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A responsabilidade das entidades representativas

The responsibility of professional associations

Nos últimos anos, o mercado financeiro percebeu que investir na Medicina, em geral, e na Oftalmologia, em particular, seria uma aplicação rentável. Assim, grandes fundos de investimento, em sua maioria internacionais, aplicaram na saúde suplementar, montando planos verticalizados, com prejuízo à autonomia do trabalho médico. No outro extremo do espectro mercadológico, clínicas estão sendo compradas e consolidadas por grupos financeiros, formando grandes empresas.

Como ambos os grupos (clínicas consolidadas e planos verticalizados) pertencem a fundos de investimento e exercem atividades complementares, basta que dois CEOs acertem valores e troca de ações, para eles, estrategicamente, fundirem-se, o que já está acontecendo. A Athena Saúde é uma empresa do grupo Pátria Investimentos, que atua no mercado de saúde suplementar. Nesse cenário, as fontes pagadoras se unirão às grandes redes prestadoras de serviço para dominar o ciclo da saúde.

Em paralelo, a tecnologia avançada, alavancada por ações de marketing, só será viável para os grandes grupos, o que deprecia a prática de muitos oftalmologistas.(11. Kara-Junior N. Technology, teaching, and the future of ophthalmology and the ophthalmologist. Arq Bras Oftalmol. 2018;81(3):v-vi.) Com esses importantes players dominando o mercado, provavelmente o relacionamento e as negociações em pequena escala com a indústria passarão a ser mais difíceis, o que prejudicará as clínicas de médio porte.

Um conhecido oftalmologista do Rio de Janeiro tem, há 20 anos, uma clínica em um shopping. Há alguns anos, um fundo de investimento tentou, sem sucesso, comprá-la. Agora, esse mesmo grupo consolidado está inaugurando uma clínica própria a seu lado no shopping. É assim que funciona o grande grupo empresarial: ganha mercado sufocando pequenos e médios empreendedores. Foi o que aconteceu nas grandes cidades com supermercados, farmácias, postos de gasolina, onde apenas redes maiores ou serviços exclusivos são economicamente viáveis.

Em termos de estratégia de mercado, as condições que interessam aos grandes grupos de saúde são os médicos em abundância e com formação técnica limitada, pois, assim, eles não reclamam das condições de trabalho, não exigem melhor remuneração e nem se unem para montar uma clínica independente; a privatização da Atenção Primária do Sistema Único de Saúde (SUS), para ampliar o mercado consumidor; a telemedicina e a possibilidade de se aproveitar da frágil situação econômica das clínicas, devido à pandemia da doença pelo coronavírus 2019 (COVID-19), para adquiri-las.

São as associações de classe que sinalizam a posição dos oftalmologistas perante a sociedade e o governo, além de representar nossos interesses e levar nossos pleitos para instâncias superiores, como a Associação Médica Brasileira (AMB), o Conselho Federal de Medicina (CFM), o Ministério da Saúde, o Congresso Nacional, o Ministério Público, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e a imprensa em geral. Os oftalmologistas só conseguem se manifestar e serem escutados por intermédio de seus órgãos representativos.

Assim, é importante que a Oftalmologia tenha associações de classe independentes, para defender os interesses de seus profissionais. Eventualmente, os objetivos dos oftalmologistas podem coincidir com os anseios dos grandes grupos de saúde, mas, quando a pauta é divergente, a comunidade precisa estar atenta para coibir possíveis conflitos de interesse.

Em nossa opinião, a pauta que mais interessa aos oftalmologistas, neste momento, é a situação social da refratometria, pois, embora a exclusividade na prescrição de lentes corretoras seja um direito legal do oftalmologista, esse direito vem acompanhado do compromisso moral de efetivamente atender à necessidade da população. Assim, a solução para a erradicação da deficiência visual por falta de óculos no Brasil passa pela organização de projetos de Saúde Pública, no sentido de facilitar o acesso dos excluídos ao exame, bem como a aquisição dos óculos.

Acreditamos que a realização e a divulgação das ações sociais da Oftalmologia nesta seara sejam as principais respostas às autoridades e à população, mostrando que o médico oftalmologista é, de fato e de direito, o responsável pela refratometria. Projetos comunitários que envolvam prevenção ou tratamento de doenças oculares são importantes; porém, neste momento político em que estamos, a principal mensagem que a Oftalmologia precisa passar para a opinião pública é a de que estamos preparados, motivados e em quantidade suficiente para resolver o problema social da deficiência visual pela falta de óculos.(22. Kara-Junior N. The ophthalmologists dilemma. Rev Bras Oftalmol. 2020;79(1):5-5.)

Outro tema importante para ser defendido em prol do oftalmologista solo é a qualidade do ensino na especialização, pois especialistas mal preparados geralmente têm dificuldade em se firmar no mercado de trabalho como profissionais liberais e, provavelmente, formarão a massa de trabalho dos grandes grupos de saúde. Especialistas com boa formação e que conseguem, com poucos exames complementares, resolver a maioria dos problemas oculares, são os que terão maior chance de viabilizarem seus consultórios próprios. Acreditamos que o ativo mais valioso de uma especialidade médica é a qualidade técnica e moral de seus membros.(33. Kara-Junior N. Are ophthalmologists being trained for Brazil's social needs? Clinics (São Paulo). 2020;75:e2201.)

Com a telemedicina e os avanços tecnológicos no diagnóstico dos problemas de saúde, que, provavelmente, pouco dependerão do talento humano para sua interpretação, é possível que exames antes condicionados à presença física do médico passem a ser executados por aparelhos. São as lideranças da classe oftalmológica que precisam elaborar diretrizes para que as novas tecnologias sejam usadas para valorizar o médico – e não para substituí-lo.(44. Kara-Junior N. Ophthalmology 4.0. Rev Bras Oftalmol. 2019;78(3):157-8.,55. Kara-Junior N, José NK. The occurrences of consecutive infections after cataract surgeries: random events or a product of mistaken public politics? Clinics (São Paulo). 2016;71(6):295-6.)

Neste momento em que o mundo passa por rápidas transformações sociais, econômicas e comportamentais, a desvalorização do trabalho médico pode ser inevitável, porém cabe às nossas entidades representativas lutar para preservar o máximo do valor do trabalho médico. Acreditamos ser importante que as sociedades de classe apresentem, além de uma gestão administrativa e científica eficiente, foco nas ações inerentes às necessidades dos oftalmologistas.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Kara-Junior N. Technology, teaching, and the future of ophthalmology and the ophthalmologist. Arq Bras Oftalmol. 2018;81(3):v-vi.
  • 2
    Kara-Junior N. The ophthalmologists dilemma. Rev Bras Oftalmol. 2020;79(1):5-5.
  • 3
    Kara-Junior N. Are ophthalmologists being trained for Brazil's social needs? Clinics (São Paulo). 2020;75:e2201.
  • 4
    Kara-Junior N. Ophthalmology 4.0. Rev Bras Oftalmol. 2019;78(3):157-8.
  • 5
    Kara-Junior N, José NK. The occurrences of consecutive infections after cataract surgeries: random events or a product of mistaken public politics? Clinics (São Paulo). 2016;71(6):295-6.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    May-Jun 2021

Histórico

  • Recebido
    09 Fev 2021
  • Aceito
    11 Mar 2021
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