Acessibilidade / Reportar erro

Elaboração e análise de validade e confiabilidade de um questionário para avaliar o conhecimento de médicos e enfermeiros da atenção primária sobre o tracoma

Resumo

Objetivo:

Elaborar e analisar a validade e confiabilidade de um questionário para avaliar o conhecimento de médicos e enfermeiros da atenção primária sobre o tracoma.

Métodos:

Trata-se de um estudo metodológico de elaboração e análise de validade e confiabilidade de instrumento (questionário). Foram desenvolvidas as seguintes etapas: 1) identificação da literatura fonte atualizada sobre o tema; 2) elaboração dos itens do questionário pelos pesquisadores; 3) validação de conteúdo por experts; 4) validação de construto com aplicação do instrumento e análise de teste de hipóteses; 5) análise de consistência interna e; 6) análise de estabilidade temporal (teste-reteste).

Resultados:

Participaram da pesquisa 205 médicos e enfermeiros da atenção primária e 10 especialistas em oftalmologia e infectologia. O instrumento, inicialmente com 52 itens, ficou com 34 itens após todas as etapas. O instrumento mostrou-se capaz de discriminar adequadamente profissionais com maior e menor conhecimento, segundo o teste de hipóteses (p<0,001). O alfa de Cronbach foi de 0,86 e o teste-reteste registrou uma concordância superior a 60% para a maioria dos itens.

Conclusões:

O instrumento final apresentou validade e confiabilidade satisfatórios. Poderá ser um instrumento útil para aferir conhecimentos de profissionais da atenção primária sobre o tracoma e auxiliar na elaboração de estratégias educacionais para estes profissionais.

Descritores:
Tracoma; Estudos de validação; Atenção Primária à Saúde; Inquéritos e questionários

Abstract

Objective:

To develop and analyze the validity and reliability of a questionnaire to assess the knowledge of primary care physicians and nurses about trachoma.

Methods:

This is a methodological study of elaboration and analysis of validity and reliability of an instrument (questionnaire). The following steps were developed: 1) identification of updated source literature on the subject; 2) elaboration of the questionnaire items by the researchers; 3) content validation by experts; 4) construct validation with instrument application and hypothesis test analysis; 5) internal consistency analysis and; 6) temporal stability analysis (test-retest).

Results:

The study included 205 primary health care physicians and nurses and 10 specialists in ophthalmology and infectology. The instrument, initially with 52 items, was left with 41 items after all stages. The instrument was able to adequately discriminate professionals with greater and lesser knowledge, according to the hypothesis test (p <0.001). Cronbach's alpha was 0.86 and the test-retest recorded an agreement greater than 60% for most items.

Conclusions:

The final instrument presented satisfactory validity and reliability. It may be a useful tool to assess knowledge of primary health care professionals about trachoma and assisting in the development of educational strategies for these professionals.

Keywords:
Trachoma; Validation studies; Primary Health Care; Surveys and questionnaires

Introdução

O tracoma é resultado de uma infecção pela bactéria Chlamydia trachomatis que persiste como a maior causa de cegueira infecciosa evitável no mundo. É endêmico em alguns países não desenvolvidos e pertence ao grupo das doenças de populações negligenciadas. Está associado a precárias condições socioeconômicas e de saneamento de uma população.(11 Taylor HR, Burton MJ, Haddad D, West S, Wright H. Trachoma. Lancet. 2014;384(9960):2142-52.

2 Hu VH, Harding-Esch EM, Burton MJ, Bailey RL, Kadimpeul J, Mabey DC. Epidemiology and control of trachoma: systematic review. Trop Med Int Health. 2010;15(6):673-91.

3 Araújo Silva MB, Andrade MS, de Oliveira YV, Santiago Marques MG, Mourão Pinho C, Araújo de Miranda Lopes K. Trachoma as cause of blindness: literature review. Int Arch Med. 2017;10(56):1-9.
-44 Lansingh VC. Trachoma. BMJ Clin Evid. 9;2016:0706.) A OMS, tendo em vista à gravidade do problema, lançou uma iniciativa visando a eliminação do tracoma como causa de cegueira.(55 World Health Organization (WHO). Alliance for the Global elimination of trachoma by 2020: progress report on elimination of trachoma, 2014-2016. Geneva: WHO; 2017.

6 World Health Organization (WHO). Planning for the global elimination of Trachoma (GET): report of a WHO Consultation Geneva 1997. Geneva: WHO; 1997.

7 World Health Organization (WHO). 51 st World Healty Assembly, WHA51. 11Global elimination of blinding trachoma. Geneva: WHO; 1998.
-88 Gómez DV, Lopes MF, Medina NH, Luna EJ. Tracoma: aspectos epidemiológicos e perspectivas de eliminação como problema de saúde pública no Brasil. eOftalmo. 2018;4(4):147-53.)

No Brasil, durante o período que ficou conhecido como “milagre econômico” (década de 1970), foi observada uma diminuição importante na detecção da doença no país, fazendo acreditar que o tracoma não mais constituía problema de saúde pública, o que ocasionou a crença equivocada da erradicação do tracoma.(99 Brasil. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Manual de controle do tracoma. Brasília (DF): Fundação Nacional de Saúde; 2014. p. 52.,1010 Schellini SA, Sousa RL. Tracoma: ainda uma importante causa de cegueira. Rev Bras Oftalmol. 2012;71(3):199-204.) Pesquisas epidemiológicas demonstram que o tracoma ainda persiste no país como problema de saúde pública e deve ser considerado entre os possíveis diagnósticos nas inflamações conjuntivais crônicas.(99 Brasil. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Manual de controle do tracoma. Brasília (DF): Fundação Nacional de Saúde; 2014. p. 52.,1010 Schellini SA, Sousa RL. Tracoma: ainda uma importante causa de cegueira. Rev Bras Oftalmol. 2012;71(3):199-204.) O equívoco quanto à erradicação permaneceu na comunidade científica brasileira, o que levou a negligência no enfrentamento à doença, bem como no ensino da sua etiologia, diagnóstico e tratamento.(99 Brasil. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Manual de controle do tracoma. Brasília (DF): Fundação Nacional de Saúde; 2014. p. 52.,1010 Schellini SA, Sousa RL. Tracoma: ainda uma importante causa de cegueira. Rev Bras Oftalmol. 2012;71(3):199-204.)

O diagnóstico do tracoma é essencialmente clínico e pode ser feito por meio de exame ocular externo, utilizando lupa binocular de 2,0 a 3,0 vezes de aumento. Deve ser estabelecido quando houver pelo menos dois dos seguintes sinais clínicos: folículos na conjuntiva tarsal superior, folículos no limbo, cicatriz conjuntival típica e pannus no limbo superior que corresponde a invasão de vasos sanguíneos neo-formados.(11 Taylor HR, Burton MJ, Haddad D, West S, Wright H. Trachoma. Lancet. 2014;384(9960):2142-52.

2 Hu VH, Harding-Esch EM, Burton MJ, Bailey RL, Kadimpeul J, Mabey DC. Epidemiology and control of trachoma: systematic review. Trop Med Int Health. 2010;15(6):673-91.

3 Araújo Silva MB, Andrade MS, de Oliveira YV, Santiago Marques MG, Mourão Pinho C, Araújo de Miranda Lopes K. Trachoma as cause of blindness: literature review. Int Arch Med. 2017;10(56):1-9.
-44 Lansingh VC. Trachoma. BMJ Clin Evid. 9;2016:0706.)

Tendo em vista que a atenção primária é a porta de entrada do sistema de saúde, é importante que os profissionais de saúde, especialmente médicos e enfermeiros que atuam em equipes da Estratégia Saúde da Família, possam estar preparados para diagnosticar os casos de tracoma. O objetivo do presente estudo foi de elaborar e analisar a validade e confiabilidade de um questionário para avaliar o conhecimento de médicos e enfermeiros da atenção primária sobre o tracoma.

Métodos

Trata-se de um estudo metodológico de elaboração e avaliação de validade e confiabilidade de um instrumento para avaliação do conhecimento de médicos e enfermeiros.

A pesquisa foi realizada com médicos e enfermeiros nos municípios que compõem a região ampliada de saúde Jequitinhonha (região Nordeste de Minas Gerais) e Montes Claros (região Norte de Minas Gerais). Essas áreas foram selecionadas por compreenderem as regiões de piores indicadores socioeconômicos do estado e, portanto, com maior probabilidade de apresentar casos de tracoma.

O instrumento foi desenvolvido a partir da identificação de literatura atualizada sobre o tracoma, elaboração dos itens relacionados ao tema, validação de conteúdo, por especialistas, aplicação do instrumento para validação de construto (teste de hipótese), análise de consistência interna e análise de estabilidade temporal ou teste-reteste, conforme de detalha a seguir.

Elaboração do questionário

Identificação da literatura

Na identificação da literatura e elaboração dos itens foram pesquisadas nas fontes de bases de dados: MEDLINE, SCIELO e LILACS. Os termos utilizados durante a busca foram: tracoma e atenção primária, em português, inglês e espanhol. Os referenciais foram escolhidos baseados na relevância e atualidade dos mesmos.(11 Taylor HR, Burton MJ, Haddad D, West S, Wright H. Trachoma. Lancet. 2014;384(9960):2142-52.

2 Hu VH, Harding-Esch EM, Burton MJ, Bailey RL, Kadimpeul J, Mabey DC. Epidemiology and control of trachoma: systematic review. Trop Med Int Health. 2010;15(6):673-91.

3 Araújo Silva MB, Andrade MS, de Oliveira YV, Santiago Marques MG, Mourão Pinho C, Araújo de Miranda Lopes K. Trachoma as cause of blindness: literature review. Int Arch Med. 2017;10(56):1-9.

4 Lansingh VC. Trachoma. BMJ Clin Evid. 9;2016:0706.

5 World Health Organization (WHO). Alliance for the Global elimination of trachoma by 2020: progress report on elimination of trachoma, 2014-2016. Geneva: WHO; 2017.

6 World Health Organization (WHO). Planning for the global elimination of Trachoma (GET): report of a WHO Consultation Geneva 1997. Geneva: WHO; 1997.

7 World Health Organization (WHO). 51 st World Healty Assembly, WHA51. 11Global elimination of blinding trachoma. Geneva: WHO; 1998.

8 Gómez DV, Lopes MF, Medina NH, Luna EJ. Tracoma: aspectos epidemiológicos e perspectivas de eliminação como problema de saúde pública no Brasil. eOftalmo. 2018;4(4):147-53.

9 Brasil. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Manual de controle do tracoma. Brasília (DF): Fundação Nacional de Saúde; 2014. p. 52.
-1010 Schellini SA, Sousa RL. Tracoma: ainda uma importante causa de cegueira. Rev Bras Oftalmol. 2012;71(3):199-204.)

Elaboração dos itens

A partir desse material bibliográfico, foram elaborados 52 itens, abrangendo os principais aspectos do tracoma (epidemiologia, etiopatogenia, clínica, diagnóstico e tratamento). Todos os itens foram elaborados como afirmativas verdadeiras, preservando as palavras originais dos textos-base e buscando a construção de frases curtas, sempre que possível.

Análise de Validade

Validade de conteúdo

A validação de conteúdo foi realizada com a participação 4 médicos oftalmologistas e um epidemiologista, com titulação de doutorado e/ou mestrado, professores e/ou pesquisadores, todos com mais de 20 anos de atuação. Os avaliadores responderam aos 52 quesitos iniciais destacando a relevância de cada item e a adequação das assertivas para o conhecimento desejável de médicos e enfermeiros. Na análise da relevância das questões as opções eram: muito relevante, relevante, pouco relevante e sem relevância. Na análise da adequação das assertivas as opções eram apenas sim ou não. Foram mantidos os quesitos que, pelo menos 75% dos experts, haviam considerado relevantes ou muito relevantes e as assertivas consideradas adequadas. Foram excluídos 11 itens que, segundo parecer de mais de 75% dos experts, eram irrelevantes ou pouco relevantes e/ou as assertivas consideradas inadequadas (sendo dois itens referentes aos aspectos fisiopatogênicos, cinco referentes aos aspectos clínicos e quatro relacionados ao diagnóstico e tratamento). Após, 30 % dos itens restantes foram sorteados e transformados em afirmativas incorretas.

Cada item do questionário seguia-se de cinco opções de respostas em escala de Likert a serem assinaladas pelos respondentes, segundo o nível de concordância com o conteúdo, sendo a primeira coluna equivalente ao máximo de concordância (“concordo plenamente”) e última coluna equivalente ao máximo de discordância (“discordo plenamente”). As colunas intermediárias, possibilitavam respostas intermediárias entre as respostas extremas.

Validade de construto

A validação de construto no presente estudo foi realizada pelo teste de hipótese. Nesse sentido, foram avaliados e comparados os escores de acertos de médicos generalistas e enfermeiros com os escores de médicos oftalmologistas e infectologistas. Para proceder a análise, o questionário foi aplicado para médicos e enfermeiros atuantes na atenção primária à saúde (generalistas e médicos de família e comunidade) e para médicos oftalmologistas e infectologistas.

Na definição dos escores, foram consideradas respostas corretas aquelas que apresentavam concordância parcial ou plena para as afirmativas verdadeiras, bem como discordância parcial ou plena para as afirmativas falsas. Todas as respostas foram então transformadas em escores, por meio da soma dos valores atribuídos na escala Likert para os itens que integravam o instrumento, atribuindo-se um ponto para cada resposta correta. O teste de hipótese compreende uma das estratégias de validação de construto que, nesse caso, buscou verificar se o instrumento era capaz de discriminar oftalmologistas (que deveriam alcançar escores mais elevados) dos demais profissionais (para os quais eram esperados escores mais baixos).

Foram também calculados e comparados os escores médios dos respondentes, buscando associação com outras variáveis do grupo (formação profissional, sexo e idade). A comparação dos escores dos itens entre os grupos foi realizada utilizando-se os testes U de Mann-Whitney e de Kruskal-Wallis, considerando que os valores dos escores não tinham distribuição normal. O nível de significância assumido foi de 5% (p<0,05).

Análise de confiabilidade

Análise de consistência interna

A análise de consistência interna foi realizada utilizando-se o alfa de Cronbach. Trata-se da medida mais utilizada para avaliação da confiabilidade.(1111 Beeckman D, Vanderwee K, Demarré L, Paquay L, Van Hecke A, Defloor T. Pressure ulcer prevention: development and psychometric validation of a knowledge assessment instrument. Int J Nurs Stud. 2010 ;47(4):399-410.,1212 Bonett DG, Wright TA. Cronbach's alpha reliability: interval estimation, hypothesis testing, and sample size planning. J Organ Behav. 2015;36(1):3-15.) É um valor que reflete o grau de correlação ou co¬variância entre os itens de um determinado instrumento, ou seja, o quanto os itens estão vinculados entre si na aferição do mesmo construto. Valores superiores a 0,7 são considerados como satisfatórios.(1313 Bland JM, Altman DG. Cronbach's alpha. BMJ. 1997;314(7080):572.)

Adicionalmente também se avaliou a correlação média entre os itens e a influência sobre o valor do alfa de Cronbach a partir da retirada cada item. Esse procedimento representa, em certa medida, uma confirmação da análise de consistência interna, pois se a correlação média entre os itens for baixa, o valor do coeficiente alfa de Cronbach também será baixo. Por outro lado, à medida que o coeficiente alfa aumenta, a correlação média acompanha essa elevação. Isso equivale dizer que correlações altas evidenciam que os itens medem o mesmo construto, satisfazendo a avaliação da confiabilidade.(1414 Streiner DL. Starting at the beginning: an introduction to coefficient alpha and internal consistency. J Pers Assess. 2003;80(1):99-103.,1515 Cortina JM. What is coefficient alpha? An examination of theory and applications. J Appl Psychol. 1993;78(1):98-104.) Geralmente, valores médios de correlação entre os itens superiores são considerados satisfatórios ou adequados quando são acima de 0,30.(1616 Streiner DL, Norman GR, Cairney J. Health measurement scales. A practical guide to their development and use. Oxford University Press; 2015.) Para o cálculo do coeficiente do alfa de Cronbach utilizou-se o software IBM-SPSS.

Análise de estabilidade temporal (teste-reteste)

A estatística Kappa foi realizada após a reaplicação do questionário (teste-reteste) para cerca de 15% dos participantes com um tempo médio de 12 dias. Nessa etapa as respostas foram dicotomizadas em “certas” e “erradas”, utilizando o mesmo processo da definição de escores. Os valores utilizados como parâmetro da estatística foram os parâmetros de Landis e Koch: pequena concordância para Kappa < 0,40; concordância regular, para Kappa entre 0,41 a 0,60; boa concordância para Kappa entre 0,61 a 0,80 e concordância excelente para Kappa > 0,80.(17)

A coleta de dados foi realizada após aprovação do estudo pelas secretarias municipais de saúde nas regiões selecionadas para o estudo e identificação do número, dos nomes e locais de atendimento dos médicos e enfermeiros atuantes. Todos os profissionais foram contactados pessoalmente em seus locais de trabalho por um membro da equipe de pesquisa e solicitado a participar do estudo, mediante assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Os critérios de inclusão utilizados foram:

- ser médico de família ou generalista;

- ser enfermeiro;

- ser médico oftalmologista ou infectologista;

- aceitar participar da pesquisa e assinar os termos de consentimento livre e esclarecido.

Os critérios de exclusão utilizados foram:

- não estar em plena atividade (estar afastado por alguma razão);

- não atuar na atenção primária em saúde ou na especialidade (médicos oftalmologistas e infectologistas).

Todos os aspectos éticos foram respeitados para a condução do estudo. Além do preenchimento do TCLE, os participantes tiveram assegurados o sigilo de seus dados. O projeto de pesquisa foi avaliado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros, registrado e aprovado sob parecer número: 2624699.

Resultados

Após identificação dos temas mais relevantes sobre tracoma, foram elaborados 52 itens (afirmativas) abordando quatro dimensões: Aspectos epidemiológicos, Aspectos etiopatogênicos, Aspectos Clínicos e Diagnóstico e Tratamento. Os itens elaborados foram analisados pelos especialistas na etapa de validação de conteúdo e o instrumento, inicialmente com 52 itens, passou a contar com 41 itens. Os itens mantidos no questionário alcançaram consenso mais de 75% dos especialistas, no que diz respeito à relevância e adequação das assertivas. Foram ainda acolhidas sugestões de modificações na escrita de alguns itens, sem modificação no conteúdo principal.

O questionário com 41 itens foi respondido por 205 profissionais. Sete itens alcançaram índices de acertos abaixo de 10% (incluindo-se aí as respostas em branco) e foram excluídos por terem sido considerados muito difíceis para o público da APS, sendo dois referentes aos aspectos clínicos e cinco referentes ao diagnóstico e tratamento do tracoma.

As principais características do grupo de profissionais que participaram do estudo são apresentadas na Tabela 1. Entre os respondentes, 31,7% eram do sexo masculino, 46,8% estavam na faixa etária entre 30 e 39 anos. Mais de 80% dos participantes eram médicos e 72,7% não possuía ou não havia concluindo nenhuma especialização.

Tabela 1
Caracterização de médicos e enfermeiros participantes do processo de aferição de propriedades psicométricas de um questionário para avaliar conhecimento sobre tracoma

A Tabela 2 apresenta os escores médios para algumas categorias/variáveis do grupo. Apenas se registrou diferença estatisticamente significativa para a análise de categoria profissional que comparou oftalmologistas e infectologistas com os demais profissionais (p=0,001).

Tabela 2
Comparação entre os escores médios dos profissionais participantes do processo de aferição de propriedades psicométricas de um questionário para avaliar conhecimento sobre tracoma

A análise de confiabilidade aferida pelo alfa de Cronbach revelou um valor de 0,86. Avaliando-se a correlação de cada item com o escore médio do questionário completo, registrou-se que a retirada de alguns itens poderia aumentar ligeiramente o valor do alfa de Cronbach. Entretanto, os autores optaram pela manutenção dos itens considerando a relevância dos temas pelos itens. A correlação de item total corrigida foi superior a 0,5 para a maioria dos itens e não se mostrou inferior a 0,3 para nenhum dos itens.

A Tabela 3 apresenta o resultado da estatística Kappa no teste de reprodutibilidade do instrumento. A maioria dos itens apresentou concordância substantiva a quase perfeita.

Tabela 3
Estatística kappa para o teste de reprodutibilidade do questionário para avaliar conhecimento sobre tracoma

Discussão

Não existiam questionários validados sobre tracoma. Este estudo possibilitou a elaboração de um questionário para avaliar o conhecimento sobre tracoma de médicos e enfermeiros da atenção primária. As análises psicométricas evidenciaram validade satisfatória do instrumento a partir do teste de hipóteses. A confiabilidade do questionário aferida pelo o alfa de Cronbach revelou consistência interna adequada e o instrumento apresentou boa estabilidade temporal pelo teste-reteste.

O teste de hipóteses evidenciou um maior conhecimento a respeito do tema pelos médicos oftalmologistas e infectologistas em comparação com os profissionais da atenção primária. As outras caraterísticas (sexo, idade, estado civil, tempo de atuação e local de assistência) não influenciaram nos resultados.

Ao longo do processo, o instrumento, inicialmente com 52 itens, ficou com 34, sendo excluídos itens nas três dimensões do instrumento. Foram excluídos itens a partir das considerações dos experts, durante o processo de validação de conteúdo e, posteriormente outros itens considerados muito difíceis pelos respondentes. É possível que os pesquisadores, após a revisão da literatura, tenham considerado muitos aspectos do tema como muito relevantes, sem levar em conta que alguns aspectos podem ser demasiado profundos para os profissionais da atenção primária. Nesse sentido, o papel dos experts é crucial para o delineamento de um instrumento mais coerente com a população que o utilizará.(1818 Coluci MZ, Alexandre NM, Milani D. Construção de instrumentos de medida na área da saúde. Cien Saude Colet. 2015;20(3):925-36.) De forma similar, no processo de validação de construto, é relevante considerar que questões com um percentual muito baixo de respostas corretas não avaliam conhecimento.

A aplicação do questionário elaborado a grupos distintos de profissionais possibilitou a condução do teste de hipóteses, condição satisfatória para a validação de construto, segundo Pasquali.(1919 Pasquali L. Psicometria. Rev Esc Enferm USP. 2009;43(Esp):992-9.) Adicionalmente, a aplicação do instrumento possibilitou a identificação de lacunas no conhecimento dos profissionais da atenção primária, sobre o tracoma. Esse resultado provavelmente reflete uma baixa dedicação ao tema desde a graduação, que pode ser fruto de uma percepção equivocada quanto à erradicação da doença.(1010 Schellini SA, Sousa RL. Tracoma: ainda uma importante causa de cegueira. Rev Bras Oftalmol. 2012;71(3):199-204.)

É importante que se reconheça que o tracoma persiste como causa de cegueira em muitas regiões do Brasil e que algumas ações sejam efetivadas visando sua erradicação. Tendo em vista que a atenção primária é a porta de entrada do sistema de saúde, é importante que os profissionais de saúde, especialmente médicos e enfermeiros que atuam em equipes da Estratégia Saúde da Família, possam estar preparados para identificar e conduzir adequadamente os casos de tracoma.

O instrumento consolidado, tem o potencial de auxiliar na identificação das fragilidades educacionais para médicos e enfermeiros da atenção primária. Pode ser ainda um instrumento útil para auxiliar gestores de saúde na elaboração de planos de capacitação para suas equipes, bem como para avaliar impacto de estratégias educativas sobre o tema.

Figura 1
Instrumento

Conclusão

No presente estudo foi desenvolvido e validado com boa consistência interna e boa confiabilidade um instrumento de avaliação do conhecimento sobre tracoma de médicos e enfermeiros que atuam na atenção primária. Este instrumento pode ser útil na elaboração de estratégias educacionais para estes profissionais.

  • Instituição de realização do trabalho: Universidade Estadual de Montes Claros

Referências

  • 1
    Taylor HR, Burton MJ, Haddad D, West S, Wright H. Trachoma. Lancet. 2014;384(9960):2142-52.
  • 2
    Hu VH, Harding-Esch EM, Burton MJ, Bailey RL, Kadimpeul J, Mabey DC. Epidemiology and control of trachoma: systematic review. Trop Med Int Health. 2010;15(6):673-91.
  • 3
    Araújo Silva MB, Andrade MS, de Oliveira YV, Santiago Marques MG, Mourão Pinho C, Araújo de Miranda Lopes K. Trachoma as cause of blindness: literature review. Int Arch Med. 2017;10(56):1-9.
  • 4
    Lansingh VC. Trachoma. BMJ Clin Evid. 9;2016:0706.
  • 5
    World Health Organization (WHO). Alliance for the Global elimination of trachoma by 2020: progress report on elimination of trachoma, 2014-2016. Geneva: WHO; 2017.
  • 6
    World Health Organization (WHO). Planning for the global elimination of Trachoma (GET): report of a WHO Consultation Geneva 1997. Geneva: WHO; 1997.
  • 7
    World Health Organization (WHO). 51 st World Healty Assembly, WHA51. 11Global elimination of blinding trachoma. Geneva: WHO; 1998.
  • 8
    Gómez DV, Lopes MF, Medina NH, Luna EJ. Tracoma: aspectos epidemiológicos e perspectivas de eliminação como problema de saúde pública no Brasil. eOftalmo. 2018;4(4):147-53.
  • 9
    Brasil. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Manual de controle do tracoma. Brasília (DF): Fundação Nacional de Saúde; 2014. p. 52.
  • 10
    Schellini SA, Sousa RL. Tracoma: ainda uma importante causa de cegueira. Rev Bras Oftalmol. 2012;71(3):199-204.
  • 11
    Beeckman D, Vanderwee K, Demarré L, Paquay L, Van Hecke A, Defloor T. Pressure ulcer prevention: development and psychometric validation of a knowledge assessment instrument. Int J Nurs Stud. 2010 ;47(4):399-410.
  • 12
    Bonett DG, Wright TA. Cronbach's alpha reliability: interval estimation, hypothesis testing, and sample size planning. J Organ Behav. 2015;36(1):3-15.
  • 13
    Bland JM, Altman DG. Cronbach's alpha. BMJ. 1997;314(7080):572.
  • 14
    Streiner DL. Starting at the beginning: an introduction to coefficient alpha and internal consistency. J Pers Assess. 2003;80(1):99-103.
  • 15
    Cortina JM. What is coefficient alpha? An examination of theory and applications. J Appl Psychol. 1993;78(1):98-104.
  • 16
    Streiner DL, Norman GR, Cairney J. Health measurement scales. A practical guide to their development and use. Oxford University Press; 2015.
  • 17
    Landis JR, Koch GG. The measurement of observer agreement for categorical data. Biometrics. 1977;33(1):159-74.
  • 18
    Coluci MZ, Alexandre NM, Milani D. Construção de instrumentos de medida na área da saúde. Cien Saude Colet. 2015;20(3):925-36.
  • 19
    Pasquali L. Psicometria. Rev Esc Enferm USP. 2009;43(Esp):992-9.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Nov-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2020
  • Aceito
    23 Set 2020
Sociedade Brasileira de Oftalmologia Rua São Salvador, 107 , 22231-170 Rio de Janeiro - RJ - Brasil, Tel.: (55 21) 3235-9220, Fax: (55 21) 2205-2240 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: rbo@sboportal.org.br