sao Paulo). 2011;66(6):931-2.
  • 2
    Hallowel E, Ratey JJ. Driven to distraction: recognizing and coping with attention deficit disorder from childhood through adulthood. New York: Anchor Book; 2011.
  • 3
    Bodenhamer BG Hall LM. The user's manual for the brain. Williston: Crown House; 2001.
  • 4
    Chamon W. Plagiarism and misconduct in research: where we are and what we can do. Arq Bras Oftalmol. 2013;76(6):V-VIII. Portuguese.
  • 5
    Lopes B, Ramos IC, Ribeiro C, Correa R, Valbon B, Luz A, et al. Biostatistics: fundamental concepts and practical applications. Rev Bras Oftalmol. 2014;73(1):16-22.
  • 6
    Rocha e Silva M. Reflexões críticas sobre os três erres, ou os periódicos brasileiros excluídos. Clinics (São Paulo). 2011; 66(1): 3-7.
  • 7
    Kara-Junior N, Ambrósio R Jr, Chamon W, Leme LE. The challenge for "multilingual" scientists in Brazil. Clinics (São Paulo). 2014;69(5):306-7

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2014
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