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Desmascarando o queratocone: efeito do epitélio corneano no queratocone

Resumo

Objetivo:

Na presença de uma córnea irregular, como no queratocone, o epitélio tem uma distribuição diferente do normal, “mascarando” a irregularidade do estroma. A avaliação topográfica sem considerar o efeito do epitélio pode induzir uma avaliação menos correta, afetando a precisão de um eventual tratamento guiado por topografia. O objetivo deste trabalho é avaliar o efeito de “máscara” do epitélio no queratocone, comparando a tomografia corneana com e sem epitélio, no decurso da realização de Crosslinking (CXL).

Métodos:

Cinco olhos de 5 doentes com queratocone em progressão submetidos a CXL segundo o protocolo original de Dresden. Foi realizada tomografia corneana antes e durante o procedimento (imediatamente após a remoção do epitélio), e avaliados os valores da queratometria - K1, K2, K médio (Km), ponto de máxima curvatura (Kmax), valores paquimétricos e astigmatismo corneano.

Resultados:

Os valores médios de curvatura corneanas antes e após a remoção do epitélio foram de: K1: 43,50 ± 2,54D e 44,32±2,64D (p=0,080); K2: 46,64±2,35D e 49,38±2,86D (p=0,043); Km: 45,48±2,42D e 46,72±2,60D (p=0,042). Observou-se igualmente um aumento estatisticamente significativo do valor de queratometria máxima após a remoção do epitélio (p=0,043). Na paquimetria central observou-se uma redução média de 26,8µm de 524,8±33,0µm para 498,2±37,7µm (p= 0,042).

Conclusão:

Observou-se um aumento estatisticamente significativo nos valores do Kmax, K2, e Kmédio após remoção do epitélio. Este estudo demonstra o efeito de “máscara” que o epitélio exerce no queratocone.

Descritores:
Córnea; Ceratocone; Epitélio; Crosslinking; Topografia da córnea

Abstract

Objective:

In the presence of an irregular cornea, like in keratoconus, the corneal epithelium has a different profile “masking” the irregular corneal stroma surface. Topographical analysis without considering the epithelium effect can result in an incorrect assessment, affecting the accuracy of any topography guided treatment. The aim of this study was to evaluate the “masking” effect of the corneal epithelium on corneal curvature in patients with keratoconus, comparing topographical findings before and after removal of the epithelium during Crosslinking (CXL).

Methods:

Five eyes of 5 patients with progressive keratoconus submitted to CXL according to the original Dresden protocol. Corneal topography was performed before and during the procedure (immediately after epithelium removal) and values of keratometry: K1, K2, mean K (Km), maximum corneal apical curvature (Kmax), corneal thickness and corneal astigmatism were evaluated.

Results:

The average values of corneal curvature before and after epithelial remove were: K1: 43.50±2.54D and 44.32±2,64D (p=0.080); K2 46.64±2,35D and 49.38±2,86D (p=0.043); Km 45.48±2.42D and 46.72±2.60D (p=0.042). It was also observed a significant increase in the maximum values of corneal apical curvature after removal of the epithelium (p=0.043). In central corneal thickness there was seen a reduction of 26.8µm from 524.8±33.0µm to 498.2±37.7µm (p = 0.042).

Conclusion:

There was seen a significant increase in the values of Kmax, K2 and mean K. This study demonstrates the masking effect of corneal epithelium on corneal curvature in keratoconus.

Keywords:
Cornea; Keratoconus; Epithelium; Crosslinking; Corneal topography

Introdução

O queratocone é uma ectasia corneana bilateral, não inflamatória e lentamente progressiva caracterizada pelo adelgaçamento e aumento da curvatura corneana.(11 Rabinowitz YS. Keratoconus. Surv Ophthalmol. 1998 Jan-Feb;42(4):297-319.) É a ectasia de córnea mais comum afetando uma em cada 2000 pessoas.(22 Prisant O, Legeais JM, Renard G. Superior keratoconus. Cornea. 1997;16(6):693-4.) As alterações das estruturas de colagénio da córnea observadas no queratocone diminuem a estabilidade corneana, causando um protrusão progressiva, tipicamente com a localização do ápex no quadrante temporal inferior.(22 Prisant O, Legeais JM, Renard G. Superior keratoconus. Cornea. 1997;16(6):693-4.,33 Auffarth GU, Wang L, Völcker HE. Keratoconus evaluation using the orbscan topography system. J Cataract Refract Surg. 2000;26(2):222-8.) O astigmatismo irregular, a miopia progressiva, o adelgaçamento da córnea e o aparecimento de leucomas centrais são alterações corneanas induzidas por estas alterações do colagénio corneano.(11 Rabinowitz YS. Keratoconus. Surv Ophthalmol. 1998 Jan-Feb;42(4):297-319.,44 Andreassen TT, Simonsen AH, Oxlund H. Biomechanical properties of keratoconus and normal corneas. Exp Eye Res. 1980;31(4):435-41.) Consequentemente a acuidade visual e a qualidade da visão deterioram-se progressivamente e de forma irreversível.(11 Rabinowitz YS. Keratoconus. Surv Ophthalmol. 1998 Jan-Feb;42(4):297-319.)

Estudos histopatológicos mostram que no queratocone todas as camadas da córnea estão de algum modo alteradas observando-se uma desorganização estrutural das fibras lamelaress de colagénio com alteração significativa e progressiva da sua matriz.(55 Yue BY, Sugar J, Schrode K. Histochemical studies of keratoconus. Curr Eye Res. 1988;7(1):81-6.,66 Meek KM, Tuft SJ, Huang Y, Gill PS, Hayes S, Newton RH, et al. Changes in collagen orientation and distribution in keratoconus corneas. Invest Ophthalmol Vis Sci. 2005;46(6):1948-56.) Está igualmente demonstrado que o epitélio corneano no ápex é mais fino em córneas com queratocone quando comparado com córneas normais tendo o epitélio corneano um perfil e distribuição diferente na presença de uma córnea irregular visando assim compensar ou “mascarar” a irregularidade do estroma.(11 Rabinowitz YS. Keratoconus. Surv Ophthalmol. 1998 Jan-Feb;42(4):297-319.,77 Reinstein DZ, Archer TJ, Gobbe M, Silverman RH, Coleman DJ. Epithelial thickness in the normal cornea: three-dimensional display with Artemis very high-frequency digital ultrasound. J Refract Surg. 2008;24(6):571-81.,88 Reinstein DZ, Gobbe M, Archer TJ, Silverman RH, Coleman DJ. Epithelial, stromal, and total corneal thickness in keratoconus: three-dimensional display with artemis very-high frequency digital ultrasound. J Refract Surg. 2010;26(4):259-71.) Em casos muito avançados esta diminuição da espessura pode mesmo resultar em ruturas epiteliais.(77 Reinstein DZ, Archer TJ, Gobbe M, Silverman RH, Coleman DJ. Epithelial thickness in the normal cornea: three-dimensional display with Artemis very high-frequency digital ultrasound. J Refract Surg. 2008;24(6):571-81.,88 Reinstein DZ, Gobbe M, Archer TJ, Silverman RH, Coleman DJ. Epithelial, stromal, and total corneal thickness in keratoconus: three-dimensional display with artemis very-high frequency digital ultrasound. J Refract Surg. 2010;26(4):259-71.)

Alguns estudos já demonstraram que o epitélio corneano apresenta uma distribuição diferente na presença de uma superfície de estroma irregular.(88 Reinstein DZ, Gobbe M, Archer TJ, Silverman RH, Coleman DJ. Epithelial, stromal, and total corneal thickness in keratoconus: three-dimensional display with artemis very-high frequency digital ultrasound. J Refract Surg. 2010;26(4):259-71.

9 Reinstein DZ, Archer T. Combined Artemis very high-frequency digital ultrasound-assisted transepithelial phototherapeutic keratectomy and wavefront-guided treatment following multiple corneal refractive procedures. J Cataract Refract Surg. 2006;32(11):1870-6.

10 Kanellopoulos AJ, Aslanides IM, Asimellis G. Correlation between epithelial thickness in normal corneas, untreated ectatic corneas, and ectatic corneas previously treated with CXL; is overall epithelial thickness a very early ectasia prognostic factor? Clin Ophthalmol. 2012;6:789-800.
-1111 Vinciguerra P, Albè E, Trazza S, Seiler T, Epstein D. Intraoperative and postoperative effects of corneal collagen cross-linking on progressive keratoconus. Arch Ophthalmol. 2009;127(10):1258-65.) Vinciguerra et al. demonstrou um efeito “aplanador” do epitélio em doentes com queratocone¬.(1111 Vinciguerra P, Albè E, Trazza S, Seiler T, Epstein D. Intraoperative and postoperative effects of corneal collagen cross-linking on progressive keratoconus. Arch Ophthalmol. 2009;127(10):1258-65.)

Deste modo, a avaliação da progressão e da topografia corneana antes de se considerar uma cirurgia refrativa sem se considerar o efeito do epitélio na tomografia e topografia corneana, pode induzir uma incorreta avaliação afetando a precisão de um eventual tratamento queratorefractivo.(1010 Kanellopoulos AJ, Aslanides IM, Asimellis G. Correlation between epithelial thickness in normal corneas, untreated ectatic corneas, and ectatic corneas previously treated with CXL; is overall epithelial thickness a very early ectasia prognostic factor? Clin Ophthalmol. 2012;6:789-800.)

Assim, o objetivo deste trabalho é avaliar o efeito de “máscara” do epitélio no queratocone, comparando a tomografia corneana (Oculus Wavelight Pentacam®-Oculus, Wetzlar, Germany) com e sem epitélio, no decurso da realização de Crosslinking (CXL) em doentes com queratocone em progressão.

Métodos

Estudo retrospetivo realizado na secção de Córnea do Serviço de Oftalmologia do Centro Hospitalar do Porto, Portugal, entre Março e Setembro de 2016 com 5 olhos de 5 doentes com queratocone em progressão submetidos a CXL segundo o protocolo original de Dresden. Foram critérios de exclusão a existência de leucomas corneanos, cirurgia corneana prévia, o uso recente de lentes de contacto (> 14 dias) ou a existência de doenças do tecido conjuntivo. Foi preenchido um consentimento informado pelos doentes ou tutores legais sobre o procedimento e o estudo bem como a permissão para o uso de informação clínica com o intuito investigacional.

O diagnóstico de queratocone foi efetuado por um oftalmologista, recorrendo a exame oftalmológico e análise da topografia corneana (Orbscan IIz, Bausch & Lomb®) e tomografia corneana (Oculus Wavelight Pentacam® - Oculus, Wetzlar, Germany). Dos casos selecionados 4 encontravam-se no estadio I e um no estadio II da classificação de Amsler-Krumeich. A progressão do queratocone foi definida por pelo menos um dos seguintes critérios nos últimos 12 meses tendo sido selecionados casos consecutivos que cumprissem os seguintes critérios de inclusão: aumento de 1.00D ou mais do valor de queratometria no eixo mais curvo, aumento de 1.00D ou mais no valor de cilindro na refração subjetiva; aumento de pelo menos 0,50D no valor de equivalente esférico na refração subjetiva.

Foi realizada tomografia corneana com sistema de câmara de Scheimpflug (Pentacam® - Oculus, Wetzlar, Germany) durante o procedimento de CXL, tendo sido todas as aquisições realizadas pelo mesmo observador (L.O.), no bloco antes de iniciar o tratamento e imediatamente após a remoção do epitélio com escova de Amoils® automatizada de 9mm de diâmetro e centramento no eixo pupilar. Apenas foram consideradas para análise as aquisições com qualidade (Qs – Quality Specifications) classificada como “OK”, sendo que em 2 casos esta classificação não foi obtida após a remoção do epitélio. As aquisições que não atingiram este parâmetro de qualidade foram descartadas, tendo o exame sido repetido até se obterem captações com qualidade. Foram avaliados: valores de curvatura da córnea central - K1, K2, K médio (Km), ponto de máxima curvatura (Kmax), curvatura superior, inferior, nasal e temporal e os valores de paquimetria a 3mm do centro nos mapas de curvatura sagital anterior, astigmatismo corneano anterior e colhidos igualmente os dados demográficos.

Os valores são apresentados na forma de média e desvio padrão da média. A normalidade dos resultados foi avaliada pelo teste de Shapiro-Wilk. Foi usado o teste de Wilcoxon para amostras emparelhadas para análise estatística. A análise dos dados foi realizada com recurso à 23ª edição do software SPSS (IBM ®, USA). Um valor de P <0.05 foi aceite como estatisticamente significativo.

Resultados

A idade média da população da nossa amostra foi de 17,8 ± 5,6 anos (11-25), sendo todos os indivíduos do sexo masculino.

Os valores médios de curvatura corneanas antes e após a remoção do epitélio podem ser observados na tabela 1, onde se destacam um aumento estatisticamente significativo após a remoção do epitélio no valor médio do K2 de 46,64 ± 2,35D (46,1 –51,8) para 49,38 ± 2,86D (47,3–54,4) - p=0,043; bem como no Km: 45,48±2,42D (43,9–49,7) para 46,72 ± 2,60D (45,1–54,4) - p=0,042. Observou-se igualmente um aumento estatisticamente significativo de 4,06D do valor do ponto de queratometria máxima (Kmax) após a remoção do epitélio, de: 55,76± 4,40D (52,6–62,7) para 59,82 ± 4,14D (55,1–64,7) - p=0,043. Estas diferenças foram observadas em todos os doentes avaliados.

Tabela 1
Valores de queratometria corneana com e sem epitélio.

Quando se analisaram as diferenças nos valores queratométricos do K1 e das curvaturas superior, inferior, temporal e nasal a 3mm do centro da córnea, não foram observadas diferenças estatisticamente significativas após a remoção do epitélio (Tabela 1).

Relativamente às alterações paquimétricas – tabela 2 – na paquimetria central constatou-se uma redução média da paquimetria corneana central de 29,8µm, de 528,0 ± 38,5µm com epitélio para 498,2 ± 37,7µm - p=0,043 após a remoção do epitélio. Quando se analisou as alterações paquimétricas nos diferentes quadrantes – temporal superior e inferior e nasal superior e inferior, a 3mm do centro da córnea, observa-se uma diferença estatística em todos eles exceto no quadrante temporal inferior (Tabela 2).

Tabela 2
Valores de paquimetria corneana com e sem epitélio obtidos por tomografia

Não foram observadas complicações, nomeadamente infeciosas, na realização dos exames e procedimentos. Em todos os doentes foi possível a captação com qualidade para exportar e para realizar tratamento.

Os mapas de tomografia corneana curvatura revelam um aumento significativo nos valores queratométricos no meridiano mais curvo nos 3mm centrais, ponto de curvatura máximo e curvatura média sem epitélio com redução não significativa do valor da paquimetria na zona de ápex (temporal inferior) após a remoção do epitélio. (Figuras 1 A e B).

Figura 1 A
Tomografia corneana (Pentacam) com epitélio
Figura 1 B
Tomografia corneana (Pentacam) sem epitélio

Discussão

Neste estudo, foram incluídos 5 olhos com queratocone progressivo submetidos a CXL segundo o protocolo original de Dresden. Após a remoção do epitélio corneano em olhos com queratocone foi detetado um aumento na curvatura média (Km), curvatura apical, (Kmax) e K2. Foram igualmente observadas alterações paquimétricas demonstrando menores espessuras epiteliais na localização do ápex nos olhos com queratocone avaliados.

O epitélio afeta o poder refrativo da córnea e, consequen-temente, contribui para o poder refrativo total do olho.(1010 Kanellopoulos AJ, Aslanides IM, Asimellis G. Correlation between epithelial thickness in normal corneas, untreated ectatic corneas, and ectatic corneas previously treated with CXL; is overall epithelial thickness a very early ectasia prognostic factor? Clin Ophthalmol. 2012;6:789-800.) Este efeito refrativo é produzido pela diferença nos índices de refração entre o filme lacrimal e o ar e o índice entre o epitélio e o estroma (1,40 vs 1,377).(1212 Patel S, Marshall J, Fitzke FW 3rd. Refractive index of the human corneal epithelium and stroma. J Refract Surg. 1995;11(2):100-5.) Foi descrito em 1921 por Vogt et al., o efeito de máscara do epitélio corneano em doentes com superfícies do estroma irregulares.(1313 Vogt A. Textbook and atlas of atlas of slit lamp microscopy of the living eye. Bonn, Germany: Wayenborgh Editions; 1981.) Este mecanismo compensatório tem sido observado em todas as situações em que há irregularidade da superfície estromal (ex: pacientes com astigmatismos irregulares, doentes submetidos a queratotomias radiárias, leucomas ou traumas).(1010 Kanellopoulos AJ, Aslanides IM, Asimellis G. Correlation between epithelial thickness in normal corneas, untreated ectatic corneas, and ectatic corneas previously treated with CXL; is overall epithelial thickness a very early ectasia prognostic factor? Clin Ophthalmol. 2012;6:789-800.,1111 Vinciguerra P, Albè E, Trazza S, Seiler T, Epstein D. Intraoperative and postoperative effects of corneal collagen cross-linking on progressive keratoconus. Arch Ophthalmol. 2009;127(10):1258-65.,1313 Vogt A. Textbook and atlas of atlas of slit lamp microscopy of the living eye. Bonn, Germany: Wayenborgh Editions; 1981.)

Também tem sido demonstrado que a espessura epitelial tem um papel importante na cirurgia refrativa e no resultado desta.(77 Reinstein DZ, Archer TJ, Gobbe M, Silverman RH, Coleman DJ. Epithelial thickness in the normal cornea: three-dimensional display with Artemis very high-frequency digital ultrasound. J Refract Surg. 2008;24(6):571-81.,1414 Reinstein DZ, Archer TJ, Gobbe M. Refractive and topographic errors in topography-guided ablation produced by epithelial compensation predicted by 3D Artemis VHF digital ultrasound stromal and epithelial thickness mapping. J Refract Surg. 2012;28(9):657-63.) Distribuições irregulares do epitélio podem induzir um resultado cirúrgico imprevisível devido ao efeito de regularização que o epitélio assume nas irregularidades estromais.(1414 Reinstein DZ, Archer TJ, Gobbe M. Refractive and topographic errors in topography-guided ablation produced by epithelial compensation predicted by 3D Artemis VHF digital ultrasound stromal and epithelial thickness mapping. J Refract Surg. 2012;28(9):657-63.) Simon et al. realizaram medições queratométricas em 10 olhos humanos de um banco de olhos antes e após a remoção do epitélio demonstrando a mudança na potência refrativa da córnea e no eixo de astigmatismo após a desepitelização.(1515 Simon G, Ren Q, Kervick GN, Parel JM. Optics of the corneal epithelium. Refract Corneal Surg. 1993;9(1):42-50.) Tem sido proposto que este efeito de máscara do epitélio também deverá ser considerado no diagnóstico e na classificação dos doentes com queratocone.(1111 Vinciguerra P, Albè E, Trazza S, Seiler T, Epstein D. Intraoperative and postoperative effects of corneal collagen cross-linking on progressive keratoconus. Arch Ophthalmol. 2009;127(10):1258-65.,1212 Patel S, Marshall J, Fitzke FW 3rd. Refractive index of the human corneal epithelium and stroma. J Refract Surg. 1995;11(2):100-5.)

Em resumo, observou-se um aumento da curvatura da córnea após a remoção do epitélio em córneas com queratocone. Além disso, as espessuras epiteliais dos pontos com maiores índices queratométricos eram menores do que nos pontos mais planos. Todos estes sinais demonstram o efeito do epitélio na potência refrativa total da córnea, assumindo assim um papel regularizador da ectasia estromal induzindo um efeito de máscara sobre a real curvatura da córnea em doentes com queratocone. As mudanças queratométricas intra-operatórias do epitélio foram já analisadas in vivo por Vinciguerra et al.,(1111 Vinciguerra P, Albè E, Trazza S, Seiler T, Epstein D. Intraoperative and postoperative effects of corneal collagen cross-linking on progressive keratoconus. Arch Ophthalmol. 2009;127(10):1258-65.) em 28 olhos com queratocone progressivo submetidos a CXL tendo realizado análise topográfica antes e após a remoção do epitélio. Foi, tal como no nosso trabalho, observado um aumento do índice queratométrico apical (Kmax) e na queratometria do meridiano mais curvo (K2) após a remoção do epitélio. Estes resultados foram então propostos como sinais do efeito de máscara e de regularização que o epitélio corneano assume nas irregularidades do estroma corneano.(1111 Vinciguerra P, Albè E, Trazza S, Seiler T, Epstein D. Intraoperative and postoperative effects of corneal collagen cross-linking on progressive keratoconus. Arch Ophthalmol. 2009;127(10):1258-65.)

No nosso estudo, além dos resultados mencionados anteriormente, as mudanças queratométricas dos quadrantes superior, inferior, nasal e temporal foram igualmente avaliados. Têm sido realizados alguns estudos com o objetivo de detetar características ou padrões epiteliais em córneas com queratocone, sendo atualmente os perfis de espessura e distribuição do epitélio corneano propostos como úteis no diagnóstico de Queratocone.(1616 Haque S, Jones L, Simpson T. Thickness mapping of the cornea and epithelium using optical coherence tomography. Optom Vis Sci. 2008;85(10):E963-76.,1717 Haque S, Simpson T, Jones L. Corneal and epithelial thickness in keratoconus: a comparison of ultrasonic pachymetry, Orbscan II, and optical coherence tomography. J Refract Surg. 2006;22(5):486-93.) Foi já observado através de ultrassonografia de alta frequência que a espessura epitelial mais reduzida se encontrava no quadrante temporal inferior em 74% dos casos.(1414 Reinstein DZ, Archer TJ, Gobbe M. Refractive and topographic errors in topography-guided ablation produced by epithelial compensation predicted by 3D Artemis VHF digital ultrasound stromal and epithelial thickness mapping. J Refract Surg. 2012;28(9):657-63.) No nosso estudo a espessura do epitélio medida no quadrante temporal inferior – localização do cone em todos os doentes do estudo – foi de 16,4 µm, sendo este valor inferior ao observado nos restantes quadrantes.

O efeito de máscara do epitélio é assim suportado pelas diferenças estatisticamente significativas entre os valores de paquimetria e de queratometria antes e depois da remoção do epitélio observados no presente estudo, em que as alterações paquimétricas e queratométricas foram analisadas a 3mm do centro da córnea, localização que em todos os doentes inclui o ápex do cone.

Apesar dos resultados reportados, existem algumas limitações no nosso estudo. Em primeiro lugar, o reduzido número de doentes avaliados. Em segundo lugar as espessuras do epitélio avaliadas foram obtidas através de uma técnica de subtração, sendo que esta não é uma medida direta tal como a tomografia de coerência óptica (OCT) ou a ultrassonografia de ultra-alta frequência. Por último, o cálculo da espessura do epitélio por esta técnica tem limitações apresentando no presente estudo valores menores relativamente ao já descrito em córneas com queratocone,(1717 Haque S, Simpson T, Jones L. Corneal and epithelial thickness in keratoconus: a comparison of ultrasonic pachymetry, Orbscan II, and optical coherence tomography. J Refract Surg. 2006;22(5):486-93.) poderá deste modo haver alterações da paquimetria devido ao processo de hidratação e desidratação da córnea antes e após a remoção do epitélio. Sendo uma das possíveis aplicações deste conhecimento e avaliação a execução de tratamentos guiados por topografia, tratando a verdadeira topografia corneana, e apesar da maior dificuldade de captação do exame, em todos os doentes do presente estudo foi possível captação com qualidade para exportação e realização do tratamento.

No entanto e apesar destas limitações, pensamos que este estudo fornece informações válidas sobre o efeito do epitélio corneano na topografia da córnea em pacientes com queratocone corroborando o já previamente descrito na literatura. Deste modo, os autores, recomendam esta abordagem em todos os doentes com queratocone em progressão e que não tenham contraindicação para CXL

Conclusão

Neste estudo foram observadas variações topográficas e paquimétricas significativas em doentes com queratocone, mostrando que o epitélio da córnea afeta a curvatura corneana, assumindo um efeito de regularização da irregularidade do estroma mascarando o seu verdadeiro valor e gravidade. Com a remoção do epitélio, observou-se um aumento estatisticamente significativo nos valores do Kmax, K2 e do Kmédio. Estas diferenças podem ser em parte explicadas pela distribuição não uniforme do epitélio nas córneas irregulares, sendo mais fino nas áreas mais curvas do estroma, com maiores indicies queratométricos, nomeadamente no ápex como foi demonstrado. Como resultado, o epitélio comporta-se assim como um fator regularizador da verdadeira ectasia estromal.

Deste modo, a avaliação da tomografia corneana sem se considerar o efeito do epitélio pode induzir um diagnóstico, avaliação e classificação menos correta do queratocone, afetando a precisão de um eventual tratamento baseado na topografia ou mesmo ocultar a progressão da doença.

Declaração de interesses financeiros: Os autores não têm qualquer interesse proprietário ou comercial em quaisquer materiais discutidos neste projeto

  • Instituição: Serviço de Oftalmologia - Centro Hospitalar Universitário do Porto, Portugal.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2019

Histórico

  • Recebido
    06 Ago 2018
  • Aceito
    29 Nov 2018
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