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Exame ultrassonográfico no diagnóstico de coloboma retinocoroidiano bilateral

Resumo

Relatamos aqui o caso de E.R.S.S., feminino, 43 anos, diagnosticada com coloboma de retina e coroide bilateral, afim de enfatizar a importância dos exames pré-operatórios, até mesmo de uma boa tomada de projeção luminosa, a qual está sendo muitas vezes relegada a um patamar desprezível dentro da prática oftalmológica. Salientamos também que o exame ultrassonográfico prévio à indicação cirúrgica é de suma importância, no entanto, esse deve ser realizado por profissional experiente e sua correta interpretação deve ser exaustivamente procurada para que erros interpretativos não se transformem em conduta clínico cirúrgica inadequada e consequentes danos, muitas vezes, irreparáveis. Considerando-se todos os aspectos e complicações do coloboma já citados nesse relato, a conduta diante de um diagnóstico dessa malformação deve ser: pesquisar associação com outras doenças oculares e/ou sistêmicas (CHARGE: coloboma, cardiopatia congênita, atresia de coana com múltiplas anomalias), realizar tratamento e acompanhamento em caso de complicações (Ex. descolamento de retina, ambliopia e estrabismo) e prevenção é feita através de aconselhamento genético.

Descritores:
Coloboma/diagnóstico por imagem; Retina, Coroide; Ultrassonografia

Abstract

We report here the case of E.R.S.S. female, 43 years old, diagnosed with bilateral coloboma of choroid and retina, in order to emphasize the importance of preoperative exams, even a good shot of light projection, which is often being relegated to a negligible level in ophthalmological practice.We emphasize also that the ultrasound examination prior to the surgical indication is of paramount importance, however,this should be performed by experienced professional and the correct interpretation must be thoroughly searched for interpretative errors not become inadequate surgical clinical conduct and consequential irreparable damage. Considering all aspects and complications already mentioned in this report, coloboma to conduct before a diagnosis of this malformation should be: search for association with other eye diseases and/or systemic (CHARGE: coloboma, congenital heart defect, atresia of posterior nasal apertures with multiple anomalies), performing and monitoring treatment in case of complications (E.g. retinal detachment, amblyopia and strabismus) and prevention is made through genetic counseling.

Keywords:
Coloboma/diagnostic imaging; Retina; Choroid; Ultrasonography

Introdução

O coloboma de retina e coroide é secundário ao fechamento incompleto da fissura óptica embrionária(11 Ruiz Alves M, Nakashima Y, Tanaka T. Clínica oftalmológica: Conduta práticas em oftalmologia. Rio de Janeiro: Cultura Médica, 2013.) na altura da coroide(22 Morterá AD, Ferraz Sallum JM. Embriologia, genética e malformações do aparelho visual. Rio de Janeiro: Cultura Médica; 2013.) e papila; que se inicia no equador do globo ocular e prossegue em direção anterior, até atingir a íris, e posterior até o nervo óptico (ponto em que penetra a artéria hialoidea).(33 Nakanami CR, Zin A, Belfort R. Oftalmopediatria. São Paulo: Roca; 2010.) Tal fechamento incompleto pode se apresentar em diversos graus, desde formas muito frustras, como um simples coloboma de íris, até verdadeiros cistos colobomatosos, em que existe apenas um globo ocular vestigial. Associa-se a hiperplasia reacional do epitélio pigmentado nas margens.(22 Morterá AD, Ferraz Sallum JM. Embriologia, genética e malformações do aparelho visual. Rio de Janeiro: Cultura Médica; 2013.)

Os colobomas verdadeiros de disco óptico são inferiores e podem ter diversos tamanhos. Já os atípicos são localizados em outras regiões da retina e tem etiologia não esclarecida.(33 Nakanami CR, Zin A, Belfort R. Oftalmopediatria. São Paulo: Roca; 2010.)[Dividem-se, ainda,de acordo como fechamento incompleto anterior da fissura (coloboma de córnea, cristalino, íris e corpo ciliar) e posterior (coloboma de coroide, retina e nervo óptico)]. Além disso, deve-se ressaltar que tais malformações são, geralmente, bilaterais,(44 Trevor-Roper PD. Ophthalmology: A textbook for diploma students. London: Lloyd-Luke Medical Books; 1955.) mas também podem ser unilaterais, esporádicas ou autossômicas dominantes.(33 Nakanami CR, Zin A, Belfort R. Oftalmopediatria. São Paulo: Roca; 2010.

4 Trevor-Roper PD. Ophthalmology: A textbook for diploma students. London: Lloyd-Luke Medical Books; 1955.
-55 Duane TD. Clinical ophthalmology. Philadelphia: Harper & Row; 1984.)

O quadro clínico apresentado depende do acometimento do nervo óptico, papila e mácula,(22 Morterá AD, Ferraz Sallum JM. Embriologia, genética e malformações do aparelho visual. Rio de Janeiro: Cultura Médica; 2013.) e suas complicações podem ser: 1. Maior risco de descolamento de retina (ocorre de 25%-33% dos casos, principalmente, da região macular se houver coloboma de nervo óptico) ou descolamento regmatogênico (se houver coloboma retinocoroideano(11 Ruiz Alves M, Nakashima Y, Tanaka T. Clínica oftalmológica: Conduta práticas em oftalmologia. Rio de Janeiro: Cultura Médica, 2013.)). Tais complicações devem ser tratadas e prevenidas com laser(22 Morterá AD, Ferraz Sallum JM. Embriologia, genética e malformações do aparelho visual. Rio de Janeiro: Cultura Médica; 2013.)). 2. Alteração de campo visual superior e acuidade visual: depende do acometimento do feixe papilomacular.(33 Nakanami CR, Zin A, Belfort R. Oftalmopediatria. São Paulo: Roca; 2010.) Por fim, no diagnóstico diferencial do coloboma devem ser analisados critérios, sendo eles: macropapila (papila com características normais, porém aumentada), papila hipoplásica (malformada e pequena, podendo indicar associação com alteração neurológica) e papila inclinada/ “tilted disc” (torta, hipoplásica, assimétrica e associada a astigmatismo(22 Morterá AD, Ferraz Sallum JM. Embriologia, genética e malformações do aparelho visual. Rio de Janeiro: Cultura Médica; 2013.)).

O objetivo deste relato é apresentar um caso de coloboma de retina e coróide bilateral, em que o exame ultrassonográfico e sua perfeita interpretação auxiliaram na escolha adequada da conduta terapêutica e, consequentemente, no pronto restabelecimento da visão da paciente.

Relato de Caso

E.R.S.S., feminino, 43 anos, casada, do lar, compareceu pela primeira vez em nosso consultório em 31/01/2018 referindo sempre ter tido problemas oculares, história pregressa de facoemulsificação com implante de LIO (lente intraocular) em OE e, outro serviço e tratamento de descolamento de retina, sem sucesso. Paciente relatou que havia feito recentemente um exame ultrassonográfico ocular em seu olho direito e ter sido diagnosticada com catarata avançada e descolamento de retina,motivo pelo qual buscava uma segunda opinião.

Ao exame:

O.D.V.: movimento de mão

O.E.V.: SPL (sem projeção luminosa)

Biomicroscopia de olho direito: nistagmo, microcornea, coloboma de íris nasal inferior, catarata nuclear 4+/4+.

Biomicroscopia de olho esquerdo: globo ocular atrófico (phitisico).

Tonometria de A.O.: dificultada pela presença de nistagmo F.O.D.: impossível devido a opacidade dos meios (catarata);

F.O.E.: impossível por opacidade corneana;

Ultrassonografia de O.D.: realizada com ultrassonografia modo B e sonda posicionada justa limbar as 12, 3, 6 e 9 horas, revelou a presença de coloboma originado posteriormente junto a papila óptica, estendendo-se inferonasalmente até atingir o segmento anterior (Figuras 1-6). É importante notar nestes casos a presença de artefatos de técnica, representados por um aspecto de “espículas”, devido as alterações bruscas da parede ocular. Por não termos evidenciado descolamento de retina à ultrassonografia e pela paciente apresentar acuidade visual de movimentos de mão e boa projeção luminosa, optamos por realizar apenas faco com implante de LIO.

Figura 1
Coloboma nasal inferior a partir da papila.

Figura 2
Aspecto de descolamento de retina fixa, mas que, na verdade, se trata apenas de membrana vítrea sobre a área de coloboma

Figura 3
Outra imagem que pode ser confundida com descolamento de retina fixa.

Figura 4
Imagem evidenciando as “espículas” junto ao grande degrau da parede ocular (artefato de técnica) que pode ser confundido com descolamento de retina

Figura 5
Outro aspecto de “espícula” que pode levar o examinador pouco experiente a idéia de descolamento de retina.

Figura 6
Globo ocular de dimensões reduzidas, hipotônico e com extensas áreas de calcificação de coroide.

Ultrassonografia de O.E.: globo ocular com diâmetro antero-posterior reduzido, hipotônico a compressão e com extensas áreas de calcificação de coroide.

Diante de tais resultados no exame clínico e ultrassonografia ocular, concluiu-se que a paciente não apresentava descolamento de retina, mas sim somente catarata e coloboma retinocoroidiano bilateral. Sendo assim, a conduta escolhida levou em consideração uma abordagem menos invasiva, resultando na acuidade visual de 0,05.

Ultrassonografia de O.D.:

Ultrassonografia de O.D.:

Discussão

O caso relatado se trata de um coloboma de retina e coroide bilateral (também chamado de coloboma retinocoroidal), decorrente do fechamento incompleto da fissura coroidal(44 Trevor-Roper PD. Ophthalmology: A textbook for diploma students. London: Lloyd-Luke Medical Books; 1955.) durante a embriogenese do globo ocular, que ocorre entre a quarta (período que surge a fenda) e sexta semana (intervalo em que a fissura embrionária deveria estar completamente fechada) da vida intrauterina.(33 Nakanami CR, Zin A, Belfort R. Oftalmopediatria. São Paulo: Roca; 2010.)Acredita-se que há envolvimento de fator hereditário associado a ausência de fusão das bordas das camadas interna (será formada como uma membrana indiferenciada e vascularizada) e externa da retina (não se formará), epitélio pigmentado e, consequentemente, não haverá formação da coroide(22 Morterá AD, Ferraz Sallum JM. Embriologia, genética e malformações do aparelho visual. Rio de Janeiro: Cultura Médica; 2013.) (uma vez que, essa estrutura se desenvolve a partir da camada externa,(33 Nakanami CR, Zin A, Belfort R. Oftalmopediatria. São Paulo: Roca; 2010.) mas sim de uma fina membrana intercalar.(22 Morterá AD, Ferraz Sallum JM. Embriologia, genética e malformações do aparelho visual. Rio de Janeiro: Cultura Médica; 2013.)

No caso em questão, discute-se sobre o coloboma retinocoroidal que pode aparecer no exame de fundo de olho de tamanhos variados, predominantemente inferior,(1) na cor branca brilhante, amarelada; cristalino ou catarata, sem zônulas; ausência da retina e coroide (grande como pupila em chanfradura, ou pequenos - simulando cicatrizes coriorretinianas na retina inferonasal; (2) bordas irregulares inferiores e pigmentadas (os locais com falha no fechamento são preenchidos por tecido retiniano anormal). Estendem-se e envolvem o disco óptico, chegando até a íris (Figura 7); ou são isolados e, por fim, podem ser associados a doenças multissistêmicas (ex. trissomia do cromossomo 13 e Sd. Goldenhar’s), fatores autossômicos dominantes ou recessivos;ou ocorrerem como manifestações isoladas.

Figura 7
Aspecto fundoscopico do coloboma desde o nervo óptico. Note que há ausência da arcada temporal e nasal inferiores.

A paciente relatou antecedente cirúrgico de olho esquerdo que na data de nosso primeiro atendimento, apresentava-se phitisico. Em relação ao olho direito, ela afirmou que havia sido submetida a ultrassonografia ocular e, a partir desse exame, foi diagnosticado em outro serviço, além da catarata avançada, o descolamento de retina; recebendo assim indicação cirúrgica para correção do quadro.

Como vimos aqui, a paciente foi submetida ao exame ultrassonográfico, na presença de opacidade dos meios.

Acreditamos que a interpretação da ultrassonografia ocular serviu como base para indicação cirúrgica de facectomia e tratamento de descolamento de retina no outro serviço e que, talvez, a simples tomada da acuidade visual tenha sido desprezada. Essa cirurgia combinada, em caso de microcórnea e outras malformações oculares é, por si, bastante complexa, uma vez que nem mesmo a porta de entrada do segmento posterior, a ora serrata, é bem localizada.

No entanto, quando há de fato a necessidade de intervenção em segmento posterior tal desafio deve ser enfrentado e a cirurgia realizada, ainda mais se tratando de paciente jovem com olho único e mãe de dois filhos.

A importância da discussão desse relato de caso reforça o valor da ultrassonografia ocular na prática diária da oftalmologia, como exame complementar para auxílio diagnóstico e definição de tratamento. Portanto, é essencial sua correta indicação, realização e interpretação, que dependem do estudo, dedicação e experiência do examinador.

No caso em questão, a indicação do exame ultrassonográfico prévio no outro serviço foi correta, no entanto, sua interpretação não. Sendo assim, se a paciente não tivesse tido a iniciativa de procurar uma segunda opinião, talvez, o desfecho desse caso fosse diferente.

Tendo todo esse quadro em mente, optamos por uma conduta cirúrgica mais conservadora e não menos arriscada, uma vez que, a catarata se encontrava muito avançada devido ao receio, bastante justificável, da paciente em operar seu olho único. Além disso, a pupila, nesses casos, dilata-se bem, mas há também uma ausência de zônula na região correspondente ao coloboma e, portanto, uma certa instabilidade do cristalino, com maior risco de complicações.

Realizamos a cirurgia de catarata e implantamos a lente intraocular, a qual correu bem e nos pós-operatórios não havia mais a presença de opacidades dos meios que impediam a visualização do fundo de olho, sendo possível observar que a retina estava, como suspeitávamos, colada (Figura 8). No pós-operatório de 30 dias, realizamos a iridoplastia com yag lazer, uma vez que o eixo visual era prejudicado. Atualmente, a paciente apresenta acuidade visual de olho direito de 0,05, visão esta que lhe permite certa independência.

Figura 8
Biomicroscopia pós facectomia e pupiloplastia favorecendo o eixo visual.
  • Instituição onde o trabalho foi realizado: Instituto Penido Burnier, Campinas, SP, Brasil.

Referências

  • 1
    Ruiz Alves M, Nakashima Y, Tanaka T. Clínica oftalmológica: Conduta práticas em oftalmologia. Rio de Janeiro: Cultura Médica, 2013.
  • 2
    Morterá AD, Ferraz Sallum JM. Embriologia, genética e malformações do aparelho visual. Rio de Janeiro: Cultura Médica; 2013.
  • 3
    Nakanami CR, Zin A, Belfort R. Oftalmopediatria. São Paulo: Roca; 2010.
  • 4
    Trevor-Roper PD. Ophthalmology: A textbook for diploma students. London: Lloyd-Luke Medical Books; 1955.
  • 5
    Duane TD. Clinical ophthalmology. Philadelphia: Harper & Row; 1984.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Feb 2020

Histórico

  • Recebido
    17 Mar 2019
  • Aceito
    29 Maio 2019
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