Introdução
A febre Chikungunya causada pelo vírus de mesmo nome, é uma doença que cursa com o acometimento das articulações, sendo potencialmente debilitante devido a intensidade e cronicidade do quadro álgico.(1) A transmissão ocorre através da picada das fêmeas de mosquitos Aedes Aegypti e Aedes Albopictus infectados pelo vírus Chikungunya, caracterizando-se como uma arbovirose.(2)
Foi identificado pela primeira vez em 1952 em uma epidemia em Makonde Plateau, na região sul da Tanzânia, e seu nome significa no idioma de origem "aquele que se dobra", uma referência a postura antálgica do paciente infectado.(3)
No Brasil, o primeiro caso autóctone foi confirmado em Oiapoque-AP (em 13 de setembro de 2014) e sete dias após novos casos foram confirmados em Feira de Santana-BA.(4)
Em 2017 no Brasil, foram registrados 185.854 casos prováveis de febre Chikungunya e em 2018, foram 85.221 casos prováveis, sendo confirmados 65.480 (76,8%) segundo os dados do Sistema de Notificação e Agravos de Notificação (SINAN).(5)
Em 2019, até a décima segunda semana epidemiológica, período entre 30/12/2019 e 23/03/2019, foram registrados 15.352 casos prováveis de febre Chikungunya no país, com uma incidência de 7,4 casos/100 mil hab. A região Sudeste apresentou o maior número de casos prováveis de Chikungunya (66,5%) em relação ao total do país. Entre as unidades federativas, o Rio de Janeiro se destaca pela maior taxa de incidência com 47,7 casos/100 mil hab. Laboratorialmente, houve a confirmação de 2 óbitos por febre Chikungunya e nesse mesmo período em 2018 foram confirmados 10 óbitos.(5)
O Ministério da Saúde preconiza a notificação de todo caso suspeito ao serviço de vigilância epidemiológica em até sete dias (Anexo da Portaria no 204/2016), enquanto os óbitos suspeitos são de notificação imediata (até 24 horas). Os casos suspeitos são definidos por febre de início súbito e artralgia ou artrite intensa de início agudo não explicada por outras condições, ou que tenha vínculo epidemiológico com caso confirmado. (2)
O diagnóstico laboratorial é realizado através de testes sorológicos. Durante a fase aguda da infecção altos títulos do vírus estão presentes no sangue, permitindo a pesquisa de RNA viral por meio da técnica de Polymerase Chain Reaction (PCR) entre o primeiro e quinto dia.(2-6) Testes sorológicos permitem a detecção de anticorpos específicos (imunoglobulinas do tipo M - IgM) a partir do segundo dia após o aparecimento dos sintomas, enquanto na segunda semana após a infecção já são detectados imunoglobulina do tipo G (IgG).(2-7)
Manifestações clínicas
Os pacientes infectados pelo vírus apresentam na fase aguda febre alta (superior a 39 ºC), intensa artralgia, mialgia, além de exantema máculo-papular.(8)
O início dos sintomas é abrupto e ocorre após um período de incubação de três dias. A resolução da febre e do rash cutâneo ocorre usualmente em poucos dias.(9) Cerca de 15% dos indivíduos são assintomáticos.(8)
A maioria dos pacientes apresenta dor e edema em articulações que tipicamente é simétrica e pode acometer qualquer articulação.(8) A queixa de artralgia começa após a primeira semana do início dos sintomas e pode perdurar por até três anos.(10)
Em casos graves podem ocorrer encefalite, miocardite, hepatite e falência múltipla de órgãos. O acometimento neurológico cursa com convulsões, alteração mental, paralisia flácida e até morte.(11,12)
Manifestações oculares
Alterações oftalmológicas decorrentes da febre Chikungunya estão descritas em poucos estudos. Em um estudo retrospectivo realizado na Índia, o início do desenvolvimento de manifestações oculares variou de 4 a 12 semanas (média de seis) do quadro agudo da doença. (13)
Na vigência dessas manifestações, a febre Chikungunya é classificada como forma atípica, considerada a mais grave. As alterações oculares possivelmente ocorrem pela resposta imunológica associada a reação de hipersensibilidade. Essa resposta é iniciada por anticorpos contra os antígenos virais que também são responsáveis pelo comprometimento articular na doença sistêmica. (14)
A ocorrência das manifestações oculares pode estar associada ao efeito direto do vírus (quando acompanhadas por manifestações sistêmicas), à resposta imunológica (nas manifestações tardias) (15) ou à toxicidade medicamentosa. (2) Os mecanismos exatos do envolvimento ocular na febre Chikungunya ainda não estão completamente elucidados.
Na córnea, as células epiteliais e endoteliais são os alvos preferidos do vírus, enquanto os fibroblastos são acometidos no tecido conectivo escleral, estroma do músculo liso do corpo ciliar e da íris.(16,17)
Foram identificados casos de conjuntivite, cursando com hiperemia e desconforto ocular, semelhante a outras conjuntivites virais.(18) A alteração mais comumente encontrada foi a uveíte anterior bilateral frequentemente associada ao aumento da pressão intraocular.(13,19)
Com relação a sintomatologia relatada durante o período agudo da infecção, o estudo de Esporcatte et al. obsevou que 4 pacientes (12,50%) referiram conjuntivite e 19 dor retro-orbitária (59,38%).(20) Em um estudo retrospectivo de 139 pacientes com sorologia positiva para o vírus Chikungunya realizado em uma emergência geral de Porto Rico em 2014, foi descrito conjuntivite em 27 pacientes (19,40%) e foram observados 13 pacientes (9,40%) com sintomas associados à uveíte anterior descritos como hiperemia conjuntival unilateral, injeção ciliar e irregularidade da pupila. Porém, esse diagnóstico foi realizado por um médico não especialista sem o auxílio de uma lâmpada de fenda.(21) É relatado na literatura que fotofobia, hiperemia conjuntival e dor retro-orbitária são achados frequentes na fase aguda da doença e que podem apresentar-se sem outras alterações oftalmológicas.(22)
No estudo retrospectivo de Mahendradas et al. 5 pacientes apresentaram iridoclicite na fase aguda da infecção sem alterações no exame de gonioscopia ou fundoscopia.(13) Lalitha et al. descreveram 11 casos de pacientes com uveíte anterior ((10) não granulomatosa e uma granulomatosa), diagnosticados no período de até três meses após a fase aguda da infecção.(23)
Com relação ao aumento da pressão intraocular, o estudo de Esporcatte et al. uma paciente apresentou aumento da pressão intraocular associada ao aumento da escavação do disco óptico (variação entre 08-30 mmHg).(20) No estudo de Mittal et al. 5 pacientes foram diagnosticados com aumento da pressão intraocular (36,8±10,3 mmHg) induzido pela uveíte.(24) Outro estudo descreveu 5 pacientes com inflamação intraocular cursando com aumento da pressão intraocular, variando entre 27-42 mmHg. A mesma foi controlada três semanas após o tratamento específico do processo inflamatório.(13)
Com relação a acuidade visual foi observado na fase crônica da doença (12,72 ± 7,70 meses) a variação com a melhor correção entre 20/20 e 20/60.(20) Em um estudo retrospectivo realizado em 2007 na Índia de uma série de 37 casos até três meses do diagnóstico da doença, a acuidade visual encontrada variou entre 20/20 a percepção luminosa em 1 paciente. (23) No estudo de Mittal et al. a acuidade visual com a melhor correção variou entre 20/40 em 11 olhos (61,10%) a pior que 20/200 em 2 olhos (11,10%).(15) Em outro trabalho retrospectivo com 9 pacientes a acuidade visual com a melhor correção teve a variação entre 20/20 a 20/20.000 (equivalente a movimento de mãos a 60 cm).(13,25)
No trabalho de Esporcatte et al. o diagnóstico de olho seco foi relatado em 20 pacientes (62,00%) através dos testes de função lacrimal. Nestes, as alterações foram encontradas em 9 indivíduos somente no tempo de ruptura do filme lacrimal (45,00%), em 11, tanto no tempo de ruptura do filme lacrimal, quanto no teste de Schirmer (55,00%). Quatro pacientes apresentaram alterações no teste da lissamina verde (12,50%). Não foi encontrada significância estatística entre o olho seco e a idade dos pacientes.(20)
Lalitha et al. observou 3 pacientes com ceratite, porém com o padrão dendrítico, semelhante a causada por herpes vírus, esses foram submetidos ao tratamento preconizado para ceratite herpética com aciclovir obtendo melhora do quadro.(23)
O acometimento do segmento posterior pode manifestar-se com retinite,(13,18,23) coroidite,(23) neurorretinite(26,27) e neurite óptica.(24) A retinite pode apresentar-se com vitreíte, hemorragia e edema retiniano com acometimento da vasculatura da retina, o que pode assemelhar-se à infecção pelo vírus da herpes.(13) A maioria dos pacientes com retinite cursa com recuperação da acuidade visual em um período de 10 a 12 semanas. Após o quadro infeccioso evidencia-se apenas mobilização do epitélio pigmentado da retina ao exame de fundoscopia. Em alguns poucos casos, podem ocorrer isquemia macular e alterações no disco óptico cursando com redução permanente da acuidade visual.(28)
A perda visual aguda pode ocorrer nos casos de neurite óptica secundária à infecção pelo vírus Chikungunya, e o tratamento para recuperação visual é realizado com corticoterapia sistêmica. No estudo de Mittal et al., 36% dos pacientes com neurite óptica apresentaram manifestações sistêmicas concomitantes às oculares, sugerindo envolvimento direto do vírus.(24)
Lalitha et al. diagnosticaram 3 pacientes com neurite óptica retrobulbar cursando com defeito pupilar aferente, apesar do fundo de olho não ter alterações. A neurite óptica foi diagnosticada em pacientes mais idosos.(23)
Tratamento
Ainda não existe tratamento específico ou vacina para prevenção da infecção. O tratamento atual inclui sintomáticos como o uso de anti-inflamatórios orais e hidroxicloroquina (droga antimalárica).(29)
O tratamento das manifestações oculares é realizado de acordo com a estrutura acometida. Em caso de conjuntivite o tratamento é sintomático com uso de lubrificantes oculares e compressas geladas. Para o tratamento de uveítes podem ser utilizados corticoides tópicos e/ou sistêmicos e caso ocorra aumento da pressão intraocular, o uso de colírios hipotensores pode ser associado. Nas alterações em polo posterior (retinites e neurite óptica) são utilizados corticoides orais e nos casos mais graves com acometimento do disco óptico é necessário internação e corticoterapia intravenosa.(19)
Considerações finais
Na literatura mundial foram relatados casos de manifestações oculares causadas pelo vírus Chikungunya, iniciadas tanto na fase aguda quanto após várias semanas da infecção. Sabe-se que podem ocorrer desde alterações mais comuns e de fácil tratamento como conjuntivites até as mais complexas e que podem cursar com sequelas visuais graves como a retinite e neurite óptica.(28) Logo, enquanto houver endemias causadas por esse vírus, é necessário incluí-lo como diagnóstico diferencial de patologias oculares.