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Anoftalmia clínica associada a coloboma e malformações sistêmicas: etiologia e relação oftalmologista-paciente

RESUMO

O presente relato refere-se a uma paciente de 2 anos e 9 meses de idade, portadora de anoftalmia clínica à direita associada a coloboma posterior à esquerda e malformações sistêmicas. A mãe foi vacinada contra rubéola três meses antes da concepção e, ao nascimento, os exames laboratoriais mostraram título de anticorpos IgG de 267 UI/mL para rubéola e 3,5 UI/mL para citomegalovírus, sendo o IgM negativo para ambos. As anormalidades encontradas possuem características de síndrome da rubéola congênita (SRC) e infecção congênita por citomegalovírus. Também podem constituir alteração genética, decorrer de outras etiologias ou apresentarse sem explicação. A avaliação psicológica da paciente foi normal e a mesma encaminhada para reabilitação visual. A mãe manifestou sintomas depressivos e indicado tratamento especializado. Outros estudos serão necessários para esclarecer a etiologia das malformações oculares congênitas e os cuidados holísticos a serem valorizados durante a relação oftalmologista-paciente.

Descritores:
Anoftalmia; Microftalmia; Anormalidades congênitas; Adaptação psicológica; Relatos de casos

ABSTRACT

This report refers to a two years and nine months patient, carrier of clinical anophthalmia in her right eye associated with posterior coloboma in her left eye and systemic malformations. The mother was vaccinated against rubella three months before conception and, at birth, the laboratory tests showed 267 IU/mL for rubella IgG antibodies level and 3,5 IU/mL for cytomegalovirus, being IgM antibodies negative for both. The abnormalities found have characteristics of congenital rubella syndrome (CRS) and congenital cytomegalovirus infection. It can also constitute genetic alteration, derive from other etiologies or present themselves without explanation. The patient’s psychological evaluation was within normal limits, being referred for vision rehabilitation. The mother manifested depressive symptoms, being shown to her specialized treatment. Further studies are needed to clarify the etiology of congenital eye malformations and the holistic cares to be valued during the relationship ophthalmologist-patient.

Keywords:
Anophthalmos; Microphthalmos; Congenital abnormalities; Adaptation, Psychological; Case reports

INTRODUÇÃO

Anoftalmia consiste em malformação congênita ou adquirida que se caracteriza pela ausência de um ou ambos os olhos. Anoftalmia verdadeira é uma condição rara em que não há desenvolvimento da vesícula óptica, sendo a pesquisa histológica negativa. Na prática adota-se o conceito de anoftalmia clínica em que não há evidência clínica ou radiológica de globo ocular na órbita(11 Dantas AM, Monteiro ML. Doenças da órbita. Rio de Janeiro: Cultura Médica; 2002.). Microftalmia é a diminuição do comprimento axial total do globo ocular por interrupção de seu desenvolvimento.

O presente relato refere-se a uma paciente portadora de anoftalmia clínica ou microftalmia severa associada a coloboma posterior do olho contralateral e anomalias sistêmicas. O projeto de pesquisa obteve parecer favorável do Comitê de Ética através do protocolo nº 012/2011.

RELATO DE CASO

Paciente feminina, branca, 2 anos e 9 meses de idade, resultado da terceira gestação normal, pai com 28 anos, mãe com 30 anos, casal sem consanguinidade. Possui dois irmãos sadios, o primeiro de união paterna anterior e o segundo da atual, com idades respectivamente de 14 e 8 anos.

A mãe referiu acompanhamento pré-natal adequado e negou hipertensão, diabetes ou intercorrências gestacionais. Relatou uso de hioscina no primeiro semestre gestacional. Negou uso de álcool, tabaco ou drogas. A história familiar de malformações congênitas foi negativa. Foi vacinada contra rubéola, em 13/08/08, terceiro mês anterior à concepção.

O parto cesariano ocorreu a termo.Ao nascer pesou 2.605g, mediu 44 cm de altura e apresentou apgar 10-10. Como anormalidades constatou-se anoftalmia (figura 1), microftalmia, sindactilia em uma das mãos e oligodactilia em ambos os pés (figura 2).

Figura 1:
Paciente aos 21 meses de idade com anoftalmia clínica à direita
Figura 2:
Sindactilia em mão direita e oligodactilia em ambos os pés

Ao nascimento apresentou sorologia negativa para sífilis, toxoplasmose, hepatite B e anti-HIV, porém foram positivos os títulos de anticorpos IgG para rubéola, no valor de 267 UI/mL, e para citomegalovírus, no valor de 3,5 UI/mL. O IgM foi negativo para ambos.

A ecografia ocular bilateral revelou ausência do globo ocular à direita, com rudimentos de tecidos, e coloboma da parede posterior à esquerda (figura 3). A ultrassonografia das vias urinárias mostrou leve distorção do sistema pielo-calicial do rim esquerdo e o ecodoppler cardíaco e persistência da comunicação interatrial.

Figura 3:
Ecografia de órbitas com rudimentos de globo ocular à direita e coloboma posterior à esquerda

O potencial evocado auditivo e do tronco cerebral (BERA) revelou déficit auditivo profundo à direita e ausência de alterações à esquerda. O estudo citogenético diagnosticou cariótipo feminino normal (figura 4).

Figura 4:
Cariotipagem por bandamento G com resultado normal

A avaliação motora e psicológica foi normal e a acuidade visual do olho esquerdo apresentou-se parcialmente preservada, embora sem fixação central. A radiografia mostrou crânio de configuração simétrica, abóbada craniana de espessura, densidade, estrutura e contornos normais (figura 5). A mãe manifestou sintomas depressivos durante os atendimentos, sendo orientada a acompanhamento psicológico.

Figura 5:
Radiografia de crânio mostrando assimetria das cavidades orbitárias sem outras anormalidades

DISCUSSÃO

Anoftalmia e microftalmia são anormalidades oculares raras que podem comprometer o desenvolvimento psicossocial do indivíduo afetado. A assistência ao paciente e aos seus familiares por equipe multidisciplinar contribui para o bem-estar e a integração social(22 Botelho NL, Volpini M, Moura EM. Aspectos psicológicos em usuários de prótese ocular. Arq Bras Oftalmol. 2002;66(5):637-46. Autor: Botelho, Nara Lúcia Poli; Volpini, Marcos; Moura, Eurípedes da Mota.). Por isso, a mãe foi encaminhada para tratamento psicológico e a filha para tratamento especializado em centro de reabilitação visual.

A anoftalmia e microftalmia manifestam-se isoladamente ou acompanhadas de alterações sistêmicas. A patogenia do desenvolvimento embriológico da anoftalmia é imprecisa. A microftalmia pode ter origem durante o período pós-natal por alteração vítrea, diminuição da pressão intraocular ou desenvolvimento de cisto no período de fechamento da fissura óptica. Entre os fatores que causam anoftalmia e microftalmia estão o pesticida Benomyl e as infecções no período gestacional por: rubéola, toxoplasmose, varicela, citomegalovírus, herpes zoster, parvovírus B19, influenza e coxsackie A9. As causas não infecciosas ocorrem por deficiência materna de vitamina A, febre, hipertermia, exposição a raio-X, solventes, talidomida, warfarin e álcool, bem como pela mutação de diversos genes(33 Verma AS, FitzPatrick DR. Anophthalmia and microphthalmia. Orphanet J Rare Dis. [periódico na internet] 2007 [citado 2012 julho 10];2:47: [cerca de 8p]. Disponível em: http://www.biomedcentral.com/content/pdf/1750-1172-2-47.pdf
http://www.biomedcentral.com/content/pdf...
). Quando acompanhadas de sindactilia, a anoftalmia e microftalmia podem estar associadas a alteração dos genes BMP4, GDF6 e SMOC1; oligodactilia ao gene SMOC1; defeitos cardíacos ao SOX2; renais aos genes SOX2, OTX2, SMOC1 e GDF6; coloboma aos SOX2, OTX2, PAX6, RAX, BMP4, SMOC1 e GDF6; problemas auditivos aos SOX2 e OTX2(44 Slavotinek AM. Eye development genes and known syndromes. Mol Genet Metab. 2011;104(4):448-56.). Distúrbios isquêmicos foram aventados como possibilidade etiológica de anoftalmia que também ocorre sem explicação(55 Corso DD, Bonamigo EL, Corso MA, Rodrigues EB. Anoftalmia bilateral como defeito congênito isolado: uma abordagem etiológica e psicossocial. Rev Bras Oftalmol. 2011;70(4):243-7.).

Esta paciente apresentou, ao nascimento, títulos elevados de anticorpos IgG para rubéola e citomegalovírus. Porém, a mãe havia sido vacinada e a comprovação laboratorial para rubéola no terceiro mês de vida não ocorreu. Posteriormente foi vacinada, prejudicando o eventual diagnóstico.

A rubéola congênita inclui-se entre as principais causas de cegueira infantil no Brasil, afetando entre 27.000 a 32.000 crianças(66 Taleb A, Ávila M, Moreira H. As condições de saúde ocular no Brasil - 2009. São Paulo: International Standard Book; 2009.). A disponibilidade de vacina tornou-a potencialmente evitável, diminuindo drasticamente sua ocorrência. As manifestações oculares são: microftalmia, uveíte anterior, retinopatia em "sal e pimenta", catarata, ceratopatia e erros de refração. Ao conjunto das manifestações denomina-se Síndrome da Rubéola Congênita (SRC) que afeta o desenvolvimento de vários órgãos, causando cardiopatia, cegueira, surdez e deficiências múltiplas. O risco aumenta quando a infecção ocorre nas primeiras doze semanas de gravidez(77 Brasil. Ministério da Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Coordenação Geral do Programa Nacional de Imunizações. Informe Técnico Nº 2. Campanha nacional de vacinação contra a rubéola - 2008. Vacinação contra a rubéola: gestantes vacinadas inadvertidamente (GVI). 2ª ed. [internet] 2008 [citado em 2012 maio 27]; [cerca de 5p]. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/informe_rubeola2.pdf
http://portal.saude.gov.br/portal/arquiv...
).

Um estudo que avaliou 152 mulheres vacinadas contra rubéola sem conhecimento de sua gravidez, ou que engravidaram até 30 dias após a vacinação, foi negativo para SRC(88 Minussi L, Nascimento CR, Momino W, Sanchotene ML, Enéas LV, Bercini M, et al. Avaliação prospectiva de gestantes vacinadas contra a rubéola no sul do Brasil. Sci Med. 2007;17(3):119-23.). O Ministério da Saúde considerou efetiva a segurança da vacina quando aplicada acima de trinta dias da concepção e afastou a associação com SRC(99 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Rubéola: CID 10: B06. [internet] 2009 [citado em 2011 maio 28]; [cerca de 17p]. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/gve_7ed_web_atual_rubeola.pdf
http://portal.saude.gov.br/portal/arquiv...
). Ocorrências semelhantes ao caso relatado são uma associação entre vacina e eventos não relacionados à vacina, podendo não ter explicação, tratar-se de infecção por citomegalovírus ou serem causadas por outros fatores que desencadeiam cardiopatia, malformações craniofaciais ou distúrbios psicomotores(77 Brasil. Ministério da Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Coordenação Geral do Programa Nacional de Imunizações. Informe Técnico Nº 2. Campanha nacional de vacinação contra a rubéola - 2008. Vacinação contra a rubéola: gestantes vacinadas inadvertidamente (GVI). 2ª ed. [internet] 2008 [citado em 2012 maio 27]; [cerca de 5p]. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/informe_rubeola2.pdf
http://portal.saude.gov.br/portal/arquiv...
).

Infecção congênita por citomegalovírus pode ocorrer em qualquer estágio da gravidez ou durante o parto. O potencial teratogênico é proporcional à precocidade da infecção. Há manifestação sistêmica, em que ocorrem calcificações cerebrais, hepatoesplenomegalia, coriorretinite, trombocitopenia, exantema macular, anemia hemolítica e comprometimento do desenvolvimento de órgãos, denomina-se doença de inclusão citomegálica.

Quando ocorre anoftalmia ou microftalmia severa, o olho contralateral pode ser normal ou portador de anormalidades do segmento posterior, suscitando a necessidade de futuros estudos na tentativa de estabelecer uma relação entre fenótipo e respectivo genótipo(1010 Gerth C, Schittkowski M, Guthoff R. Ocular findings in the contralateral eye in patients with unilateral anophthalmia or nonfunctioning microphthalmia. J AAPOS. 2009;13(1):e16. Parte inferior do formulário). O coloboma é uma falha no fechamento da fissura coroidal embrionária durante a 35ª a 41ª semana de gestação e pode afetar íris, o corpo ciliar, a coroide, a esclera ou a retina(1111 Gujar SK, Gandhi D. Congenital malformations of the orbit. Neuroimaging Clin N Am. 2011;21(3):585-602, viii.), como ocorreu no presente caso, podendo fazer parte de diversas síndromes.

Este relato chama a atenção de algumas possibilidades etiológicas referentes às malformações oculares congênitas e dos cuidados psicológicos a serem valorizados durante a assistência oftalmológica do paciente(1212 Leite M. Anoftalmia congênita. Apresentação de 5 casos. Rev Bras Oftalmol. 1970;29(3):75-9.).Ao constatar-se a malformação congênita, a habilidade do médico na comunicação da má notícia pode contribuir para a diminuição do impacto inicial dos familiares. Mesmo que a causa não seja identificada e a cura seja inalcançável, sempre será possível proporcionar benefícios, não somente tratando a doença e assistindo o doente, mas também orientando e confortando os familiares que geralmente encontram-se sob forte trauma emocional. Assim, através desta abordagem holística, o médico oftalmologista poderá cumprir o princípio fundamental do Código de Ética Médica de atuar humanisticamente nesta relação e com o melhor de sua capacidade profissional em benefício de seu paciente(1313 Conselho Federal de Medicina. Código de ética médica: Resolução CFM nº 1. 931, de 17 de setembro de 2009 (versão de bolso). Brasília: Conselho Federal de Medicina; 2010.).

A literatura nacional sobre o assunto é escassa e maiores estudos serão necessários tanto para esclarecer a etiologia das malformações oculares congênitas, como para orientar a conduta dos oftalmologistas frente às manifestações psicossociais sobrevindas nesta relação oftalmologista-paciente.

  • Trabalho realizado na Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC) – Campus de Joaçaba (SC), Brasil.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Dantas AM, Monteiro ML. Doenças da órbita. Rio de Janeiro: Cultura Médica; 2002.
  • 2
    Botelho NL, Volpini M, Moura EM. Aspectos psicológicos em usuários de prótese ocular. Arq Bras Oftalmol. 2002;66(5):637-46. Autor: Botelho, Nara Lúcia Poli; Volpini, Marcos; Moura, Eurípedes da Mota.
  • 3
    Verma AS, FitzPatrick DR. Anophthalmia and microphthalmia. Orphanet J Rare Dis. [periódico na internet] 2007 [citado 2012 julho 10];2:47: [cerca de 8p]. Disponível em: http://www.biomedcentral.com/content/pdf/1750-1172-2-47.pdf
    » http://www.biomedcentral.com/content/pdf/1750-1172-2-47.pdf
  • 4
    Slavotinek AM. Eye development genes and known syndromes. Mol Genet Metab. 2011;104(4):448-56.
  • 5
    Corso DD, Bonamigo EL, Corso MA, Rodrigues EB. Anoftalmia bilateral como defeito congênito isolado: uma abordagem etiológica e psicossocial. Rev Bras Oftalmol. 2011;70(4):243-7.
  • 6
    Taleb A, Ávila M, Moreira H. As condições de saúde ocular no Brasil - 2009. São Paulo: International Standard Book; 2009.
  • 7
    Brasil. Ministério da Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Coordenação Geral do Programa Nacional de Imunizações. Informe Técnico Nº 2. Campanha nacional de vacinação contra a rubéola - 2008. Vacinação contra a rubéola: gestantes vacinadas inadvertidamente (GVI). 2ª ed. [internet] 2008 [citado em 2012 maio 27]; [cerca de 5p]. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/informe_rubeola2.pdf
    » http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/informe_rubeola2.pdf
  • 8
    Minussi L, Nascimento CR, Momino W, Sanchotene ML, Enéas LV, Bercini M, et al. Avaliação prospectiva de gestantes vacinadas contra a rubéola no sul do Brasil. Sci Med. 2007;17(3):119-23.
  • 9
    Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Rubéola: CID 10: B06. [internet] 2009 [citado em 2011 maio 28]; [cerca de 17p]. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/gve_7ed_web_atual_rubeola.pdf
    » http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/gve_7ed_web_atual_rubeola.pdf
  • 10
    Gerth C, Schittkowski M, Guthoff R. Ocular findings in the contralateral eye in patients with unilateral anophthalmia or nonfunctioning microphthalmia. J AAPOS. 2009;13(1):e16. Parte inferior do formulário
  • 11
    Gujar SK, Gandhi D. Congenital malformations of the orbit. Neuroimaging Clin N Am. 2011;21(3):585-602, viii.
  • 12
    Leite M. Anoftalmia congênita. Apresentação de 5 casos. Rev Bras Oftalmol. 1970;29(3):75-9.
  • 13
    Conselho Federal de Medicina. Código de ética médica: Resolução CFM nº 1. 931, de 17 de setembro de 2009 (versão de bolso). Brasília: Conselho Federal de Medicina; 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2012
  • Aceito
    03 Dez 2012
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