INTRODUÇÃO
O olho seco é uma doença ocular multifatorial, de alta prevalência, que envolve alterações das lágrimas e da superfície ocular e resulta em sintomas de desconforto e distúrbio visual e instabilidade do filme lacrimal com potencial risco à integridade da superfície ocular(1-3).
O potencial prejuízo a superfície ocular causado por alterações na quantidade e/ou na qualidade do filme lacrimal associadas ao olho seco tem sido exaustivamente estudado. (4-7) Essas alterações podem se justificar pelo acúmulo de mediadores inflamatórios, alterações hormonais, instilação de conservantes ou drogas com potencial tóxico ou alergênico(8-10).
O filme lacrimal é fundamental para a qualidade óptica, conforto e manutenção da superfície ocular e pode ser alterado por doenças autoimunes, processos cicatriciais e degenerativos, além de comorbidades como diabetes, alergia ocular, menopausa e processos de senilidade e uso de medicações, sejam estas de administração tópica ou sistêmica(11-16). É imprescindível que haja uma integração harmônica entre as glândulas lacrimais, a superfície ocular (córnea, conjuntiva e glândulas meibomianas), as pálpebras e os nervos sensoriais e motores. O dano ou doença de qualquer desses componentes pode desestabilizar o filme lacrimal e levar à condição de olho seco(17).
Há uma grande variabilidade dos sintomas e da gravidade do dano à superfície ocular nos quadros de olho seco(17,18). A fisiopatologia do olho seco apoia-se na hiperosmolaridade e inflamação da superfície ocular(19,20). A hiperosmolaridade é uma alteração na composição da lágrima, pelo aumento na concentração de solutos e ocorre no olho seco, pela redução do volume da fração aquosa e tem sido vista como possível marcador para o diagnóstico de olho seco. O aumento da osmolaridade da lágrima leva à diferenciação anormal, perda acelerada das células epiteliais, indução de marcadores inflamatórios, instabilidade do filme, edema celular e alteração da barreira antimicrobiana(21,22).
A inflamação da superfície ocular pode estar envolvida tanto na indução quanto na manutenção do olho seco: a disfunção das glândulas lacrimais altera a composição da lágrima, levando a um estado de hiperosmolaridade e estimulando a produção de mediadores inflamatórios, que por sua vez levam à disfunção das glândulas secretórias, a lise da membrana basal epitelial e das junções intercelulares, e no processo de exfoliação celular com conseqüente erosão do epitélio(10).
Os conservantes são importantes componentes das preparações oftalmológicas, promovendo atividade antimicrobiana e prevenindo que a droga ativa se decomponha. No entanto, efeitos citotóxicos significativos na superfície ocular tem sido relacionados ao uso crônico destas substâncias(23). O conservante mais comum das preparações oftalmológicas comerciais para glaucoma e doenças da superfície ocular (irritações, alergias e infecções) é o cloreto de benzalcônio (BAC), utilizado em concentrações que variam de 0,004% a 0,02% em soluções tópicas multidoses(24). O BAC é um composto de amônia quaternária, que tem ação detergente, antibacteriana e antifúngica, tem ainda, a capacidade de quebrar a barreira epitelial da superfície ocular nas junções intercelulares o que em tese, aumentaria a penetração e ação do princípio ativo. Diversos estudos tem demonstrado que o BAC atua na superfície ocular como citotóxico, pró apoptótico e pró inflamatório, diminuindo a viabilidade celular e estimulando a expressão de citocinas inflamatórias(25). A exposição ao BAC pode ter papel importante na precipitação e aceleração do processo de instalação da síndrome do olho seco e na piora de olho seco preexistente, afetando tanto a córnea quanto a conjuntiva. O mecanismo fisiopatológico responsáveis por estes efeitos deletérios proporcionados pelo BAC relacionam-se a desequilíbrio no filme lacrimal, inflamação da superfície ocular e dano epitelial(23).
Independentemente do estímulo inicial, ocorre um ciclo vicioso inflamatório na superfície ocular, levando à gradual disfunção da secreção ou retenção da lágrima. O que não está claro é se, com tantos mecanismos diferentes e mesmo sem a inflamação nas fases iniciais, existiria um exame diagnóstico comum e para esse um valor de corte similar em diferentes grupos de doenças e como seria a correlação deste parâmetro a outros utilizados na prática clínica e suas limitações(26). Mais ainda, não temos hoje medidas curativas para reverter o olho seco, apenas tratamentos crônicos e paliativos(27). Diante dessas dúvidas se faz necessário o aprimoramento de modelos animais para o estudo da doença e aprimoramento do conhecimento dos mecanismos de doença e estratégias terapêuticas definitivas.
O objetivo desse estudo foi descrever um modelo animal de olho seco por toxicidade utilizando o BAC e avaliar os parâmetros clínicos utilizados para o diagnóstico de olho seco e as alterações histológicas induzidas pela toxicidade ao BAC.
MÉTODOS
Esse estudo foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa animal da (CETEA-FMRP) – Comissão de Ética em Experimentação Animal da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e segue as diretrizes internacionais para estudos com animais.
O olho seco foi induzido pela instilação tópica de cloreto de benzalcônio, conforme descrito anteriormente(25). Foram utilizados ratos wistar machos de 8 semanas obtidos do Biotério Central da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Os animais tiveram acesso livre à ração e água. Os animais (n=5) receberam instilação tópica de 5 µl cloreto de benzalcônio a 0,2% sem aditivos (Ophthalmos Ltda., São Paulo, Brasil), 2 vezes por dia (7 e 19h) durante 7 dias no olho direito. O olho contralateral foi preservado para ser utilizado como controle.
Os animais foram submetidos à avaliação propedêutica de superfície ocular, em ambiente com controle de umidade e temperatura e pelos mesmos examinadores, sem a utilização de colírio anestésico após sete dias de tratamento tópico com colírio de BAC 0,2%. As avaliações de corantes vitais foram fotografadas e quantificadas por 2 examinadores posteriormente em duplo cego. As técnicas utilizadas nesse estudo para avaliação da superfície ocular e do filme lacrimal são descritas a seguir e foram realizadas nesta ordem(28).
Avaliação da superfície ocular
1. Osmolaridade da lágrima: Amostras de lágrima foram obtidas dos animais através da coleta sem estimulação ou necessidade de colírio, com a aproximação de delicado coletor para obtenção de volume em torno de 50-200 nanolitros de lágrima por capilaridade, e as medidas realizadas com a utilização de um osmômetro Tearlab Osmolarity System®(29).
2. Coloração com fluoresceína: Para a quantificação das áreas de irregularidades e desepitelização da superfície corneoconjuntival. Após a instilação de 1 gota de colírio de fluoresceína 2% (Ophthalmos Ltda., São Paulo, Brasil) avaliou-se, utilizando-se de lâmpada de fenda com filtro em azul.A impregnação do corante foi quantificada em regiões central, superior, inferior, nasal e temporal (0-3) de acordo com a intensidade, podendo portanto variar de 0-15.
3. Coloração com lisamina verde: Para a quantificação de metaplasia escamosa da superfície ocular. Após a instilação de 1 gota de colírio de lisamina verde 1% no fundo de saco conjuntival (Ophthalmos Ltda., São Paulo, Brasil), a conjuntiva e a córnea foram examinadas à lâmpada com luz branca. A impregnação do corante foi quantificada em regiões central, superior, inferior, nasal e temporal (0-3) de acordo com a intensidade, podendo portanto variar de 0-15.
4. Teste de fenol vermelho: Para quantificação do volume lacrimal, a linha embebida em fenol vermelho (Zone Quick Phenol Diagnostic Thread, Menicon Ltda.) foi posicionada na borda palpebral inferior durante 15 segundos, seguida da medida em milímetros da extensão da absorção da lágrima e consequente mudança da coloração da linha.
5. Microscopia Óptica: Após a avaliação da superfície ocular, os animais foram sacrificados com dose excessiva de combinação de anestésicos quetamina e xilazina via intraperitoneal, e os globos oculares foram extraídos e fixados para histologia. Cortes histológicos foram realizados e corados com hematoxilina e eosina (H&E) e foram submetidos à avaliação da espessura epitelial da córnea após a digitalização das imagens.
Análise estatística
A análise estatística para comparar os valores obtidos nos exames propedêuticos e histológicos do grupo tratado com BAC e do grupo controle foram feitas com o teste Mann-Whitney U, com o aplicativo Prism 5.0® (GraphPad, Califórnia) e os valores de significância adotado foi p<0,05.
RESULTADOS
Osmolaridade do filme lacrimal
Foi encontrado diferença estatisticamente significante na osmolaridade do filme lacrimal dos grupos estudados (p<0,05), sendo demonstrado hiperosmolaridade da lágrima no grupo tratado com BAC 306,4±9,1mOsmol/L, comparado com o grupo controle 284,8±7,3 mOsmol/L (figura 1).
Volume lacrimal
Através do teste de fenol vermelho foi avaliada a produção da fração aquosa do filme lacrimal. Neste teste observou-se a diminuição (p<0,05) do volume lacrimal nos olhos submetidos à aplicação do BAC 3,4±1,5mm demonstrando oposição aos olhos não tratados 7,6±4,5mm (figura 2).
Corantes vitais
Os olhos tratados com o BAC demonstraram uma maior impregnação tanto pela fluoresceína quanto pela lisamina verde como observado na figura 3 (p<0,05). No grupo controle observou-se coloração 1,0±1,7 e 2,2±1,6 para fluoresceína e lisamina, respectivamente. Enquanto que em olhos tratados com BAC a impregnação dos corantes foi de 8,4±3,0 para fluoresceína e 9,8±3,3 para lisamina (figura 3).
Microscopia óptica
Na avaliação da espessura epitelial corneana, notou-se significativa redução desta nos animais tratados em confrontação aos valores observados no grupo não tratado (p<0,05)(figura 4).
DISCUSSÃO
O presente estudo descreve um modelo animal de olho seco induzido pela aplicação tópica de cloreto de benzalcônio em ratos. A ação tóxica na superfície ocular causada por este composto foi avaliada em diversos parâmetros utilizados na prática clínica, tais como os corantes vitais, fluoresceína e lisamina verde; o volume lacrimal, incluindo a medida da osmolaridade da lágrima. Além disso, descrevemos ainda alterações histológicas da córnea nos animais tratados quando comparados aos controles.
O olho seco é uma condição multifatorial e complexa, nossos achados poderão apoiar a elucidação da fisiopatologia da síndrome do olho seco e servir de modelo para testes terapêuticos pré-clínicos.
A hiperosmolaridade é tida como um fator importante no ciclo vicioso que rege a fisiopatologia do olho seco, tanto como sinal inicial e perpetuador da doença uma vez que catalisa a inflamação e diminui a secreção lacrimal subsequente(22, 30). Desta forma, um modelo animal de doença que reproduz o padrão de aumento da osmolaridade se torna valioso para estudos de mecanismos e tratamentos do olho seco.
A medida da osmolaridade do filme lacrimal tem sido realizada em humanos com o osmômetro Tearlab Osmolarity System®, com grande facilidade de execução uma vez que a coleta de lágrima no menisco lacrimal inferior é feita por capilaridade de forma rápida e pouco invasiva e a leitura realizada imediatamente(31). No modelo animal descrito, conseguimos a obtenção deste dado de valor propedêutico com boa reprodutibilidade e distribuição homogênea nos grupos, utilizando o mesmo equipamento e técnica padronizado em humanos; esse recurso permitirá em estudos prospectivos acompanhar a evolução da doença e resultados de tratamentos, com um modelo animal de simples reprodutibilidade e de rápida indução.
Corroborando com o descrito acima, os dados obtidos nesse estudo demonstram a factibilidade da avaliação da osmolaridade do filme lacrimal no campo experimental sem grandes dificuldades na sua aplicação em modelos animais, sendo necessária mínima contenção do animal e dispensando sedação, extrapolando assim ao modelo animal as características do teste já observadas na prática clínica.
Acreditamos que o mecanismo indutor de olho seco reproduzido neste experimento deva-se, provavelmente, à denervação parcial da córnea e inflamação e redução da produção de secreção. Porém, futuros ensaios são necessários para o melhor entendimento das vias relacionadas a esses mecanismos nesse modelo em questão. Tais eventos provavelmente ocorrem em usuários crônicos de colírio que tem conservante a base desse composto amônio quaternário, uma vez que achados similares são descritos por exemplo, em pacientes portadores glaucoma sob terapêutica tópica prolongada e múltiplas doses(32).
Na propedêutica disponível na atualidade tem-se a coloração com fluoresceína como detector das irregularidades e da desepitelização das superfície córneo-conjuntival que surge em diversas patologias que agridem a superfície ocular, sendo que no olho seco devido à inflamação e toxicidade impostas ao epitélio córneo-conjuntival, demonstrada neste estudo pela maior impregnação do colírio nas superfícies oculares dos olhos tratados com BAC. Do mesmo modo, procedeu-se a coloração com a lisamina verde e, mais uma vez, como já o era esperado, no modelo animal de olho seco esta impregnação foi mais intensa do que nos olhos do grupo controle. Além destas ferramentas, o volume lacrimal diminuído, já bem consolidado como sinal na síndrome do olho seco, também foi observado nesse modelo animal de olho seco. Somado a isso, promoveu-se a análise de parâmetros histológicos dos cortes de córnea dos animais tratados e não-tratados com BAC, quantificados nesse estudo pela medida da espessura do epitélio corneano, que não surpreendentemente, demonstrou-se menor nos olhos dos animais pertencentes ao grupo tratado, o que descende, dentre outros fatores, da lesão direta às camadas celulares deste tecido e da diminuição da densidade de populações (estímulo a apoptose) de células com potencial germinativo que dão origem às células epiteliais devido à inflamação existente na doença. Desta forma, os achados observados no modelo animal descrito neste estudo refletem os parâmetros clínicos utilizados na propedêutica da disfunção lacrimal e da superfície ocular descritas no olho seco.
O BAC, como já citado, é um importante conservante utilizado frequentemente em formulações oftálmicas. O papel dos conservantes é de extrema relevância, principalmente nas medicações de uso prolongado e apresentação multidose, tais como as medicações hipotensoras. O potencial tóxico para a superfície ocular advém de sua ação detergente no filme lacrimal, além de ação pró-inflamatória e pró-apoptótica e tem sido reconhecido em diversos estudos(23).
CONCLUSÃO
O presente estudo avançou na demonstração de um modelo de síndrome de olho seco induzido por toxicidade, com a aplicação tópica de BAC em ratos e na utilização inédita em animais da medida de osmolaridade da lágrima através de um método já incorporado na prática clínica em humanos, assim como os corantes de superfície, a medida do volume lacrimal e osmolaridade da lágrima. No futuro, espera-se que esses achados sejam usados para estudos dos mecanismos fisiopatológicos e propostas de tratamento definitivo e eficaz da doença.