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Lagoftalmo na hanseníase: experiência clínica em centro de referência amazonense

RESUMO

Objetivo:

O presente trabalho teve por objetivo caracterizar o perfil epidemiológico e clínico de pacientes com lagoftalmo associado à hanseníase, atendidos no ambulatório de oftalmologia da Fundação Alfredo da Matta, Manaus, Amazonas.

Métodos:

Trata-se de estudo retrospectivo realizado por meio da análise dos prontuários clínicos dos pacientes incluídos no estudo. Sexo, idade, forma clínica, grau de incapacidade no diagnóstico e desfecho foram obtidos dos prontuários. Início, tipo de comprometimento (unilateral ou bilateral), grau de intensidade do lagoftalmo e alterações oculares associadas também foram compilados. Resultados: Foram incluídos 65 pacientes; 66,1% eram do sexo masculino e 53,8% tinham idade superior a 60 anos. Em relação à classificação operacional da hanseníase, a maioria dos pacientes (81,5%) era multibacilar: 33,8% na forma de hanseníase borderline e 47% virchowiana. 36,9% casos apresentavam sequelas oculares associadas ao lagoftalmo: opacidade corneana, epífora, ceratopatia em faixa, e neovascularização corneana.41,6% evoluíram para a cegueira. O lagoftalmo foi conduzido de forma clínica em 23 pacientes e a abordagem cirúrgica foi indicada em 42. Em relação ao tratamento cirúrgico consistiu principalmente no implante de peso de ouro e na cantoplastia de Tessier.

Discussão:

O lagoftalmo nessa casuística acometeu mais homens idosos, esteve relacionado à forma multibacilar, com hanseníase do tipo virchowiano como relatado na literatura. O diagnóstico de lagoftalmo foi tardio na maioria dos casos, explicando o grande número de sequelas incluindo a cegueira.

Conclusão:

O presente estudo reforça a necessidade de acompanhamento oftalmológico precoce para que as potenciais e graves sequelas associadas a essa condição sejam evitadas.

Descritores:
Mycobacterium leprae; Leprozy; Lagoftalmo; Doenças oculares; Ceratopatia; Cegueira

ABSTRACT

Objective:

The present study aimed to characterize the epidemiological and clinical profile of patients with lagophthalmos associated with leprosy, seen at the ophthalmology outpatient clinic of Fundação Alfredo da Matta, Manaus, Amazonas.

Methods:

This is a retrospective study carried out by analyzing the medical records of the patients included in the study. Sex, age, clinical form, degree of disability in diagnosis and outcome were obtained from medical records. Onset, type of impairment (unilateral or bilateral), degree of intensity of lagophthalmos and associated eye changes were also compiled.

Results:

65 patients were included; 66.1% were male and 53.8% were older than 60 years. Regarding the operational classification of leprosy, most patients (81.5%) were multibacillary: 33.8% in the form of borderline leprosy and 47% virchowian. 36.9% of cases had ocular sequelae associated with lagophthalmos: corneal opacity, epiphora, band keratopathy, and corneal neovascularization.41.6% progressed to blindness. Lagophthalmos was performed clinically in 23 patients and the surgical approach was indicated in 42. Regarding surgical treatment, it consisted mainly of gold weight implantation and Tessier's canthoplasty. Discussion: Lagophthalmos in this sample affected more elderly men, was related to the multibacillary form, with leprosy-like leprosy as reported in the literature. The diagnosis of lagophthalmos was delayed in most cases, explaining the large number of sequelae including blindness.

Conclusion:

The present study reinforces the need for early eye care so that the potential and serious sequelae associated with this condition are avoided.

Keywords:
Mycobacterium leprae; Lepra; Lagophthalmos; Eye diseases; Keratopathy; Blindness

INTRODUÇÃO

hanseníase ou Mal de Hansen (MH) é doença bacteriana crônica transmitida pelo bacilo Mycobacterium leprae, agente etiológico que se multiplica lentamente, propagando-se, principalmente, pelas áreas mais frias do corpo, como mãos e pés, podendo também acometer olhos, mucosas, ossos e testículos. Esse patógeno nunca foi cultivado in vitro.(11 Stefani MM, Rosa PS, Costa MB, Schetinni AP, Manhães I, Pontes MA, et al. Leprosy survey among rural communities and wild armadillos from Amazonas state, Northern Brazil. PLoS One. 2019;14(1):e0209491.) O bacilo pode causar lesão no globo ocular e anexos oculares. O lagoftalmo, hipo/anestesia da córnea, ceratite e iridociclite são consideradas complicações oftalmológicas associadas à hanseníase. Todas essas condições podem levar a diminuição da acuidade visual e, eventualmente, cegueira.(22 Grzybowski A, Nita M, Virmond M. Ocular leprosy. Clin Dermatol. 2015;33(1):79-89.)

Até sessenta por cento de pacientes com hanseníase podem apresentam alterações oftalmológicas.(33 Kamble KM, Gitte SV, Sabat RN. Efficacy of steroid and physiotherapy in early reported lagophthalmos of patient affected with leprosy. A report from tribal dominated leprosy endemic state of India. Indian J Lepr. 2016;87(4):227-31.,44 Moss HE. Eyelid and facial nerve disorders. In: Moss HE, editor. Liu, Volpe, and Galetta's Neuro-Ophthalmology: Diagnosis and management. 3rd ed. Philadelphia:Elsevier; 2019. p. 449-88.) Entre as alterações mais frequentes encontra-se o lagoftalmo (15 a 22% das alterações). O lagoftalmo pode ocorrer em todos os tipos de hanseníase, antes ou durante o tratamento.(55 Chavarro-Portillo B, Soto CY, Guerrero MI. Mycobacterium leprae's evolution and environmental adaptation. Acta Trop. 2019 ;197:105041.)

A diminuição do ato de piscar e o lagoftalmo que consiste na incapacidade de fechamento palpebral completo são manifestações oculares diretamente relacionadas à lesão do nervo facial (VII par craniano).(33 Kamble KM, Gitte SV, Sabat RN. Efficacy of steroid and physiotherapy in early reported lagophthalmos of patient affected with leprosy. A report from tribal dominated leprosy endemic state of India. Indian J Lepr. 2016;87(4):227-31.,66 Lewallen S, Tungpakorn NC, Kim SH, Courtright P. Progression of eye disease in "cured" leprosy patients: implications for understanding the pathophysiology of ocular disease and for addressing eyecare needs. Br J Ophthalmol. 2000;84(8):817-21.,77 Hogeweg M, Keunen JE. Prevention of blindness in leprosy and the role of the Vision 2020 Programme. Eye (Lond). 2005;19(10):1099-105.) No lagoftalmo, ocorre acometimento dos ramos zigomáticos e temporais desse nervo.(44 Moss HE. Eyelid and facial nerve disorders. In: Moss HE, editor. Liu, Volpe, and Galetta's Neuro-Ophthalmology: Diagnosis and management. 3rd ed. Philadelphia:Elsevier; 2019. p. 449-88.,88 Turkof E, Richard B, Assadian O, Khatri B, Knolle E, Lucas S. Leprosy affects facial nerves in a scattered distribution from the main trunk to all peripheral branches and neurolysis improves muscle function of the face. Am J Trop Med Hyg. 2003;68(1):81-8.,99 Forno EA. Lagoftalmo paralítico. In: Matayoshi S, Forno EA, editors. Manual de cirurgia plástica ocular. São Paulo: Roca; 2004. p. 79-86.)

O lagoftalmo ocasiona a exposição da córnea, micro traumas, infecções secundárias e, finalmente, progressiva opacificação da córnea,(1010 Malu KN, Malu AO. Blindness in leprosy patients of Kaduna State, Northern Nigeria. Trop Doct. 1995;25(4):181-3.,1111 Mvogo CE, Bella-Hiag AL, Ellong A, Achu JH, Nkeng PF. Ocular complications of leprosy in Cameroon. Acta Ophthalmol Scand. 2001;79(1):31-3.) levando à diminuição de acuidade visual e cegueira. Ressalta-se assim a importância do seu diagnóstico e tratamento

O presente estudo tem como objetivo correlacionar as formas clínicas da hanseníase com o lagoftalmo e com o tratamento.

MÉTODOS

Trata-se de estudo descritivo, retrospectivo realizado por meio da análise dos prontuários clínicos de pacientes portadores de hanseníase examinados por um dos autores (GB) na Fundação Alfredo da Mata (FUAM), em Manaus, Amazonas, no período de janeiro de 2004 a dezembro de 2014. Os pacientes foram atendidos consecutivamente, por demanda espontânea, por meio de agendamento de rotina, no ambulatório de oftalmologia.

Os seguintes dados foram incluídos na pesquisa: sexo, idade, forma clínica (exame histopatológico), forma operacional da hanseníase, grau de incapacidade no diagnóstico e cura da doença e desfecho foram obtidos dos prontuários. Início, tipo de comprometimento (unilateral ou bilateral), grau de intensidade do lagoftalmo (discreto: até 3 mm; moderado: entre 3 mm e 6 mm e severo: maior que 6 mm), alterações oculares associadas, tratamento clinico e cirúrgico. Foram analisados ainda: forma clínica da hanseníase (definida pelos exames clínico e histopatológico), forma operacional (definida, pela baciloscopia, em paucibacilar (PB) ou multibacilar (MB), grau de incapacidade física (GIF) no diagnóstico e na cura além do desfecho (cura, óbito, abandono do tratamento ou transferência para outro município).

Os seguintes dados oftalmológicos foram compilados dos prontuários clínicos: início do quadro clínico oftalmológico, tipo de lagoftalmo (unilateral ou bilateral), grau de intensidade do lagoftalmo, avaliação do reflexo de Bell, sequelas oculares e presença de cegueira relacionadas ao lagoftalmo.

A intensidade do lagoftalmo(1212 Linhares JD, França VP, Soares EJ. Lagoftalmo paralítico: uma proposta de classificação clínico-cirúrgica. Arq Bras Oftalmol. 1995;58(5):319-24.) foi classificada em discreto (até 3 mm), moderada (acima de 3 mm e abaixo de 6 mm) e severa (6 mm ou mais). O lagoftalmo foi medido com régua milimetrada, com o paciente na posição vertical. Após solicitação de fechamento dos olhos, a abertura parcial residual (entre as bordas palpebrais superior e inferior) foi mensurada(33 Kamble KM, Gitte SV, Sabat RN. Efficacy of steroid and physiotherapy in early reported lagophthalmos of patient affected with leprosy. A report from tribal dominated leprosy endemic state of India. Indian J Lepr. 2016;87(4):227-31.) (Figura 1).

Figura 1
Intensidade do lagoftalmo: A) Lagoftalmo discreto (até 3mm); B) Lagoftalmo moderado (até 5mm) e C) Lagoftalmo severo (acima de 6 mm).

Os resultados do exame de biomicroscopia (lâmpada de fenda) para a avaliação das estruturas oculares (cílios, borda palpebral, superfície corneana, conjuntiva bulbar, conjuntiva tarsal superior e inferior e pontos lacrimais) também foram inseridos na ficha clínica do estudo.

A medida da capacidade visual para longe dos pacientes, realizada por meio dos exames com e sem o auxílio óptico (óculos ou lentes), foi compilada do prontuário clínico. A escala de medida utilizada foi 5% (20/400) a 100% (20/20). Nos pacientes que apresentavam acuidade visual inferior a 5%, dados sobre a medida de conta dedos (CD) (examinador 1 a 2 metros de distância do paciente), percepção de vultos ou movimento de mãos (MM) e teste de percepção luminosa (PL) foram incluídos na ficha clínica do estudo.

Avaliação do grau de incapacidade física (GIF) foi realizado no diagnóstico e na alta dos pacientes segundo critérios preconizados pelo Ministério da Saúde (Anexo 1).(1313 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Guia prático sobre a hanseníase. Brasília(DF): Ministério da Saúde; 2017.)

Pacientes com grau 0, na avaliação da GIF, apresentam força muscular palpebral e sensibilidade corneana preservadas, mas visão subnormal (paciente conta dedos a 6 metros ou acuidade visual maior ou igual a 0,1 ou 6:60). Enfermos com GIF 1 tem, ao exame, diminuição da força muscular palpebral, sem deficiências visíveis e/ou diminuição ou perda da sensibilidade corneana (resposta demorada ou ausente ao toque do fio dental ou diminuição/ausência do piscar). No GIF 2, as manifestações palpebrais são evidentes, podendo ocorrer lagoftalmo, ectrópio, triquíase, opacidade corneana, lesões na câmara anterior (iridociclite) e a acuidade visual está comprometida (paciente não consegue contar dedos a 6 metros ou acuidade visual menor que 0,1 ou 6:60, excluídas outras causas), caracterizando cegueira geralmente irreversível.(1313 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Guia prático sobre a hanseníase. Brasília(DF): Ministério da Saúde; 2017.)

Em relação à análise estatística, os dados foram tabulados em planilhas do Microsoft Excel e submetidos a análise estatística descritiva, constando dados de frequência absoluta e frequência relativa. Para análise dos perfis epidemiológico e clínicos, foram considerados sexo e faixa etária. Foram realizadas análises correlacionando o tempo de desenvolvimento do lagoftalmo e a relação entre a gravidade dessa manifestação clínica com a faixa etária do paciente.

O estudo foi aprovado pelo Conselho de Ética e Pesquisa da FUAM (CAAE: 99339018.6.0000.0002).

RESULTADOS

No presente estudo, foram analisados 65 pacientes com lagoftalmo em associação à hanseníase; 43 (66,1%) eram do sexo masculino e 22 (33,8%), do sexo feminino. Em relação à faixa etária, a maioria (35; 53,8%) tinha idade acima de 60 anos. Em relação à classificação, três (4,6%) pacientes tinham hanseníase indeterminada (HI), nove (13,7%), hanseníase tuberculóide (HT), 22 (33,8%), hanseníase borderline (HB) e 31 (47%) enfermos apresentavam hanseníase virchowiana (HV). Em relação à classificação operacional, 12 (18,5%) pacientes tinham doença paucibacilar (PB) e 53 (81,5%), multibacilar (MB) (Tabela 1).

Tabela 1
Aspectos epidemiológicos e clínicos dos 65 pacientes com lagoftalmo associado à hanseníase

Em relação ao tempo de evolução da hanseníase e diagnóstico do lagoftalmo, 21 (32,3%) pacientes desenvolveram essa alteração ocular em menos de cinco anos após o diagnóstico da doença; sete (10,8%), entre cinco e dez anos; 11 (16,9%), entre dez e 15 anos; 6 (9,2%), entre 15 e 20 anos; quatro (6,1%), entre 20 e 25 anos; cinco (7,6%), entre 25 e 30 anos; 4 (6,1%), entre 30 e 35 anos e um (1,5%), entre 35 e 40 anos após o diagnóstico da hanseníase (Tabela 2).

Tabela 2
Intervalo de tempo entre diagnóstico de hanseníase e início do lagoftalmo, de acordo com a forma clínica da hanseníase

O grau de incapacidade física (GIF), no momento do diagnóstico da hanseníase, foi dois em 38 (58%) pacientes, zero em 14 (21%) e um em cinco (7%) enfermos.

O lagoftalmo foi identificado em 94 olhos; o comprometimento foi unilateral em 36 (55,3%) e bilateral em 29 (44,6%) enfermos. Nos casos de lagoftalmo unilateral, essa condição era discreta em 13 casos (20%), moderada em 11 (16,9%) e severa em 12 (18,5%) dos pacientes. O lagoftalmo bilateral foi classificado como discreto em dez (15,4%) casos, moderado em cinco (7,6%) e severo em oito (12,3%). No grupo dos enfermos com lagoftalmo bilateral, 23 (64%) tinham hanseníase (MB) e 6 (36%) apresentavam a forma PB. Já nos pacientes portadores de lagoftalmo unilateral, 30 (83%) apresentavam hanseníase MB e seis (17%) a forma PB (Tabela 3)

Tabela 3
Classificação do lagoftalmo, de acordo com a intensidade e forma clínica da hanseníase

Dentre os 65 pacientes com hanseníase, 24 (36,9%) apresentaram uma ou mais sequelas oculares associadas ao lagoftalmo. As mais frequentes foram: atrofia bulbar (dois; 8,3%), ceratopatia em faixa (quatro; 16,6%), conjuntivite (quatro; 16,6%), pterígio (quatro; 16,6%), epífora (cinco; 20,8%) e opacidade corneana total (seis; 3%). Dentre os pacientes com sequelas associadas ao lagoftalmo, a maioria foi associada à forma virchowiana (14; 58,3%).

Doze (26,6%) pacientes apresentaram cegueira em razão de graves sequelas associadas ao lagoftalmo; a maioria (8;17,7%) tinha formas MB da doença. Em relação ao reflexo de Bell, cinco (7,7%) enfermos, essa reação estava ausente ou abolida, dois dentre eles evoluíram para cegueira.

O tratamento clínico com colírios lubrificantes e fisioterapia para fortalecimento do músculo orbicular foi recomendado para 23(35,4%) pacientes. O tratamento cirúrgico foi indicado em 42 pacientes e realizadas em vinte e cinco (38,4%). As técnicas cirúrgicas mais utilizadas para a correção do lagoftalmo foram: implante de peso de ouro (Figura 2), cantoplastia de Tessier e associação das duas técnicas.

Figura 2
Peça cirúrgica estéril de implante de peso de ouro e aspecto intraoperatório mostrando a sua inserção abaixo do músculo orbicular.

Após a alta do tratamento de hanseníase, o número de pacientes com GIF 2 passou de 38 (58%) pacientes para 51 (78%)

DISCUSSÃO

No Brasil, quando o paciente tem diagnóstico confirmado de lagoftalmo, é preconizado que o mesmo seja classificado como GIF 2. Estudo demonstrou que as incapacidades físicas associadas à hanseníase eram raras em pacientes com menos de um ano de evolução. Um a três anos após o diagnóstico, esse percentual foi 3,9% e aumentou para 25% quando os diagnóstico da doença foi tardio (até oito anos de evolução).(1414 Soares LS, Pimentel AF, Ferreira AP. The impact of multidrug therapy on the epidemiological pattern of leprosy in Juiz de Fora, Brazil O impacto da poliquimioterapia no perfil epidemiológico da hanseníase em Juiz de Fora, Brasil. Cad Saúde Pública. 2000;16(2):343-50.) Na China, dentre os pacientes diagnosticados com lagoftalmo e formas MB de hanseníase, aproximadamente 70% tinha mais de dez anos de evolução de doença.(1515 Waziri-Erameh MJ, Omoti AE. Ocular leprosy in Nigeria: a survey of an Eku leprosorium. Trop Doct. 2006;36(1):27-8.)

No presente trabalho, dentre os 51 pacientes com GIF 2, no momento da cura, 34 (51,5%) eram homens e 17 (25,7%), mulheres. Em estudo brasileiro com 28 pacientes, houve predomínio do sexo masculino (63%).(1616 Angelucci R, Sampaio P, Proto R, Sato L, Rehder JR. Análise das principais manifestações oculares de pacientes hansenianos nas regiões Norte e Sudeste do Brasil. Rev Bras Oftalmol. 2007;66(4):236-41.) Moschioni e colaboradores(1717 Moschioni C, Antunes CM, Grossi MA, Lambertucci JR. Risk factors for physical disability at diagnosis of 19,283 new cases of leprosy. Rev Soc Bras Med Trop. 2010;43(1):19-22.) também verificaram que pacientes do sexo masculino apresentavam maior frequência de deformidades associadas à hanseníase do que os do sexo feminino. Esse fato foi atribuído à menor procura por centros de saúde, medo de que o estigma relacionado à doença provocasse demissão e porque, geralmente, indivíduos do sexo masculino desempenham atividades físicas mais pesadas, as quais poderiam contribuir para o aparecimento e piora das deformidades.

A HV ocorre nos indivíduos que apresentam imunidade celular menos eficaz contra o M. leprae. Na forma borderline da doença há maior propensão para o surgimento de reações hansênicas, as quais constituem importantes causas de incapacidades físicas como o lagoftalmo.(1818 Talhari S, Penna GO, Gonçalves HO. Hanseníase. Aspectos gerais da hanseníase, agente etiológico, transmissão, patogenia, classificação, manifestação clínica, diagnóstico. Rio de Janeiro: DiLivros; 2015. p. 217.) Kusagur e colaboradores afirmam que, nos enfermos com HV, há dano ocular direto pelo bacilo, enquanto que na forma tuberculóide, esse comprometimento acontece de forma indireta, via hematogênica.(1919 R. Kusagur S. S. Kusagur M, K.J G. A Clinical study of ocular manifestations in leprosy. J Evol Med Dent Sci. 2013;2(36):6816-23.)

Nesse estudo, houve predomínio de lagoftalmo em enfermos com mais de 60 anos e hanseníase MB (26; 74%). Resultados semelhantes foram encontrados em 57 pacientes com lagoftalmo, no Nepal.(2020 Lubbers WJ, Schipper A, Hogeweg M, de Soldenhoff R. Paralysis of facial muscles in leprosy patients with lagophthalmos. Int J Lepr Other Mycobact Dis. 1994;62(2):220-4.) Na Índia, em 1137 pacientes com hanseníase, a idade foi fator significativo e independente para a ocorrência de cegueira. Pacientes com idade superior a 40 anos eram sete vezes mais propensos a desenvolverem cegueira do que aqueles com idade inferior a 40 anos. Esse estudo mostrou ainda que enfermos com mais de 60 anos tinham 15 vezes mais chances de ficar cego do que os com idade inferior a 60 anos.(2121 Thompson KJ, Allardice GM, Babu GR, Roberts H, Kerketta W, Kerketta A. Patterns of ocular morbidity and blindness in leprosy-a three centre study in Eastern India. Lepr Rev. 2006;77(2):130-40.)

Lewallen e colaboradores sugerem que o lagoftalmo bilateral ocorra mais frequentemente em pacientes com formas MB da doença devido à maior proliferação do M. leprae nos nervos faciais e maior frequência de tratamento inadequado nesse grupo de enfermos.(2222 Lewallen S, Courtright P. Ocular Involvement in Leprosy. In: Nunzi Enrico M, editor. Leprosy: A practical guide. Verlag: Springer International Publishing; 2012. p. 247-54.) No presente estudo, verificou-se uma maior frequência da forma MB nos casos unilaterais.

O lagoftalmo esteve relacionado com cegueira em 12 pacientes (26,6%), desses a maior parte era de multibacilares e na forma virchowiana. Malu e colaboradores, em 311 pacientes com hanseníase, verificaram que havia cegueira em 74 olhos acometidos, sendo também a ceratite e a opacidade corneana, associadas ao lagoftalmo, as principais causas.(1010 Malu KN, Malu AO. Blindness in leprosy patients of Kaduna State, Northern Nigeria. Trop Doct. 1995;25(4):181-3.) Na Nigéria, a opacidade corneana total causou cegueira em 23,2% dos pacientes com hanseníase.(2323 Ebeigbe JA, Kio F. Ocular leprosy in institutionalized Nigerian patients. Ghana Med J. 2011;45(2):50-3.)

Importante ressaltar a evolução do grau de incapacidade física, que era GIF 2 em 38 pacientes no momento do diagnóstico da hanseníase e, durante novo exame, na alta do tratamento para a enfermidade, foi verificada em 51 doentes. Alguns fatores devem ser considerados:

  1. Admissão de pacientes já com estado avançado de incapacidade física, que com o envelhecimento tendem a piorar; corroborando observações de Waziri-Erameh e Daniel E.(1515 Waziri-Erameh MJ, Omoti AE. Ocular leprosy in Nigeria: a survey of an Eku leprosorium. Trop Doct. 2006;36(1):27-8.,2424 Daniel E, Ffytche TJ, Kempen JH, Rao PS, Diener-West M, Courtright P. Incidence of ocular complications in patients with multibacillary leprosy after completion of a 2 year course of multidrug therapy. Br J Ophthalmol. 2006;90(8):949-54.)

  2. Mesmo com o controle da doença, existe a progressão das sequelas

  3. A alta medicamentosa da hanseníase, no sistema de saúde, está ligada ao controle do processo infeccioso e não à resolução das sequelas.

Em relação ao tratamento das sequelas oculares, essa classificação é, de certa forma, falha para a quantificação dessas alterações, devendo assim ser vista com cautela como indicador de sucesso da abordagem terapêutica oftalmológica.

O diagnóstico do lagoftalmo deve ser precoce para que as potenciais e graves sequelas associadas a essa condição possam ser evitadas. O acompanhamento oftalmológico dos pacientes com hanseníase deve ser periódico e contínuo, mesmo após alta da poliquimioterapia. Em muitos pacientes, o lagoftalmo manifesta-se tardiamente; eventualmente, após a cura ou alta ambulatorial, mesmo depois do término do esquema terapêutico preconizado para a hanseníase.(2424 Daniel E, Ffytche TJ, Kempen JH, Rao PS, Diener-West M, Courtright P. Incidence of ocular complications in patients with multibacillary leprosy after completion of a 2 year course of multidrug therapy. Br J Ophthalmol. 2006;90(8):949-54.,2525 Medina NH, Marzliak MLC, Lafrattá TE. Vigilância epidemiológica das incapacidades oculares em hanseníase. Hansen Int. 2004;29(2):101-5.)

Os pacientes com hanseníase, principalmente os que apresentam formas MB, devem ser, rotineiramente, examinados por oftalmologista para que casos de cegueira sejam evitados.

Quanto mais precocemente for realizado o diagnóstico do lagoftalmo, maior a possibilidade de prevenção e reabilitação das sequelas oculares associadas a esse quadro. Estima-se que, em até seis meses de evolução, seja possível minimizar ou reverter o lagoftalmo. Após seis meses, a lesão do nervo periférico tende a se tornar permanente e irreversível.(2626 Kiran KU, Hogeweg M, Suneetha S. Treatment of recent facial nerve damage with lagophthalmos, using a semistandardized steroid regimen. Lepr Rev. 1991;62(2):150-4.)

Não existem muitos artigos recentes que abordem o tratamento cirúrgico do lagoftalmo na hanseníase e comparem técnicas cirúrgicas. Assim, os tratamentos empregados são derivados de técnicas utilizadas para lagoftalmo paralítico de causas diversas (principalmente relacionados a sequelas neoplásicas, cirúrgicas e traumáticas).

O implante de peso de ouro foi a técnica cirúrgica mais indicada no presente estudo (Figura 2). Essa técnica, por fazer uso da gravidade, proporciona excelente fechamento palpebral vertical.(2727 Wolkow N, Chodosh J, Freitag SK. Innovations in Treatment of Lagophthalmos and Exposure Keratopathy. Int Ophthalmol Clin. 2017;57(4):85-103.) (figura 3) Embora tecnicamente seja rápida e eficaz, atualmente não está mais disponibilizada no SUS no presente momento; assim alternativas como cantoplastia de Tessier e tarsorrafias são as opções mais viáveis no momento. Especial atenção deve ser dada à cantoplastia de Tessier, que permite a diminuição da fenda palpebral vertical e horizontal. Do ponto de vista cosmético, tanto a tarsorrafia quanto a cantoplastia de Tessier promovem assimetria em relação ao lado normal.

Figura 3
Lagoftalmo bilateral em paciente portador de hanseníase, submetido a correção cirúrgica pela técnica de implante peso de ouro. A.: pré-operatório em tentativa de oclusão palpebral; B.: pós-operatório com lagoftalmo bilateral corrigido

É necessário frisar que a cirurgia não restaura a oclusão fisiológica palpebral;(2828 Courtright P, Lewallen S. Current concepts in the surgical management of lagophthalmos in leprosy. Lepr Rev. 1995;66(3):220-3.) essa tem como objetivo diminuir a superfície de exposição e, assim, minimizar ou evitar a progressão do dano corneano. Por outro lado, muitas vezes há necessidade de associação de diversos procedimentos para resultados mais satisfatórios.

CONCLUSÕES

Homens idosos, multibacilares, com HV apresentaram, nessa amostra, lagoftalmo unilateral ou bilateral de graus moderado e severo. O aparecimento mais tardio do lagoftalmo em relação ao diagnóstico de hanseníase frisa a necessidade de avaliação precoce e contínua que envolva cuidados oftalmológicos para minimizar as complicações do lagoftalmo mesmo após a cura do processo infeccioso.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Feb 2021

Histórico

  • Recebido
    22 Jun 2020
  • Aceito
    02 Nov 2020
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