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Estudo epidemiológico das queratites infeciosas internadas num centro hospitalar terciário - revisão de 5 anos

Resumo

Objetivo:

A queratite infeciosa é uma doença de incidência relativamente elevada e é responsável por um número importante de internamentos. Neste estudo pretende-se estudar diversas características epidemiológicas e clínicas associadas às queratites infeciosas de alto risco num hospital terciário em Portugal.

Métodos:

Realizou-se um estudo retrospetivo, onde foram incluídos todos os doentes internados por abcesso da córnea no Centro Hospitalar Universitário do Porto (CHUP), entre Abril de 2013 a Março de 2018. Caracterizou-se a população em relação aos fatores de risco, apresentação clínica, tempo de internamento, resultados de culturas, resistência antibiótica in vitro, tratamento efetuado e resultado funcional.

Resultados:

O estudo incluiu 105 doentes. Os principais fatores de risco foram antecedentes de cirurgia de córnea, uso de lentes de contacto e história recente de trauma ocular. 74,3% dos doentes tiveram cultura positiva com 87,9% a corresponderem a cultura bacteriana pura, sendo a Pseudomonas aeruginosa e o Streptococcus pneumoniae os agentes etiológicos mais frequentes. 27,9% das culturas positivas eram resistentes a 3 ou mais classes de antibióticos. Todos os doentes iniciaram tratamento com colírios fortificados. 29,5% dos doentes necessitaram de realizar transplante de córnea. Ao final de 6 meses de seguimento, apenas 20,9% apresentavam AV>20/40.

Conclusão:

Na maioria dos casos, a etiologia foi bacteriana. Observou-se um número considerável de bactérias multirresistentes. Apesar do tratamento ter permitido uma melhoria da visão na maioria dos casos, um número considerável de doentes ficou com sequelas visuais importantes.

Descritores:
Ceratite/microbiologia; Resistências microbianas a medicamentos; Infecções oculares

Abstract

Objective:

Infectious keratitis is a pathology with a high incidence and is responsible for a large number of prolonged stay hospital admissions. The purpose was to analyze the epidemiological and clinical data associated with high risk microbial keratitis at a central hospital in Portugal.

Methods:

A retrospective study of all inpatients presenting with corneal abscess in Centro Hospitalar Universitário do Porto, from April 2013 to March 2018 was performed. Target population was characterized by risk factors, clinical features, length of stay, culture results, in vitro antibiotic resistance, treatment and outcome.

Results:

This study included 105 patients. The main risk factors were previous corneal surgery, contact lenses wear and recent history of ocular trauma. 74.3% of patients had a positive culture, 87.9% of these corresponding to a pure bacterial culture, with Pseudomonas aeruginosa and Streptococcus pneumoniae being the most common pathogens. 27.9% of positive cultures were resistant to 3 or more classes of antibiotics. All patients began treatment with fortified drops. 29.5% of patients required a corneal transplant. After 6 months of follow-up, only 20.9% presented a VA>20/40.

Conclusion:

Most cases were caused by bacteria. A considerable number of multi-resistant bacteria was identified. Despite most cases having improved after treatment, a large number of patients had a significant visual acuity sequelae.

Keywords:
keratitis/microbiology; Drug resistance; Eye infections

Introdução

A queratite infeciosa caracteriza-se pela presença de um infiltrado inflamatório estromal geralmente associado a defeito epitelial, originado pela invasão do tecido corneano por microorganismos.(11 Torres P. Superfície ocular. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Oftalmologia; 2012.) Trata-se de uma importante causa de disfunção visual e cegueira, muitas vezes afetando populações socialmente excluídas do acesso a cuidados de saúde.(22 Austin A, Lietman T, Rose-Nussbaumer J. Update on the Management of Infectious Keratitis. Ophthalmology. 2017;124(11):1678-89.) A incidência é relativamente elevada(33 Ezisi C, Ogbonnaya C, Okoye O, Ezeanosike E, Ginger-Eke H, Arinze O. Microbial keratitis-A review of epidemiology, pathogenesis, ocular manifestations, and management. Nig J Ophthalmol. 2018;26(1):13-23.) e é responsável por um número importante de internamentos no nosso hospital. Em muitos casos pode estar associada a um mau prognóstico funcional, especialmente se não diagnosticada e tratada de forma adequada. Com um tratamento apropriado pode-se reduzir a incidência de perda de visão grave e restringir o dano corneano.(44 Gokhale NS. Medical management approach to infectious keratitis. Indian J Ophthalmol. 2008 May;56(3):215-20.)

A queratite infeciosa é rara na ausência de fatores predisponentes. Até recentemente, a maioria dos casos de queratite bacteriana estava associada com trauma ocular ou doença da superfície ocular.(55 Bourcier T, Thomas F, Borderie V, Chaumeil C, Laroche L. Bacterial keratitis: predisposing factors, clinical and microbiological review of 300 cases. Br J Ophthalmol. 2003;87(7):834-8.) Contudo, com o uso generalizado de lentes de contacto tem aumentado dramaticamente a incidência de queratites relacionadas com lentes de contacto sendo um dos principais fatores de risco nos Estados Unidos da América enquanto que nos países em desenvolvimento é mais comum serem causadas por trauma ocular durante atividades agrícolas.(22 Austin A, Lietman T, Rose-Nussbaumer J. Update on the Management of Infectious Keratitis. Ophthalmology. 2017;124(11):1678-89.)

O método mais consensual para o diagnóstico é a colheita do exsudato ocular para estudo microbiológico, apesar de a sensibilidade rondar os 40-70% consistentemente ao longo dos últimos 10 anos.(66 Srinivasan M, Gonzales CA, George C, Cevallos V, Mascarenhas JM, Asokan B, et al. Epidemiology and aetiological diagnosis of corneal ulceration in Madurai, south India. Br J Ophthalmol. 1997;81(11):965-71.

7 Keshav BR, Zacheria G, Ideculla T, Bhat V, Joseph M, Keshav BR, et al. Epidemiological characteristics of corneal ulcers in South sharqiya region. Oman Med J. 2008;23(1):34-9.
-88 Saleh LH. Epidemiology and etiology of corneal ulcer worldwide systematic review. Int J Adv Res (Indore). 2017;5(1):198-204.) Os microrganismos isolados dos casos graves de queratite e as suas respetivas sensibilidades ao tratamento também variam geograficamente e ao longo do tempo.(99 Marasini S, Swift S, Dean SJ, Ormonde SE, Craig JP. Spectrum and Sensitivity of Bacterial Keratitis Isolates in Auckland. J Ophthalmol. 2016:3769341.) O surgimento de resistências a medicamentos e a disponibilidade de novos antimicrobianos tem tornado essencial a constante atualização de conhecimento sobre protocolos de tratamento.(44 Gokhale NS. Medical management approach to infectious keratitis. Indian J Ophthalmol. 2008 May;56(3):215-20.)

O padrão das queratites infeciosas varia significativamente de país para país e mesmo de região para região. Com este estudo pretende-se estudar diversas variáveis epidemiológicas e características clínicas associadas às queratites infeciosas de alto risco num hospital terciário em Portugal, permitindo avaliar questões diagnósticas, resistências a tratamentos e possíveis estratégias de prevenção.

Métodos

Realizou-se um estudo retrospectivo, onde foram incluídos todos os doentes internados por abcesso da córnea no Centro Hospitalar Universitário do Porto (CHUP), entre Abril de 2013 a Março de 2018. Foram consultados todos os registos de internamento, episódios prévios de urgência, registos da consulta externa prévios e após o internamento, resultados microbiológicos, bem como os relatos cirúrgicos quando aplicados a cada caso.

A colheita de exsudato ocular foi realizada no serviço de urgência antes de os doentes serem internados. A decisão de internar exigiu pelo menos a presença de um dos seguintes critérios de gravidade: existência de lesão central; infiltrado superior a 2mm de maior diâmetro; falência terapêutica (não resolução ou agravamento clínico); e suspeita de organismo atípico (através da história clínica e características da biomicroscopia).

Para o estudo microbiológico, por protocolo, foram utilizados meios de cultura: agar sangue (meio não seletivo, para isolamento de bactérias gram negativas e positivas), agar chocolate (meio nutritivo para isolamento de micro-organismos exigentes), agar Sabouraud (cultivo e crescimento de espécies fúngicas) e tioglicolato (meio líquido enriquecido). Quando suspeita de queratite de etiologia viral (aparência dendrítica característica), foi utilizado invariavelmente a análise da reação de polimerase em cadeia (PCR).

Dependendo do microrganismo isolado, o teste de suscetibilidade efetuado incluiu os seguintes agentes terapêuticos: B-lactâmicos (amoxicilina+ácido clavulânico, penicilina, ampicilina, oxacilina, piperacilina + tazobactam, imipenem), fluoroquinolonas (ciprofloxacina, levofloxacina), cefalosporina (ceftazidima, cefepime), aminoglicosideos (tobramicina, gentamicina, neomicina, amicacina), cloranfenicol, tetraciclina (minocacina), polimixinas (polimixinaB e colistina), glicopetideos (vancomicina, teicoplanina), macrólidos (eritromicina), bacteriostáticos (ácido fusídico), lincosaminas (clindamicina) e sulfonamidas (Sulfametoxazol + Trimetoprima).

Caracterizou-se a população do estudo em relação ao género, idade, lateralidade, fatores de risco, apresentação clínica, tempo de internamento, resultado de culturas, resistência antibiótica in vitro, tratamento efetuado e resultado funcional.

Os dados foram analisados usando o SPSS Statistics, versão 22.0. A análise estatística dos dados quantitativos, incluindo estatística descritiva e comparações paramétricas e não paramétricas foram realizadas para todas as variáveis. A análise de frequência foi realizada usando o teste Qui-Quadrado. Valores de p inferiores a 0.05 foram considerados com estatisticamente significativos.

Resultados

Características epidemiológicas

O estudo incluiu 105 doentes, 52,4% olhos direitos e 47,6% esquerdos. A maioria dos casos foram mulheres (60,0% vs 40,0%). A média de idade foi de 58,4±19,9 anos. O grupo etário entre os 60 e os 80 anos teve um maior número de doentes envolvidos (43,8%), com o género feminino a representar a grande maioria dos casos (65,2%) (Figura 1). A média das idades foi semelhante ao longo do tempo de estudo (teste Kruskal-Wallis, p=0,711), embora haja uma tendência para uma idade crescente, como se observa pela linha de tendências (Figura 2).

Figura 1
Distribuição dos doentes por grupo etário e género.

Figura 2
Média de idade dos doentes em cada ano, com linha de tendência.

Os principais fatores de risco identificados foram: antecedentes de cirurgia de córnea (26,7%), o uso de lentes de contacto (24,8%) e história recente de trauma ocular (10,5%) (Figura 3).

Figura 3
Distribuição de fatores de risco.

Dos doentes com antecedentes de cirurgia de córnea, 71,4% tinham sido submetidos a uma queratoplastia penetrante (QP) (Figura 4).

Figura 4
Cirurgia corneana prévia.

Do subgrupo submetido previamente a QP, 60% dos casos tinham como patologia prévia à cirurgia uma falência de enxerto e em 15% dos casos tinham descemetocelo perfurado.

Relativamente à técnica de sutura, cerca de 94% dos doentes tinha sido utilizado sutura com pontos isolados, em oposição à sutura contínua presente nos restantes 6% dos casos, embora esta distribuição também reflita a técnica mais frequentemente utilizada no nosso serviço. Quanto ao tempo decorrido entre a data da realização da QP e o aparecimento do abcesso, verificou-se que em média demorou 1,6±3,1 anos, sendo que em mais de metade dos casos o abcesso ocorreu durante o primeiro ano pós-operatório (Figura 5). Além disso aquando do diagnóstico do abcesso de córnea, 63% deste subgrupo de doentes ainda estava a cumprir imunossupressão tópica e 10% imunossupressão sistémica, para prevenção da rejeição do enxerto.

Figura 5
Tempo decorrido entre QP prévia e ocorrência de abcesso de córnea.

Foi considerado como fator de risco na categoria de “Doença sistémica” os seguintes: imunossupressão, diabetes mellitus e artrite psoriática. A categoria “Alteração da superfície ocular” incluiu rosácea, queratocone, paralisia facial e herpes ocular. O tempo médio decorrido entre o início dos sintomas e a primeira observação no CHUP foi de 6.2±7.1 dias, sem diferença estatisticamente significativa entre os 2 géneros (teste t, p=0,787). Os doentes com mais de 40 anos tendem a recorrer ao oftalmologista mais tarde (em média 7 dias) após o início dos sintomas, do que os doentes com 40 anos ou idade inferior (em média 3.3dias) (teste t, p=0.049).

Resultados microbiológicos

Dos 78 (74,3%) doentes que fizeram colheita do exsudato para análise microbiológica, 58 (74,4%) tiveram cultura positiva. Dos resultados positivos, 87,9% correspondiam a cultura bacteriana, 6,9% a cultura fúngica, 3,4% a cultura de Acanthamoeba e 1,7% a cultura mista (uma espécie de bactéria e uma de fungo). (Figura 6)

Figura 6
Resultado microbiológico

O isolado bacteriano mais comum foi Pseudomonas aeruginosa com 22,6%, seguido de Streptococcus pneumoniae com 12,9% (Figura 7). 61,3% dos isolados bacterianos foram gram positivos, sendo o Staphylococus a espécie mais frequente. Dentro dos gram negativos (39%), a espécie predominantemente isolada foi a Pseudomonas (58,3%) (Figura 8). Não existem diferenças estatisticamente significativas relativamente à média de idades (teste T, p=0.406) e à duração dos sintomas (teste t, p=0,301) entre os doentes com exsudatos gram positivo e negativo.

Figura 7
Distribuição de espécies bacterianas.

Figura 8
Gram negativo vs gram positivo.

Relativamente aos fatores de risco, as culturas positivas em doentes que sofreram trauma ocular foram positivas em 50% para coco gram positivo; em doentes portadores de lentes de contacto foram em 56,2% para bacilo gram negativo; e em doentes submetidos a queratoplastia penetrante prévia foram em 50 % para coco gram positivo.

Os isolados fúngicos mais comuns foram Fusarium spp e Candida spp, com 40,0% cada. Relativamente a parasitas, foram identificados apenas 2 casos (3,4% dos doentes) de Acanthamoeba. O principal fator de risco identificado para queratites infeciosas fúngicas e parasitárias foi o uso de lentes de contacto.

Não existem diferenças estatisticamente significativas relativamente à média de idades (teste Kruskal-Wallis, p=0,116) e à média de duração dos sintomas (Kruskal-Wallis, p= 0,235) entre os doentes com exsudatos bacterianos, fúngicos ou parasitários (teste).

Os antibióticos que apresentaram mais resistências in vitro foram colistina (60,9%) e ácido fusídico (57,1%). Em termos de classes, as lincosaminas e os bacteriostáticos são os que demonstraram mais resistências. Os glicopeptídeos (que inclui a vancomicina), as sulfonamidas e as fluoroquinolonas apresentam resistências inferiores a 10%. A distribuição de resistências por classe terapêutica pode ser melhor observada na figura 9.

Figura 9
Resistências por antibióticos.

Observou-se que em 27,9% das culturas positivas eram resistentes a 3 ou mais classes de antibióticos, sem diferenças estatisticamente significativas entre gram positivos e gram negativos (teste Qui-quadrado, p=0.703), com média de idades (teste Mann-Whitney, p=0,841) e de duração de sintomas semelhantes (teste Mann-Whitney, p=0,799).

Tratamento médico e cirúrgico

O tempo médio de internamento foi de 10,6±6,1 dias. Doentes com exsudato ocular multirresistente não apresentaram maior número de dias de internamento (Teste Mann-Whitney, p=0,512). Doentes com mais de 60 anos apresentaram em média um número maior de dias de internamento mas sem significância estatística (teste t, p=0,093).

Todos os doentes iniciaram tratamento empírico com colírios fortificados (Ceftazidima 50mg/dL (5%), Gentamicina 15mg/mL (1,5%), Vancomicina 50mg/mL (5%) e/ou Voriconazol 10mg/mL (1%)), uma vez que apenas as queratites infeciosas de alto risco foram incluídas neste estudo. 29,5% dos doentes necessitaram de realizar transplante de córnea (87,1% realizaram queratoplastia penetrante e 12,9% realizaram queratoplastia lamelar anterior profunda), sendo que 38,7% destes doentes já tinham como antecedente transplante de córnea prévio. Em 71,0% dos casos, o transplante foi realizado no primeiro mês, com intenção curativa (abcessos resistentes ao tratamento médico e/ou associado a perfuração), sendo que 27,3% necessitaram de realizar novo enxerto posteriormente. Dois doentes foram eviscerados por olho doloroso, após acompanhamento prolongado. À admissão, 4,3% doentes do total apresentavam AV ≥20/40 enquanto que ao fim de 6 meses, 25,6% apresentavam essa AV (Figura 10).

Figura 10
Acuidades visuais no Serviço de Urgência (SU) e 6 meses após internamento.

Discussão

As queratites infeciosas de alto risco ocorreram com mais frequência em mulheres e no grupo etário com idades entre os 60 e os 80 anos. Os fatores de risco mais frequentes foram cirurgia de córnea prévia, uso de lentes de contacto e história de trauma ocular, provavelmente a acompanhar a tendência global de diminuição dos casos associados a trauma ocular, (fator de risco mais frequentemente identificado nos países em desenvolvimento).(22 Austin A, Lietman T, Rose-Nussbaumer J. Update on the Management of Infectious Keratitis. Ophthalmology. 2017;124(11):1678-89.) Verificou-se também uma procura clínica mais tardia nas faixas etárias mais velhas, o que pode indiciar a presença de uma população de risco com menos acesso imediato a cuidados de saúde. Foi possível isolar o agente causador da queratite na maioria dos casos, tendo a microbiologia apresentado uma sensibilidade acima da média descrita na maioria dos estudos publicados na literatura.(11 Torres P. Superfície ocular. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Oftalmologia; 2012.,22 Austin A, Lietman T, Rose-Nussbaumer J. Update on the Management of Infectious Keratitis. Ophthalmology. 2017;124(11):1678-89.,66 Srinivasan M, Gonzales CA, George C, Cevallos V, Mascarenhas JM, Asokan B, et al. Epidemiology and aetiological diagnosis of corneal ulceration in Madurai, south India. Br J Ophthalmol. 1997;81(11):965-71.,77 Keshav BR, Zacheria G, Ideculla T, Bhat V, Joseph M, Keshav BR, et al. Epidemiological characteristics of corneal ulcers in South sharqiya region. Oman Med J. 2008;23(1):34-9.) Na grande maioria dos casos, a etiologia foi bacteriana, sendo a Pseudomonas aeruginosa e o Streptococcus pneumoniae os patogéneos mais frequentes.(1010 Kaliamurthy J, Kalavathy CM, Parmar P, Nelson Jesudasan CA, Thomas PA. Spectrum of bacterial keratitis at a tertiary eye care centre in India. BioMed Res Int. 2013:181564.) A grande percentagem de isolamentos de Pseudomonas aeruginosa pode ser influenciada pela presença de um número considerável de portadores de lentes de contacto neste estudo. Segundo alguns estudos, a esta associação pode ser explicada pela capacidade desta espécie aderir ao material das lentes de contacto(1111 Alves M, Andrade B. Úlcera de córnea bacteriana. Arq Bras Oftalmol. 2000;63(6):495-8.) e pelo tipo de soluções de preservação de lentes utilizadas.(1212 Laxmi Narayana B, Rao P, Bhat S, Vidyalakshmi K. Comparison of the antimicrobial efficacy of various contact lens solutions to inhibit the growth of pseudomonas aeruginosa and Staphylococcus aureus. Int J Microbiol. 2018:5916712.) O conhecimento dos fármacos potencialmente menos eficazes pelo padrão de resistência é deveras importante para o tratamento dessa doença.(1313 Comarella J, Saraiva P, Saraiva F. Corneal ulcer: a retrospective study of a cases seen at the Hospital das Clínicas, Federal University of Espirito Santo. Rev Bras Oftalmol. 2015;74(2):76-80.) No nosso estudo, verificou-se que os antibióticos usados no tratamento empírico de queratites infeciosas de alto risco apresentam ainda padrões de resistência aceitáveis, mas deverá considerar-se o ajuste terapêutico após o resultado do teste de sensibilidade aos antibióticos para evitar o aparecimento de multirresistências. Além disso também verificamos que o grupo das fluoroquinolonas apresentou baixas taxas de resistências, o que se poderá tornar uma opção para o tratamento empírico inicial, tal como já é realizado noutros centros hospitalares.(1414 Lana F, Mascaro V, Araújo M. The influence of the laboratory in the treatment of the infectious keratitis. Rev Bras Oftalmol. 2011;70(3):174-8.) Foi realizado transplante de córnea em 29,5% dos casos, contrapondo os 5% que Kaye et al relatou no seu estudo.(1515 Kaye S, Tuft S, Neal T, Tole D, Leeming J, Figueiredo F, et al. Bacterial susceptibility to topical antimicrobials and clinical outcome in bacterial keratitis. Invest Ophthalmol Vis Sci. 2010;51(1):362-8.) Relativamente aos transplante, 71,0% foram realizados no primeiro mês devido à presença de perfuração corneana e/ou infeção refratária ao tratamento médico. Contudo é um recurso de última linha dada a alta taxa de falência do enxerto, o que explica a necessidade de novos enxertos em 27,3% dos casos na nossa série. Apesar do tratamento ter permitido uma melhoria da visão na grande maioria dos casos, um número considerável de doentes apresentou sequelas visuais importantes no final do seguimento.

Conclusão

A realização de estudos epidemiológicos numa dada região é fundamental para uma monitorização adequada das tendências etiológicas e para uma adequação dos tratamentos instituídos. Relativamente às ceratites infeciosas graves, o nosso estudo permitiu-nos perceber os agentes microbianos mais frequentemente envolvidos na nossa região, a incidência de bactérias multirresistentes ao longo do tempo e validar o nosso protocolo de tratamento que se encontra adequado, ou seja, com taxas de resistências aceitáveis para os fármacos que utilizamos como primeira linha. Esta monitorização não termina com este artigo. E seria importante ser iniciada e comparada com outros estudos congéneres. Dado se tratar de uma patologia que pode ter resultados catastróficos e de as resistências a antimicrobianos estarem a aumentar no mundo inteiro, a monitorização apertada e a partilha da experiência local podem ser grande valia no sucesso da terapêutica nestes casos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Nov-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    17 Mar 2019
  • Aceito
    25 Set 2019
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