Acessibilidade / Reportar erro

Facoanafilaxia por cristalino mergulhado na Síndrome de Marfan

Resumo

A síndrome de Marfan é uma doença de herança autossômica dominante e que afeta o tecido conjuntivo com manifestações fenotípicas que envolvem os sistemas esquelético, cardiovascular e ocular. As principais manifestações oculares são a subluxação do cristalino, a miopia e o descolamento da retina. O objetivo deste artigo foi relatar a conduta clínico-cirúrgica de um paciente portador da síndrome de Marfan com cristalino luxado para a cavidade vítrea e que evoluiu com severa reação facoanafilática caracterizada por um glaucoma secundário severo e descompensação corneana.

Descritores:
Síndrome de Marfan; Glaucoma/complicações; Vitrectomia

Abstract

Marfan syndrome is an autosomal dominant inheritance disease that affects connective tissue with phenotypic manifestations involving the skeletal, cardiovascular and ocular systems. The main ocular manifestations are the subluxation of the lens, myopia and retinal detachment. The aim of this article was to report the clinical and surgical management of a patient with Marfan syndrome with luxated lens for the vitreous cavity and who developed a severe phacoanaphylactic reaction characterized by severe secondary glaucoma and corneal decompensation.

Keywords:
Marfan Syndrome; Glaucoma/complications; Vitrectomy

Introdução

A síndrome de Marfan é uma doença de herança autossômica dominante e que afeta o tecido conjuntivo com manifestações fenotípicas que envolvem os sistemas esquelético, cardiovascular e ocular.(11 Online Mendelian Inheritance in Man. OMIM (TM). Baltimore: Johns Hopkins University; 2001.) As principais manifestações oculares são a subluxação do cristalino, a miopia e o descolamento da retina.(22 Sallum JM, Chen J, Perez AB. Anomalias oculares e características genéticas na síndrome de Marfan. Arq Bras Oftalmol. 2002;65(6):623-8.) Dentre as manifestações esqueléticas destacam-se: as deformidades torácicas e da coluna, a dolicostenomelia, a aracnodactilia e a estatura elevada. O deslocamento do cristalino para a cavidade vítrea constitui uma complicação relativamente incomum, mas potencialmente séria nestes pacientes.(33 Pyeritz RE, McKusick VA. The Marfan syndrome: diagnosis and management. N Engl J Med. 1979;300(14):772-7.,44 Demetracopoulos CA, Sponseller PD. Spinal deformities in Marfan syndrome. Orthop Clin North Am. 2007;38(4):563-72.) O cristalino deslocado pode desencadear uma importante reação inflamatória que produzirá uveíte, edema de córnea, opacificação vítrea e glaucoma secundário, com respectiva redução da acuidade visual.(55 Lambrou FH Jr, Stewart MW. Management of dislocated lens fragments during phacoemulsification. Ophthalmology. 1992;99(8):1260-2.) As tentativas de retirada do cristalino luxado pelo cirurgião, sem o uso da vitrectomia, podem intensificar as complicações e produzir, também, o descolamento da retina. As complicações aumentam, proporcionalmente, ao tempo de permanência do material cristaliniano no vítreo.(66 Kim JE, Flynn HW Jr, Rubsamen PE, Murray TG, Davis JL, Smiddy WE. Endophthalmitis in patients with retained lens fragments after phacoemulsification. Ophthalmology. 1996;103(4):575-8.) A vitrectomia efetiva associada a facofragmentação do material cristaliniano promove uma resolução significativa e, até definitiva, da reação facoanafilática nestes casos.(77 Lavinsky J, Fior O, Goldhardt R, Ricardi LM. Complicações da luxação do cristalino para a cavidade vítrea. Arq Bras Oftalmol. 2002;65(4):435-9.) O objetivo deste artigo é relatar a conduta clínico-cirúrgica de um paciente portador da síndrome de Marfan e que evoluiu com severa reação facoanafilática secundária ao deslocamento do cristalino para a cavidade vítrea.

Relato de Caso

F.A.M., sexo masculino, 48 anos, cor de pele morena e natural do Norte de Minas Gerais. Paciente compareceu na urgência do Hospital Municipal da cidade de Montes Claros, relatando baixa visual súbita e forte dor ocular em olho direito (OD); negava qualquer tipo de trauma ou outra intercorrência neste olho. Associadamente, apresentava intensa cefaléia e náuseas. Ao adentrar o consultório, observou-se que o paciente era portador da síndrome de Marfan pelas alterações esqueléticas apresentadas: estatura elevada e alterações nas mãos e tórax (Figura 1).

Figura 1
Estatura elevada, dolicostenomelia, aracnodactilia e alterações torácicas.

Ao exame de OD: acuidade visual (AV) de vultos, hiperemia conjuntival de 3+/4+, edema de córnea, iridodonese e afacia. Em olho esquerdo, notava-se presença de catarata subluxada (Figura 2).

Figura 2
Biomicroscopia de OD e OE, respectivamente, mostrando a descompensação corneana em OD.

A pressão intraocular (Po) em OD era superior a 50 mmHg. Foi instituído, imediatamente, o tratamento clínico com hipotensores oculares e corticóide tópico, além de acetazolamida oral (dosagem máxima com reposição de potássio). Nas primeiras 24-48 horas houve melhora substancial do quadro clínico (Figura 3).

Figuras 3
Biomicroscopia e goniscopia de OD, após o início do tratamento clínico.

Realizou-se a ultrassonografia neste olho, onde foi detectado a presença do cristalino deslocado no fundo da cavidade vítrea e repousando sobre o disco óptico (Figura 4).

Figura 4
Presença do cristalino luxado na cavidade vítrea.

Após a realização do risco cirúrgico, o paciente, já com o olho estabilizado, foi submetido, com sucesso, à cirurgia de vitrectomia posterior com facofragmentação do núcleo mergulhado (catarata branca leitosa) e implante de lente intra-ocular (Lio) de 10 dioptrias pela Net technique, que consiste em criar uma rede, pelo sulco ciliar, com fio de polipropileno 9.0 com duas agulhas retas (Ethicon®), onde apoia-se a Lio (Figuras 5).

Figuras 5
Per-operatório de OD mostrando núcleo cataratoso mergulhado sobre a retina.

O pós-operatório evoluiu sem intercorrências e, após 2 meses da cirurgia, encontra-se com olho sem sinais inflamatórios, AV com refração plana de 20/40, córnea compensada, Po de 14 mmHg (em uso de 02 hipotensores tópicos) e com fundo de olho preservado (Figuras 6).

Figuras 6
Dois meses de pós-operatório do OD mostrando o olho calmo, córnea transparente e retina colada.

Discussão

O deslocamento do cristalino para a cavidade vítrea constitui um dos principais mecanismos da facoanafilaxia, visto que o material cristaliniano possui propriedades antigênicas.(66 Kim JE, Flynn HW Jr, Rubsamen PE, Murray TG, Davis JL, Smiddy WE. Endophthalmitis in patients with retained lens fragments after phacoemulsification. Ophthalmology. 1996;103(4):575-8.) Além da síndrome de Marfan, outras causas podem ser citadas como a homocistinúria, os traumatismos oculares e, obviamente, as complicações inerentes à cirurgia de catarata. Os estudos histopatológicos demonstram que o material cristaliniano possui propriedades antigênicas e este material provoca uma reação que pode variar desde uma resposta antígeno-anticorpo até uma reação de hipersensibilidade tardia como a endoftalmite facoalérgica.(88 Mandia C Jr, Almeida GV, Almeida PB, Cohen R. Glaucoma facolítico. In: Almeida HG, Cohen R. Glaucomas secundários. 2ª ed. São Paulo: Roca; 2005.) A resposta inflamatória inicia-se de 24 horas a 14 dias após o deslocamento do cristalino para a cavidade vítrea.(99 Kim JE, Flynn HW Jr, Smiddy WE, Murray TG, Rubsamen PE, Davis JL, et al. Retained lens fragments after phacoemulsification. Ophthalmology. 1994;101(11):1827-32.) Entretanto, há casos em que a resposta inflamatória poderá levar até 3 meses após o ocorrido, e, também, há núcleos sem material cortical significativo no qual o estímulo a esta resposta poderá ocorrer em até 2 anos.(66 Kim JE, Flynn HW Jr, Rubsamen PE, Murray TG, Davis JL, Smiddy WE. Endophthalmitis in patients with retained lens fragments after phacoemulsification. Ophthalmology. 1996;103(4):575-8.,99 Kim JE, Flynn HW Jr, Smiddy WE, Murray TG, Rubsamen PE, Davis JL, et al. Retained lens fragments after phacoemulsification. Ophthalmology. 1994;101(11):1827-32.)

A descompensação corneana que ocorre costuma ser transitória em cerca de 30 a 50% dos casos e, na maioria das vezes é um reflexo da Po elevada e, também, do trauma cirúrgico. Somente em 10% destes pacientes, o edema de córnea permanece, resultando em ceratopatia bolhosa cujo tratamento é o transplante de córnea.(66 Kim JE, Flynn HW Jr, Rubsamen PE, Murray TG, Davis JL, Smiddy WE. Endophthalmitis in patients with retained lens fragments after phacoemulsification. Ophthalmology. 1996;103(4):575-8.)

Em casos onde há boa AV sem presença de uveíte ou glaucoma, a simples observação pode ser considerada, mas estudos demonstram que, ao longo de 6 a 12 meses, existe risco de manifestar as complicações oculares.(66 Kim JE, Flynn HW Jr, Rubsamen PE, Murray TG, Davis JL, Smiddy WE. Endophthalmitis in patients with retained lens fragments after phacoemulsification. Ophthalmology. 1996;103(4):575-8.,1010 Epstein DL, Jedziniak JA, Grant WM. Obstruction of aqueous outflow by lens particles and by heavy-molecular-weight soluble lens proteins. Invest Ophthalmol Vis Sci. 1978;17(3):272-7.) Pelo alto índice das complicações inerentes à reação inflamatória, a melhor abordagem constitui-se na retirada do cristalino luxado para a cavidade vítrea, através da vitrectomia associada a facofragmentação de todo material cristaliniano.(66 Kim JE, Flynn HW Jr, Rubsamen PE, Murray TG, Davis JL, Smiddy WE. Endophthalmitis in patients with retained lens fragments after phacoemulsification. Ophthalmology. 1996;103(4):575-8.,77 Lavinsky J, Fior O, Goldhardt R, Ricardi LM. Complicações da luxação do cristalino para a cavidade vítrea. Arq Bras Oftalmol. 2002;65(4):435-9.,1111 Cleasby GW, Fung WE, Webster RG Jr. The lens fragmentation and aspiration procedure (phacoemulsification). Am J Ophthalmol. 1974;77(3):384-7.) A cirurgia deve ser o mais precoce possível, por causa da resposta facoanafilática, mas alguns estudos demonstram que os olhos tratados em torno de 3 semanas têm uma menor incidência de glaucoma no pós-operatório.(99 Kim JE, Flynn HW Jr, Smiddy WE, Murray TG, Rubsamen PE, Davis JL, et al. Retained lens fragments after phacoemulsification. Ophthalmology. 1994;101(11):1827-32.,1010 Epstein DL, Jedziniak JA, Grant WM. Obstruction of aqueous outflow by lens particles and by heavy-molecular-weight soluble lens proteins. Invest Ophthalmol Vis Sci. 1978;17(3):272-7.) Recomenda-se que a cirurgia seja feita em olhos estáveis, apesar de na prática, ocorrerem cirurgias na presença de Po elevada e com resposta inflamatória ativa. Após a vitrectomia e a facofragmentação, optou-se pelo implante de Lio, podendo ser utilizada tanto a lente de câmara anterior como a de câmara posterior com fixação escleral.(1212 Hutton WL, Snyder WB, Vaiser A. Management of surgically dislocated intravitreal lens fragments by pars plana vitrectomy. Ophthalmology. 1978;85(2):176-89.) No caso relatado, foi realizada a técnica de implante de Lio pela Net technique, uma vez que não havia suporte para sustentar a LIO e para evitarmos o uso de uma lente de câmara anterior e uma provável piora do estado da córnea.(1313 De Novelli FJ, Neto TL, de Sena Rabelo G, Blumer ME, Suzuki R, Ghanem RC. Net technique for intraocular lens support in aphakia without capsular support. Int J Retina Vitreous. 2017;3(1):32.)

Descrição da técnica cirúrgica para a fixação escleral da Lio: Realizou-se uma peritomia nos 4 quadrantes do globo ocular a partir do limbo e, após cauterização da superfície escleral, criou-se um sulco superficial na esclera a 2 mm do limbo e paralelo a este, com 4 mm de comprimento. Foi usado o fio de sutura de polipropileno 9.0 com duas agulhas retas (Ethicon®). A agulha reta do polipropileno foi inserida numa extremidade de cada sulco escleral e foi inserida dentro de outra agulha 26 gauge (13 x 4,5 mm) inserida no sulco diametralmente oposto ao se encontrarem no eixo visual. A agulha de polipropileno foi tracionada pela agulha de 26 gauge até sair pelo sulco do outro lado do globo ocular. A agulha de polipropileno volta pelo mesmo sulco que ela saiu, porém, na outra extremidade (4 mm de extensão), sendo tracionada pela agulha de calibre 26 gauge para sair no sulco oposto também a 4 mm de distância do ponto de entrada inicial. Foi dado um nó em U dentro do sulco escleral, para que o fio ficasse protegido e não tocasse a conjuntiva. Este procedimento foi feito nos eixos horizontal e vertical do globo ocular, formando uma rede em forma de quadrado de 4 mm de extensão de cada lado, no eixo visual. Uma Lio de acrílico hidrofóbio dobrável de 3 peças (Sensar®- Jhonson & Jhonson®) de 10 dioptrias foi inserida através de uma incisão corneana de 2,75 mm de extensão sobre a rede, ficando estável e centrada.

Em relação ao glaucoma secundário, a resposta imunológica persistente pode obstruir de forma determinante e definitiva a malha trabecular provocando o aparecimento do glaucoma secundário.(88 Mandia C Jr, Almeida GV, Almeida PB, Cohen R. Glaucoma facolítico. In: Almeida HG, Cohen R. Glaucomas secundários. 2ª ed. São Paulo: Roca; 2005.) Estudos demonstraram que cerca de 50% dos pacientes permanecem com aumento significativo da Po e, com isto, apresentam indicação de tratamento cirúrgico anti-glaucomatoso adicional.(1414 Blodi BA, Flynn HW Jr, Blodi CF, Folk JC, Daily MJ. Retained nuclei after cataract surgery. Ophthalmology. 1992;99(1):41-4.) Ressalta-se que, em alguns casos pode ocorrer, também, o glaucoma cortisônico com consequente comprometimento da visão final do paciente, visto que caso a intervenção cirúrgica não seja indicada, a reação facoanafilática só poderá ser controlada, clinicamente, com o uso prolongado de corticoides tópicos e sistêmicos.(1010 Epstein DL, Jedziniak JA, Grant WM. Obstruction of aqueous outflow by lens particles and by heavy-molecular-weight soluble lens proteins. Invest Ophthalmol Vis Sci. 1978;17(3):272-7.)

Conclui-se que quanto mais precoce for a retirada do material cristaliniano da cavidade vítrea melhor é a evolução do quadro clínico e com menores complicações nos pacientes portadores da síndrome de Marfan.

  • Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes, Montes Claros, MG, Brasil

Referências

  • 1
    Online Mendelian Inheritance in Man. OMIM (TM). Baltimore: Johns Hopkins University; 2001.
  • 2
    Sallum JM, Chen J, Perez AB. Anomalias oculares e características genéticas na síndrome de Marfan. Arq Bras Oftalmol. 2002;65(6):623-8.
  • 3
    Pyeritz RE, McKusick VA. The Marfan syndrome: diagnosis and management. N Engl J Med. 1979;300(14):772-7.
  • 4
    Demetracopoulos CA, Sponseller PD. Spinal deformities in Marfan syndrome. Orthop Clin North Am. 2007;38(4):563-72.
  • 5
    Lambrou FH Jr, Stewart MW. Management of dislocated lens fragments during phacoemulsification. Ophthalmology. 1992;99(8):1260-2.
  • 6
    Kim JE, Flynn HW Jr, Rubsamen PE, Murray TG, Davis JL, Smiddy WE. Endophthalmitis in patients with retained lens fragments after phacoemulsification. Ophthalmology. 1996;103(4):575-8.
  • 7
    Lavinsky J, Fior O, Goldhardt R, Ricardi LM. Complicações da luxação do cristalino para a cavidade vítrea. Arq Bras Oftalmol. 2002;65(4):435-9.
  • 8
    Mandia C Jr, Almeida GV, Almeida PB, Cohen R. Glaucoma facolítico. In: Almeida HG, Cohen R. Glaucomas secundários. 2ª ed. São Paulo: Roca; 2005.
  • 9
    Kim JE, Flynn HW Jr, Smiddy WE, Murray TG, Rubsamen PE, Davis JL, et al. Retained lens fragments after phacoemulsification. Ophthalmology. 1994;101(11):1827-32.
  • 10
    Epstein DL, Jedziniak JA, Grant WM. Obstruction of aqueous outflow by lens particles and by heavy-molecular-weight soluble lens proteins. Invest Ophthalmol Vis Sci. 1978;17(3):272-7.
  • 11
    Cleasby GW, Fung WE, Webster RG Jr. The lens fragmentation and aspiration procedure (phacoemulsification). Am J Ophthalmol. 1974;77(3):384-7.
  • 12
    Hutton WL, Snyder WB, Vaiser A. Management of surgically dislocated intravitreal lens fragments by pars plana vitrectomy. Ophthalmology. 1978;85(2):176-89.
  • 13
    De Novelli FJ, Neto TL, de Sena Rabelo G, Blumer ME, Suzuki R, Ghanem RC. Net technique for intraocular lens support in aphakia without capsular support. Int J Retina Vitreous. 2017;3(1):32.
  • 14
    Blodi BA, Flynn HW Jr, Blodi CF, Folk JC, Daily MJ. Retained nuclei after cataract surgery. Ophthalmology. 1992;99(1):41-4.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Nov-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    02 Nov 2018
  • Aceito
    31 Mar 2019
Sociedade Brasileira de Oftalmologia Rua São Salvador, 107 , 22231-170 Rio de Janeiro - RJ - Brasil, Tel.: (55 21) 3235-9220, Fax: (55 21) 2205-2240 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: rbo@sboportal.org.br