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Análise dos fatores associados à decisão familiar sobre a doação de córneas

Resumo

Objetivo:

analisar a influência da escolaridade e do grau de parentesco na decisão familiar pela doação de córneas para transplantes.

Método:

desenho quantitativo, transversal e retrospectivo com amostra composta por 291 fichas das entrevistas realizadas com familiares de potenciais doadores de córneas de janeiro de 2015 a dezembro de 2017 de um hospital público, geral e de grande porte localizado no município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.

Resultados:

entre os potenciais doadores deste tecido, 53,3% são do sexo masculino com idade média de 57 anos (57±11); 55,7% são casados e o turno mais frequente da ocorrência do óbito é o noturno com 29,6% dos casos. Em relação à decisão familiar, 60,8% dos entrevistados decidiram favoravelmente à doação. Existe associação entre doação e turno da entrevista, sendo a madrugada o menos favorável (p=0,04). O tempo médio entre o óbito e a realização da entrevista é de 1:39 (±1:20) e não influenciou na decisão familiar (p=0,63). Dos familiares entrevistados, 58,8% são do sexo feminino e 53,3% são descendentes do potencial doador. O parentesco descendente decide sobre a doação com maior frequência do que ascendentes, laterais ou cônjuges. A faixa etária do familiar entrevistado (41±13) tem diferença estatística em relação a do potencial doador. Há diferença entre decisão de doação e nível de escolaridade (p=0,03) sendo que familiares com maior escolaridade decidem com maior frequência favoravelmente a doação. Conclusões: escolaridade do familiar, grau de parentesco e turno da entrevista influenciam na decisão positiva para a doação de córneas para transplantes.

Descritores:
Córnea; Obtenção de tecidos e órgãos; Doadores de tecidos

Abstract

Objective:

analyzing the influence of schooling and kinship on families’ decision to donate corneas for transplants.

Method:

quantitative, cross-sectional and retrospective study whose sample comprised 291 records of interviews conducted with family members of potential corneal donors from January 2015 to December 2017, who were treated in a public, general and large-sized hospital in Porto Alegre City, Rio Grande do Sul State, Brazil.

Results:

53.3% of the potential corneal donors were male at mean age of 57 years (57 ± 11); 55.7% were married and 29.6% of them died during the night shift, which was the shift when death took place more often. With respect to families’ decision, 60.8% of interviewees decided for donation. There was association between donation and interview shift; dawn was the least favorable time (p = 0.04). The mean time between patients’ death and the interview with family members was 1:39 (± 1: 20) and it did not influence families’ decision (p = 0.63). Among the interviewed family members, 58.8% were women and 53.3% were descendants of the potential donor. Descendants decide about the donation more often than ascendants, siblings or spouses. The age group of the interviewed family members (41 ± 13) was statistically different from that of potential donors. There was association between schooling and decision to donate (p = 0.03); family members with higher schooling were more often favorable towards donation.

Conclusions:

Family members’ schooling, degree of kinship and interview shift had positive influence on individuals’ decision to donate corneal tissue for transplants.

Keywords:
Cornea; Tissue and organ procurement; Tissue donos

Introdução

A córnea é um tecido transparente que se localiza na parte anterior do globo ocular e, juntamente com a esclera, compõe a parte fibrosa e protetora do olho. Alterações no formato e na transparência da córnea podem comprometer seriamente a visão, podendo até mesmo ocasionar a sua perda total. Essas alterações podem provocar diversos transtornos aos pacientes e prejudicá-los no desenvolvimento de suas atividades diárias. (11 Brasil. Ministério da Saúde. Doação de Órgãos: transplantes, lista de espera e como ser doados [Internet]. [citado 2019 Nov 12]. Disponível em: http://www.saude.gov.br/saude-de-a-z/doacao-de-orgaos
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) Uma opção de tratamento nesses casos é o transplante de córnea, sendo este o tecido mais transplantado em todo o mundo. (22 Brunette I, Roberts CJ, Vidal F, Harissi-Dagher M, Lachaine J, Sheardown H, Durr GM, Proulx S, Griffith M. Alternatives to eye bank native tissue for corneal stromal replacement. Prog Retin Eye Res. 2017; 59:97-130.)

No Brasil, de janeiro de 2015 a dezembro de 2018, foram realizados 59.638 transplantes de córneas. (33 Brasil. Ministério da Saúde. Transplantes por categoria. Córnea [Internet]. [citado 2019 Nov 12]. Disponível em: http://www.saude.gov.br/saude-de-a-z/doacao-de-orgaos
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) No primeiro semestre de 2019, houve uma queda de 4,3 % na taxa de transplante de córneas (68,2 pmp ) o que fez com que o Brasil se distanciasse da taxa prevista para obter uma “lista zero” (90 pmp). (44 RBT Registro Brasileiro de Transplantes. Dados numéricos da doação de órgãos e transplantes realizados por estado e instituição no período: Janeiro/Março - 2019. ABTO; 2019;25(1):1-26. Disponível em: http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/2019/RBT-2019-1%20trim%20-%20Pop.pdf
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)

Estudo global, que mediu a oferta e a demanda deste tecido em 148 países, alertou para o fato de que a demanda por transplantes de córnea aumentou e não está sendo suprida adequadamente, devido à escassez de doadores de córnea em todo o mundo. (55 Gain P, Jullienne R, He Z, Aldossary M, Acquart S, Cognasse F, Thuret G. Global survey of corneal transplantation and eye banking. JAMA Ophthalmol. 2016; 134:167-73.) Existem inúmeros fatores que podem contribuir para a não doação das córneas, entre eles a negativa dos familiares do potencial doador. (66 Freire IL, Vasconcelos QL, Torres GV, Araújo EC, Costa IK, Melo GS. Estrutura, processo e resultado da doação de órgãos e tecidos para transplante. Rev Bras Enferm. 2015;68(5):837-45.)

No Brasil em 2018 a taxa média de não autorização familiar chegou a 43%, tendo sido inferior a 35% apenas no Paraná (27%) e Santa Catarina (33%). (77 RBT Registro Brasileiro de Transplantes. Dimensionamento dos transplantes no Brasil e em cada estado (2011-2018). ABTO. 2018; 24(4):1-97. Disponível em:http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/2018/Lv_RBT-2018.pdf
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) O Rio Grande do Sul tem acompanhado essa média nacional, sendo que em 2018 foram realizadas 456 entrevistas com familiares de potenciais doadores de córneas com 195 casos de recusas familiares (43%). (88 Porto Alegre. Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul. Dados sobre transplantes [Internet]. [citado 2019 Out 1]. Disponível em: https://saude.rs.gov.br/dados-sobre-transplantes-5adf69b48d255.
https://saude.rs.gov.br/dados-sobre-tran...
)

As equipes especializadas das Comissões Intra-Hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes (CIHDOTT) têm o seu trabalho estruturado e padronizado de forma a buscar, através de uma entrevista, a decisão dos parentes do potencial doador de córneas. Essa etapa da doação tem sido colocada como o ponto mais importante da doação de órgãos, tendo em vista que é a partir dela que todo o processo pode ter continuidade e ser finalizado com sucesso. (99 Fonseca PIM, Tavares CM, Silva TN, Paiva LM, August VO. Entrevista familiar para a doação de órgãos: conhecimentos necessários segundo os coordenadores de transplantes. Rev Cuidado Fundamental. 2016; 8(1):3779-90.)

Nessa etapa do processo de doação, aspectos relacionados à família do potencial doador de córneas precisam ser considerados e estudados, pois serão determinantes para que tenhamos um desfecho favorável em relação à doação. Esse estudo teve por objetivo analisar a influência da escolaridade, do sexo, da idade, do grau de parentesco, do tempo entre o óbito e a entrevista e o turno da entrevista com a decisão familiar sobre a doação de córneas para transplantes.

Métodos

O delineamento do estudo foi do tipo transversal, retrospectivo e quantitativo. (1010 Hulley SB, Cummings SR, Browner WS, Grady DG, Newman TB. Delineando a pesquisa clínica. 4a ed. Porto Alegre: Artemed; 2015.) Trata-se de pesquisa aplicada, original, realizada no contexto da área da saúde e envolve uma das etapas da doação de córneas para transplante que é a entrevista familiar em caso de identificação de um potencial doador.

A amostra, não probabilística, foi composta por 291 fichas das entrevistas realizadas de janeiro de 2015 a dezembro de 2017 com familiares de potenciais doadores de córneas de um hospital público, geral e de grande porte localizado no município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Foram incluídas no estudo a totalidade das entrevistas realizadas no período citado de pacientes falecidos em morte encefálica ou por parada cardíaca que não possuíam contraindicação para a doação de córneas.

A Ficha de Entrevista Familiar, documento impresso de preenchimento obrigatório em cada abordagem familiar, foi criado pela CIHDOTT do hospital pesquisado. As entrevistas e o registro nas fichas são efetuados exclusivamente pelos membros da Comissão e seguem protocolos específicos do serviço, existindo uma padronização na abordagem dos familiares em todos os turnos de trabalho.

A coleta de dados foi realizada entre janeiro de 2018 e maio de 2018 por meio de formulário próprio, agrupando as variáveis de acordo com os três grupos de informações presentes na ficha: o primeiro em relação ao potencial doador de córneas e as variáveis são sexo, idade, estado civil, horário do óbito; o segundo em relação ao familiar entrevistado e as variáveis são sexo, idade, grau de parentesco, escolaridade; e o terceiro grupo, trata da entrevista em si e apresenta as variáveis tempo entre o óbito e a entrevista, hora da entrevista, decisão pelo aceite ou não da doação.

Na variável do grau de parentesco, seguimos o Decreto nº 9.175 de 18 de outubro de 2017, que trata da disposição de órgãos, tecidos, células e parte do corpo para fins de transplante e tratamento. A seção que envolve consentimento familiar, no Artigo nº 20, parágrafo 1º, estabelece que a autorização deverá ser do cônjuge ou do companheiro, de parente consanguíneo maior idade e juridicamente capaz tanto na linha reta como na colateral, até o segundo grau. Dessa forma, os dados foram agrupados da seguinte forma: cônjuge (incluindo companheiros que tenham comprovante de vínculo de união estável), ascendentes (pais e mães, avós e avôs), descentes (filhos e filhas, netos e netas) e lateral (irmão/ã).

No intuito de oferecer uma aproximação com os turnos de trabalho em um hospital, os horários de realização das entrevistas foram divididos em: Matutino (das 7-13h), Vespertino (das 13-19h), Noturno (das 19-00h) e Madrugada (das 00-7h).

Os dados foram digitados em um arquivo separados por vírgula (.csv) e analisadas de forma retrospectiva com auxílio do software livre RStudio Versão 1.1.383, com nível de significância adotado de 0,05 para os testes qui-quadrado e t-student.

O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa em seres humanos, visando atender a Resolução nº 466 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde-Brasília (DF). O presente estudo foi aprovado sob o número de autorização ética CAAE 79343217.4.0000.5530 e parecer número 2.394.361 de 23 de novembro de 2017.

Resultados

Este estudo analisou 291 fichas de entrevistas realizadas com familiares de potenciais doadores de córneas e os resultados encontrados são apresentados por meio de três tabelas. A tabela 1 traz informações de frequência das variáveis: sexo masculino de 155 (53,3%) e feminino de 136 (46,7%), idade com média de 57 anos, desvio padrão de 11 anos e com coeficiente de variação de 19,3%; estado civil com 162 (55,7%) casados(as), 68 (23,4%) solteiros(as), 31 (10,7%) viúvos(as) e 30 (10,3%) divorciados(as); turno do óbito 86 (29,6%) noturno, 82 (28,2%) matutino, 75 (25,8%) vespertino e 48 (16,5%) madrugada dos potenciais doadores de córneas.

Tabela 1
Distribuição das frequências das variáveis sexo, idade, estado civil e turno do óbito do potencial doador de córneas

Na tabela 2 são apresentados os dados dos familiares entrevistados: 120 (41,2%) sexo masculino e 171 (58,8%) sexo feminino; média de idade de 41 anos com desvio padrão de 13 anos e coeficiente de variação de 31,4%; parentesco cônjuges 75 (25,8%) pessoas, 155 (53,3%) de descendentes, 10 (5,4%) ascendentes e 51 (17,5%) laterais; para a escolaridade de ensino fundamental são de 98 (49,2%), 67 (33,7%) para o médio e 34 (17,1%) para o superior; o turno da entrevista foram 67 (23%) matutinas, 87 (29,9%) vespertinas, 92 (31,6%) noturnas e 45 (15,5%) na madrugada,

Tabela 2
Distribuição das frequências das variáveis sexo, idade, parentesco, escolaridade e turno da entrevista com o familiar do potencial doador de córneas

Na Tabela 3 são apresentados os dados das decisões provenientes da entrevista com os familiares, os resultados estão distribuições em números absolutos para os fatores de estudo e ao lado está o percentual na decisão.

Tabela 3
Distribuição das frequências de decisão da doação, segundo sexo, parentesco, escolaridade, idade do familiar, tempo entre o óbito e a entrevista e o turno da entrevista

Para a decisão de aceite temos 177 (60,8%) do total, assim descritas: 105 (61,4%) mulheres e 72 (60%) homens; 49 (62,2%) cônjuges, 85 (54,5%) descendentes, 7 (70%) ascendentes e 38 (72,5%) laterais; 47 (47,9%) com ensino fundamental, 34 (50,7%) com ensino médio e 25 (73,5%) para ensino superior; idade maior que 41 anos são 51 (55,4%) pessoas e para idade menor igual a 41 anos são 49 (45,8%) pessoas; para o tempo entre o óbito e a entrevista são 8 (50%) para até 1 hora, 41 (56,2%) entre 1 e 2 horas, 67 (67%) entre 2 e 3 horas, 33 (57,9%) entre 3 e 4 horas, 15 (60%) entre 4 e 5 horas e 11 (55%) acima de 5 horas; o turno matutino teve 50 (74,6%), o vespertino 53 (60,9%), o noturno 54 (58,7%) e a madrugada 22 (48,9%) pessoas.

Para a decisão não aceite temos 114 (39,2%) do total, assim descritas: 48 (40%) homens e 66 (38,6%) mulheres; 25 (33,8%) cônjuges, 71 (45,5%) descendentes, 3 (30%) ascendentes e 13 (27,5%) laterais; 51 (52,1%) com ensino fundamental, 33 (49,3%) com ensino médio e 9 (26,5%) para ensino superior; idade maior que 41 anos são 58 (54,2%) pessoas e para idade menor igual a 41 anos são 41 (44,6%) pessoas; para o tempo entre o óbito e a entrevista são 8 (50%) para até 1 hora, 32 (43,8%) entre 1 e 2 horas, 33 (33%) entre 2 e 3 horas, 24 (42,1%) entre 3 e 4 horas, 10 (40%) entre 4 e 5 horas e 9 (45%) acima de 5 horas; o turno matutino teve 17 (25,4%), o vespertino 34 (39,1%), o noturno 38 (41,3%) e a madrugada 23 (51,1%) pessoas.

Discussão

A doação de órgãos é uma decisão que compete exclusivamente aos membros da família do possível doador(1111 Rossato GC, Girardon-Perlini NM, Beuter M, Camponogara S, Flores CL. Doar ou não doar: a visão dos familiares frente à doação de órgãos. REME - Rev Min Enferm. 2017;21:e-1056.) e a recusa familiar está entre os inúmeros fatores que podem contribuir para a não efetivação do processo de doação de córneas. (66 Freire IL, Vasconcelos QL, Torres GV, Araújo EC, Costa IK, Melo GS. Estrutura, processo e resultado da doação de órgãos e tecidos para transplante. Rev Bras Enferm. 2015;68(5):837-45.) No presente estudo, entre as 291 fichas de entrevistas analisadas, a taxa de não autorização familiar ficou em 39,2%, abaixo da média brasileira que em 2018 foi de 43%. (44 RBT Registro Brasileiro de Transplantes. Dados numéricos da doação de órgãos e transplantes realizados por estado e instituição no período: Janeiro/Março - 2019. ABTO; 2019;25(1):1-26. Disponível em: http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/2019/RBT-2019-1%20trim%20-%20Pop.pdf
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)

O não aceite dos familiares para a doação de córneas pode estar relacionado ao desconhecimento da família sobre o funcionamento do processo da doação e do transplante. (1212 Rosário EM, Pinho LG, Oselame GB, Neves EB. Recusa familiar diante de um potencial doador de órgãos. Cad Saúde Colet. 2013; 21(3):260-6.) Para a manifestação do consentimento, é importante que os familiares tenham os esclarecimentos necessários sobre o processo de doação. (1313 Santos MJ, Massarollo MC. Processo de doação de órgãos: percepção de familiares de doadores cadáveres. Rev Lat Am Enfermagem. 2005;13(3):382-7.) Nesse estudo, a maioria dos familiares entrevistados são do sexo feminino, 58,8%. Identificamos que não houve influência do sexo do familiar na decisão de doação, pois o aceite ocorreu na mesma proporção, 60% para homens e 61,4% para mulheres, p=0,81.

Em relação ao perfil etário, dados de 2018 mostram que o maior número de doadores de órgãos no Brasil possui entre 50 e 64 anos. (77 RBT Registro Brasileiro de Transplantes. Dimensionamento dos transplantes no Brasil e em cada estado (2011-2018). ABTO. 2018; 24(4):1-97. Disponível em:http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/2018/Lv_RBT-2018.pdf
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) A média de idade do doador de córneas (57±11) e do familiar (41±13) desse estudo foram testadas com t-student e a diferença estatística (p<0,001) indica que, em média, é a geração mais jovem que é entrevistada para decidir sobre a doação. Familiares acima de 41 anos decidem mais pela doação do que os mais jovens.

A tomada de decisão ao envolver a família faz com que o grau de parentesco do familiar do doador ganhe relevância. É no momento da entrevista que há a identificação do responsável legal pelo entrevistador que avalia se todos os familiares estão cientes e esclarecidos sobre o processo, permitindo que se expressem e sanem as principais dúvidas. (1414 Santos MJ. A entrevista familiar no processo de doação de órgãos e tecidos para transplante [tese]. Ribeirão Preto: Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 2010.)

Na análise realizada identificou-se que 155 (53,3%) dos entrevistados possuíam um grau de parentesco descendente e 2,07 vezes mais probabilidade (1,73-2,41; IC95%) de serem entrevistados se comparados aos cônjuges. Na decisão de aceite pela doação, os descendentes 85 (54,5%), os parentes laterais 38 (72,5%), ascendentes 7 (70%) e cônjuges 49 (66,2%) tiveram percentuais estatisticamente deferentes em relação à decisão de não aceite, p=0,05.

A entrevista vem sendo aprimorada cada vez mais através do desenvolvimento de técnicas, de capacitações das equipes em relação à forma como se fala e o uso de linguagem clara, transparente e honesta. (1414 Santos MJ. A entrevista familiar no processo de doação de órgãos e tecidos para transplante [tese]. Ribeirão Preto: Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 2010.) Nessa etapa do processo de doação deve-se levar em conta o perfil do familiar a ser entrevistado e para questões que envolvam os laços familiares e a forma como as famílias discutem e compartilham informações entre si. Estudo realizado nos Estados Unidos da América sobre a doação de órgãos mostrou que o número de órgãos captados sofre a influência do consentimento condicionado das famílias a determinados órgãos, expressos por razões emocionais, culturais, religiosas ou pelo conflito familiar. (1515 Roza BA, Garcia VD, Barbosa SFF, Mendes KD, Schirmer J. Doação de órgãos e tecidos: relação com o corpo em nossa sociedade. Acta Paul Enferm. 2010;23(3):417-22.)

Informações pertinentes sobre como ocorre a doação de córneas são apresentadas verbalmente para os familiares no momento da entrevista, etapa determinante na tomada de decisão quanto à opção, ou não, pela doação de órgãos e/ou tecidos pelos familiares. (1414 Santos MJ. A entrevista familiar no processo de doação de órgãos e tecidos para transplante [tese]. Ribeirão Preto: Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 2010.) Antes de ser um o momento para se oferecer a opção da doação de órgãos, a entrevista é entendida como o momento ideal para que os familiares sejam informados sobre todo o processo de doação. Ao assumir esse caráter educativo, valioso no processo da doação, é um importante meio de educar, empoderar e dar informações aos familiares sobre seus direitos. (99 Fonseca PIM, Tavares CM, Silva TN, Paiva LM, August VO. Entrevista familiar para a doação de órgãos: conhecimentos necessários segundo os coordenadores de transplantes. Rev Cuidado Fundamental. 2016; 8(1):3779-90.)

Este estudo aponta a escolaridade como um fator que pode interferir na doação, pois existe diferença estatística sobre a decisão de concordar com a doação e a escolaridade (p=0,03), sendo 1,53 vezes mais provável a decisão de aceite pela doação para familiares com ensino superior (1,06-2,23; IC95%) considerando apenas os dados válidos. A falta de informações ou informações inadequadas aliadas ao baixo nível de escolaridade dos familiares pode gerar interpretações fantasiosas a respeito de como será devolvido o corpo e sobre a distribuição equitativa dos órgãos. (1111 Rossato GC, Girardon-Perlini NM, Beuter M, Camponogara S, Flores CL. Doar ou não doar: a visão dos familiares frente à doação de órgãos. REME - Rev Min Enferm. 2017;21:e-1056.) Observa-se que muitas famílias parecem ter dificuldades para compreender as orientações dadas e que são necessárias para a tomada de decisão. (1313 Santos MJ, Massarollo MC. Processo de doação de órgãos: percepção de familiares de doadores cadáveres. Rev Lat Am Enfermagem. 2005;13(3):382-7.)

O baixo nível de escolaridade e a desinformação da população podem gerar interpretações deturpadas a respeito da captação e do transplante de órgãos. Segundo o princípio os princípios da bioética, indivíduos mal informados sobre o tema em questão não são capazes de decidir conscientemente se desejam realizar a doação dos órgãos de seu ente falecido. (1616 Morais TR, Morais MR. Doação de órgãos: é preciso educar para avançar. Saúde em Debate. 2012; 36(95):633-9.)

O Brasil possui um índice elevado de analfabetismo, somado ao contingente de pessoas semialfabetizadas, o que compromete a autonomia, visto que a ausência de informações necessárias e indispensáveis limita a decisão livre das pessoas sobre seus destinos. (1616 Morais TR, Morais MR. Doação de órgãos: é preciso educar para avançar. Saúde em Debate. 2012; 36(95):633-9.) Nesse sentido, a escolaridade dos familiares entrevistados pode interferir no processo de doação, pois a baixa escolaridade pode reduzir o acesso desse sujeito à informação de modo geral e sobre o processo de transplantes em particular. Da mesma forma, escolaridade mais elevada é um facilitador na tomada de decisão.

Isso reforça o fato de que o desenvolvimento de um sistema de transplante não é determinado somente pelo desenvolvimento econômico de um país, e sim, pela associação de fatores organizacionais, econômicos, culturais e sociais. (1414 Santos MJ. A entrevista familiar no processo de doação de órgãos e tecidos para transplante [tese]. Ribeirão Preto: Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 2010.)

Apesar da preocupação com o tempo entre o óbito e a retirada das córneas ser um fator importante, a decisão de doação deste tecido não depende do tempo entre o óbito e a realização da entrevista com o familiar (p=0,63), entretanto é motivo de preocupação no que tange a conservação e manutenção dos tecidos humanos. O tempo médio entre o óbito e a decisão foi de 1 hora e 39 minutos com desvio padrão de 1 hora e 20 minutos e um coeficiente de variação de 81%, indicando alta variação interna.

Foi encontrado associação entre a decisão de doação e o turno da entrevista, sendo que os turnos matutino e vespertino são mais favoráveis ao aceite pela doação (p=0,04). Nesse sentido, conhecer os dados institucionais facilita a proposição de novas ações/abordagens como, por exemplo, a ampliação da equipe e adequação de escalas, o que pode ampliar as chances de obtenção de melhores resultados. (1717 Moraes EL, Massarollo MC. A recusa familiar para a doação de órgãos e tecidos para transplante. Rev Lat Am Enfermagem. 2008;16(3):458-64.)

Considerando que a entrevista deva ser adaptada ao estado emocional da família(1414 Santos MJ. A entrevista familiar no processo de doação de órgãos e tecidos para transplante [tese]. Ribeirão Preto: Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 2010.), não houve o preenchimento dos campos grau de escolaridade e idade do familiar em 92 (31,6%) fichas. Destas, 74 (80%) foram favoráveis à doação e 18 (20%) não. Em relação a essa limitação, os dados foram tratados com a técnica de imputação de dados(1818 Nunes LN, KlückI MM, Fachel JM. Comparação de métodos de imputação única e múltipla usando como exemplo um modelo de risco para mortalidade cirúrgica. Rev Bras Epidemiol 2010; 13(4): 596-606.). Utilizamos a substituição do dado faltante pelo de maior frequência no caso da variável categórica escolaridade e do valor médio no caso da idade do familiar. Após a utilização desse método, evidenciou-se que as decisões em relação à escolaridade e à idade não obtiveram alteração significativa. Para a análise fatorial foi construído uma matriz de correlação(1919 Hair Jr. JF, Black WC, Babin BJ, Anderson RE, Tatham RL. Análise multivariada de dados. 6a ed.) entre todas a variáveis. As variáveis que tiveram o maior coeficiente foram sexo do familiar, escolaridade do familiar, parentesco e turno da entrevista. As comparações entre os grupos ocorreram por meio da razão de proporção das decisões de aceite ou não aceite.

Diante do exposto, consideramos que a análise dos fatores associados à decisão familiar sobre a doação de córneas, além de contribuir com o crescimento científico na área de captação de órgãos e tecidos para transplantes, qualifica os processos de trabalho que envolvem a abordagem familiar, não apenas no que diz respeito ao ato da entrevista, mas também na organização, gerenciamento de informações e melhoria da documentação da Ficha de Entrevista Familiar.

Conclusões

O estudo concluiu que o turno da entrevista, a escolaridade do familiar e o grau de parentesco podem influenciar na decisão pela doação. O turno matutino e o vespertino das entrevistas são mais favoráveis ao aceite pela doação. Familiares com escolaridade de nível superior têm maior probabilidade de decidir favoravelmente à doação. Os graus de parentesco descendente e lateral são mais favoráveis ao aceite pela doação. A idade e o sexo do familiar não influenciam na decisão. O tempo entre o horário do óbito e a realização da entrevista não influenciou na decisão pela doação.

Agradecimentos

Os autores agradecem ao Grupo Hospitalar Conceição - RS/Brasil, à Gerência de Ensino e Pesquisa, à Gerência de Pacientes Externos e à equipe da Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para transplantes do Hospital Nossa Senhora da Conceição.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Oct 2020

Histórico

  • Recebido
    25 Fev 2020
  • Aceito
    10 Jul 2020
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