INTRODUÇÃO
A Miopia ocorre quando a imagem de um objeto distante é formada anteriormente ao plano da retina, mais comumente como um resultado de um aumento do comprimento axial. Isto resulta em visão a distância turva e, ao contrário da hipermetropia, exige correção refrativa em todas as idades e em todos os graus para visão clara. Ela já é o erro de refração mais comum mundialmente, estando sua prevalência aumentando de forma significativa, especialmente no Sudeste asiático1.
Na Europa,Austrália e nos Estados Unidos sua prevalência parece ser mais baixa2, no entanto, há evidências de uma crescente prevalência nos Estados Unidos e em outros lugares3,4, particularmente entre os adultos jovens5. Essa rápida mudança não é compatível somente com determinação genética e apoia a relevância dos fatores ambientais na patogênese da miopia.
A Miopia é um distúrbio complexo com grande impacto médico sobre os indivíduos afetados e um considerável fardo econômico para a sociedade. Miopia grave é uma das principais causas de deficiência visual em todo o mundo porque está associada a outras comorbidades oculares tais como: descolamento de retina regmatogênico, degeneração macular miópica, catarata prematura e glaucoma. Tanto fatores genéticos e ambientais têm mostrado desempenhar algum papel em sua patogênese6.
Vários fatores ambientais têm sido associados à variação de sua prevalência e magnitude, incluindo trabalhos manuais e atividades ao ar livre durante a infância e adolescência, níveis de educação, estilo de residência (urbana vs. rural) e possivelmente graus de inteligência7.
Em muitos países asiáticos, onde a prevalência de miopia atingiu proporções de epidemia e a prevalência de alta miopia também é muito alta, ela agora é reconhecida como um importante problema de saúde pública8-11.
O objetivo deste estudo foi comparar dados de prevalência de miopia obtidos através de dois estudos epidemiológicos realizados em um mesmo serviço de referência em oftalmologia, na cidade de Goiânia - Goiás em diferentes períodos de tempo e avaliar se houve aumento dessa condição nesse serviço no determinado período de tempo entre os dois estudos.
MÉTODOS
Foram comparados dados obtidos através de dois estudos realizados no Instituto de Olhos de Goiânia entre os anos de 1995 e 2000 e no ano de 201412,13.
No primeiro estudo foram examinados alunos das escolas da rede municipal de Goiânia durante o período de outubro de 1995 e dezembro de 200012.
A seleção dos alunos que necessitavam de consulta oftalmológica foi realizada por funcionários da ONG fundação Jaime Câmara previamente treinados pelo coordenador do Projeto. Os critérios para a seleção de alunos para a consulta oftalmológica foram: aluno matriculado em escola de rede municipal; AV < 20/30 sem correção; portador de erro refracional prévio, usando ou não correção visual, estrabismo (latente ou manifesto), patologia ocular externa; sintomatologia relacionada às doenças oculares12.
Os alunos triados foram examinados pelos médicos residentes do Instituto de Olhos de Goiânia supervisionados por seu corpo docente em unidade móvel com dois consultórios oftalmológicos completos. O exame consistiu de anamnese, medida da acuidade visual (AV) (optótipos de Snellen, projetor de Bausch & Lomb - USA), cover teste, medida do ponto próximo de convergência (PPC), biomicroscopia (Lâmpada de Fenda Haag-Streit 900 BM - Swiss), tonometria de aplanação de Goldmann ( tonômetro Haag-Streit T-900 - Swiss), refração sob cicloplegia com ciclopentolato a 1% (Cicloplégico®) e/ou tropicamida a 1% (Mydriacyl®).
No segundo estudo foram selecionadas crianças de 2 a 14 anos de idade que foram encaminhadas para o Instituto de Olhos de Goiânia, pelo projeto Olhar Brasil, dentro do âmbito escolar. O projeto Olhar Brasil tem como objetivo identificar problemas visuais relacionados à refração13.
Uma vez encaminhadas, as crianças foram submetidas a exame oftalmológico completo, que consistiu no teste de acuidade visual, avaliação da motilidade ocular extrínseca, exame biomicroscópico, exame refracional objetivo e subjetivo sob cicloplegia. Ela foi realizada após a instilação de 1 gota de colírio de tropicamida a 1% (/Mydriacyl®- Alcon Brasil), então com 2 minutos 1 gota de ciclopentolato ( Cicloplégico®- Allergan- Brasil) e novamente mais uma gota em cada olho de tropicamida a 1% com finalidade de uma eficaz midríase.
Para caracterização das principais queixas, seus pais foram interrogados, através dos seguintes critérios: cefaleia, lacrimejamento excessivo, baixa acuidade visual para longe e para perto, secreção purulenta, fotofobia. Os dados referentes ao sexo, queixas principais das crianças, erro refracional e conduta foram aplicados no programa Excel (Microsoft ®- USA) e analisados estatisticamente.
A análise desses foram analisados comparando a prevalência de miopia dentre os participantes dos dois estudos em geral e a prevalência dessa alteração entre os participantes com erros refracionais, e por conseguinte se houve aumento da prevalência dessa condição entre os dois estudos.
RESULTADOS
No primeiro estudo realizado entre 1995 e 2000 foram avaliados 16.806 pacientes entre 2 e 40 anos totalizando 33612 olhos (Tabela 1).
Tabela 1 Distribuição de olhos por erro refracional encontrado no projeto Boa Visão
Erro refracional | Nª de olhos |
---|---|
Emetropia | 8921 |
Hipermetropia | 12908 |
Miopia | 598 |
Astigmatismo | 2285 |
Astigmatismo + Miopia | 1852 |
Astigmatismo + Hipermetropia | 6293 |
Presbiopia | 628 |
Inviável | 127 |
Fonte: Nassaralla JJ et al.12
Dentre esses pacientes, 79% apresentavam erros refracionais, estando a miopia presente em 2450 olhos o que totalizou 1225 pacientes. Isto representou 3,6% do total de participantes do estudo e 9,7% do total de erros refracionais encontrados no estudo.
No segundo estudo realizado no ano de 2014 foram avaliados 165 pacientes entre 2 e 14 anos, sendo o total de participantes com erros refracionais encontrado em 68 crianças, correspondendo a 43% do total de participantes (Tabela 2).
Tabela 2 Distribuição de erros refracionais encontrados no Projeto Olhar Brasil
Erro refracional | Nª de pacientes |
---|---|
Miopia | 15 |
Astigmatismo | 36 |
Hipermetropia | 41 |
Emetropia | 97 |
Fonte: Nassaralla JJ et al.12
Dentre os participantes com erros refracionais o total de pacientes portadores de miopia foi de 15, correspondendo a 22 % do total de erros refracionais e 9% do total de participantes (Tabela 3).
DISCUSSÃO
A recente elevação da prevalência da miopia espelha uma tendência para as crianças em muitos países que estão gastando mais tempo envolvidas em ler, estudar ou - mais recentemente atentas às telas de computadores e "smartphones". O uso de equipamentos com telas cada vez menores nos escritórios, escolas e para o lazer fez a miopia, dificuldade de enxergar à distância, crescer no mundo todo, inclusive no Brasil, principalmente entre crianças12.
Hoje, crianças e jovens estão trocando o computador de mesa pelo smartphone ou tablets. As telas menores fazem com que a maioria delas segure o equipamento a uma distância de 25 a 30 cm do olho. O esforço visual para enxergar tão perto faz o sistema ocular perder o foco para longe com mais facilidade, O uso incorreto dos eletrônicos em pessoas com predisposição genética pode causar miopia e comprometer o aprendizado12.
Segundo dados divulgados pelo instituto think with Google, o Brasil obteve um aumento de 112% na participação dos smartphones entre os acessos à internet, isso apenas no ano de 2015. Explicar este dado é simples, basta analisar que, em 2010, o Brasil tinha 10 milhões de smartphones e, apenas cinco anos depois este número cresceu para 93 milhões9.
Isto é particularmente o caso dos países do Leste Asiático, onde o elevado valor colocado sobre o desempenho educacional está levando as crianças a passar mais tempo na escola e em seus estudos. Um relatório da Organização para cooperação e desenvolvimento econômico mostrou que em média, crianças de 15 anos de idade em Xangai agora passam 14 horas por semana em trabalhos de casa, em comparação com 5 horas no Reino Unido e 6 horas nos Estados Unidos13.
Estudo conduzido pelo pesquisador Ian Morgan, da Australian National University mostra que quase 90% dos jovens adultos de países asiáticos - Japão, China, Taiwan, Singapura e Coreia do Sul - têm miopia14.
De acordo com o pesquisador, o que se supunha ser um problema com uma carga hereditária muito forte acabou evidenciando a relevante contribuição do ambiente e dos costumes. Como termo de comparação, o percentual de míopes no Reino Unido não chega a 30%14.
Estudos referentes à população de asiáticos que migraram para outros países também são reveladores. Chineses que se mudaram para a Austrália, por exemplo, onde a exposição ao sol é muito mais comum entre os jovens, apresentam taxas mais baixas de miopia do que seus parentes que permanecem no país de origem14.
Os dados obtidos neste estudo corroboram com essa tendência ainda que mostrem um aumento não tão expressivo na prevalência de miopia no período entre os dois estudos. Deve-se levar em conta, no entanto, a diferença entre a faixa etária entre os sujeitos dos dois projetos bem como os diferentes critérios de seleção de participantes adotados, além de diferenças de metodologias entre os mesmos.
É importante considerar também a grande diferença entre o número de participantes no primeiro estudo12 e o segundo estudo13, isso ocorre, pois, o primeiro estudo teve um período maior de coleta de dados, cinco anos, em comparação ao segundo estudo, um ano, este fato, no entanto não invalida a comparação pois foram estudos realizados no mesmo serviço de oftalmologia e seguem uma tendência mundial de aumento de prevalência dessa condição refracional.
O aumento da exigência de detecção e tratamento de miopia, o que implica em óculos, lentes de contato ou mais recentemente, a cirurgia refrativa a laser, têm significativas implicações para os serviços oftalmológicos e para o sistema de saúde como um todo. Será necessário um aumento na oferta de serviços oftalmológicos para tratar as eventuais complicações dessa condição, tais como: descolamento da retina, glaucoma e catarata8.
O aumento da prevalência da miopia implica também que as complicações não tratáveis, tais como: maculopatia miópica, mais comumente visto em altas miopias, vão tornar-se mais comuns. Isto irá resultar em mais prejuízo visual para os indivíduos com maior faixa etária, incluindo nessa faixa uma grande proporção da população em idade produtiva, com consequente implicações econômicas8.
Enquanto isso, os pesquisadores estão trabalhando formas de prevenir o agravamento da miopia. Já estão sendo desenvolvidos óculos especiais e lentes de contato que podem alterar o crescimento do olho, concentrando-se a luz de imagens distantes presentes em todo o campo visão, em vez de apenas das imagens do centro de visão, como fazem as lentes padrão8.
Outros grupos de pesquisa têm mostrado que aplicações noturnas de gotas de atropina na concentração de 1% e a 0,01% também podem ajudar no controle de progressão da miopia, embora com seu mecanismo de controle ainda permanecendo obscuro. Outros estudos já foram feitos com drogas como pirenzepina e 7-metilxantina, com resultados pouco satisfatórios, sendo nenhuma destas drogas aprovadas pelos órgãos regulamentadores para controle da miopia. Tratamentos preventivos com base em uma análise científica de fatores de risco modificáveis seriam de longe preferíveis a partir de uma perspectiva pública da saúde8,15 .
Embora a miopia pode ser tratada com relativa facilidade através de lentes corretivas, ela gera despesas substanciais devido à sua alta prevalência na população. Dados americanos afirmam que uma prevalência de 25% de miopia em pessoas com idade entre 12 a 54 anos gera um custo associado anual de mais de 2 bilhões de dólares; um aumento na prevalência para 37% iria aumentar esse custo para mais de 3 bilhões de dólares anualmente16,17.
A questão de saber se a prevalência de miopia vem aumentando é importante para os planejadores de saúde e para a formatação de políticas públicas. A identificação de fatores de risco modificáveis para o desenvolvimento da miopia poderia levar ao desenvolvimento de estratégias de intervenções eficazes em termos de custos por parte de governos e instituições de ensino para conter o avanço dessa alteração8.
CONCLUSÃO
Observou-se um aumento na prevalência de miopia entre os dois estudos, dados esses que corroboram com análises feitas que mostram um aumento da prevalência de miopia em todo o mundo nos últimos 30 anos. O aumento é menor que o encontrado na Ásia, mas proporcional ao aumento encontrado em estudos americano e de alguns países europeus.
Deve-se realizar no futuro outros estudos com faixas etárias mais próximas e com números de participantes mais próximos para avaliar se essa tendência irá se manter.